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Reconhecimento, redistribuição e as limitações da Teoria Crítica contemporânea

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Academic year: 2021

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Luiz Gustavo da Cunha de Souza

RECONHECIMENTO, REDISTRIBUIÇÃO E AS LIMITAÇÕES DA TEORIA

CRÍTICA CONTEMPORÂNEA

CAMPINAS/SP

2013

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Marta dos Santos - CRB 8/5892

Souza, Luiz Gustavo da Cunha de,

1985-So89r SouReconhecimento, redistribuição e as limitações da Teoria Crítica

contemporânea / Luiz Gustavo da Cunha de Souza. – Campinas, SP : [s.n.], 2013.

SouOrientador: Josué Pereira da Silva.

SouTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Sou1. Reconhecimento (Filosofia). 2. Redistribuição (Filosofia). 3. Teoria Crítica. 4. Desreconhecimento (Sociologia). I. Silva, Josué Pereira da,1951-. II.

Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Recognition, redistribution and the limits of contemporary Critical Theory Palavras-chave em inglês: Recognition (Philosophy) Redistribution (Philosophy) Critical theory Derecognition (Sociology)

Área de concentração: Sociologia Titulação: Doutor em Sociologia Banca examinadora:

Josué Pereira da Silva [Orientador] Emil Albert Sobottka

Myrian Sepúlveda dos Santos Fernando Antônio Lourenço Sílvio César Camargo Data de defesa: 06-12-2013

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RESUMO

O presente trabalho tem como tema a discussão sobre reconhecimento, redistribuição e justiça na teoria social contemporânea. Para isto foi tomado como principal elemento de análise o debate entre a filósofa feminista estadunidense Nancy Fraser e o filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth, que publicaram um livro em que discutiam qual seria a melhor forma de caracterizar o capitalismo contemporâneo. Na medida em que ambos autores reivindicam filiação à tradição de pesquisa conhecida como Teoria Crítica da sociedade, o parâmetro através do qual foi estudado seu debate foi a capacidade de suas respectivas contribuições para a crítica das relações sociais atualmente existentes, assim como naquela tradição fundada por Max Horkheimer. Da análise do debate conclui-se que entre a análise do capitalismo contemporâneo, a construção de um paradigma da justiça e o potencial de crítica deste paradigma, o modelo do reconhecimento defendido por Honneth possui maior alcance que o paradigma da participação defendido por Fraser. O paradigma do reconhecimento seria mais apto a apreender os motivos de sofrimento social e o potencial de críticas ao mundo atualmente existente, mas o paradigma da redistribuição apreenderia melhor as dinâmicas políticas por trás das lutas sociais. Ambos, no entanto, falham na compreensão da formação e reprodução de contextos de exclusão, o que levou, ao final do trabalho, a que se fizesse a tentativa de complementar o paradigma do reconhecimento com a formulação de uma categoria analítica, o desreconhecimento, capaz de analisar e explicitar estes processos e contextos.

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Abstract

The subject matter of this dissertation is the discussion about the concepts of recognition, redistribution and justice in contemporary social theory, particularly as it was framed by the debate between Nancy Fraser and Axel Honneth in their social, political and philosophical exchange. As far as both authors share the idea of renewing the tradition of critical social theory, it was exactly the critical potential of their respective models for the task of analysing present-day capitalism that was taken as a guideline for this study. From this study emerged the conclusion that the recognition paradigm advocated for Honneth is better suited to explain the suffering experience of subjects and, therefore, the critical motifs of an contemporary critical social theory. Nevertheless, it was also clear that the responses provided by Honneth do not suffice to fully accomplish an analysis of the political processes that lead to the formation of contexts of social life in which no recognition at all is at disposal of the subjects. Thus, as a contribution to the theories of recognition that aim to deal with issues of justice and injustice, it was developed an analytical category to deal with such processes and contextes of disrecognition (Aberkennung).

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Sumário

Introdução: uma sociologia da sociologia...1

Capítulo 1 – Reconhecimento, redistribuição e justiça: uma Teoria Crítica do capitalismo

contemporâneo...15

I – Pressupostos e interlocuções do debate: Teoria Crítica e teoria da justiça...17

II – Pressupostos e fundamentos do conceito de justiça...26

III – O paradigma da justiça distributiva e as críticas a seus limites...36

IV – O paradigma da justiça como reconhecimento...47

Capítulo 2 – Crítica, reconhecimento e eticidade: o modelo de Axel Honneth...57

I – Crítica e reconhecimento: o déficit sociológico da Teoria Crítica...60

II – Esferas de reconhecimento e práticas de desrespeito na modernidade...70

III – Uma reatualização do sistema da eticidade...88

Capítulo 3 – Distribuição, reconhecimento e participação: o modelo de Nancy Fraser...105

I – A crítica daquilo que não é mais crítico...107

II – Das lutas feministas às lutas por participação...128

III – Redistribuição, reconhecimento e participação...140

Capítulo 4 – A controvérsia entre redistribuição e reconhecimento e a Teoria Crítica

contemporânea...157

I – Redistribuição e reconhecimento como condições da participação...159

II – Reconhecimento como princípio da teoria social...180

III – Considerações e respostas...207

Capítulo 5 – Reconhecimento, desreconhecimento e moralidade no capitalismo

contemporâneo...225

I – Três tipos de liberdade...229

II – A reconstrução normativa da liberdade e de suas patologias...242

III – As formas reais da liberdade social...253

IV – Dinâmicas sociais de desreconhecimento...275

Conclusão...289

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AGRADECIMENTOS

Ainda que eu continue a reclamar do pouco tempo de que um estudante dispõe para realizar o doutorado dos seus sonhos, sem estresse, com a possibilidade de se dedicar profunda e calmamente à pesquisa, à reflexão e à redação, aprendi duas coisas muito importantes nos últimos cinco anos, desde que comecei este trabalho. A primeira é que o doutorado dos sonhos ou não existe ou aqueles sonhos é que são exagerados, já que passar por aquelas situações tem lá o seu interesse. A segunda é que, se é curto para a pesquisa, o tempo é mais que suficiente para que a divida de gratidão não possa ser resumida nestes agradecimentos. Mesmo assim vou tentar.

Ao Departamento de Sociologia da Unicamp, especialmente à Christina e, posteriormente, ao Daniel, que tanto ajudaram a resolver as tarefas burocráticas e extra-acadêmicas relacionadas ao doutorado, quero agradecer a oportunidade de realizar este trabalho. Da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), recebi a bolsa de pesquisa que me garantiu a tranquilidade financeira durante o período; da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Deutscher Akademischer Austausch Dienst (DAAD) recebi as bolsas que me possibilitaram aprofundar a pesquisa durante um ano e quatro meses na Alemanha. Durante o prazo da bolsa sanduíche foi muito bem aconselhado e apoiado na Goethe Universität em Frankfurt am Main por Frauke Köhler, a quem também agradeço. Em Frankfurt tive a oportunidade de discutir a tese com o professor Axel Honneth, que, além da solicitude e da atenção, me permitiu utilizar alguns textos de sua autoria ainda não publicados naquele momento e que se mostraram essenciais para o estudo aqui apresentado. No Brasil, as disciplinas cursadas com as professoras Luciana Ferreira Tatagiba e Amnéris Ângela Maroni também resultaram em contribuições a esta tese; já os colegas do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica e Sociologia, além de criticarem e sugerirem melhoras para este trabalho, me possibilitaram participar de discussões de alto nível acerca de uma gama mais ampla de temas. Gostaria ainda de agradecer as participações da professora Myrian Sepúlveda dos Santos e do professor Emil Albert Sobottka na banca de defesa e pelas contribuições e críticas que tornarão este trabalho melhor; do mesmo modo, agradeço às professoras Patrícia Mattos, Mariana Chaguri e Gilda Portugal Gouvêa, que aceitaram compor a banca.

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trabalho desde seus primórdios. Sílvio César Camargo, já há muito tempo tem sido um grande parceiro de diálogo e de pesquisa; Fernando Antônio Lourenço é, sem dúvida, a maior inspiração para o comprometimento político e crítico que acredito que a sociologia deve manter. Além dos dois, que participaram da qualificação deste trabalho, ao Josué Pereira da Silva, meu orientador, devo mais que a mistura de apoio e cobranças, a discussão de ideias, a solução de dúvidas e a confiança. A bem da verdade, é tanta coisa que prefiro elogiar o exemplo acadêmico que o Josué se revelou, uma figura à qual devo muito do crescimento pessoal por que passei nestes anos todos.

Para falar dos meus amigos de Caconde, vou tomar emprestada uma ideia que achei muito bonita quando me foi apresentada: Rafael Gordinho, Júlio Saúva, Marcos Uti e Fabiano Bigão são como amigos de infância que eu só conheci depois de adulto. Valeu pelas boas horas de diversão, moçada, mas também pelas horas de seriedade e por aquelas em que as duas coisas estavam misturadas nas portas das casas, caminhadas pela cidade, churrascos e cervejas. Em Campinas também fiz amigos que proporcionaram que ambiente carregado da pós-graduação fosse amenizado e, mais que isso, se tornasse um agradável espaço de risadas, ironias e sarcasmo, ainda que sempre crítico! Paulo Yama, Fernando Bee, Eugênio Gonçalves, Caio Pedrosa e Felipe Durante transformaram o bandeijão numa alegria e com a companhia da Daniela Vieira o estágio em Limeira foi uma experiência muito melhor. Na Alemanha, Anna-Katharina Elstermann fez com que eu me sentisse seguro desde a chegada, com toda sua atenção e cuidado, que permaneceram durante todo o tempo; Doris Litzinger me acolheu quando eu mais precisava e me deu uma grande prova de solidariedade e confiança; Jorge Zuñiga e Camilo Sembler foram bons companheiros nos colóquios e na universidade. E, claro, Henrique Carneiro, meu grande chapa em Leipzig, com quem aprendi muito sobre como sobreviver na Alemanha, mesmo que pra isso tivesse que gastar todas as moedinhas de um e dois centavos de euro. Por último, agradeço a três caras que, por muito mais do que estes cinco anos, me permitiram compartilhar de uma convivência harmoniosa e agradável no período em que vim morar na cidade grande e, aqui, aprender a viver com autonomia: Alexandre Viera, Raphael Concli e Roberto Rezende: obrigado por tudo, pelas conversas, pelas ideias, pelo futebol, por tudo, enfim.

Minha família, e isso não foi surpresa, me apoiou em todos os momentos desde o início, um ano ainda brigando pra conseguir a bolsa, passando pelo tempo no exterior e chegando na

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volta ao Brasil. A presença de todos, tios, tias, primos e prima, sempre foi um incentivo e um alento. Ao Mau, Júlia, Rafa e Dudu, como sempre, muito obrigado pela compreensão e pelo apoio. À Cristina Cunha e ao Luiz, minha mãe e meu pai, acredito que tudo o que foi dito acima se aplica de modo ainda mais contundente: sem o seu apoio em 2009, sem o seu incentivo, sem a compreensão, sem o acolhimento no final do doutorado e sem muitas coisas mais que vocês me deram, os percalços talvez tivessem sido mais problemáticos do que foram. Obrigado, do fundo do coração.

Por fim, a pessoa decisiva para que eu hoje possa apresentar uma tese com a qual estou satisfeito, pois foi graças a ela que pude encontrar a satisfação: Julia Telles de Menezes. Na fase mais difícil do doutorado tive a sorte imensa de te conhecer, Julia, e de nos tornarmos amigos. Em meio às dúvidas e ao gigantesco medo que tive de não conseguir terminar, de não ter o que fazer, descobri que tinha em você a melhor companheira possível, uma amiga sensível e inteligente, uma pessoa de dedicação exemplar e de um intelecto instigante, não apenas no que diz respeito à filosofia, mas quanto à forma como você se mostra e, através disso, eleva o conteúdo de nossa relação a novos patamares, nos quais além de aprender, aprendi a te admirar sempre mais.

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Torturar um semelhante choca os valores herdados, ou aprendidos. Portanto, é essencial que não se trate mais de um semelhante, pessoa que pensa, chora, ama, sofre. É um judeu, um comunista, ou ainda, no jargão moderno da polícia, um “elemento”. Na visão da KuKluxKlan, um negro. No plano internacional de hoje, o terrorista. Nos programas de televisão, um marginal.

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Introdução: uma sociologia da sociologia

O tema desta tese é o debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre os conceitos de redistribuição e reconhecimento. Ainda que estes conceitos sejam tomados pelos autores como opções políticas e filosóficas para a formulação e orientação de teorias sobre a sociedade capitalista, também deve-se notar que são os termos-chave da obra de cada um destes autores e suas bases para a tentativa de reconstruir no presente a tradição de pesquisa fundada por Max Horkheimer na década de 1930, a Teoria Crítica da sociedade. Por isso, ao falar de redistribuição e reconhecimento como alternativas para uma Teoria Crítica contemporânea, o que se pretende aqui é avaliar qual o potencial destes conceitos para oferecer de modo consistente elementos de investigação e crítica do presente. Assim, os dois objetivos principais com que lida este trabalho devem estar claros: por um lado, trata-se de realizar uma confrontação destes modelos de Fraser e Honneth e, por outro lado, de pensar sobre a capacidade destes autores em oferecer novos caminhos para a Teoria Crítica. Com a realização destas duas tarefas pretende-se contribuir tanto para o entendimento sociológico do presente, por meio do estudo de diferentes diagnósticos sobre como compreender as relações sociais contemporâneas e as possibilidades e horizontes de desenvolvimento desta sociedade, quanto com as pesquisas sobre a Teoria Crítica, por meio do estudo de modelos reconstrutivos desta tradição e da avaliação de sua pertinência à teoria social contemporânea.

No que diz respeito à confrontação entre os modelos de Fraser e Honneth, deve-se notar, antes de qualquer outra coisa, a importância do debate entre estes autores. A organização de um livro conjunto no qual ambos realizam de modo explícito o diálogo com a posição de seu interlocutor apenas contribuiu para que se cristalizasse um trabalho único no qual suas contribuições de mais de uma década sobre o diagnóstico de tempo e a análise sobre as formas de ação social crítica já se colocavam em oposição. Isto porque, seja em seus diagnósticos, seja em seus apontamentos sobre os elementos críticos do presente, Fraser e Honneth compartilham algumas concordâncias que se desdobram em modelos teóricos completamente diferentes, nos fundamentos tanto quanto na indicação de horizontes normativos nos quais apoiam suas críticas. Desta forma, os dois pontos centrais para esta confrontação dos modelos serão suas respectivas fundamentações, com a questão sobre quais as experiências reais das quais deve derivar a crítica imanente da sociedade, e seus respectivos horizontes normativos, com a questão sobre quais são os objetivos transcendentes de cada uma destas teorias.

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esta não é uma referência aleatória, mas uma reivindicação de Fraser e Honneth por esta herança. Ainda que ambos não o façam nos termos de Horkheimer, a ambição, destacada na introdução conjunta ao livro em que debatem seus pontos de vista, de um retorno às grandes teorias em que estejam conectados os campos específicos da filosofia moral, da análise política e da teoria social, retomando com isso a ideia da sociedade como uma totalidade, indica o papel representado por aquela tradição da crítica a um só tempo imanente e transcendente na elaboração das suas teorias.

Em termos gerais, e isto é dito pelos próprios autores, o debate entre as ideias de redistribuição e reconhecimento trata de uma disputa acerca do entendimento da ordem capitalista; esta é vista ou como uma forma de integração social que diferencia padrões de valorização cultural de outros padrões de valorização material e utiliza ambos como meios de submissão de determinados grupos sociais, e, por isso, demanda uma teoria que esteja atenta às questões específicas do reconhecimento e da redistribuição, ou como uma forma de ordenamento social que remonta a assimetrias na atribuição de reconhecimento aos sujeitos desde sua base e, desta maneira, demanda uma teoria em que a noção de reconhecimento funcione como uma norma moral e, por consequência, universal. Este entendimento concorrente, no entanto, mascara algumas concordâncias básicas, dentre as quais as mais relevantes seriam as de que, em primeiro lugar, o conceito de reconhecimento adquiriu centralidade nas lutas sociais e, por isso, na teoria social desde a década de 1960; também de que as ideias de redistribuição e reconhecimento remetem a noções de justiça social por meio das quais aqueles que as exprimem pretendem criticar o mundo em que vivem; e, por fim, que estas críticas, em sua forma imediatamente política nas lutas sociais e em sua formulação teórica, são expressões de tentativas de organização da sociedade a partir de demandas pela ampliação da participação material, cultural e simbólica nas sociedades em que ocorrem tais lutas. A isso soma-se o fato de que ambos concordam que problemas de ordem material, como a desigualdade, não foram superados, de modo que os conceitos de redistribuição e reconhecimento não podem ser reduzidos um ao outro, pois subsistem problemas que demandam atenção a especificidades de cada uma destas áreas. Desta maneira, o objetivo de Fraser e Honneth não é demonstrar que o vocabulário teórico deve abandonar algum dos dois termos, redistribuição ou reconhecimento, mas sim demonstrar como uma teoria política centrada em um deles poderia responder às questões levantadas pelos movimentos e lutas sociais. Ou seja, a disputa entre a americana e o alemão procura antes esclarecer a maneira como estes autores entendem ser possível ligar experiências de opressão e demandas por justiça com um modelo teórico centrado na noção de redistribuição ou de reconhecimento.

Por outro lado, este projeto de entendimento sobre a sociedade capitalista contemporânea liga-se, nos modelos de ambos os autores, a dois outros campos: a teoria da justiça e a Teoria

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Crítica. Se, como já notado, a Teoria Crítica aparece como a inspiração metodológica privilegiada para os esforços de Fraser e Honneth, a teoria da justiça ocupa um papel central no desenvolvimento de suas argumentações. Isto se deve ao fato de que é esta noção, a de justiça, junto com suas variações, que representa o horizonte ao qual recorrem os movimentos contestatórios para organizar suas demandas tanto por redistribuição quanto por reconhecimento. Mesmo que se admita que esta remissão dos grupos sociais à ideia de justiça não possui uma correspondência direta com as teorias contemporâneas da justiça, que são tradicionalmente formuladas de modo puramente organizativo e sem referências às demandas empíricas dos movimentos, é preciso também notar que estas teorias procuram apresentar concepções de justiça que possam ser apropriadas pelas instituições, atores e espaços de organização da vida social. Isto implica em um primeiro problema para Fraser e Honneth: na medida em que procuram fazer uma crítica imanente da sociedade capitalista contemporânea, eles devem atentar para demandas expressas por meio de vocabulários e sentimentos ligados à ideia de justiça ao mesmo tempo em que devem manter a metodologia crítica de procurar nesta crítica imanente os elementos de superação desta realidade. O significado disto é que os pressupostos e interlocuções do debate apontam para duas tradições teóricas distintas, de um lado as teorias tradicionais da justiça e do outro a Teoria Crítica. Não se trata, porém, de afirmar que estas duas tradições recebem o mesmo tratamento pelos autores, mas de notar que a ideia de justiça social funciona como o horizonte normativo de ambos os projetos de reconstrução da Teoria Crítica. A apresentação desta interlocução e dos fundamentos do debate entre Fraser e Honneth é, pois, o primeiro passo desta tese. No capítulo inicial, sobre a relação entre reconhecimento, redistribuição e justiça, o que se busca é, a partir da investigação sobre o que, afinal, Fraser e Honneth pretendem com seu debate, entender como a noção de reconhecimento passou a ocupar espaço proeminente nas teorias sociais a ponto de receber tanta atenção quanto a de redistribuição, associada às lutas sociais desde o início da modernidade. Se ao longo da tese serão desenvolvidos estudos sobre os modelos de cada um destes autores em capítulos separados, antes disso parece necessário que se apresente qual o ponto de convergência que permite que ambos se coloquem como debatedores e críticos um do outro. E este ponto de convergência é justamente a constatação de que reconhecimento e redistribuição ocupam na teoria social contemporânea lugares de destaque entre os conceitos que permitem fundamentar uma crítica do capitalismo a partir de demandas e sentimentos expressos por grupos e movimentos contestatórios por meio de noções de justiça. Daí que, após apresentar as interlocuções do debate com as teorias da justiça e com a Teoria Crítica, é preciso demonstrar como as diferentes concepções de justiça passaram a incluir referências ao universo do reconhecimento. Ao longo do primeiro capítulo, então, serão apresentados os movimentos que permitiram que um debate como o de Fraser e Honneth pudesse tomar a teoria da

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justiça como um interlocutor. Estes movimentos são a passagem de uma noção de justiça pensada a partir de um paradigma distributivo para um paradigma alternativo, crítico da redistribuição material. Neste último situam-se as demandas e movimentos que se valem da noção de reconhecimento, o que mostra que é possível tomar a formulação de uma teoria do reconhecimento também como uma crítica à formulação tradicional da justiça social. Na medida em que ambos concordam com a afirmação de que as teorias liberais da justiça não são suficientes para tratar adequadamente das questões relativas ao reconhecimento, Fraser e Honneth convergem para esta posição de críticos das teorias da justiça.

Mas assim como as interlocuções do debate e seus fundamentos apontam para uma tensão, a aproximação entre teoria da justiça e Teoria Crítica, também as visões de Fraser e Honneth sobre a caracterização da sociedade contemporânea demonstram que os pontos de convergência quanto àqueles temas não chegam sequer a sustentar os pressupostos de seus modelos. Isto porque tanto seus diagnósticos quanto seus entendimentos sobre quais seriam os elementos da crítica social e os horizontes emancipatórios estão além da relação entre demandas por justiça e crítica do presente. O motivo desta divergência remete à maneira como cada um deles entende o significado das demandas sociais. Se para Fraser se trata de uma relação em que os sujeitos envolvidos buscam a sua participação ativa na vida social, para Honneth se trata da possibilidade de realização autônoma de suas potencialidades. Desta diferença decorre o fato de que as lutas sociais, para Fraser, devem ser entendidas como lutas organizadas a fim de garantir o estabelecimento de uma situação que não submeta alguns dos membros da sociedade aos outros por meio da institucionalização de padrões e valores culturais hierarquizados e preconceituosos, enquanto para Honneth as lutas sociais são frutos de movimentos dos sujeitos para que as expectativas que eles constroem sobre si mesmos sejam respeitadas pela sociedade através da ampliação do escopo daquilo que é reconhecido como positivo por uma determinada comunidade. Uma vez que é a partir da análise das lutas sociais que cada um deles pretende oferecer sua visão geral sobre a sociedade contemporânea, este entendimento diferenciado de cada um sobre estes conflitos implica em uma diferença na fundamentação de seus modelos de Teoria Crítica: para Fraser esta tradição deve buscar na organização empiricamente observável dos movimentos sociais a fonte de experiências que permita ao teórico crítico visualizar na opressão de determinadas características uma patologia a ser superada; já Honneth imagina que é na motivação moral dos movimentos de resistência que deve ser buscada a ferida que representa a patologia da integração social. Os horizontes normativos dos modelos de Fraser e Honneth apontam, respectivamente, para uma sociedade na qual seja garantida a paridade participativa a seus membros e para uma na qual seja garantido um processo bem-sucedido de formação da personalidade. Fraser, então, entende as questões de desrespeito como

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formas de submissão que se manifestam também sob a forma de desigualdades materiais e simbólicas nas garantias institucionais oferecidas a determinados grupos, de modo que a emergência de lutas sociais, em seu modelo, se relaciona às demandas historicamente colocadas pelos movimentos sociais para a participação plena nos processos políticos de sua sociedade enquanto para Honneth, pelo contrário, as lutas sociais devem ser entendidas em sua dimensão moral, como processos conflitivos por meio dos quais os indivíduos pretendem tornar socialmente aceitas aquelas expectativas que formam acerca de suas próprias identidades durante os processos de interação com outros sujeitos. Estas expectativas, derivadas de três formas básicas de contato intersubjetivo – as relações afetivas, as relações jurídicas e as relações de estima social ou solidariedade – ao mesmo tempo em que representam experiências reais nas quais podem se formar sentimentos positivos ou negativos, são a fundamentação de sua teoria do reconhecimento, já que em sua visão as lutas sociais ocorrem em busca do estabelecimento de relações sociais nas quais o sucesso destas formas de interação seja garantido. Já para Fraser, tanto as lutas por distribuição, caracterizadas por ela como lutas econômicas, quanto as lutas por reconhecimento, descritas como lutas culturais, são questões de reparação política de uma situação de institucionalização de padrões sociais de submissão de determinadas características de alguns grupos. Para ela, então, as situações de opressão que funcionam como base da experiência da teoria são aquelas transformadas em demandas de movimentos sociais, respeitando o fato de que em determinados momentos históricos as demandas assumem formas diferentes. Em oposição à visão de Honneth, então, Fraser entende que a justiça é uma questão reparatória e o horizonte normativo da Teoria Crítica deveria ser buscado nas demandas efetivamente traduzidas para as formas de discursos públicos sobre a opressão, de modo que o conteúdo destas demandas possa aparecer como o contraponto à experiência de submissão. O que estas visões sobre os conflitos presentes na sociedade capitalista revelam é que existem diferenças também quanto ao horizonte emancipatório que Honneth e Fraser apresentam. Se a maneira pela qual Honneth pretende esboçar este último é a teorização de uma forma de integração social na qual o reconhecimento jurídico universalizado seja assegurado e permita que os indivíduos encontrem condições favoráveis à estima de suas habilidades particulares, a fim de que, além das garantias jurídicas abstratas, os indivíduos possam obter respeito à sua contribuição particular para a totalidade social, Fraser entende como justa uma sociedade na qual as demandas por distribuição material e reconhecimento cultural sejam tratadas adequadamente e resultem nas garantias materiais e de status para que os indivíduos possam participar na vida social de suas comunidades sem impedimentos de qualquer ordem no que se refere a relações de submissão ou opressão.

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representativo da totalidade de suas obras é também um momento no qual consolidam-se mudanças e abrem-se novos caminhos para cada um deles, de modo que antes de realizar a confrontação entre ambos, no quarto capítulo da tese, será preciso apresentar cada um deles em um capítulo específico, como dito acima. O segundo capítulo da tese lida, pois, com a trajetória de Honneth e sua teoria do reconhecimento e o terceiro com a obra de Fraser e o desenvolvimento de sua teoria da paridade de participação. No capítulo sobre Honneth são apresentados três diferentes aspectos de sua produção, a crítica aos fundadores da Teoria Crítica, a construção de uma teoria sociológica baseada nas experiências de desrespeito, e as tentativas de desdobrar este modelo, ao mesmo tempo, em análises empíricas do mundo do trabalho e em análises ontológicas, como aquela feita através da ligação entre os conceitos de reconhecimento e reificação. No capítulo sobre Fraser, organizado a partir de sua entrada no debate sobre o reconhecimento com um texto no qual ela diagnostica os desafios de uma era pós-socialista, serão apresentadas as mudanças pelas quais passou seu modelo, de uma teoria dual da justiça na qual economia e cultura pareciam esferas autônomas até a formulação de um modelo centrado no status igualitário e voltado para a participação. Apenas após estes dois capítulos será realizada a confrontação de ambos os modelos, portanto. Com isto será possível iluminar as fraquezas e potenciais de cada um destes modelos teóricos e, consequentemente, assumir uma posição quanto à questões levantadas pelos autores.

O quinto e último capítulo da tese visa, por fim, discutir os resultados deste confronto e os desenvolvimentos do debate entre os autores para a discussão sociológica sobre o reconhecimento. Neste momento, porém, será tomada como referência central a obra mais recente de Honneth, na qual ele procura reformular alguns de seus pontos de vista e fornecer uma visão que aproxime sua teoria do reconhecimento das teorias da justiça. Como contribuição específica desta tese, finalmente, será apresentada uma crítica aos desenvolvimentos da teoria do reconhecimento com a qual se pretende desenvolver uma categoria analítica complementar à de reconhecimento, a de “desreconhecimento” (Aberkennung). O que se tentará demonstrar, ao final do trabalho, é que a teoria do reconhecimento possui, apesar de suas qualidades na apreensão da realidade social, uma séria dificuldade em compreender processos de opressão e submissão que se situam aquém das fronteiras éticas ela é capaz de reconstruir.

Antes de passar à tese propriamente dita, porém, um último esclarecimento conceitual se faz necessário, pois é justamente aquele que situa historicamente a sociologia do reconhecimento. Como mencionado anteriormente, a emergência da noção teórica de reconhecimento remonta ao momento político em que lutas sociais realizadas em nome da cultura adquiriram centralidade entre os movimentos de protesto, os anos 1960. A partir desta década, problemas de identidade coletiva passaram a ocupar um espaço, a arena de reivindicações políticas, que antes era organizado ao redor

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de formas de contestação à ordem vigente que ascenderam conjuntamente com a (e em consequência da) modernidade capitalista. A partir desta época, sindicatos e partidos passaram a compartilhar espaços, mas também a concorrer por eles, com novas formas de contestação que atribuíam à identidade cultural e aos valores simbólicos importância política equivalente àquela que tradicionalmente se atribuía à igualdade material e ao respeito pelos méritos do trabalho. Estas lutas por identidade, que rapidamente receberam a alcunha de “novos movimentos sociais” foram descritos fundamentalmente como grupos de atores políticos que lutavam pelo reconhecimento de suas identidades. Esta descrição, que remete a uma série de ideias antropológicas e culturalistas que já há vários anos são objeto de crítica e debate, acabou por marcar certos entendimentos teóricos e políticos que compõem o pano de fundo no qual o debate entre defensores da igualdade e da diferença como paradigmas críticos se dá; este debate, por sua vez, assume diferentes formas, entre as quais a da crítica de Fraser a Honneth e a resposta deste àquela. Como, todavia, a resposta do alemão e a tréplica da americana situam a discussão em patamar diferente daquele das disputas entre igualdade e diferença, cabe aqui, como um esclarecimento necessário à compreensão das categorias ao redor das quais se desdobra esta tese, realizar uma breve sociologia do conceito de reconhecimento, tomando como base para isso o lugar ocupado pelo conceito de identidade em teorias dos movimentos sociais e do reconhecimento.

Para realizar este esclarecimento é preciso, antes, tomar como pressuposto que a ação coletiva inclui diversos e diferenciados tipos de relacionamento entre os atores mesmo quando as formas pelas quais ela se apresenta são similares. Isto significa que mesmo sendo conflitos de grupos sociais por determinados objetivos coletivos, as lutas por reconhecimento não são necessariamente movimentos sociais ou, dito de forma mais completa, as lutas por reconhecimento não se expressam apenas por meio de movimentos sociais, assim como nem todos os movimentos sociais de caráter identitário podem ser vistos como lutas por reconhecimento. Como explica Barbara Hobson, a primeira distinção a ser feita entre estes dois tipos de ação diz respeito ao fato de que enquanto as lutas por reconhecimento remetem a aspectos e inclinações normativas relativas a sentimentos de desrespeito e sofrimento dos indivíduos envolvidos, os movimentos sociais são formas de ação e organização social de uma determinada comunidade – seja por meio de pressões para a mudança seja por meio de posturas defensivas, como demonstram teóricos dos novos movimentos sociais. Em linhas gerais o que Hobson parece expressar é o fato de que enquanto os teóricos do reconhecimento parecem apontar de modo mais satisfatório para os processos de formação da identidade e da capacidade de identificação entre indivíduo e sociedade, pois tratam o desenvolvimento da personalidade como um processo normativo de afirmação da capacidade individual de participação na vida social, os teóricos dos movimentos sociais demonstram estar

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mais atentos a contextos institucionais de participação e mobilização. Neste sentido, as teorias do reconhecimento seriam mais aptas a lidar com a esfera individual dos conflitos sociais e, ao mesmo tempo, com a transformação dos impulsos e sofrimentos em elementos de contestação das normas e valores vigentes, ao passo que as teorias dos movimentos sociais observariam de modo mais aprofundado a interação entre grupos constituídos e o contexto social no qual atuam. Esta formulação, no entanto, parece supor que nenhuma destas duas teorias seja capaz de fazer a transição entre os momentos macro e microsociológicos de modo completo, uma vez que os campos analíticos de cada uma delas são limitados pelos seus interesses e objetos, isto é, as teorias do reconhecimento se preocupariam primordialmente com a formação de sujeitos e com a capacidade de uma sociedade em lidar com diferentes tipos deles, e as teorias dos movimentos sociais se ocupariam com os modos como grupos sociais pressionam um sistema social para que suas demandas passem a fazer parte do quadro mais amplo da organização da vida social.

Ainda que Jürgen Habermas tenha tratado dos novos movimentos sociais e Alain Touraine seja uma grande referência para seu estudo, Alberto Melucci talvez seja, dentre estes teóricos, aquele que incorporou a questão da identidade de modo mais consequente em sua agenda teórica, justamente por meio de uma tentativa de explicação do movimento pelo qual se forma o ator coletivo. Assim como Hobson viria a fazer mais tarde, ele procura dar conta do processo de articulação de diversos atores em torno de funções simbólicas que caracterizam suas ações e, assim, associar o desenvolvimento individual a processos coletivos. Sua preocupação é com a dimensão coletiva da identidade, mas também com o fato de que esta “identização” coletiva coloca os atores envolvidos em uma situação paradoxal, que é a de afirmar sua diferença para com o resto da sociedade ao mesmo tempo em que demanda seu reconhecimento e seu pertencimento a esta sociedade. O que está implícito neste tipo de formulação proposto por Melucci e seguido por Hobson, contudo, é uma noção processual de identidade, onde esta aparece como uma espécie de resultado posterior de fatores que possibilitam seu surgimento. Mesmo os elementos considerados por Melucci como os componentes da identidade coletiva remetem a processos de auto-compreensão e reflexividade que são marcados pela condição social do ator: a continuidade desta identidade e sua adaptação a novos ambientes sociais, sua delimitação frente aos outros e habilidade de reconhecer e ser reconhecido. Neste modelo, a identidade defendida por um movimento social somente ganha relevância quando articulada em um grupo, um “nós”, capaz de expressar demandas e símbolos com os quais os sujeitos envolvidos possam se identificar. Por isso, além de processual e posterior à vida social, esta concepção é também uma espécie de inversão da noção clássica, utilizada pela antropologia social, de identidade, onde esta era portada por indivíduos que, caso preciso, se articulariam para defendê-la. Aqui ela só parece existir quando indivíduos reconhecem

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nos símbolos expressos algo pelo qual valha a pena mobilizar-se.

Duas consequências importantes deste modelo poderiam ser observadas, então. A primeira é a que, sendo a identidade um processo de identificação com uma causa ou um símbolo, seria possível aos teóricos dos movimentos sociais tratar de diferentes demandas que seriam estranhas a uma noção antropológica de identidade como pontos articuladores de comunidades; a segunda é que, como a identidade depende de seu uso social, seja como defesa de ideias e valores seja como demanda pela valorização destas ideias e demandas, ela poderia ser uma espécie de vestimenta com a qual os atores envolvidos em ações coletivas de organização se apresentariam no espaço público.

No primeiro caso, demandas como a paz ou os direitos animais poderiam ser pontos de articulação tão capazes de articular sentimentos de identificação quanto o ser negro ou ser mulher. O que está em jogo aqui é o pano de fundo da articulação social, que não pode ser tomada apenas a partir da noção de identificação posterior com um movimento ou situação preexistente. Obviamente, não é necessário que todas as demandas de movimentos sociais sejam tratadas como questões de identidades. O pacifismo ou a luta pelos direitos dos animais são tipos de movimentos que não necessitam deste tipo de caracterização para constituir suas articulações. Por isso, o uso do conceito de identidade coletiva como identificação para com símbolos pode recair em exageros, ainda que seu uso em determinados casos seja positivo. Este primeiro ponto, então, já permite que se note que a ideia de identidade não representa uma condição para a existência dos movimentos sociais, mas que possui usos específicos.

Já quanto ao segundo ponto, a ideia de identidades situacionais, o uso que teóricos dos movimentos sociais fazem desta ideia lembra aquele de Stuart Hall segundo a qual na modernidade os indivíduos carregam em si diferentes condições que lhes são exigidas em situações particulares, quando deve-se decidir se a identidade mais importante é a de homem, negro, homossexual e assim por diante. Contudo, a supressão temporária de uma identidade não significa, certamente, a eliminação de certas identidades. Pelo contrário: determinadas identidades não podem ser suprimidas. Um exemplo interessante é fornecido por uma cena difundida por ocasião da eleição do presidente Barack Obama nos Estados Unidos, quando o pastor batista Jesse Jackson, ele mesmo um ativista e antigo pré-candidato à presidência do país, foi flagrado por câmeras televisivas às lágrimas. Jackson, um ativista histórico dos direitos civis e das lutas dos negros por igualdade se emocionava pela eleição do primeiro presidente negro nos Estados Unidos, ainda que Obama, em repetidas ocasiões tenha afirmado ser um presidente pós-racial. Neste sentido, o fato de sua identidade étnica não exercer papel preponderante em sua atuação não elimina a carga simbólica historicamente associada a ela. Pode-se perceber, então, que a identidade possui um certo núcleo fixo mas também que suas condições sociais são mutáveis e são elas que podem fazer da

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integridade pessoal e subjetiva uma demanda.

O uso do conceito de identidade entre estes teóricos dos movimentos sociais, então, revela que a preocupação a ele associada neste tipo de teorização é a de entender como um grupo passa a articular-se ao redor de uma causa. A contrapartida é que a tentativa de entender motivações sociais, processuais e relacionais podem suprimir a própria relação entre a causa da mobilização e o desejo de participar em um movimento que se oponha a esta causa. Ou seja, uma teoria que diz que uma identidade (ou melhor: qualquer identidade) se forma externamente aos sujeitos e é posteriormente assumida por eles a fim de assegurar interesses toma como objeto de estudo a ação social, mas nunca critérios normativos que permitam qualificar certas ações coletivas e padrões institucionais. Isto é, como se verá adiante, uma atribuição de teorias da justiça, sejam elas materialistas ou idealistas.

Para as teorias do reconhecimento, dois momentos podem receber importância primordial, dependendo de quais são as preocupações do teórico: pode-se enfatizar o processo bem sucedido de formação da personalidade ou pode-se enfatizar a ampliação do escopo do reconhecimento socialmente dado às diferenças entre as identidades. A primeira destas correntes, mais epistemológica é representada por Axel Honneth; a segunda, mais voltada para a perspectiva multiculturalista tem como principais autores Charles Taylor e Iris Marion Young. Estes últimos, porém, sofreriam, em seus modelos teóricos, de uma ausência de análise normativa que, por outro lado, é compensada com observações mais atentas do contexto empírico do quê a teoria de Honneth. Enquanto para Young, por exemplo, o ponto fundamental colocado pelas lutas por reconhecimento é o questionamento dos parâmetros tradicionais de justiça social baseados na igualdade material e no universalismo formal, para Honneth estas lutas revelam uma essência moral dos conflitos sociais porque nelas estão implícitas demandas morais normativas pelo reconhecimento da integridade da personalidade dos indivíduos. Nestes dois casos, então, o conceito de identidade é apropriado de modos diferentes. Se para Young ele se relaciona à construção de um paradigma político, para Honneth ele faz parte do processo de formação do indivíduo.

No modelo de Young, que é aquele onde a constituição de demandas identitárias como motivos para o conflito social é mais explícita, a noção de identidade é incorporada de modo mais direto, sem uma discussão aprofundada sobre quais seriam suas implicações e pressupostos. Pelo contrário, ela toma como dado, junto com inúmeros outros teóricos, entre os quais os dos novos movimentos sociais, que estes conflitos emergem no final da década de 1960 e que representam um novo tipo de contestação às injustiças vigentes porque representam modos de defesa e reivindicação de “identidades”, que aparecem aqui num sentido culturalista. Deste modo, sua teoria acaba por

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associar a noção de identidade a um diagnóstico político sobre as lutas sociais e, neste sentido, formular um modelo de teoria do reconhecimento que poderia ser visto como uma teoria dos novos movimentos sociais políticos que luta pelo reconhecimento cultural de sua identidade. Com relação às definições metodológicas de Barbara Hobson e Alberto Melucci, o modelo de Young avança no que diz respeito à atribuição de critérios normativos às ações sociais coletivas. Por outro lado, na medida em que atribui o surgimento destas formas de luta sociais à defesa de noções externas e estáticas de cultura e identidade, seu modelo ainda não é suficientemente diferenciado para atribuir alguma especificidade à categoria do reconhecimento que não a de um tipo de política culturalista.

Este é o passo fundamental dado por Honneth: a formulação de uma teoria do reconhecimento que toma os conflitos sociais como traduções empíricas das experiências de sofrimento e desrespeito das expectativas de reconhecimento mútuo constituídas pelo sujeito durante seu processo de formação e socialização junto a outros membros da comunidade. A novidade deste modelo está no fato de que ele entende que há na formação da personalidade do sujeito um potencial normativo que é expresso em três níveis de socialização: as relações primárias de amor e amizade, as relações jurídicas universalizadas e as relações de solidariedade e estima social pela personalidade do sujeito e por suas habilidades. Para ele, nestas três esferas de socialização formam-se respectivamente auto-relações de confiança, respeito e estima e a constituição bem sucedida destas relações é o que permite falar em integridade da personalidade. Ao mesmo tempo, estas esferas de socialização são arenas nas quais relações de reciprocidade se institucionalizam e orientam as práticas sociais internas a cada uma delas. Nota-se, então, que o conceito de identidade é tratado por Honneth como apenas um componente no processo mais amplo de formação do sujeito, já que em sua concepção de reconhecimento o núcleo normativo a ser defendido se desloca para a personalidade intacta. Desta maneira, o conceito de reconhecimento com o qual Honneth passa a trabalhar se descola da problemática levantada pelos teóricos dos novos movimentos sociais e da necessidade de supor uma identidade cultural, retomando uma peça da tradição hegeliana que fora bastante cara às gerações anteriores de marxistas em geral e de teóricos críticos em particular, que é a suposição antropológica de uma personalidade humana, que pode ou não permanecer intacta sob determinadas condições sociais – ou, pelo contrário, pode ser destruída sob estas condições.

Entretanto, esta constatação de que o conceito de reconhecimento expressa um tipo de relação normativa que não condiz exatamente com as teorias que procuram situar sua emergência em um momento histórico determinado corre o risco de se tornar uma abstração a-histórica, perdendo assim a especificidade analítica desta categoria para as sociedades capitalistas. Para situar novamente esta categoria dentro do quadro teórico moderno é preciso, então, que ela possa também

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expressar algum tipo de princípio ou de norma, seja de modo crítico ou reconstruído, que seja específico da modernidade capitalista. Neste caso, duas análises que procuram ressaltar o potencial normativo expresso pelos chamados novos movimentos sociais servem de apoio para que o conceito de reconhecimento pode, finalmente, aparecer em sua especificidade. O primeiro dos autores mencionados, Claus Offe, lembra, sem fazer referências a questões identitárias, que objetivo principal dos novos movimentos é “politizar as instituições da sociedade civil de maneiras que não são limitadas por canais de instituições políticas representativo-burocráticas e, desta maneira, reconstituir uma sociedade civil que não é mais dependente de cada vez mais regulação, controle e intervenção”1. Offe não se limita a ver nos movimentos sociais ações que demandam situações de

integração, procurando demonstrar que existem pressupostos normativos na própria ação destes movimentos. Para ele, estes movimentos surgem de um choque entre valores dominantes da cultura moderna e outras possibilidades não realizadas desta cultura. Assim, o entendimento de Offe sobre os novos movimentos sociais baseia-se tanto na reconstituição da sociedade civil quanto na afirmação de que estes movimentos são críticas internas à modernidade, isto é, não são regressivos e nem revolucionários, mas atuam dentro de uma esfera típica das sociedades modernas que é a sociedade civil pública. Esta ênfase na sociedade civil é seguida também pela segunda autora mencionada anteriormente, Jean Cohen, que vê na relação entre movimentos sociais e a esfera pública um potencial emancipatório baseado na “promessa de uma relação tradicional e pós-convencional com dimensões chave da vida social, política e cultural, isto é, sua coordenação através de processos de interação comunicativa”2. A ideia de que a sociedade civil pôde

transformar-se de um espaço de ação coletiva para um espaço da ação normativa na modernidade vai ao encontro da constatação feita por Honneth em seu debate com Fraser de que com os processos associados à modernidade – individualização, diferenciação, universalização –, uma lógica moral de reconhecimento passa a estruturar as relações intersubjetivas, seja em seu nível imediato, das relações entre pessoas, seja em seu nível abstrato, por meio das garantias jurídicas ou ainda por meio da divisão do trabalho social e do reconhecimento recíproco das contribuições alheias para a vida social. Assim, avançando um passo naquilo que Offe e Cohen haviam notado, isto é, que a sociedade civil possui elementos emancipatórios, é possível ver que o quê há de transformador nesta esfera é justamente o potencial de realização do reconhecimento recíproco. O que há de específico no conceito de reconhecimento utilizado por Honneth é, pois, a tarefa sociológica atribuída a este termo. Não se trata de expor, através dele, o que se demanda nos 1Claus Offe, “New social movements: challenging the boundaries of institutional politics” in Social Research, vol. 52,

N°4, Winter 1985, p. 817-868, aqui, p. 820. Esta e todas as outras traduções de citações no trabalho são de responsabilidade do autor.

2 Jean Cohen, “Strategy or identity: new theoretical paradigms and contemporary movements” in Social Research, vol.

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conflitos sociais do presente, mas de reconstruir nas formas institucionais modernas, quais são os padrões de reconhecimento recíproco que dão às sociedades modernas sua legitimidade e, a partir disto, revelar como o reconhecimento pode servir de conceito guia para a descrição da gramática moral dos conflitos sociais contemporâneos e de motivo de crítica do presente. Se a teoria de Honneth é capaz de corresponder às tarefas atribuídas a seu conceito diferenciado de reconhecimento ou se a crítica de Fraser é capaz de explicitar a necessidade de que este conceito seja reformulado é o que se discutirá nesta tese.

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Capítulo 1 – Reconhecimento, redistribuição e justiça: uma Teoria Crítica do

capitalismo contemporâneo

O conceito de reconhecimento tornou-se um dos mais importantes motivos de crítica às sociedades capitalistas, alcançando proeminência semelhante àquela do conceito de redistribuição. Desde o final da década de 1960, quando diferentes teóricos identificam o surgimento de movimentos sociais contestatórios que deixam de lado a temática classista tradicional, centrada na igualdade material e nas garantias geradas por uma sociedade na qual o emprego e as funções exercidas no mundo trabalho são determinantes para a identidade dos indivíduos, o vocabulário dos protestos passa a remeter não apenas à crítica da exploração capitalista, mas também a novos objetivos, dentro dos quais ideias relacionadas à identidade cultural, à individualidade e à diferença ganham relevância. Este movimento, que coincidiu com o início do que alguns autores como André Gorz e Claus Offe chamaram de crise da sociedade do trabalho, marcou não apenas a relativização das tradicionais demandas econômico-salariais dos movimentos contestatórios, mas também colocou a teoria sociológica frente ao desafio representado pela emergência de movimentos descentralizados com demandas e objetivos variados, pois, na medida em que transformavam a imagem das lutas sociais por meio da pluralização de seus objetivos, estes novos movimentos sociais traziam um elemento de complexidade às sociedades em questão, alterando fundamentalmente a relação até então estabelecida pelo Estado de Bem-Estar Social com os grupos oprimidos. Esta diferenciação das lutas sociais, porém, levou a uma necessidade de reavaliação de suas formas e também das motivações dos conflitos nas sociedades modernas. Neste sentido, o fato de que as sociedades que emergem após a crise do mundo da trabalho são marcadamente pluralizadas acaba por colocar em questão, segundo Gorz e Offe, a própria visão da modernidade surgida no século XIX segundo a qual o trabalho seria o grande integrador social. Desta forma, novas teorias da integração que pudessem ocupar o vácuo deixado pela superação histórica das teorias fundantes da sociologia deveriam vir à tona. Contudo, justamente o fato da pluralização da sociedade moderna pareceu contribuir para a dificuldade destas formulações, uma vez que uma tensão entre a incorporação da diferença ou a determinação da humanidade comum dos membros de uma comunidade foi o tema central desta nova fase, segundo Iris Marion Young.

Esta discussão sobre qual o melhor meio para garantir a incorporação da diferença sem ferir os preceitos universais da modernidade é o que motiva Nancy Fraser e Axel Honneth a debaterem as ideias de redistribuição e reconhecimento. Seu debate, contudo, vai além da busca por soluções àquela tensão em pelo menos dois pontos: por um lado, ambos os autores procuram articular suas

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visões sobre os conceitos de redistribuição e reconhecimento ao vocabulário dos movimentos de protestos de modo a contextualizar a discussão teórica e situá-la socialmente; por outro lado, na construção de modelos explicativos sobre como entendem a sociedade presente, eles não se limitam às áreas específicas de que tratam seus modelos, a economia e a sociologia, mas buscam avançar para a formulação de teorias normativas que sejam interdisciplinares, críticas do real e apontem para horizontes emancipatórios a partir de seus diagnósticos. Com o primeiro destes dois pontos, a aproximação com a forma como são expressas as demandas dos envolvidos em lutas sociais, Fraser e Honneth percebem que a causa da emergência dos movimentos pluralizados também foi deslocada, deixando de remeter preferencialmente à exploração econômica e abrindo espaço à constatação de que indivíduos vivem situações de injustiça. Isto leva-os a identificar nos clamores por justiça o elemento central dos protestos nas sociedades ocidentais capitalistas do final do século XX, de modo que a este conceito, o de justiça, é reservado por eles um espaço central no debate sobre as ideias de redistribuição e reconhecimento. Quanto ao segundo ponto, o retorno às teorias gerais, ambos assumem de forma clara sua filiação a uma tradição de análise social comprometida não apenas com a pesquisa imanente sobre seu tempo, mas também com a procura por alternativas que ampliem as possibilidades de emancipação, a Teoria Crítica da sociedade, seja em sua vertente fundada por Karl Marx ou, mais especificamente, em sua vertente fundada por Max Horkheimer. Assim, o debate entre Fraser e Honneth parte da interlocução com dois grandes campos teóricos que são opostos: de um lado a teoria da justiça, associada à tradição do liberalismo igualitário e de outro a Teoria Crítica, inspirada diretamente pela obra de Marx. O primeiro dos desafios colocados a Fraser e Honneth, então, é determinar como esta dupla interlocução é possível, algo que só pode ser feito por meio de uma explicação dos pressupostos do debate e do modo como ele se relaciona com cada um daqueles dois campos teóricos. Este é o tema da primeira seção deste capítulo (I).

Contudo, ao longo desta explicação percebe-se que, mesmo que a teoria da justiça e a Teoria Crítica não sejam hierarquizadas enquanto interlocutores, o debate entre Fraser e Honneth remete a ambas de modo diferentes, reservando à ultima um papel metodológico e normativo, enquanto com a primeira existem discussões no nível da investigação sobre as demandas feitas pelos grupos de protesto, o que a aproxima do momento imanente do debate. Neste sentido, o passo seguinte deste capítulo é investigar os pressupostos e fundamentos da ideia de justiça (II). Nesta investigação serão apresentadas em linhas gerais as ideias de autores que contribuíram de modo decisivo para a formulação de uma ideia moderna de justiça, como Jean-Jacques Rousseau, Adam Smith e Immanuel Kant. Estes são, aliás, os autores dos quais se vale o autor da concepção de justiça que tanto Fraser quanto Honneth tomam como a mais influente no momento em que escrevem seus trabalhos e com a qual se batem, John Rawls, cuja teoria distributiva da justiça é objeto de estudo da

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terceira seção do capítulo, juntamente com a crítica a ele realizada por autores que consideram que a ideia de justiça não é suficientemente distributivista (III). Por fim, na última parte, uma nova crítica é direcionada à teoria da justiça, mas desta vez a todas as suas formulações distributivistas (IV). Neste caso, toma-se a teoria de Iris Young como o ponto de apoio para a afirmação de que existem bens que não podem fazer parte do escopo do distributivismo, bens que remetem à esfera da cultura ou à formação da individualidade. A ideia de que o reconhecimento baseia-se em um paradigma diferente daquele da justiça distributiva mas ainda assim deveria ser objeto desta, por meio de uma alteração de seus fundamentos, é o que move Young a propor a alteração do paradigma da justiça de um modelo centrado na distribuição e oposto à exploração para um modelo centrado na pluralidade e oposto à opressão e à dominação.

Realizados estes quatro movimentos dentro deste capítulo, espera-se que não apenas o pano de fundo do debate entre Fraser e Honneth seja apresentado, como também os motivos pelos quais os modelos teóricos de cada um destes autores merecem ser tratados em capítulos separados, que é o fato de que seus modelos, ainda que incorporem elementos expostos neste primeiro percurso, apresentam formulações originais o bastante para não serem considerados apenas alternativas, por mais radicais que fossem, aos paradigmas tradicionais da justiça.

I – Pressupostos e interlocuções do debate: Teoria Crítica e teoria da justiça

O ponto de partida do debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth é a constatação, por ambos, de que o conceito de reconhecimento adquiriu grande importância nos debates políticos contemporâneos sem que, com isso, sua relação com outro conceito central da filosofia política do pós-guerra, o de redistribuição, tenha sido teorizada apropriadamente. Enquanto o primeiro destes termos mostra-se central para a tentativa de conceituar as lutas por identidade e diferença, o segundo foi o articulador das filosofias liberais-igualitárias do ápice da era Fordista, quando o foco principal das teorias sociais eram as demandas dos trabalhadores e dos pobres; se a noção de reconhecimento é usada para expressar a dimensão moral de diversos conflitos contemporâneos que ampliam o escopo das relações de trabalho ou de combate à pobreza, a ideia de redistribuição diz respeito antes a conflitos por recursos cobrados de um Estado nacional através de apelos a normas universalistas; além disso, o reconhecimento liga-se às condições de autonomia dos sujeitos, ao passo que a redistribuição remete às ideias de igualdade e participação. O que há de relevante na crescente importância conquistada pela noção de reconhecimento é que, a exemplo do que ocorrera com a noção de justiça distributiva que sustenta o conceito de redistribuição, as demandas por

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justiça expressas por diferentes grupos sociais articulam-se através daquele conceito. Ou seja, assim como a redistribuição, o reconhecimento passa a ser uma formulação de uma noção mais ampla de justiça social. Como, porém, a segunda constatação de Fraser e Honneth é a de que, a despeito da crescente relevância das questões relativas ao reconhecimento, as questões distributivas não foram resolvidas, ambos concordam que “nem reconhecimento nem redistribuição podem ser negligenciados na constelação presente”3. Isso significa que, para eles, ambas as problemáticas

devem ser tratadas de maneira aprofundada e conjunta, evitando a conduta tradicional de reduzir as demandas ligadas ao reconhecimento a problemas econômicos. Por isso, concordam que um entendimento adequado da justiça social deve abranger, no mínimo, as preocupações relativas às lutas por reconhecimento e às lutas por redistribuição.

Neste ponto, entretanto, os caminhos de Honneth e Fraser se separam: enquanto ele acredita que uma teoria substantiva do reconhecimento seja capaz de enfrentar os problemas colocados por ambos os lados do debate, ela defende que a união destes conceitos em uma estrutura conjunta é a melhor opção para a teorização do capitalismo contemporâneo. Assim, Fraser diz que “É minha tese geral de que a justiça hoje requer tanto redistribuição quanto reconhecimento”4; Honneth, por outro

lado, está “convencido de que os termos do reconhecimento devem representar esta estrutura unificada”5.

No caso de Fraser, a ideia é ressaltar os aspectos emancipatórios de ambos os tipos de lutas sociais e, por meio deste movimento, enfrentar a questão da justiça social em duas dimensões: quanto à sua formulação teórica, Fraser acredita que a unificação destes dois campos pode propiciar a formulação de um conceito bi-dimensional de justiça capaz de acomodar demandas defensáveis por igualdade social e por reconhecimento da diferença; quanto à dimensão prática, ela preocupa-se com a formalização de políticas que possam orientar de modo programático a integração de demandas por redistribuição e reconhecimento6.

Já para Honneth, a separação proposta por Fraser entre dois domínios a serem abarcados pela noção de justiça social, o domínio material e o domínio cultural, poderia ser relevada pela tentativa de orientar a compreensão teórica por uma estrutura categorial capaz de estabelecer ligações entre as demandas dos movimentos sociais e os sentimentos generalizados de injustiça e, 3 Nancy Fraser and Axel Honneth, Redistribution or recognition?: a political-philosophical exchange, London/New

York, 2003. p. 2. “Neither recognition nor redistribution can be overlooked in the present constellation”. As passagens em outra língua que aparecem traduzidas são todas de minha responsabilidade.

4Nancy Fraser, “Social justice in the age of identity politics: Redistribution, recognition and participation”, in: Nancy

Fraser and Axel Honneth, Redistribution or recognition?: a political-philosophical exchange, London/New York, 2003a. Pág. 9.

5Axel Honneth, “Die Pointe der Anerkennung. Eine Entgegnung auf die Entgegnung”, 2003b, in Nancy Fraser and Axel

Honneth, Redistribution or recognition?: a political-philosophical exchange, London/New York, 2003c. Pág. 113.

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através desta relação, revelar o conteúdo normativo destas demandas. Em sua visão, a categoria capaz de realizar esta mediação entre sentimentos e demandas com propriedade é o reconhecimento7.

A despeito destas diferenças quanto ao caminho adotado por cada um dos autores, eles voltam a concordar em dois importantes pontos organizadores do debate. Primeiro, a divisão específica de disciplinas como a filosofia moral, a sociologia e a teoria política deve ser superada. Neste sentido, ambos aspiram à “teorização da sociedade capitalista como uma “totalidade”” 8. Em

segundo lugar, na medida em que ambos identificam-se com a tradição da Teoria Crítica da sociedade, esta reunião das disciplinas em uma teoria normativa deve servir a um adequado entendimento da sociedade presente, sendo a concepção sobre a sociedade capitalista a categoria fundamental de ambos os seus modelos9. Desta forma, mais que a relação entre os conceitos de

redistribuição e reconhecimento, a questão central colocada por Fraser e Honneth com seu debate refere-se a como compreender a sociedade presente:

O capitalismo, como existe hoje, deve ser compreendido como um sistema social que diferencia uma ordem social que não é diretamente regulada por padrões institucionalizados de valor cultural de outras ordens sociais que o são? Ou a ordem econômica capitalista deve ser entendida antes como a consequência de um modo de valoração cultural que está ligado, desde o princípio mesmo, com formas assimétricas de reconhecimento?10

Ou seja, a disputa entre estes autores gira em torno da compreensão da base organizativa da sociedade capitalista, se esta é uma sociedade em que esferas de regulação cultural e não cultural seguem lógicas de valorização e institucionalização que são ou não autônomas. E, uma vez que a regulação de demandas associadas ao reconhecimento, a sua valorização e sua institucionalização, são objetos de sentimentos e demandas de grupos sociais que através destas demandas buscam expressar concepções de justiça, o debate entre Fraser e Honneth gira também em torno de uma teorização adequada das implicações normativas dos conceitos de redistribuição e reconhecimento. O resultado destas duas preocupações é que, ao mesmo tempo em que se propõem a realizar uma análise imanente da sociedade presente, eles não abrem mão da tarefa de procurar nesta análise crítica os elementos que apontam para a superação das desigualdades reveladas. E esta relação entre imanência e transcendência é, afinal, a essência da Teoria Crítica como entendida desde sua fundação na década de 1930 pelos pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung – IfS) de Frankfurt am Main. Estes pesquisadores, liderados por Max Horkheimer

7Honneth, 2003b: 113.

8Fraser and Honneth, 2003, p. 4. 9Fraser and Honneth, 2003, p. 4. 10Fraser and Honneth, 2003, p. 5.

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propunham-se a trabalhar de modo interdisciplinar, reunindo conhecimentos de economia política, sociologia, psicologia, crítica cultural e filosofia em uma mesma teoria que se diferenciaria da teoria feita de modo tradicional, que encontrava sua expressão à época no positivismo cartesiano e na fenomenologia, pela sua auto-compreensão: segundo a formulação de Horkheimer no artigo “Teoria tradicional e Teoria Crítica”, esta última, a Teoria Crítica, entende a si mesma como um momento presente na realidade que analisa, buscando, por isso mesmo, encontrar nesta própria realidade elementos que apontem para a sua superação11. Essa fórmula de buscar a emancipação a partir das

condições do presente ficou conhecida como uma relação de imanência e transcendência. Ao mesmo tempo em que se caracteriza por esta investigação aprofundada do real e com uma orientação para a emancipação, a Teoria Crítica caracteriza-se pela renovação permanente de seu núcleo teórico em função da construção de novos diagnósticos de tempo12, de modo que, neste

movimento, a preocupação de autores de gerações posteriores à de Horkheimer, como é o caso de Honneth e Fraser, dirige-se também aos destinatários do discurso crítico contemporâneo13.

Assim, enquanto Horkheimer diagnosticou a perda de esperança no proletariado14, Fraser e

Honneth observam nas demandas por justiça social um destes elementos capazes de indicar comportamentos críticos. No entanto, demandas historicamente diferenciadas por justiça social não seriam, segundo o modelo de Horkheimer, suficientes para que a Teoria Crítica encontrasse os elementos indicativos dos momentos de crítica imanente. Para ele, a associação entre teoria e as ideias de uma determinada classe ou de um grupo social não passa de uma forma tradicional e especializada de ciência que apenas descreve aquilo que esta classe ou grupo expressa. Ao contrário das teorias que apoiam de modo acrítico as posições das classes ou grupos menos favorecidos simplesmente porque estes são quem mais sofre com a opressão, a Teoria Crítica busca nestas lutas os elementos de crítica do presente que apontam para a superação das relações de dominação e para a emancipação, ou seja, sua relação com as demandas sociais é antes de complementação do que de apoio, uma vez que se trata de identificar no real aquele movimento em direção à superação da dominação que é realizado cientificamente pela Teoria Crítica por meio da crítica imanente da teoria tradicional. Daí que, ao invés da separação entre a ciência e o contexto no qual ela é feita, a Teoria Crítica sustenta-se na consciência de que é parte de um processo histórico. No caso de sua relação com o movimento histórico de emancipação, ela não pode limitar-se a descrever demandas 11 Max Horkheimer, “Traditionelle und kritische Theorie” in Zeitschrift für Sozialforschung. Jahrgang 6 (1937).

München: Deutschen Taschenbuch Verlag, 1980, pp. 245-294. (Edição brasileira: “Teoria tradicional e Teoria Crítica"

in Benjamin, Walter, Horkheimer, Max, Adorno, Theodor W., Habermas, Jürgen. Textos escolhidas. São Paulo: Abril

cultural, 1983 (Os pensadores). Aqui, p. 270-1 na edição alemã e 137 na brasileira.

12 Marcos Nobre, Teoria Crítica. São Paulo: Jorge Zahar, 2004, p. 23.

13 Josué Pereira da Silva, Trabalho, cidadania e reconhecimento. São Paulo: Annablume, 2008, p. 35. 14 Horkheimer, 1983, p. 134; 1980 [1937], p 267.

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