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Hildegard de Bingen - A Consciência Inspirada No Século XII - Régine Pernoud

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Régine Pern o u d

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A consciência inspirada do século XII

Tradução de

ELOÁ JACOBINA

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ter

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P532h

96-0016

Título original HILDEGARDE DE BINGEN Conscience inspirée du XIT siècle

© Éditions du Rocher, 1994 Direitos para a língua portuguesa reservados

com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva, 26 — 5? andar

20011-040 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244

Telex: 38462 EDRC BR Printed in Brazil/Impresso no Brasil

preparação de originais ELISABETH LISSOVSKY revisão FÁTIMA FADEL CARLOS NOUGUÉ WALTER VERÍSSIMO CEP-Brasil Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Pernoud, Régine,

1909-Hildegard de Bingen: a consciência inspirada do século XII / Régine Pernoud; tradução de Eloá Jacobina. — Rio de Janeiro; Rocco, 1996

— (Gênero Plural)

Tradução de: Hildegarde de Bingen : conscience inspirée du XIIe siècle

1.Hildegard, Saint, 1098-1179. 2. Biografia cristã. I. Título. II. Série.

CDD - 922.2 CDU - 92(Hildegard.)

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SUMÁRIO

Introdução... 7

O mundo no ano de 1098 ... 9

Hildegard revelada... 17

O Scivias... 31

A vida no mosteiro de Bingen... 44

O imperador e a monja... 55

O universo e o homem nas visões de Hildegard... 69

As sutilezas naturais... 83

Viagens e prédicas... 94

As últimas lutas e a música sacra... 118

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INTRODUÇÃO

Em 1982 era lançado o Livro das obras divinas: visões, de Hildegard de Bingen (Albin Michel, ed.), apresentado e tradu­ zido por Bernard Gorceix — o trabalho mais notável, o mais profundo que já apareceu em francês sobre a abadessa renana. Continha um dos escritos da visionária, precedido de um arguto comentário sobre o conjunto de sua obra. O autor, infelizmente, morreria na ocasião do lançamento — uma perda irreparável para todos os que se interessam por uma figura de mulher ainda pouco conhecida entre nós.

Fundamental para o conhecimento do século XII, esta monja das margens do Reno que, num eco à voz de são Bernardo, faz ouvir uma voz de mulher, musical, literalmente — a parte musical é o que melhor se conhece hoje das obras de Hildegard —, e de alto alcance. Fundamental porque interveio junto às personalidades mais marcantes do seu tempo, papas e imperadores, e sob muitos aspectos, como dizia Bernard Gorceix, ela representa a consciência espiritual e política desse tempo.

Paradoxalmente, porém, é por seus trabalhos sobre medici­ na que ela começa agora a conquistar o reconhecimento público. Trabalhos singulares para a época, pois são os únicos tratados de medicina — ou do que chamamos de ciências naturais — escritos no Ocidente no século XII: a medicina então era mais praticada na escola judaica de Córdoba, a de Maimônides, retomada em parte pelos árabes. Outra faceta, surpreendente, desta monja, para a curiosidade universal.

Mas a parte mais fascinante de sua obra é sobretudo a sua “teologia cósmica”, visão do universo ao mesmo tempo ampla e minuciosa, fulgurante olhar atento ao mundo, que as magnífi­

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cas miniaturas do manuscrito de Lucca nos permitem apreender em todo seu esplendor.

O presente trabalho, longe de constituir uma biografia de Hildegard, procura apenas focalizar os vários “pólos”, pode-se dizer, de seu pensamento e de sua atividade. Por meio do estudo de sua correspondência, ocupa-se particularmente dos sermões que ela pronunciou em diversas catedrais, e não das menores: Trèves, Colônia, Bambert, Mayence... Foi várias vezes chama­ da a pregarem público, e os clérigos que a escutavam pediam em seguida que ela lhes transmitisse, por escrito, os sermões que havia pronunciado. O que neste nosso século XX talvez seja a nota que mais surpreenda.

Como é que uma figura tão extraordinária e tão rica levou tanto tempo para despertar — parcialmente — a atenção, o interesse que merece? E o que nos convence da falta de curiosi­ dade intelectual, cujos indícios estão em nossa cultura geral. Nos Estados Unidos, na Suíça e, naturalmente, na Alemanha, Hildegard de Bingen é bastante conhecida hoje, seja qual for o ângulo de abordagem. Aqui, procuramos trazer alguns traços essenciais de sua obra e de sua pessoa, desejando que outros sejam atraídos por ela, como nós o fomos, e venham a se empenhar nos trabalhos de envergadura que seria necessário desenvolver para torná-la mais próxima de nós; e que um público mais amplo possa usufruir tudo o que ela nos tem a dizer.

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O MUNDO NO ANO DE 1098

1098. Um vasto frêmito percorre o mundo conhecido, Ocidente e Oriente reunidos: esse mundo se pôs em marcha, literalmente falando. Não por ordem de César, como nos tempos antigos, quando armadas inteiras eram mobilizadas para defender as fronteiras entre romanidade e barbárie. Não, espontaneamente, multidões se mobilizaram ao apelo do papa na catedral de Clermont, no dia da festa de inverno de são Martinho, 18 de novembro 1095. Urbano II havia exortado os cristãos a socorrer seus irmãos do Oriente e a reconquistar Jerusalém, a Cidade Santa.

O decorrer do século só trouxera notícias deploráveis des­ sas regiões orientais. Pouco a pouco foram tomando conheci­ mento de que o lugar santo por excelência, o túmulo do Cristo, local, portanto, de sua Ressurreição, a Anastasis,* havia sido destruído por ordem do califa Hakim: destruição efetivada em 1009 — precisamente a 18 de outubro, as crônicas árabes anotaram cuidadosamente a data — com a determinação de não se deixar nenhum vestígio da rotunda Outrora erguida naquele sítio pelo Imperador Constantino. Contudo, as peregrinações da cristandade aos lugares santos não haviam cessado completa­ mente, apenas fizeram-se mais raras, e os que regressavam contavam toda a sorte de horrores sobre as exações e persegui­ ções de que eram vítimas cristãos e judeus. Ao longo dos anos, a situação só fez piorar. Os turcos seldjúcidas, convertidos ao islamismo, lançaram-se em vagas sobre a Ásia Menor e varre­

* Palavra grega que significa ressurreição e expressa a idéia da ressurreição de Cristo, ou de sua descida aos limbos, em diversos movimentos cristãos. (N. da T.)

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ram os bizantinos, que, em Malazkirt, tentavam abatê-los. Após o quê, atiraram-se sobre as populações armênias, que massacra­ ram selvagemente, e destruíram a capital, Ani. Os sírios não receberam melhor tratamento e a cidade de Antióquia, a despei­ to de suas defesas imponentes, caiu nas mãos dos turcos, em

1084. Multiplicavam-se os apelos de socorro por sobre esse Mediterrâneo, onde os cronistas árabes se compraziam em repetir que os ocidentais já não podiam “fazer flutuar uma prancha”.

A resposta ao apelo do papa ultrapassou todas as expecta­ tivas e desencadeou, através da Europa, um movimento de grande amplitude. Viam-se não somente cavalheiros e senhores, grandes ou pequenos, “carregando a cruz”, mas também uma massa de camponeses e citadinos que, precipitando-se em uma aventura cuja extensão mal calculavam, na esteira de alguns pregadores ambulantes (dos quais o mais famoso, na França, fazia-se chamar Pedro, o Eremita), partiam em peregrinação prontos a lutar. ímpeto extraordinário, fatalmente desordenado, que não poderia levar senão à derrota, depois de progredir e sobreviver à custa de pilhagem. Ao contrário, fica-se surpreso com o espírito de organização demonstrado pelos principais senhores, designados por seus pares para assumir a frente do movimento: como na escolha de três itinerários diferentes para a travessia da Europa, com reunião geral marcada em Constantinopla. Nenhum chefe de Estado, rei ou imperador parte com eles. O que já seria suficiente para distinguir o que chamamos de cruzadas (o termo, lembremos, só aparece no século XVII) dos empreendimentos de conquista que, em segui­ da, vão se suceder na Europa.

Uma longa marcha: dura três anos. Em 1098, os cruzados detiveram-se em frente à cidade de Antióquia, cujo contorno, dizem, comportava trezentas e sessenta torres. E preciso um ano de esforços e de inúmeros episódios em que se misturam a astúcia e a coragem, para que a conquistem. Ora, já nesse mesmo ano de 1098, os cruzados em marcha começam a construir, em Tarso, uma catedral dedicada a são Paulo, originário dessa

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cidade. Tocamos aí num outro ponto característico desse mundo em ebulição: a paixão de construir. Clermont, cidade em que se realizou o concilio, conta com cinqüenta e quatro igrejas por ocasião da estada do papa Urbano II. Ele, aliás, percorreu um verdadeiro circuito de arte românica em pleno surgimento, pois nessa oportunidade procede à dedicação da igreja de La-Chaise- Dieu, consagra o altar-mor da imensa abacial de Cluny, que acaba de ser construída e que, até a reconstrução de São Pedro de Roma, continuará sendo o mais vasto edifício da cristandade; em seguida, vai consagrar a igreja de Saint-Flour, a abacial de Saint- Géraud d’Aurillac, a cadetral de Saint-Etienne de Limoges e a abacial de Saint-Sauveur, na mesma cidade; depois, os novos altares da abadia de Saint-Sauveur de Charroux e de Saint- Hilaire de Poitiers, e ainda consagra solenemente a colegial de Saint-Semin de Toulouse, a catedral de Manguelonne, a de Nímes e um altar na basílica novíssima de Saint-Gilles de Gard — para citar apenas as principais etapas dessa viagem, que os amantes da arte românica, em nossos dias, podem seguir à risca. Essa febre de construir é par da expansão urbana na mesma época; ampliam-se as cidades antigas, as novas se multiplicam, e isso vai durar mais de duzentos anos. A Idade Média dos castelos é também a das cidades, sem falar nos mosteiros que surgem por toda parte. A reforma de Cluny, em 910, deu início a um extraordinário desenvolvimento da vida monástica. Parecia que as invasões dos duzentos anos precedentes tinham aniquila­ do a bela cristandade dos séculos VI e VII, mas ela renascia ainda mais bela das ruínas. Depois da reforma de Cluny, a de Robert de Molesme, com a fundação da abadia de Císter, precisamente nesse ano de 1098, vai renovar, em profundidade, a observância das regras de são Bento e permitir um prodigioso avanço na vida monástica — com o impulso que será dado, pouco depois, por são Bernardo. Os cartuxos, fundados por são Bruno em 1104, e mais tarde os premonstratenses, fundados em 1120 por iniciativa de são Norberto, manifestarão intensamente o ardor espiritual que anima essa surpreendente época.

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li nesse mundo em pleno salto que se situa, em data difícil de precisar melhor, o nascimento de uma menina, em uma família pertencente à nobreza local do Palatinado. Seus pais, Hildebert e Mathilde (Mechtilde, em alemão), são provavelmente originá­ rios de Bermersheim, no condado de Spanheim. Ela é o décimo filho do casal e recebe no batismo o nome de Hildegard. Nascimento, sem alarde, numa família cuja nobreza não se traduz em grandes feitos; nascimento, contudo, que se vai revelar singularmente de acordo com a época rica, efervescente, dessa virada de século. No ano seguinte, em 15 de julho de 1099, os cruzados vão tomar Jerusalém.

Uma menina como as outras. Não de todo, porém, pois desde sua primeira infância causa, por vezes, espanto à sua volta. Numa anedota contada tardiamente (nos autos do seu processo de canonização) ela aparece exclamando diante de sua ama: “Vê só que bezerrinho bonito, dentro desta vaca. Ele é branco, com manchas no peito, nas patas e nas costas.” Quando o bezerro nasce, algum tempo depois, constata-se que é exatamente confor­ me a descrição. Hildegard tinha, então, cinco anos. E antes mesmo diz ela: “No terceiro ano de minha existência vi uma luz tal que minh’alma estremeceu, mas por causa de minha pouca idade eu nada pude dizer.” E prossegue: “No oitavo ano de minha existência, fui ofertada a Deus em oferenda espiritual e, até o meu décimo quinto ano, vi muitas coisas e às vezes eu as dizia com toda a simplicidade, de modo que os que me escutavam se per­ guntavam de onde vinha e o que seria aquilo. E eu mesma me espantava porque do que via em minh’alma nem ao menos tinha a visão exterior, e vendo que isso não acontecia a nenhuma outra pessoa, escondi quanto pude a visão que tinha em minh’alma. Ignorei muitas coisas do mundo exterior, porque estive doente com freqüência, ainda no tempo èm que minha mãe me amamen- tava e mais tarde, o que prejudicou meu desenvolvimento e me impediu de ganhar forças.”

Hildegard perguntou se a ama via o mesmo que ela, Hildegard; e tendo recebido resposta negativa, tomou-se de pavor e não mais ousou revelar suas visões a quem quer que fosse. No entanto, às vezes, no curso da conversa, ela falava de

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fatos que iam acontecer e evocava, quando possuída por uma visão, realidades que pareciam estranhas aos que a escutavam. Quando esmaecia a força da visão que a fizera revelar noções muito além de sua idade, ela sentia vergonha, chorava freqüentemente, e calava-se tanto quanto possível. Temendo que lhe perguntassem de onde lhe vinha tal conhecimento, não ousava dizer mais nada.

E de pensar que esta criança, de saúde delicada, teria o dom da dupla visão, que ora surpreendia, ora inquietava o seu meio. Alguns psicólogos, atualmente, reconhecem nas crianças uma possibilidade de intuição superior à dos adultos. No caso de Hildegard, parece que desde a primeira infância suas capacida­ des excepcionais teriam impressionado seus familiares. Tam­ bém em nossa época, a mãe de Thérèse Martin, a irmãzinha Teresa do Menino Jesus, muito cedo percebeu na filha certa predestinação.

Quando Hildegard fez oito anos, seus pais a confiaram a uma jovem de família nobre, Jutta, filha do conde de Spanheim, para ser educada. Jutta levava uma vida de reclusa no mosteiro de Disibodenberg, perto de Alzey, onde moravam, e tomou a seu cargo a meninazinha que demonstrava tão espantosas aptidões. Era uso bastante comum, na época, confiar uma criança, menino ou menina, a um mosteiro, para receber instrução. Esse em que Jutta de Spanheim abraçara a vida religiosa, era um mosteiro dúplice,* fundado três ou quatro séculos antes por um desses monges irlandeses que, seguindo são Colombano, deixaram sua ilha para semear literalmente a Europa, onde multiplicaram suas fundações. Algumas, como a de Saint-Gall, perto do lago de Constança, sobreviveram sob diferentes formas, até nossos dias. Mais tarde, aliás, Hildegard vai escrever a vida do santo fundador, Disibod.

Jutta encarregou-se, pois, da educação desta aluna, pouco corriqueira, que lhe confiavam. Os biógrafos de Hildegard contam que Jutta lhe ensinou os salmos e a tocar o decacordo,

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instrumento com que se lhes acompanhava o canto. Na época, toda educação começava pelo canto, e pelo canto dos salmos. “Aprender a ler” dizia-se “aprender o saltério”. E provável que se aplicassem a reconhecer nos manuscritos bíblicos o texto dos salmos q ue haviam memorizado: uma espécie de método global, pois as palavras já eram conhecidas, e ler e escrever consistia em reconhecer e depois reproduzir, nas tabuinhas, os vocábulos registrados na memória. Hildegard declarou mais tarde que, se aprendera o texto do saltério, do Evangelho e dos principais livros do Antigo e do Novo Testamento, não lhe ensinaram a interpretação das palavras, nem a divisão das sílabas, nem o estudo de casos e tempos. Jutta teria negligenciado um pouco a gramática, dando atenção, principalmente, aos textos.

A saúde da aluna continuava frágil. Mais tarde seu biógrafo a descreverá no estilo hagiográfico que se usava então: “Porque os vasos de argila são experimentados na fornalha, e a coragem se aperfeiçoa na enfermidade, as dores de saúde não lhe faltaram e manifestaram-se desde a pequena infância, numerosas e quase continuadas, de modo que raramente se mantinha sobre seus pés.” Hildegard abriu-se com Jutta, que se aconselhou com um monge do mosteiro de São Disibod, chamado Volmar. Esse monge não tarda a se tornar o conselheiro, depois o assistente e o amigo de Hildegard, durante quase trinta anos. E ainda vai fazer as vezes de secretário quando, como veremos, a necessi­ dade o exigir.

Uma infância doentia e recolhida, contudo iluminada pelas visões guardadas em segredo, assim foi para Hildegard o início de sua vida nos limites do mosteiro dúplice do Disibodenberg, no vale do Nahe. Quando alcançou a idade requerida, desejou tomar o hábito, tornar-se religiosa entre as que viviam no mosteiro — parecem ter sido bem pouco numerosas — sob a égide de Jutta. Devia ter então quatorze ou quinze anos. A maioridade, para as meninas, era atingida aos doze anos (um pouco mais tarde para os rapazes, quatorze anos). Como sua infância, a adolescência de Hildegard é recolhida: a de tôda monja que segue a regra beneditina.

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Sabe-se mais ou menos como transcorre a vida dos monges beneditinos no interior dos conventos: o dia é marcado pelas horas canônicas — o dia e a noite, pois que, salvo razões particulares ou problemas de saúde, a noite é interrompida pelo ofício das matinas, cantadas pouco depois da meia-noite. A aurora, ou seja, o nascer do sol, para monges e monjas é o momento do canto das laudes, seguido do ofício da prima (primeira hora); vem geralmente a seguir a celebração da Euca­ ristia, a missa, depois da qual, na maiorpartedos conventos, tem lugar o desjejum; segue-se o ofício da terça, que designa, como diz o nome, a terceira hora a partir do nascer do sol (entre 8 e 9 horas, conforme a estação) e um tempo de trabalho até a hora da sexta (de 11 horas a meio-dia), que precede a refeição. O tempo é livre até a nona (geralmente 14 ou 15 horas), quando se retoma o trabalho, manual ou intelectual, coletivo ou individual; a hora das vésperas designa o ofício do fim do dia (18 às 19 horas), seguido da refeição da tarde e de um tempo livre, o recreio, quase sempre usufruído em comum. Costuma haver em seguida uma reunião em capítulo, assembléia de todas as religiosas na pre­ sença da abadessa; após o quê, ao sol poente, é a hora do último canto de ofício, o das completas; então o silêncio deve reinar no mosteiro para permitir a todos o repouso.

Ao longo dessas diversas horas, o conjunto do saltério — os cento e cinqüenta salmos — terão sido cantados no espaço de uma semana. Prece, meditação, trabalho encadeiam-se no de­ correr do dia com os preparativos pertinentes ao desenrolar do ano litúrgico: tempo de penitência, como a Quaresma e o Advento, festas cujas principais, como se sabe, são o Natal e a Páscoa, sem falar nas dos santos, numerosas, sendo a mais importante a festa da Virgem, a 2 de fevereiro, dia da Candelária, quando se acendem os círios para celebrar a claridade nova do Cristo, luz das nações, que Sua Mãe apresenta no Templo. Jutta morre em 1136, e parece que o número de religiosas congregadas em torno dela no mosteiro dúplice teria aumentado nesse ínterim. Imediatamente elas elegem Hildegard como

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abadessa. Prestes a atingir seu quadragésimo ano, ainda não sabe que se aproxima do acontecimento decisivo que vai lançá- la num rumo totalmente novo.

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HILDEGARD REVELADA

“Eis que no quadragésimo terceiro ano de meu curso temporal, tôda trêmula de emoção, vi um magno esplendor e ouvi uma voz do céu que me dizia: ‘O homem frágil, cinza da cinza, podridão da podridão, diz e escreve o que vês e ouves. Mas, porque és tímido para falar e pouco hábil para expor e pouco instruído para escrever estas coisas, diz e escreve, não segundo a boca do homem, nem segundo a inteligência de uma invenção humana, nem segundo a vontade de compor humanamente, mas segundo o que vês e ouves de celestes maravilhas vindas de Deus. Repete-as tais como te são ditas, à maneira de quem ouve as palavras daquele que o instrui, e expõe-nas segundo a intenção da palavra tal como ela é intencionada, tal como te é mostrada e tal como te é prescrita. Assim, pois, tu, homem, diz o que vês e ouves. Isto, não à tua maneira, nem à maneira de outro homem, mas segundo a vontade d’Aquele que sabe, vê e dispõe todas as coisas no segredo de Seus Mistérios.”’ Trata-se de uma ordem decisiva, na qual se especifica o papel de Hildegard, identificado ao dos profetas do Antigo Testamento, que são “a boca de Deus”, não fazendo mais do que transmitir o que recebem, sem a preocupação de dar a suas palavras a forma de um discurso nem de ordenar segundo as regras da lógica ou da dialética aquilo que devem transmitir.

Hildegard insiste: “E de novo ouvi uma voz do céu dizendo: ‘Diz, portanto, estas maravilhas e escreve-as tais como te são ensinadas e ditas. ’ Isto se deu em 1141, no milésimo, centésimo, quadragésimo primeiro ano da Encarnação de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha quarenta e dois anos e sete meses. Uma luz de fogo, de um brilho extremo, vinda do céu

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IK RÉGINE PERNOUD

abateu-se sobre meu cérebro todo e todo o meu corpo e todo o meu peito, como uma chama, que todavia não queimava, mas inflamava com o seu calor, do modo como o sol esquenta onde dardeja seus raios.” E continua: “Eu havia sentido a força de mistérios e visões desde minha jovem idade, isto é, desde o tempo em que eu tinha cerca de cinco anos, de modo admirável, em mim mesma, até agora; entretanto eu não a tinha revelado a nenhum homem, salvo a alguns poucos homens religiosos, que viviam no mesmo estado em que vivia eu mesma. De outra forma eu teria guardado um tranqüilo silêncio todo esse tempo, até o momento em que Deus quis manifestar-me isto por Sua graça.” Em seguida ela dá detalhes aos quais deveremos voltar: “Não tive as visões em estado de sonolência, nem dormindo, nem em êxtase, nem por meus olhos corporais ou por meus ouvidos humanos exteriores; eu não as percebi em lugares escondidos, mas é estando acordada que eu as vejo com meus olhos e com minhas orelhas humanas, interiormente; simples­ mente, em espírito, eu as recebo em lugares abertos, segundo a vontade de Deus.”

Não é sem hesitações que se recebe semelhante mensagem. Hildegard fala de sua ansiedade e insiste no caráter muito nítido, imperioso, pode-se dizer, da ordem que lhe é dirigida: “Como se deu isto? E difícil ao homem carnal sabê-lo, mas o fato é que, passada a idade da juventude, tendo chegado a esta maturidade em que se adquire uma força perfeita, ouvi uma voz do céu dizendo: ‘Eu sou a luz viva que ilumina o que é obscuro. O homem que Eu quis assim e que introduzi admiravelmente, segundo me aprouve, em grandes maravilhas, Eu o estabeleci além desses homens antigos que puderam ver em Mim numero­ sos segredos. Mas Eu o derrubei para que ele não se erga em qualquer exaltação do seu espírito. O mundo não encontrou nele nem alegrias, nem deleites, nem incentivos nessas coisas que Ihe são próprias, pois Eu subtraí dele toda audácia e determinação, ficando medroso e apavorado nos seus sofrimentos. Porque ele sofreu na medula e nas veias de sua carne, tendo o espírito e o sentido contraídos, e sofrendo grandes paixões corporais, de tal modo que nenhuma segurança pôde permanecer nele, mas ele

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HILDEGARD DE BINGEN 19

pôde se considerar culpado de tudo o que lhe concernia. Porque Eu enclausurei as ruínas de seu coração por medo de que seu espírito se elevasse de orgulho e de glória vã, e para que ele sentisse em todas as coisas medos e dores, mais do que alegria e exultação. Assim, em Meu amor, ele descobriu, em seu espírito, o que lhe abriria o caminho da salvação. E encontrou alguém e o amou, reconhecendo nele um homem fiel e seme­ lhante a si, nessa parte da obra que me diz respeito; isso a fim de que Minhas maravilhas sejam reveladas. E esse homem não se recusou dobrando-se sobre ele, mas indo a ele na elevação da humildade, e, na intenção da boa vontade que encontrou, incli­ nou-se com muitos suspiros. Tu, pois, homem, que recebes, não na inquietude de uma decepção mas na pureza do espírito simples, o que te é dirigido pela manifestação das coisas escondidas, escreve o que vês e ouves.’”

Hildegard prossegue: “Mas eu, ainda que tenha visto e ouvido essas coisas, porém porque duvido e porque tenho má opinião, e por causa da diversidade das palavras humanas, todo esse tempo, não por obstinação, mas por causa da humildade, recusei-me a escrever, até que fui forçada no leito de dores em que tombei atingida por um flagelo de Deus, de tal modo que fui afligida de múltiplas enfermidades; eu havia procurado e encon­ trado, graças aos testemunhos de uma jovem nobre e de bons costumes e desse homem que eu havia consultado e procurado em segredo, como eu disse, entreguei-me ao trabalho da escrita. Enquanto o fazia sentindo a grande profundidade da exposição de livros, como eu disse, levantei-me da doença e recuperei as forças. Apenas pude levar a cabo este trabalho consagrando-lhe dez anos. Nos dias de Henrique, arcebispo de Mayence, e de Conrado, rei dos romanos, e de Cunon, abade de São Disibod, no tempo do papa Eugênio, aconteceram estas visões e estas palavras. E eu as disse e escrevi, não segundo uma descoberta do meu coração ou de qualquer outro homem, mas tal como ouvi e percebi os secretos mistérios de Deus. E de novo eu ouvi uma voz do céu dizer-me: ‘Clama, pois, e assim escreve.”’

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A maneira como se exprime a referida visão é bastante surpre­ endente para nós. Logo de início, pelo emprego do termo homo, “homem”, no sentido de criatura humana. O que pressupõe que Hildegard foi chamada a ser realmente profeta, boca de Deus repetindo palavras que lhe são ditadas. E isso ela sustentará por toda a vida, afirmando que nada diz por si mesma, nada que venha dela, e que apenas transmite o que lhe diz “a Luz viva”.

Esse prefácio do primeiro livro de Hildegard anuncia clara­ mente o novo rumo de sua vida. Uma virada que é descrita e datada com precisão; ela vai levar dez anos para escrever essa primeira obra, que intitula Scivias, “Conhece os caminhos” (do Senhor). O trabalho se estende, portanto, de 1141 a 1151, apro­ ximadamente. Mas não será sua única ocupação, longe disso; nesse espaço de tempo ela vai realizar vários outros trabalhos, dando início à exuberante atividade que a caracteriza.

Alguns manuscritos de Hildegard são ilustrados, entre eles o magnífico volume de sua terceira obra, conservado na Biblio­

teca Governativa de Lucca. Contém dez belas ilustrações de

página inteira que reproduzem as visões da monja. Sob a imagem principal, num pequeno quadrado, uma iluminura re­ presenta a própria Hildegard, o rosto erguido para a imagem que derrama sobre sua cabeça uma chuva incandescente. Sentada em uma cadeira de espaldar alto, ela tem nas mãos as tabuinhas, decerto para anotar rapidamente a visão que Ihe aparece e poder descrevê-la depois. Veste uma túnica preta, encoberta por um manto marrom que deixa entrever uma orla branca onde as mangas envolvem os punhos das duas mãos, a que segura as tabuinhas e a que escreve. As tabuinhas, de cera negra, são de formato absolutamente comum, e vêem-se duas colunas em cada uma. Em frente a Hildegard e voltado para ela, está sentado um monge. Ele escreve sobre um códex de pergaminho e segurando um tira-linhas, como era costume na época, enquanto maneja sua pena de ganso. Esse monge idoso é sem dúvida Volmar. Em algumas ilustrações, em especial a primeira do manuscrito de Lucca, há uma jovem em pé, postada atrás de Hildegard. Está vestida com uma longa túnica preta, a cabeça coberta por uma coifa da qual se desprende um véu, também

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preto, que lhe cai de lado. Trata-se provavelmente de Richardis, a religiosa do convento de Bingen, a quem Hildegard dizia amar "como Paulo amou Timóteo”.

Tal é a imagem que daqui em diante teremos de Hildegard. O essencial de sua vida, agora, é receber e transmitir o que lhe diz a “Luz viva”. O monge Volmar, seu confessor e, na certa por intermédio de Jutta, seu primeiro confidente, será seu secretário até falecer em 1165. Deve ter sido por ele que os monges do mosteiro dúplice de Disidodenberg foram informados da nova atividade da abadessa e das visões que ela recebia. O que não podia deixar de inquietar as autoridades eclesiásticas, no caso, o próprio abade do mosteiro, Cunon; ele comunica o fato ao arcebispo de Mayence, Henri, responsável pela diocese a que pertence o mosteiro. Apesar dos ecos sem dúvida favoráveis quanto ao conteúdo das visões, tanto um como outro experimen­ tam alguma perplexidade. Ora, justamente nesse final do ano de

1147, ouve-se dizer que o papa Eugênio III vai reunir um concilio em Reims e, em preparação ao concilio, fará realizar um sínodo em Treves. Por essa época, os escritos de Hildegard constituem o início de sua primeira obra, o Scivias. É o momento de submeter aos prelados reunidos e ao próprio papa o trabalho da religiosa visionária.

Grandioso cenário para um sínodo, a cidade de Treves, que, hoje em dia gostam de lembrar, é a mais antiga da Alemanha. A

Porta Nigra, mundialmente famosa, ainda existe para compro­

var. Ela faz parte das fortificações erguidas por Constantino, que residiu nessa cidade até 316 com sua mãe, Helena, santa Helena no calendário cristão. Naquela época, Treves era impor­ tante metrópole do Império Romano. Ativo centro de comuni­ cações, ponto de confluência das legiões que ali acantonavam para conter os assaltos dos bárbaros nas fronteiras e porto fluvial, na margem direita do Mosela, Treves permaneceu residência imperial até o fim do século IV. No magnífico edifício que é hoje a catedral, ainda se distingue o plano de massa do Dom erguido por Constantino, que constitui o núcleo do edifício. Duas vezes destruído (pelos francos, no século VII, e pelos normandos, no final do século IX), fora reconstruído em

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1037. A vinda do papa seria a oportunidade de engrandecê-lo com um novo coro, a leste. Nessa mesma ocasião, o arcebispo Hillin reavia o que ainda hoje chamamos de Aula palatina, antigo palácio de Constantino, então em ruínas, do qual pelo menos uma parte foi restaurada para hospedar os prelados presentes ao sínodo.

Para se avaliar a importância desse sínodo, é preciso ter em mente as infindáveis discórdias ocorridas em terra germânica entre papas e imperadores, porque estes não se resignavam a abdicar de suas prerrogativas e dos hábitos adquiridos na época carolíngia, de intervir na nomeação dos bispos e dos abades dos mosteiros. A reforma promovida pelo enérgico Gregório VII só fora aceita uns vinte anos antes, em 1123, quando do acordo que se denominou Concordata de Worms. Ora, o papa que convocou esse sínodo é um cisterciense, formado em Clairvaux pelo próprio são Bernardo; isso significa que se trata de um pontífice cujo primeiro cuidado no exercício de suas funções ainda é a santidade. O concilio que vai reunir em Reims terá por objetivo confirmar mais uma vez o esforço de reforma da Igreja, mani­ festado a partir de Gregório VII.

E, pois, uma assembléia importante essa que se reúne em Treves no final do ano de 1147. A imponente assistência, bispos, cardeais, abades de mosteiros — entre eles o próprio Bernard de Clairvaux, personalidade incontestável no seio da cristandade, forte o bastante para apaziguar os distúrbios provocados alguns anos antes pelo cisma de Anacleto —, presidida pelo papa de Roma, em pessoa, forma um contraste impressionante com a magra figura da pequena abadessa de um obscuro convento das margens do Reno, que se diz agraciada por visões divinas. A pedido do arcebispo Henri, de Mayence, e do abade Cunon, do São Disibod, o papa ordena a dois prelados que visitem pesso­ almente Hildegard e procedam a um inquérito local sobre sua conduta, seus hábitos de vida e seus escritos: o bispo de Verdun, Alberon ou Auberon, e seu preboste, Aldebert.

E seguem os dois para São Disibod. O resultado do inqué­ rito é satisfatório e eles levam a Treves a parte já redigida do

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trezentos anos mais tarde, vai encher de admiração o abade de Spanheim, Jean Trithème — um erudito famoso que reuniu mais de dois mil manuscritos em sua biblioteca e relatou a vida de Hildegard, após ter consultado todas as fontes a ela referentes. “O papa”, diz ele, “leu em público, diante de muitos assistentes, os escritos da virgem; ele próprio, fazendo as vezes de leitor, expôs uma parte muito importante da obra. Todos os que ouviram os termos dessa leitura renderam, cheios de admiração, graças a Deus todo-poderoso.” O papa lendo diante dessa enorme assembléia a obra da pequena abadessa, até então só conhecida pelos que com ela conviviam, é com efeito um espetáculo surpreendente, e se atribui a são Bernardo a conclu­ são que foi a da assistência inteira: “E preciso impedir que se apague uma tão admirável luz animada de inspiração divina.”

Foi em seguida a essa sessão que o próprio Eugênio III escreveu a Hildegard. Essa carta encabeça a classificação da correspondência que daí em diante vai constituir um capítulo de considerável importância nas atividades da monja. E a primeira de uma longa lista: a edição da Patrologia Latina, que não é completa, comporta 135 cartas, cada uma com sua respectiva resposta, e não ocupa menos de 240 colunas impressas em tipos muito miúdos. “Nós admiramos, filha”, escreve o papa, “e admiramos além do que se pode crer, que Deus mostre em nosso tempo novos milagres, e isso quando ele derrama sobre ti o Seu Espírito, a ponto de se dizer que vês, compreendes e expões numerosos segredos. Isso soubemos por pessoas verídicas que dizem te haver visto e ouvido. Mas o que deveremos dizer a esse propósito nós, que possuímos a chave da ciência para podermos abrir e fechar e que por inépcia neglicenciamos prudentemente fazê-lo? Felicitamos-te, pois, e nos dirigimos a tua dileção, para que saibas que Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes [Tiago, IV]. Conserva, pois, e guarda essa graça que está em ti, de modo que possas sentir o que te é trazido em espírito, e relatá-lo com toda a prudência, cada vez que o ouvires. [...] ‘Abre tua boca e eu a encherei’ [salmo 70].” Para terminar, ele diz: “O que nos fizeste saber sobre o local que previste para ti, em espírito, que o seja, com nossa permissão e

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nossa bênção e a de teu bispo, de modo que vivas ali regularmen­ te, com tuas irmãs, segundo a regra de são Bento, na clausura desse lugar.”

Assim se exprime o papa Eugênio III dirigindo-se a Hildegard. O último parágrafo exige um esclarecimento: em algumas palavras o papa dá sua aprovação à transferência das dezoito religiosas congregadas em torno da abadessa do mostei­ ro de São Disibod para essa localidade, em Bingen, que ela tornará famosa. De fato, desde algum tempo tornava-se evidente que sua comunidade já não cabia no convento. Era preciso pensar em outra instalação. Hildegard falou com o abade e com os frades sobre esse lugar que, dizia, o Espírito Santo lhe indicara. Tratava-se do Rupertsberg, situado aliás a pouca distância de São Disibod — vinte e cinco a trinta quilômetros —, na confluência do Reno com o Nahe, em Bingerbrück, perto do pequeno porto de Bingen, no Reno (tomado e fortificado por Drusus, quando da ocupação romana no final do século I antes de Cristo).

A transferência não ocorreu sem dificuldades. Os monges de São Disibod aceitavam mal a saída das religiosas, que de fato desmerecia o dúplice mosteiro. Hildegard nunca tinha visto o Rupertsberg, para onde desejava se mudar — um outeiro que há muito levava o nome de são Rupert, o Confessor, que ali estabelecera domicílio por direito patrimonial, ali vivera com sua mãe, Berta, e ali fora exumado. Seguiu-se um demorado conflito, marcado por incidentes em que o maravilhoso não tardou a se misturar à história. Entre os monges, principalmente um certo Arnold movia implacável oposição à partida das religiosas e incitava os outros a criar obstáculo. Então, certo dia, ele é afetado por um tumor na língua, a ponto de não poder fechar a boca nem articular palavra. Exprimindo-se bem ou mal por sinais, faz-se conduzir à igreja de São Rupert, onde promete ao santo não mais se opor à criação do novo mosteiro e, pelo contrário, contribuir para isso, com seus meios. Imediatamente ele recobra a saúde e é o primeiro a preparar a construção dos prédios, a arrancar as vinhas onde seriam erguidas as casas para receber as religiosas.

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Hildegard, entretanto, estava por sua vez de cama, doente, insensível e pesada como uma pedra. Foram contar ao abade, que, incrédulo, se esforçou para lhe levantar a cabeça ou virá-la de um lado para o outro, sem nada conseguir. Estupefato com o que o redator da Vida de Hildegard chamou de um “milagre insólito”, o abade Cunon compreendeu que a vontade de Deus se expressava dessa maneira e acabou consentindo na partida, que ainda precisava da aprovação dos cônegos da igreja de Mayence — que não a negaram. Assim, “a Virgem do Senhor conseguiu morar com suas irmãs nesse oratório de São Rupert” e nas casas ao redor, onde fundou o novo mosteiro. Fundação que dependia do conde Bernard de Hildesheim, e ele concordou. Além disso, como vimos, o projeto tinha sido aprovado pelo próprio papa.

A mudança das monjas deu-se em meio à afluência popular: os de Bingen, cidade vizinha, acorreram em grande contenta­ mento, transbordando-se em louvores à sua chegada, enquanto Hildegard e as dezoito religiosas manifestavam sua alegria dando graças ao Senhor. Foi preciso içar a abadessa num cavalo e sustentá-la dos dois lados, durante todo o trajeto até o Rupertsberg. Assim chegada, ela recobrou as forças e fechou um acordo satisfatório com os frades do São Disibod.

O convento do Rupertsberg, vítima das invasões suecas do século XVII, está hoje completamente em ruínas. Das funda­ ções da abadessa resta apenas a segunda, o convento de Eibingen, na margem direita do Reno. Único sobrevivente às destruições suecas, e francesas também, que vitimaram a região. Várias vezes reconstruído, ainda se pode ver o túmulo de Hildegard, bem como os mosaicos modernos inspirados nas visões da monja.

Vamos nos demorar um instante nesses lugares predestina­ dos. Trata-se de uma região excepcionalmente bela, que inspi­ rou sempre os poetas, em particular os do movimento alemão do século XIX. Pelas duas margens do rio, de Boppard a Wiesbaden, ecoam nomes sugestivos entrelaçados a toda a sorte de lendas e lembranças históricas. Lendas geralmente tardias, como a da Maüseturm, “a torre dos ratos”, que se ergue sobre uma ilha

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rochosa em frente a Rupertsberg. Contam que um certo Hatto, bispo de Mayence, em tempos de penúria, tinha acumulado reservas de cereais na torre e, exasperado com os lamentos dos pobres que o atormentavam, mandou trancá-los num celeiro ao qual mandou tocar fogo. “Estão ouvindo os silvos dos meus ratos?”, perguntava, escutando os gritos dos pobres. Nessa mesma noite, bandos de ratos invadiram seu palácio; ele se atirou no Reno tentando escapar, mas os ratos o perseguiram e o devoraram vivo. E uma variante da lenda famosa do tocador de flautas que atraía os ratos graças ao som das árias mágicas que tocava; após ter livrado, assim, uma cidade de seus roedores, recusaram-se a pagar o preço combinado pelo serviço; ele volta e, com o canto de sua flauta, atrai as crianças da cidade, que se afogam no rio.

Um pouco adiante, em Sankt-Goarshausen, na margem di­ reita, ergue-se o rochedo de Lorelei, que o poema de Heine celebrizou. Lorelei é inseparável da poesia alemã do começo do século XIX. Perto dele encontra-se um outro rochedo, em que a lenda — sempre — vê sete donzelas que o deus do rio enfeitiçou.

Ao lado dessas histórias amenas ou trágicas, os vinhedos do Reno, presentes em toda parte, fizeram a fama não só da velha cidade de Lorsch como a de Rüdesheim, onde existe ainda hoje uma profusão de tabernas e cafés ao ar livre; e um museu do vinho num castelo fortificado do século X (Niederbuch). A abadia beneditina de Eberbach, um pouco mais longe, a alguma distância de Wiesbaden, fundada no século XII, logo se tornou o principal centro vinícola da Alemanha, graças às técnicas dos cistercienses, que foram, na Idade Média, notáveis experts em todos os domínios da agricultura. Os vinhos do lugar ainda são famosos, enquanto a igreja, o claustro, o dormitório só atraem turistas.

Ainda perto de Rüdesheim, assinalemos de passagem os vinhos tintos de Assmannshausen, uma singularidade da região.

Região que, a despeito das destruições, continua eriçada de torres e castelos. As vezes, uma única torre de relógio, como em Burg Rheinfels, que traz à lembrança uma das mais poderosas fortalezas que dominaram o vale do Reno; outras vezes, uma

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torre fortificada, como a de Bacharach, que inspirou Guillaume Appolinaire. Muitas vezes, reconstruções modernas de torres antigas, como em Burg Sooneck, ou em Burg Lahneck, ainda na margem direita; e também — milagre! —, a alguns metros desta última, a torre de Marksburg, que data do século XIII e é a única que ficou intacta. E ainda os castelos, as igrejas, como Braubach, do século XIII, ou Oestrich, do século XII (é verdade que com uma grande restauração na Renascença). Assim, de uma mar­ gem a outra, por uma centena de quilômetros, as lembranças do passado tecem, numa atmosfera ao mesmo tempo medieval e romântica, um painel excepcional de arte e encantamento para a história de santa Hildegard e suas companheiras. Não se pode separar esse ambiente das obras da visionária; está de acordo com a grandeza das revelações que recebia da Luz viva que a habitava.

A instalação de Hildegard e das religiosas em Rupertsberg ocorreu por volta de 1148-50. Ela vai escrever as biografias dos santos padroeiros dos dois conventos em que sua comunidade foi sucessivamente implantada. São Disibod, o irlandês que, no século VI, foi se estabelecer nas margens do Reno com, diga­ mos, três companheiros, e deles se tornou abade sem por isso deixar de ser eremita, continuou a viver até sua morte, em torno do ano 700, no isolamento, só se reunindo com seus monges para ler o ofício. Ele fazia parte dessa espécie de imensa cruzada, ou migração, de irlandeses que, no curso da Idade Média, deixaram sua ilha bem-amada e, por espírito de abnegação, foram morar de preferência em lugares desertos, onde levavam vida contemplativa. Mais ou menos na mesma época, são Gall fundava, perto dali, o convento que resistiu até nossos dias, junto ao lago de Constança. Quanto a são Rupert (ou Robert), era um franco, aliás aparentado da grande família dos reis merovíngios. Em 696, foi bispo de Worms; expulso pelos pagãos, ainda numerosos na região, encontra refúgio em Regensburg (Ratisbonne), onde funda uma comunidade em torno da qual logo nascerá uma cidade, que é nada menos que Salzbourg. E volta, finalmente, a sua diocese de Worms para

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morrer, em 718, tendo sido exumado, como dissemos, em Rupertsberg.

Essas duas biografias não constituem mais do que uma atividade acessória na vida de Hildegard, tão plena, por sinal; elas recordam, entretanto, a implantação dos dois mosteiros em que sucessivamente transcorreram sua vida, suas preces, suas visões, antes que ela fundasse um terceiro, o de Eibingen, perto de Rüdesheim, dessa vez na margem direita do Reno. Fundação que data, muito provavelmente, de 1165.

E preciso considerar o dia-a-dia em Rupertsberg, entre os vinhedos da margem do Reno, num mosteiro ainda em obras ou pelo menos em fase de arrumação, uma vez que Hildegard e suas companheiras se instalaram em acomodações provisórias que só serão concluídas no decorrer dos anos seguintes. E a isso, com certeza, que alude uma passagem de sua Vida (capítulo III) onde ela conta que, após um período de doença, tomou consci­ ência de que precisava, “com meu espírito confortado, cuidar de minhas filhas, não só de suas necessidades corporais como das de suas almas, segundo o que foi determinado por meus mes­ tres” — o que se refere sem dúvida a seu confessor ou simples­ mente à regra beneditina. Algumas monjas demonstravam, de fato, lassidão e desencorajamento. “Eu via com minha visão verdadeira, com muita inquietação, como os espíritos de bronze [maus espíritos] combatiam contra nós. Via que esses mesmos espíritos atacavam algumas de minhas nobres filhas por meio de vaidades diversas e as retinham aprisionadas como em uma rede. Então, instruída por Deus, eu as instruí e as reuni e provi de palavras da Santa Escritura e da disciplina da regra com boas palestras. Mas algumas entre elas olhavam-me com maus olhos, atacavam-me às escondidas com palavras, dizendo que não podiam suportar o duro regulamento da disciplina da regra à qual eu queria constrangê-las. Mas Deus me trouxe consolação em outras boas e corretas irmãs, que me assistiram em todo meu sofrimento, tal como se fez por Suzana [personagem bíblica], que Deus livrou dos falsos testemunhos.”

E Hildegard acrescenta: “Apesar de toda a fadiga com atribulações desse gênero, que me debilitaram, pude, todavia,

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levar a bom termo, pela graça de Deus, O livro dos méritos da

vida, que me fora divinamente revelado.” As voltas com tais

dificuldades, tanto de ordem material como devido à própria conduta das religiosas sob sua responsabilidade, nem por isso Hildegard persevera menos, em Rupertsberg, na tarefa que lhe cabia: a redação de sua segunda obra, O livro dos méritos da

vida.

Esta, aliás, não era sua única atividade, pois é provável que suas produções musicais a tenham ocupado durante todo o curso de sua existência. Quanto às duas obras que tratam da medicina e das ciências naturais, não há nada nos relatos biográficos que indique a época em que foram realizadas. E já não é possível imaginar a vida das monjas e da própria Hildegard sem conside­ rar os visitantes que desde então se aglomeravam em torno de Bingen. A população local “acolheu-a com grande exultação e divinos louvores”, mas não é somente dos arredores que afluem os visitantes. Como observou Bernard Gorceix, citando a bio­ grafia de Hildegard: “Dir-se-ia que após o sínodo de Treves o mundo católico se pôs em movimento [...] mesmo das regiões mais distantes chegavam peregrinos a cavalo e a pé.”

Um desses visitantes despertou particularmente a atenção dos biógrafos da santa — ainda que não citem seu nome (livro II, capítulo III): “O Senhor não somente a assistiu [a abadessa] nas dores das doenças e nos ataques dos demônios, mas também quando ela teve de sofrer o ataque dos homens; e Deus modifi­ cou para melhor o coração de seus adversários, como ela mesma contou a propósito da conversão de um filósofo que a princípio era hostil, não só a ela mas também a Deus, e no qual em seguida se operou uma transformação dirigida pela mão do Altíssimo.” Esse filósofo, cujo nome não é mencionado, talvez fosse um sábio, em todo caso, um não-crente e cético em relação a essa monja de quem se gabavam as luzes. “Esse filósofo, cumulado de riquezas, depois de ter duvidado por muito tempo do que eu tinha visto, veio finalmente a nós e adornou nossa morada de prédios, de benfeitorias e de outras coisas muitíssimo necessá­ rias; com o que nossas almas se regozijaram, porque Deus não as havia deixado no esquecimento. Após um exame minucioso,

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mas esclarecido, perguntou quais eram e onde estavam os escritos desta visão e terminou por acreditar plenamente na inspiração divina. Ele, que antes havia exprimido seu desprezo com palavras cheias de malignidade, tendo feito Deus muito pela justiça em seu coração, voltou-se em nossa direção com grandes bênçãos: da mesma forma que Deus afogou o faraó no mar Vermelho, pois este queria pegar os filhos de Israel. Na admiração desta mudança, muitos acreditaram mais e Deus, por este homem sábio, fez descer sobre nós Sua bênção [...] por isso o chamamos nosso pai. Ele, que antes se havia considerado príncipe, por seu nome, pediu para ser sepultado em nossa casa; e assim foi feito.”

Ao contrário desse incrédulo, afinal convencido, muita gente vinha procurar junto à abadessa a paz do coração ou a cura do corpo. Os biógrafos de Hildegard enumeram os diversos casos que pareciam, então, miraculosos aos olhos de todos e que são, com certeza, menos convincentes ao leitor de hoje do que a enorme correspondência por meio da qual ela dispensa seus conselhos, e até admoestações, a todos os tipos de autoridade, fossem espirituais ou temporais. Mas sem dúvida, para compre­ ender a razão e o alcance da influência de uma simples religiosa das margens do Reno sobre o mundo tempestuoso que a rodeia, é melhor fazer como o filósofo que ela menciona e ir diretamente a seu primeiro trabalho. Trabalho que recebeu a aprovação pontifícia, assim como a de são Bernardo — o Scivias.

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O SCMAS

É impossível, evidentemente, precisar que passagem do Scivias foi lida pelo papa diante do sínodo de Treves. Pelo menos sabemos que se trata dos primeiros capítulos da obra, os que já estavam redigidos em 1147, porquanto a obra inteira só foi concluída em 1151.0 Scivias compreende três livros: o primei­ ro descreve seis visões de Hildegard, seguidas de comentários feitos por ela; o segundo, sete visões, e o terceiro, treze. A última visão do terceiro livro termina em uma espécie de peça de teatro, ou melhor, de ópera, onde as virtudes são personificadas e sofrem ataques dos demônios; o que mais tarde Hildegard vai retomar numa obra musical, denominada Ordo virtutum.

Sem uma certeza, que sempre nos faltará, quanto à passagem lida pelo papa, podemos escolher a terceira visão do primeiro livro do Scivias, muito característica do tom que a autora manterá daí por diante, ou seja, em todo o conjunto de sua obra.

“Vi uma esfera imensa, redonda e cheia de sombra, tendo uma forma oval menos larga no topo, mais ampla no centro, retraída na base; tendo na parte exterior um círculo de luz cintilante e embaixo um invólucro tenebroso. E nesse círculo de chamas havia um globo abrasado, tão grande que iluminava toda a esfera. Acima dele, três estrelas ordenadas em fila amparavam esse globo em sua atividade ígnea por medo de que ele tombasse pouco a pouco. E às vezes esse globo subia mais alto e dava mais luz, de tal modo que podia lançar mais longe seus raios de chama. E depois, às vezes descia tão baixo, que o frio ficava mais intenso porque ele havia retirado sua chama.

“Mas dessa fonte de chamas que circundava a esfera o vento saía com seus turbilhões, e do invólucro tenebroso que envolvia

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a fonte de chamas, um outro vento, com seus turbilhões, rugia e se espalhava por toda a esfera. Nesse mesmo invólucro, havia um fogo tenebroso que inspirava tão grande horror, que eu não podia olhá-lo, e que, cheio de tumultos, de tempestades e repleto de pedras agudas, pequenas e grandes, agitava esse invólucro com toda a força. E, enquanto ele fazia ouvir sua crepitação, o círculo luminoso e os ventos e o ar ficavam agitados de tal maneira, que os fulgores precediam o próprio estrondo, porque o fogo sentia primeiro a comoção que o tumulto produzia; mas sobre esse mesmo invólucro o céu era puríssimo e nele não havia nuvem alguma.

“E nesse mesmo céu eu distinguia um globo de fogo ardente de certa magnitude, e acima dele, duas estrelas, ostensivamente colocadas, que o detinham para que ele não excedesse o limite de seu curso. E nesse mesmo céu muitas outras esferas lumino­ sas estavam colocadas por toda a parte, entre as quais o próprio globo, que, ao transbordar um pouco, enviava sua luz por instantes; e, recorrendo ao primeiro fogo do globo abrasado, restaurava sua chama e a enviava de novo a essas mesmas esferas.

“Mas desse mesmo céu saía um sopro impetuoso de vento com seus turbilhões, que se espalhavam por toda a esfera celeste. Sob esse mesmo céu, eu avistava o ar úmido sob uma nuvem que se expandia por todos os lados, estendendo essa umidade a toda a esfera. E estando acumulada essa umidade, uma chuva súbita caiu com muitíssimo ruído. E, quando ela extravasou, suavemente uma chuva fina caiu com levíssimo rumor. Então um sopro com seus turbilhões saiu para se espalhar por toda a esfera. E no meio de todos esses elementos havia um globo arenoso de imensa extensão, circundado pelos mesmos elementos, de tal modo que ele não podia se dissipar nem num sentido nem no outro. E enquanto esses mesmos elementos com os diversos sopros lutavam juntos, eles constrangiam com sua força o globo arenoso a se mover um pouco. E vi entre o Aquilão e o Oriente (o norte e o leste) como que uma grande montanha que mantinha sombras tenebrosas em direção a Aquilão e muita luz em direção ao Oriente. [...]

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“E ouvi de novo uma voz do céu, que dizia: ‘Deus, que fez todas as coisas por Sua vontade, criou-as para conhecimento e honra de Seu nome. Não somente para mostrar nelas as coisas visíveis e temporais, mas para manifestar nelas as coisas invisí­ veis e eternas. O que é demonstrado pela visão que contemplas.

A seguir Hildegard explica essa visão. Ela, o objeto descrito no início — a esfera redonda e sombria —, é sinal de Deus. E comenta: “Primitivamente os homens eram rudes e simples em seus costumes; depois, na Antiga e na Nova Lei, tornaram-se mais instruídos e se afligiram e se molestaram mutuamente. Mas no final dos séculos terão de sofrer muitos reveses por seu endurecimento. [...]”

E assinala que o invólucro de sombra que envolve a chama designa os que estão fora da fé. “Nessa chama, o globo — de um fogo cintilante, de uma tal magnitude que ilumina toda a esfera — mostra pelo esplendor de sua claridade o que está em Deus Pai, seu Filho único inefável, o sol de justiça abrasado de ardente caridade, possuidor de uma tão magna glória que toda criatura é iluminada pela claridade de sua luz. E o globo de fogo às vezes se inclina mais para baixo [...] para significar que o próprio Filho único de Deus, nascido de uma Virgem, desceu misericordiosa­ mente à miséria dos homens, suportou todas as deficiências corporais e deixou o mundo para voltar a Seu Pai. [...] O que quer dizer: os filhos da Igreja, tendo recebido o Filho de Deus na ciência interior de seus corações, a santidade de Seu corpo elevou-se pela força de Sua divindade e, num milagre místico, a noite do secreto mistério O arrebatou para escondê-Lo aos olhos mortais, porque os elementos estavam a Seu serviço.”

Em seguida ela esclarece que um dos sopros de vento é sinal de Deus, que enche o universo de Sua onipotência, e que o outro sopro, impetuoso, que faz fúria com seus turbilhões, vem da cólera de Satanás, de onde “sai a maldade renomada [...] que se espalha em todos os sentidos da esfera porque, nos séculos, os rumores úteis e inúteis se misturam de diversas maneiras entre os povos”. Significa que o homicídio se mistura à avareza, à embriaguez, às mais cruéis perversidades.

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“Mas”, acrescenta ela, “sobre esse invólucro o céu é puríssimo e sem véu porque sob os embustes do antigo enganador a fé luminosa resplandece [...] Ela não vem dela mesma, mas está fundada em Cristo. E no céu vês um globo de fogo ardente, de grande extensão, que designa verdadeiramente a Igreja unida na fé, como demonstra essa brancura de inocente claridade, que forma uma auréola de glória; e acima dela, duas estrelas distin­ tamente colocadas [...] mostram que dois Testamentos, o da antiga e o da nova autoridade, conduzem a Igreja. [...]

“Sob esse mesmo céu, vês o ar úmido e, embaixo, uma nuvem branca que se estende em todos os sentidos difundindo a umidade por toda a esfera.” É a imagem do batismo “desvelan­ do ao universo inteiro a fonte de salvação para os crentes. [...] E dele também sai um sopro, com seus turbilhões, que se espalha por toda a esfera, porque, desde a difusão do batismo, que trouxe a salvação aos crentes, a verdadeira renomada, propagando-se pelas palavras — doutos discursos —, penetrou o mundo inteiro [...] entre os povos que renunciaram à infidelidade para abraçar a fé católica”.

Enfim, o globo arenoso designa o homem e o mundo criado para o seu uso. Aqui o comentário de Hildegard se faz prece: “O Deus, que fizestes admiravelmente todas as coisas, Vós coroastes o homem com a coroa de ouro da inteligência; e o revestistes com a soberba vestimenta da beleza vísivel; e assim o colocastes, como um príncipe, acima de Vossas obras perfeitas, que dispusestes com justiça e bondade entre Vossas criaturas. Por­ que outorgastes ao homem dignidades maiores e mais admirá­ veis do que às outras criaturas.” Momento de contemplação, em que Hildegard exprime um sentimento que, aliás, se repete em sua obra: o maravilhamento ante a beleza da criação, sentimento familiar à época em que ela vive, o mesmo que é admiravelmente experimentado e expresso na obra de um Hugo de Saint-Victor: “Deus”, diz ele, “não quis somente que o mundo fosse, mas que fosse belo e magnífico.”

Um outro aspecto intervém a seguir, quando a visionária esclarece o que significa a grande montanha que se ergue entre o Aquilão, lugar de trevas, e o Oriente, lugar de luz. Aqui é

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evocada a queda do homem “pela horrível mentira do espírito maligno que causa aos condenados as múltiplas misérias da danação”. E lembra essa “espécie de homens que Me tentam de modo opiniático com sua arte perversa, perscrutando a criatura feita para seu serviço e pedindo que lhes mostre, segundo suas vontades, o que eles querem saber. Será que podem, com as especulações de sua arte, prolongar ou abreviar o tempo de vida fixado pelo Criador? Decerto não o podem fazer nem por um dia nem por uma hora. Ou então desviar a predestinação de Deus? De modo algum. Mas, às vezes Eu permito que essas criaturas vos demonstrem vossas paixões e seus sinais distintivos, porque elas Me temem como seu Deus. [...] O insensatos, quando Me votais ao esquecimento, sem vontade de retornar a Mim nem Me adorar, e olhais a criatura para saber o que ela vos vaticina, então renunciais a Mim obstinadamente e honrais a criatura enferma, de preferência a vosso Criador”. O que é condenar todas as experiências de adivinhação. E prossegue: “Mas às vezes as estrelas, com a Minha permissão, manifestam-se aos homens por sinais, como é mostrado por Meu Filho no Evange­ lho, quando Ele diz: ‘Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas.’ O que quer dizer: pela claridade dessas estrelas os homens serão iluminados; e os tempos dos tempos serão demonstrados por sua evolução. Assim, nos tempos últimos, períodos lamentáveis e perigosos manifestar-se-ão nelas, com Minha permissão, de tal sorte que os raios do sol, o esplendor da lua e a claridade das estrelas desaparecerão, às vezes, a fim de comover o coração dos homens.”

Em seguida a visionária toma como exemplo a estrela que guiou os Magos para mostrar que, se é falso que o homem tenha uma “estrela particular” para dispor de sua vida, como o povo imbecil, que se engana, se esforça por acreditar, todavia essa estrela resplandeceu “porque Meu Filho único nasceu da gravi­ dez de uma Virgem sem pecado. Mas essa estrela não trouxe nenhuma ajuda a Meu Filho senão a de anunciar fielmente ao povo Sua encarnação, porque todas as estrelas e criaturas que O temem cumprem somente a Minha vontade. Elas não têm absolutamente outra significação, de espécie alguma, para qual­

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quer criatura que seja”. Assim ela combate a astrologia e toda a sorte de adivinhação, tudo o que desvia a piedade do homem e seu sentido do mistério divino: “Não quero que perscrutes as estrelas, o fogo ou as aves, ou qualquer outra criatura que seja, sobre as causas futuras.” E, prosseguindo nos erros e malefícios satânicos, a visionária deixa novamente Deus se dirigir ao homem: “Ó homem, Eu te resgatei pelo sangue do Meu Filho, não com malícia e iniqüidade, mas com a máxima justiça. E contudo Me abandonas, a Mim, o verdadeiro Deus, e segues aquele que é mentira. Eu sou a justiça e a verdade, é por isso que te advirto na fé, exorto-te no amor e acolho-te na penitência, a fim de que, mesmo ensangüentado pelas feridas do pecado, te ergas da profundeza da queda.”

Continuando o comentário sobre a visão, ela acrescenta esta exortação, que lhe é ditada pelo esplendor entrevisto: “Ó ho­ mens insensatos, por que interrogais a criatura sobre o tempo de vossas vidas? Nenhum de vós pode conhecer de fato o tempo de vossa vida, evitar ou ultrapassar aquilo que foi determinado por Mim. Porque, ó homem, quando se cumprir tua salvação, seja nas coisas temporais, seja nas espirituais, tu deixarás o presente século para passar àquele que não tem fim. Porque, quando o homem possui uma tão grande força que Me ame com ardor maior que as outras criaturas [...], Eu não separo seu espírito de seu corpo antes que ele tenha podido levar à maturidade seus frutos saborosos, que têm um odor suave. Mas aquele que Eu considere tão débil que não possa suportar meu jugo em meio às tentações do sedutor maligno e na pesada escravidão de seu corpo, Eu o retiro deste século antes que ele comece a murchar com o aviltamento de sua alma; porque Eu sei tudo. Quero dar ao gênero humano toda a justiça para sua salvaguarda, de modo que ninguém possa encontrar desculpa quando Eu advertir e exortar os homens a cumprir as obras de justiça, quando Eu lhes inculcar o medo do julgamento da morte, como se estivessem para morrer, mesmo que ainda tenham muito tempo para vi­ ver...”

Na visão seguinte, a quarta do Scivias, a interrogação sobre o destino do homem continua sempre de modo imagético e de

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acordo com as etapas do desenvolvimento da vida humana. “Vi um esplendor imenso e sereno, que irradiava qual muitíssimos olhos, tendo os quatro ângulos voltados para as quatro partes do mundo, que me foi manifestado num grande mistério, designan­ do o segredo do Criador supremo; e nesse esplendor sereno um outro esplendor semelhante à aurora, tendo nele a claridade de um luar purpúreo, apareceu [...] Vi como que uma forma de mulher tendo em seu seio uma forma perfeita de homem, e eis que, por uma secreta disposição do Criador supremo, esta mesma forma manifestou o movimento de vida e uma esfera abrasada, não tendo nenhum traço de corpo humano, possuiu o coração da forma, tocou seu cérebro e se transfundiu por todos os seus membros; e em seguida esta forma de homem, vivificada dessa maneira, ao sair do seio da mulher teve os movimentos igualados aos dos homens sobre essa esfera e mudou sua cor segundo as cores deles.”

Em seguida virá o tempo de atribulações para esta forma humana, que a queda expôs a todos os perigos: “Eu, estrangeira, onde estou? Na sombra da morte? Que caminho que eu sigo — a via do erro — e que consolação posso experimentar, a dos peregrinos; de fato eu deveria ter um tabernáculo de pedra mais resplandecente do que o sol e as estrelas, já que o sol posto e as estrelas moribundas não deveriam luzir nele, mas ele estaria repleto da glória angélica, porque o topázio lhe serviria de fundamento e todas as gemas formariam sua estrutura; seus degraus seriam de puro cristal, e seus átrios, revestidos de ouro, porque eu sou o sopro vivo que Deus inoculou na matéria árida; é por isto que eu devia conhecer Deus e amá-Lo. Mas, quando meu tabernáculo [o corpo do homem, tabernáculo do Espírito Santo] compreendeu que podia olhar em todos os sentidos [sinal da liberdade concedida ao homem, da possibilidade de escolha, de seu desejo de escolher por si mesmo o seu bem ou o seu mal], ele se voltou para o Aquilão [Aquilão, lugar do frio e do desespero].”

Seguem-se então todas as desgraças da criatura: “Alguns puseram-se a me cobrir de opróbrios, fizeram-me partilhar a lavagem dos porcos, e me enviaram a um lugar deserto, e

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também me deram para comer ervas amargas embebidas em mel. Estenderam-me em seguida em uma prancha, infligiram-me muitíssimos tormentos, despojaram-me de minhas vestes para me ferir muitíssimas vezes, e me deixaram entregue às feras; as serpentes e os escorpiões venenosos, as víboras e seus semelhan­ tes me capturaram e crivaram-me de veneno.” Presa de todos os suplícios, ela chama: “Tu, onde estás, Sião, ó minha Mãe. Desgraçado de mim, eu que me afastei de ti! Mas, quando eu ia derramar sobre ti, ó minha Mãe, minhas lágrimas e meus gemi­ dos, a infortunada Babilônia fez ressoar a tal ponto o rumor de suas águas, que tu não pudeste estar atenta à minha voz. E por isso que procurarei os caminhos estreitos por onde poderei fugir a meus horríveis companheiros e a meu detestável cativeiro. E depois de ter falado assim, fugi por uma vereda estreita onde me escondi, chorando amargamente, numa caverna ao lado do setentrião, porque tinha perdido minha Mãe. E eis que um odor suave, como que proveniente do doce hálito de minha Mãe, inebriou-me com seu perfume. [...] E fui presa de uma tal alegria, que o antro da montanha onde me havia refugiado retumbou com meus gritos de júbilo. [...] Eu desejava subir a uma altura onde meus inimigos não me pudessem descobrir, mas eles me opuse­ ram a um mar tão agitado, que me era impossível atravessar. Havia ali um ponto tão mínimo e tão estreito, que eu não podia transpor. Mas nos confins desse mar erguiam-se montanhas de cumes tão altos, que eu senti a impossibilidade de alcançá-los.” Retomada de pavor, a criatura invoca novamente o poder do Alto. “Então ouvi a voz de minha Mãe, que dizia: ‘O filha, corre, porque, para que voes, asas te foram dadas pelo poderoso doador, ao qual ninguém pode resistir; voa, pois, acima de todas essas contrariedades, com toda a rapidez de tuas asas.’ De novo cheguei diante de um tabernáculo edificado sobre bases indestrutíveis e, penetrando nele, cumpri as obras de luz depois de ter praticado as obras das trevas. E nesse tabernáculo, no norte coloquei uma coluna de ferro não-polido sobre a qual pendurei, aqui e ali, diversas asas que se agitavam como ventarolas; e, tendo encontrado o maná, eu o comi. Mas no oriente construí um forte de pedras quadradas e nele acendi o

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fogo e bebi o vinho doce misturado à mirra. Ao meio-dia, construí também uma torre na qual suspendi escudos de cor vermelha, e nas janelas coloquei trombetas de marfim. No meio da torre verti mel, do qual fiz um perfume precioso com outros aromas, de tal sorte que seu odor poderoso espalhou-se por todo o recinto do tabernáculo. No ocidente, não edifiquei nenhuma obra porque esta parte voltava-se para o século.” Novamente exposta a todas as agressões do ódio e da mentira, a criatura implora a ajuda de Deus: “E ouvi de novo uma voz que dizia: ‘A bem-aventurada e inefável Trindade manifestou-se ao mundo quando o Pai enviou ao mundo seu Filho único, concebido do Santo-Espírito e nascido da Virgem, a fim de que os homens, nascidos em condições muito diferentes e presos pelos elos do pecado, fossem conduzidos pelo Cristo no caminho da Verda­ de.’” E pouco a pouco são dadas as informações necessárias para que o homem se salve.

A continuação contém o esclarecimento da visão enunciada antes: “A figura feminina que vês trazendo em seu seio uma forma humana perfeita significa que, desde que a mulher recebe a semente humana, a criança se forma com a integridade de seus membros na célula escondida no seio de sua mãe. E eis que, por uma secreta disposição do divino Criador, esta forma confirma o movimento da vida porque, desde que em virtude de uma vontade misteriosa de Deus a criança recebeu o espírito no seio materno, no momento estabelecido e querido por Deus, ela demonstra pelos movimentos de seu corpo, que vive, como a terra se entreabre e deixa desabrochar as flores de seu fruto quando o orvalho desce sobre ela. De tal modo que é como se uma esfera de chamas, sem nenhum traço do corpo humano, possuísse o coração da referida forma, porque a alma [ardendo no lar da soberana ciência] distingue diversas coisas no âmbito de sua compreensão. E essa esfera não tem nenhum traço do corpo humano porque ela não é nem corpórea nem efêmera como é o corpo do homem, e porque ela lhe dá a força e a vida. E, sendo como que o fundamento do corpo, ela o rege por inteiro. [...] Essa forma humana, assim vivificada no seio da mãe, possui, ao sair, os movimentos que lhe imprime a esfera de

Referências

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