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A ética do cuidado às pessoas idosas em situação de rua

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Academic year: 2021

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A ética do cuidado às pessoas idosas em situação de rua

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Ana Cristina Passarella Brêtas Clara Maria Conde Pereira

São Paulo se traduz em um lugar onde os homens, as mulheres e o próprio mundo se movimentam. Está localizada na região sudeste do Brasil, é a quarta maior cidade do mundo, a maior da América do Sul, abriga seis por cento da população brasileira, e detém o terceiro maior orçamento do país. É um local de encantos e desencantos que mescla no seu território a heterogeneidade de distintos segmentos sociais. Delimita e, ao mesmo tempo escancara as desigualdades sociais – a pobreza se avizinha da riqueza e ambas incorporam em si as diferenças de gênero, geração e etnia -, compondo um universo urbano de descarte, no qual, paulatinamente, nos acomodamos frente as mazelas das injustiças sociais, banalizando o sofrimento humano.

Apesar de estarmos convencidas de que envelhecer na rua, em São Paulo, não é um destino que alguns estão fadados a vivenciar, observamos que a rua é um lugar de despejo precoce das pessoas, no caso dos velhos, e urge a busca de soluções que dêem conta de enfrentar esta questão.

Os estudos sobre os moradores de rua realizados pela FIPE/SAS em 2000 e 2003 não padronizaram os recortes etários e, sobretudo não consideraram a faixa de idade 60 anos e mais, dificultando a análise no que tange ao acompanhamento do número de pessoas idosas em situação de rua na cidade de São Paulo. O que podemos destacar, apenas a título de reflexão, é que no censo de 2000, dos 8.706 moradores de rua entrevistados, 1.655 (19%) tinham de 50 a 64 anos e 349 (4%) 65 anos ou mais de idade e; na pesquisa de 2003, dos 10.399, 1.456 (14%) possuíam 56 anos ou mais de idade. (FIPE/SAS 2000 e 2003).

Merece realce o estudo realizado em 2005 pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) com o objetivo de conhecer e informar as características e dimensões da população idosa em situação de rua usuária de albergues e abrigos com ela conveniados. A coleta de dados foi baseada em informações extraídas do Sistema de Informação da Situação de Rua (SISRua), tendo como referência a data de 31 de julho de 2005. Totalizou 701 usuários com idade a partir de 60 anos, atendidos em 27 albergues e nove abrigos. Desses, 88 são mulheres (12,6%) e 613 homens (87,4%). Quanto à faixa etária é predominante o número de idosos com 60 a 69 anos (81,8%), no

1Este trabalho integra o Núcleo de estudo e pesquisa sobre Saúde, Políticas Públicas e

Sociais, cadastrado no CNPq e reconhecido institucionalmente pela Universidade Federal de São Paulo, por meio da linha de pesquisa: Saúde, vida e morte sem-teto.

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entanto cabe ressaltar o fato de 20 (2,9%) terem 80 anos ou mais de idade (SÃO PAULO, 2005).

Em 2009 foi realizado outro censo, no qual foram registradas 13.666 pessoas em situação de rua, sendo que 6.587 pernoitavam em logradouros públicos, mocós, terrenos baldios e áreas externas de imóveis e, 7.079 pernoitavam em albergues ou abrigos. Dentre os 6.587 “desabrigados”, 503 (7,7%) tinham 50 anos ou mais de idade. Se compararmos a distribuição etária, de pessoas com 50 anos e mais, dos Censos de 2000 e 2009 temos que esse segmento populacional aumentou 7,8%. (SCHOR, VIEIRA, 2009 e 2010)

Entretanto, por mais importante que possa ser a expressão numérica da situação de vida da rua, quem a experimenta são pessoas com histórias singulares e como tal precisam ser consideradas. A nossa experiência cuidando da saúde destas pessoas, nos leva a afirmar que os idosos nessa situação raramente necessitam viver da mendicância, em logradouros públicos, buscando o sustento às necessidades básicas em equipamentos sociais como abrigos, albergues, centros de convivência, entre outros. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que são triplamente excluídos da sociedade capitalista – por serem velhos, pobres e de rua -, recebem mais cuidados do próprio morador de rua mais jovem e dos transeuntes, mesmo que numa perspectiva de base caritativa.

A relação entre o espaço público e o privado se mistura no cotidiano do idoso na rua, principalmente durante o exercício do cuidado com o próprio corpo, quer no momento de suprir as necessidades básicas de higiene, eliminação, nutrição, sono e repouso, quer assegurando os desejos mais complexos relacionados à gregária, segurança, liberdade, auto-imagem, auto-estima, amor. (BRÊTAS, 2005)

Apesar de alguns terem doenças2, nem sempre podem se colocar na condição de doentes, uma vez que a higidez – mesmo que falseada - é um atributo indispensável para viver na rua. A partir do momento que perde a capacidade de exercitar o autocuidado, de deambular, de buscar formas diárias de sobrevivência, a pessoa idosa não conseguirá mais viver na e da rua, muitas vezes sendo compulsoriamente institucionalizada de modo provisório ou permanente.

Neste contexto, introduzimos a reflexão sobre o direito à Saúde em situação de rua, a partir da questão: como assegurar esse direito para quem não vive a plenitude do direito à Vida?

Entendemos, contudo, que esta demanda extrapola as áreas da Gerontologia e da Saúde, e que é no âmbito da Ética que compreenderemos que o processo saúde-doença-cuidado na situação de rua requer o esforço concentrado de

2 Destacamos as doenças e/ou as complicações decorrentes do cuidado inadequado à

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toda a sociedade – não só a acadêmica - para buscar formas para minimizar as desigualdades que “deixam” nas ruas de São Paulo milhares de pessoas envelhecendo precariamente.

Enquanto enfermeiras, a nossa práxis está direcionada para o cuidado às pessoas idosas vivendo em condição de rua a partir do campo da Saúde e, como tal, entendemos que é um fenômeno multidimensional, com características individuais e coletivas, que envolve de forma dialética aspectos físicos, psicológicos e sociais da natureza humana.

A Constituição Federal brasileira de 1988 prevê que a “Saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas para redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988); para cumprir este preceito institucional foi sancionada a Lei 8.080/90, que assegura a formação do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 1991).

Merece destaque o fato de que historicamente o cuidado às pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo sempre foi realizado no campo da assistência social. Apenas em 2004 surgiram as primeiras iniciativas de políticas públicas municipais voltadas ao cuidado da Saúde deste segmento populacional, por meio da implantação do Programa A Gente na Rua. (SOUZA, SILVA, CARICARI, 2007). No momento, mais de 20 equipes de saúde compostas por médico, enfermeiro, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde (egressos ou não da rua) cuidam de pessoas nesta condição de vida.

Contudo, em se tratando do cuidado à Saúde das pessoas em situação de rua, sobretudo as idosas, acreditamos que há necessidade de ampliar o foco e introduzir a discussão sobre a relação entre as políticas públicas, sobretudo entre o SUS e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) recém sancionado pela Presidente da República. Desta maneira, busca-se por meio do diálogo entre estas duas políticas públicas alternativas para potencializar o cuidado em São Paulo. No entanto, seria ingenuidade da nossa parte acreditar que esta aproximação está dada, pelo contrário, por mais que alguns técnicos (de ambos os lados) busquem o trabalho integrado, o jogo político se sobressai sobre a Ética do cuidado integrado.

Esta questão paradoxal esta presente no cotidiano da rua, não raras vezes causando sofrimento e adoecimento psíquico-físico nos trabalhadores das áreas da Saúde e da Assistência Social que, comprometidos com as pessoas em situação de rua, vivem a impotência da ação frente às medidas com forte tendência higienista (também governamentais) que vão à contramão do cuidado Ético.

Partimos da premissa de que o Cuidado pertence à essência do ser humano, desta maneira, só conseguimos ‘ser’ no mundo por meio do Cuidado de si, do

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outro e pelo outro. A Ética do Cuidado pressupõem o respeito a essa premissa, na qual, a dimensão do autocuidado assume um significado importante.

Neste contexto, defendemos que os profissionais que trabalham com pessoas em situação de rua precisam incorporar na sua prática diária a educação em saúde como instrumento para transformação social. Ensinar o funcionamento e manejo do próprio corpo para o idoso nesta condição pode agregar valor à qualidade do envelhecimento.

No entanto, mais uma vez, seríamos ingênuos em acreditar que a Educação em saúde sozinha dá conta da problemática do Cuidado na rua. Acrescentamos a ela a necessidade da implementação de políticas e equipamentos sociais, de saúde, educacionais capazes de propiciar formas de “saída da rua”, uma vez que a maior parte das políticas para este segmento prevê a “manutenção da vida” e não a “qualidade da existência”.

Além disso, julgamos imprescindível, para a construção ética do Cuidado, a ausculta atenta e proativa das pessoas idosas em situação de rua; saber ouvir e respeitar o interlocutor são atitudes fundamentais neste trabalho. Muitas vezes, o profissional é a única pessoa que esse idoso tem para conversar. Neste processo é necessário buscar locais nos quais a privacidade possa ser preservada, lembrando que o “tempo da população em situação de rua” é diferente do “tempo do técnico”, ou seja, não adianta trabalhar numa lógica de agendamentos espaçados; essas pessoas estão tão vulneráveis ao “não atendimento” que têm pressa. Assim, os serviços precisam se reinventar e criar formas mais atrativas para cuidar do povo de rua.

Outro ponto diz respeito a agregar conhecimento sobre a rua e as pessoas que dependem dela para sobre/viver, incorporando conhecimentos de outras Ciências e, sobretudo, experiências de quem vive/envelhece na e da rua. O trabalho em equipe é um princípio Ético fundamental, entendendo que deve ir além da instituição de origem – é necessário compor equipes intersetoriais, interdisciplinares, interinstitucionais – preparadas técnica, científica e politicamente para cuidar na rua, tendo como parâmetro o exercício da cidadania.

Neste contexto, acrescentamos ainda o preceito da participação dos e nos movimentos sociais, entendendo que Saúde e Assistência Social não são campos neutros, pelo contrário, mas lócus de saber e, portanto, de poder. Contribuir com a formação dos movimentos sociais é também uma maneira de cuidar das pessoas em situação de rua.

Enfim, é na esfera da Ética que compreenderemos que precisamos romper com a onipotência dos discursos políticos e técnicos para viabilizar o cuidado a pessoa em situação de rua (principalmente a idosa), integrando pelo menos a Saúde e a Assistência Social, “sem abandonar a crença na construção de uma sociedade justa na qual os seres humanos não necessitem morar nas ruas” (BRÊTAS, ROSA, CAVICCHIOLI, 2006:152).

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Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Governo Federal, 1988.

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei Orgânica da Saúde. 2aed. Brasília (DF): Assessoria de Comunicação Social, 1991.

BRÊTAS ACP. “A velhice em situação de rua. Revés do avesso”. Revista do Centro Ecumênico de Publicações e Estudos Frei Tito de Alencar Lima. 2005. p.5-7.

BRÊTAS ACP, ROSA AS, CAVICCHIOLI MGS. “Cuidado de enfermagem ao adulto em situação de rua”. In: BRÊTAS ACP, GAMBA MA. (orgs). Enfermagem e saúde do adulto. Barueri (SP): Manole, 2006. (Série Enfermagem) p.145-153.

FIPE/ Secretaria Municipal de Assistência Social. Censo dos moradores de rua da cidade de São Paulo. São Paulo, Prefeitura do Município de São Paulo, 2000.

FIPE/ Secretaria Municipal de Assistência Social. Recenseamento dos moradores de rua da cidade de São Paulo. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2003.

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Caracterização de idosos nos serviços em atenção à população de rua: albergues e abrigos. São Paulo: SMADS, novembro de 2005.

SCHOR SM, VIEIRA MAC. Principais resultados do censo da população em situação de rua da cidade de São Paulo. São Paulo: FIPE/ Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, 2009.

SCHOR SM, VIEIRA MAC. Principais resultados do perfil socioeconômico da população de moradores de rua da área central da cidade de São Paulo. São Paulo: FIPE/ Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, 2010.

SOUZA ES, SILVA SRV, CARICARI AM. “Rede social e promoção da saúde dos ‘descartáveis urbanos’”. Rev. Esc. Enferm. USP. São Paulo: 41(esp). p.810-814. 2007.

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Ana Cristina Passarella Brêtas - Enfermeira. Socióloga. Sanitarista. Professora associada da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: acpbretas@unifesp.br

Clara Maria Conde Pereira - Enfermeira. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo. Enfermeira assistencial do Hospital São Paulo (HSP). E-mail:

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