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Manuelzão e Miguilim. João Guimarães Rosa EDUCACIONAL. Roteiro de Leitura

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Academic year: 2021

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João Guimarães Rosa

Roteiro de Leitura

BIOBIBLIOGRAFIA DO AUTOR

João Guimarães Rosa nasceu em Codisburgo, MG, a 27 de junho de 1908. Iniciou seus estudos nesta mesma cidade e também em São João del Rei e os foi terminar em Belo Horizonte, onde posteriormente estudaria medicina. Após clinicar por algum tempo em Itaguara, ingressou na carreira diplomática (1934). Falante fluente de diferentes línguas (espanhol, francês, inglês, alemão e italiano) e leitor de várias outras (latim, grego clássico e moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, árabe e malaio), Guimarães Rosa chegou a ser cônsul-adjunto em Hamburgo, chefe da Divisão do Orçamento do Ministério e ministro de primeira classe do governo de Juscelino Kubitschek.

Em 1952, o autor realizou um velho sonho: viajou por nove dias através do sertão, carregando um caderno no qual anotava nomes de bichos e plantas, raças e cores de gado e canções populares, onde conheceu o vaqueiro Manuelzão, inspiração para Uma

Estória de Amor. As canções e o falar dos sertanejos influenciaria mais tarde o estilo roseano, o qual estudaremos de forma mais

aprofundada posteriormente. Em 1967, Rosa tomou posse na Academia Brasileira de Letras, mas não chegou a desfrutar de sua conquista: o autor faleceria três dias depois, devido a um enfarte fulminante.

Teve sete obras publicadas: Sagarana (primeira versão de 1937, reformulada e reeditada em 1946); Corpo de Baile (volume composto por sete novelas, dividido em 1956 em três volumes); Grande Sertão: Veredas (também em 1956, seu único romance);

Primeiras Estórias (coletânea de vinte e um contos curtos, 1962); Tutaméia (1967) e as póstumas: Estas Estórias (1960) e Ave Palavra (1970).

A obra que aqui será estudada fazia parte, anteriormente, da coletânea de “novelas” Corpo de Baile, a qual foi desdobrada em três volumes a partir de 1964: “Manuelzão e Miguilim”, “No Urubuquáquá, no Pinhém” e “Noites do Sertão”. O primeiro é composto por duas histórias: a de Manuelzão – Uma Estória de amor (Festa de Manuelzão) — e a de Miguilim – Campo Geral.

CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL

Em 1945 termina a Segunda Guerra, o que modifica profundamente o cenário sócio-político mundial. As explosões de Hiroshima e Nagasaki iniciam a “Era Atômica”. É criada a ONU e publicada a Declaração dos Direitos Humanos. A Guerra Fria tem o seu início. Para o Brasil, a deposição (1945), eleição (1950) e conseguinte suicídio (1954) de Getúlio Vargas trazem muitas conseqüências e mudanças. O desenvolvimento econômico e a democratização política marcam um novo período histórico. Juscelino Kubitschek assume a presidência em 1955, incentivando as indústrias automobilística, siderúrgica e mecânica e iniciando a construção de Brasília, que seria inaugurada em 1960, com a eleição de Jânio Quadros como presidente da República. Com a renúncia deste em 1961, João Goulart (Jango) assume o poder e é deposto em 1964 pelo golpe militar — início da ditadura. Nesse período, novas tendências artísticas surgem na vida cultural brasileira. Na pintura, podemos destacar a divulgação das artes plásticas e fundação de museus. A partir de 1950, a bienal de São Paulo começa a atrair artistas plásticos do mundo inteiro. Surgem os concretistas (valorização do geometrismo) e os abstracionistas (privilégio da “sugestão”). Nomes como Ariano Suassuna, Jorge de Andrade, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal revolucionam as artes cênicas, amadurecendo o processo iniciado por Nelson Rodrigues. Na literatura, a geração de 45 (terceira fase do movimento modernista) renova os meios de expressão a partir de uma pesquisa em torno da linguagem. O traço formalizante caracteriza a geração de poetas da época (dentre eles, João Cabral de Melo Neto) e a prosa conhece a literatura intimista e introspectiva de sondagem psicológica (Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles) e o regionalismo de inflexão mítica, que modifica o romance regionalista nordestino da geração de 30 (Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz) e encontra na saga mineira de Guimarães Rosa — o qual revolucionou a linguagem narrativa, como melhor estudaremos a seguir — a sua expressão mais elevada. O espaço urbano também é retratado nas crônicas de Rubem Braga e nos contos de Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, entre outros.

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ENREDO DA OBRA A) Campo Geral

Mais conhecida como “Miguilim”, Campo Geral conta a história de um menino de oito anos, que vivia com a família no Mutum, no meio dos Campos Gerais. Com a família, viviam o irmão do pai (tio Terêz), a tia-avó materna (vovó Izidra) e alguns agregados: Rosa, a cozinheira; Maria Pretinha, empregada e Mãitina, negra velhíssima e beberrona, acusada de ser feiticeira. Dois vaqueiros também compõem o núcleo de personagens da história: Jé e Saluz.

Quando completara sete anos, Miguilim fora levado pelo tio, de quem gostava muito, para ser crismado no Sucuriju, lugarejo distante. Primeira vez que saíra de casa, sentira saudades. Na viagem, alguém que já tinha morado no Mutum comentou com ele: “É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre”. O menino gostou da maneira como a pessoa falou do lugar em que vivia e a primeira coisa que fez ao chegar em casa foi consolar a mãe (a qual queixava-se principalmente da chuva) dizendo que o Mutum era um lugar bonito. Mas isso causou desgosto ao pai e ele foi castigado, não podendo ir para a pescaria no dia seguinte. Para que Miguilim não ficasse triste, seu tio ensinara-o a armar “urupucas” para pegar passarinhos.

Por ter chegado de viagem, os irmãos pediram a ele presentes, mas ele não os havia trazido e inventava desculpas: “Estava tudo num embrulho, muitas cousas... caiu dentro do corgo, a água fundou... Dentro do corgo tinha um jacaré, grande...”

A família criava muitos cachorros, todos conhecidos por determinado nome. Pingo-de-Ouro, a predileta de Miguilim, fora dada para “uns tropeiros” quando já estava quase cega. Por causa de uma canção conhecida, na qual o menino chorava por causa de sua “Cuca”, o menino passou a chamá-la de Cuca.

Certa vez, Dito avisa o irmão mais velho que o pai está batendo na mãe. Por tentar defendê-la, Miguilim é posto de castigo “no alto do tamborete”. Lá, reflete sobre as surras e castigos que ele e Chica sempre levavam, pensa na brutalidade do pai e chega a comparar sua história com a de João e Maria, perdidos no mato. Dito, como quem não quer nada, aproxima-se dele para lhe fazer companhia sem que outros percebam, já que ninguém podia conversar com quem estava de castigo. Chica (sua irmã) traz-lhe água.

Quando Nhô Béro (o pai) sai, tio Terêz avisa que um temporal estava chegando. Vovó Izidra expulsa-o de casa acusando-o de “Caim que matou Abel”. Cai um temporal e Miguilim acredita que tivesse sido por causa da mãe, pai e tio Terêz. Todos vão rezar, pois têm muito medo.

O pai retorna depois da noite de chuva e Dito procura ouvir as conversas dos adultos, o que Miguilim achava muito chato. Ele desejava permanecer criança.

Seo Deográcias, entendedor de remédios, acompanhado de seu filho Patori (de quem Miguilim não gostava), aparece para cobrar uma antiga dívida e aproveita para olhar a saúde do menino. Por achar Miguilim muito fraco e magro, o curandeiro receita ervas para que ele não adoeça. Assustado, Miguilim pensa que vai morrer de tuberculose e pede para rezarem com ele. Depois de muita angústia, o menino faz um pacto com Deus: se não morresse dentro de dez dias, não morreria mais. Ora brincando, ora procurando as pessoas para compartilhar seus medos, Miguilim começa a ficar assustado apenas no nono dia, quando não consegue fazer a novena prometida. No último dia, ele não sai da cama, esperando a morte chegar. Drelina, sua irmã, por perceber seu sofrimento, permanece de mãos dadas com ele, enquanto Dito vai chamar seo Aristeo, vaqueiro bonito e persuasivo, o qual consegue convencer Miguilim, de que não vai morrer. O pai, de tão feliz que ficou, resolve dar ao menino o serviço de levar para ele comida na roça. Miguilim se alegra, pois o pai passa a brigar menos com ele.

Na volta da primeira vez em que vai exercer tal serviço, tio Terêz surge do meio do mato e entrega a ele um bilhete, que deveria ser entregue à sua mãe. Miguilim fica com a consciência pesada por não saber se isso é certo, mas, ao mesmo tempo, tinha prometido ao tio que entregaria o bilhete e angustia-se por não saber o que fazer. Então, questiona Dito sobre o que é certo: “‘Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo?’ ‘- A gente sabe, pronto.’”. Não satisfeito com a resposta, Miguilim começa a perguntar a opinião de diferentes pessoas: Rosa, mãe, vaqueiro Jé, vaqueiro Saluz, mas não consegue chegar a qualquer conclusão e resolve não pensar mais nisso, ocupando o seu dia para que ele passe rapidamente.

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Na hora de dormir, para garantir que nada aconteceria com o bilhete que estava em seu bolso, o menino não tira a calça. Na manhã seguinte, a caminho da roça, pensa em desculpas variadas para dar ao tio, mas acaba contando a verdade e chora copiosamente. O tio compreende a atitude do menino, louva seus escrúpulos, beija-o e vai embora. No caminho da roça, Miguilim se amedronta com alguns vultos que roubam e comem o almoço do pai, o qual vai verificar juntamente com Luisaltino o que ocorrera. Os dois descobrem que o menino assustou-se com um bando de macacos e a história vira chacota.

Miguilim, então, precisava ficar a sós com Dito e com ele conversa sobre rezas e filosofias. O menino acreditava na sabedoria inata do irmão.

Começa a chover novamente no Mutum. Vaqueiro Saluz leva Luisaltino para começar a ajudar Nhô Béro na roça e traz a notícia de que Patori havia assassinado um rapaz e, por isso, fugira. O pai, desesperado, procurava pelo filho sem cessar. Luisaltino traz com ele um papagaio, Papaco-o-Paco. Apesar de ser de Chica, o animal gostava mesmo da cozinheira Rosa, a qual o alimentava e ensinava novos cantos e falas. Nessa época, passa pelo local o Grivo, menino muito pobre, por quem Dito e Miguilim se afeiçoaram. O veranico seguiu tranqüilo, com o pai e Luisaltino trabalhando muito, e este conversando por diversas vezes com Nhanina. Dito conta a Miguilim que vira o vaqueiro Jé abraçando Maria Pretinha.

Siarlinda, esposa do vaqueiro Saluz, vai visitar a família e conta para os meninos muitas histórias. Os dois gostam principalmente das de assombração. Miguilim, a partir desse momento do livro, começa a se interessar também por criar e contar as mais incríveis narrativas.

Patori é encontrado morto e Nhô Béro vai ao enterro.

É noite de lua cheia e toda a família vai até o alto do morro para fazer um passeio. Como Nhanina só dá atenção para Luisaltino, Miguilim fica enciumado e diz que “queria ver o mar, só para não ter essa tristeza.” A mãe o entende e o pega pela mão.

Na manhã seguinte, todos foram tomados pela felicidade: Rosa havia conseguido ensinar Papaco-o-Paco a dizer: “Miguilim, me dá um beijim”.

Depois disso, começam os tempos ruins: Siarlinda briga com o vaqueiro Salluz, o qual fica com dor de dentes e crise de hemorróidas; o cachorro Julim é morto por um tamanduá; Nhô Béro adoece de pena e todos ficam tristes por isso; um marimbondo ferroa Tomezinho; o touro Rio Negro machuca a mão de Miguilim que, nervoso, bate no irmão querido que o viera consolar. Arrependendo-se, envergonha-se e vai para o castigo no tamborete. Dito vai vê-lo e Miguilim finalmente pede desculpas. Dito chega à conclusão de que, além de irmãos, eles são grandes amigos.

Naquela madrugada, Maria Pretinha foge com o vaqueiro Jé. Pela manhã, Dito tenta encontrá-los no esconderijo das corujas, mas eles já haviam ido. Nesse meio tempo, o mico-estrela da família escapa e todos saem para procurá-lo. Na busca, Dito corta o pé profundamente em um caco e sangra muito. Nele fizeram um curativo com ervas, mas o menino continua se sentindo fraco. Passa a ficar todo o tempo deitado na rede, para poder se inteirar do que acontecia e pede para Miguilim comentar com ele tudo o que estava ocorrendo com as pessoas em geral. Ele passa a ser o “informante” de Dito. O tétano, porém, com o passar do tempo, piora, causando no menino dores de cabeça, febre e vômitos. Vovó Izidra reza o terço em nome de Dito.

Chega a época de Natal e a velha vai montar o presépio, para a tristeza de Dito, que não pode ajudar. Miguilim também não vai para fazer companhia ao irmão e conta mil histórias inventadas para distraí-lo. “Deus mesmo era quem estava mandando”. Dito sorri e dorme.

A doença começa a enrijecer os músculos da criança, em lenta agonia. O pequeno doente pede desculpas ao irmão mais velho por tê-lo invejado quando Papaco-o-Paco falou seu nome. Miguilim e Rosa começam, então, a tentar ensinar o papagaio a falar o nome do Dito, mas em vão.

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É véspera de Natal e Dito cada vez piora mais. Luisaltino sai em busca de Seo Deográcias e Seo Aristeo. Maria Pretinha e o vaqueiro Jé retornam à fazenda e todos rezam juntos o terço. Nhanina fica junto do filhinho adoentado. Este, querendo ficar sozinho com o irmão querido, chama por ele e pede para lhe contar a história da cahorrinha Cuca Pingo-de-Ouro. Miguilim não consegue e Dito passa para ele seu último ensinamento: “Miguilim, Miguilim, eu vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” Miguilim, ao ver o irmãozinho morrendo, não agüenta e sai do quarto. Vai procurar Mãitina e pede para ela fazer todos os feitiços que conhece para o Ditinho não morrer, mas nesses instante ele percebe que já é tarde. Desesperado, chora copiosamente. Regressando ao quarto, observa o jeito como a mãe sofre de tristeza pela perda do filho. Chega a perguntar por tio Terêz e é informado de que o mesmo nem estava sabendo da morte do sobrinho, já que estava bem longe. Os dias que seguem são de dor e raiva, o menino queria que Dito voltasse e começa a perguntar para as pessoas o que pensavam e sentiam a respeito do irmão, pois “queria como algum sinal do Dito morto no Dito vivo, ou do Dito vivo mesmo no Dito morto”. Rosa e Mãitina tentam consolar Miguilim e constróem um túmulo simbólico para o falecido irmãozinho no quintal.

Papaco-o-Paco grita um dia, sem que ninguém esperasse: “Dito, Expedito! Dito, Expedito!” e todos se emocionam muito. Para ocupar a cabeça do filho, Nhô Béro resolve levá-lo para trabalhar consigo na roça.

O tempo vai passando e Miguilim começa a ficar cada vez mais preguiçoso, comer muito e achar que nada vale à pena: “tudo de repente se acaba em nada.” O pai, mais violento com o menino a cada dia, implica com seus tombos e sua falta de atenção e um dia fala para Nhanina que quem deveria ter morrido não era o Dito, e sim o Miguilim. Vovó Izidra diz que “esse Béro tem osso no coração”.

Um certo dia, chegam de surpresa para passar quinze dias com a família o tio Osmindo Cessim e o mano Liovaldo, que demonstrava ser “tão maligno quanto o Patori”. Miguilim continua pensando na sabedoria inata do irmão querido e seus ensinamentos. Não demora muito para Liovaldo judiar do Grivo e, para defender o amigo, Miguilim bate no irmão mais velho. Nhô Béro dá-lhe uma surra tão grande que, com muita raiva, a criança planeja o modo como matará o pai quando crescer e fica triste com a mãe por não o ter defendido. Por pedido dela, ele aceita ir passar três dias com o vaqueiro Saluz, galopando e campeando boiada. São três dias felizes para ele, apesar de não conseguir enxergar os detalhes da natureza que o vaqueiro lhe mostrava. Sente saudades apenas de Rosa e Mãitina.

Ao voltar, ainda magoado, Miguilim enfrenta o pai. Este, maldosamente, solta seus passarinhos e quebra suas gaiolas. Revoltado, o menino reúne todos os seus brinquedos no quintal e os destrói. No paiol, onde se esconde para chorar, Liovaldo chega para tentá-lo e é por ele expulso.

À noite, ao recusar uma moeda que lhe é oferecida pelo tio, este o elogia: “Esse não é de envergonhar ninguém, não. Tem coisa de fogo.” Quando o tio parte com o irmão, Miguilim se alegra e pensa em ir também embora dali um dia.

De uma hora para outra, porém, o menino adoece e sente dores na nuca, fraqueza e passa a vomitar. Durante a doença, Miguilim ouve uma conversa de Nhô Béro lamentando a má sorte dos filhos e percebe que, à sua maneira, o pai gostava dele. Grivo vai visitá-lo e leva de presente uma gaiola com um canarinho.

Miguilim torna a piorar, quando acorda com um alvoroço: Nhô Béro matara Luisaltino e fugira para o mato. Vovó Izidra reza com Miguilim. No dia seguinte, fica sabendo que o pai se enforcara com um cipó.

Aos poucos a criança vai sarando e recomeçam os passeios. Tio Terêz volta e Vovó Izidra, por isso, vai embora. Nhanina pergunta a Miguilim se aprovaria seu casamento com o tio, mas para ele tudo se tornara indiferente: pensava apenas em Dito.

Um dia, chegam ao Mutum dois homens para caçar. Um deles, Dr. Lourenço, o qual usava óculos, estranha o olhar de Miguilim e faz nele alguns testes de visão. Percebendo que o menino era míope, empresta para ele seus óculos. Miguilim se encanta com o mundo que vê, pela primeira vez. O médico gosta do menino e convida-o para voltar com ele para a cidade, para estudar. Indeciso, acaba aceitando depois que a mãe o encoraja, dizendo que seria a grande chance dele ser alguém na vida. O menino vai se aprontar e Rosa prepara um lanche para ele comer durante a viagem. Antes de ir embora, Miguilim pede os óculos do médico emprestados mais uma vez. Enxerga o Mutum como um lugar bonito e vê os familiares. Acha o tio parecido com o pai, admira-se com a beleza da mãe. Todos choram de emoção, até mesmo o doutor. Miguilim, soluçando, lembra com saudades da Cuca, do Dito, do pai... Sem saber mais o que era alegria ou tristeza, lembra-se dos dizeres do irmão: “Sempre alegre, Miguilim!... Sempre alegre, Miguilim!...” Recebe os beijos da mãe, os doces da Rosa e ouve o falar de Papaco-o-Paco...

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B) Uma Estória de Amor (Festa de Manuelzão)

Mais conhecida como “Manuelzão”, a história se passa na Samarra, “(...) nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais...” e começa com uma grande expectativa em torno da festa que ocorreria devido à inauguração de uma capela que Manuelzão fez construir a pedidos de sua falecida mãe. Muita gente é atraída para o lugarejo por causa disso e até mesmo um padre é chamado para benzer o “templozinho, nem mais que uma guarita, feita a dois quilômetros da Casa”.

Com mais de sessenta anos, a personagem principal, de cima de seu cavalo, contempla a expectativa do povo nos preparativos para a festa e vai reconstituindo o seu passado.

Manuelzão vai buscar Adelço, seu filho natural, “nascido de um curto caso”, o qual não é bem quisto por ele: “(...) era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim. Só punha toda estima em sua mulher e nos filhinhos, das outras pessoas tinha uma raiva surdada. Sempre aquela miúda dureza, sem teta de piedade nenhuma”. Em compensação, sua esposa, Leonísia, era uma boa mulher. Ela, contrariamente ao marido, é dona de um grande carinho por parte de Manuelzão: “Leonísia era linda sempre, era a bondade formosa. O Adelço merecia uma mulher assim?”.

Na madrugada anterior à festa, repentinamente, quando todos dormiam, ocorre o inesperado: o riacho que abastecia a casa, “Seco Riacho”, secou: “(...) Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. (...) O riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um menino sozinho tivesse morrido.”

A festa tem início realmente com a chegada do padre, frei Petroaldo, que é recebido com foguetes e muita alegria: “A voz do povo levantou um louvor, prazeroso. Via-se, quando se via, era muito mais gente, aquela chegança, que modo que sombras. Gente sem desordem, capazes de muito tempo calados, mesmo não tinham viso para as surpresas. Apartavam-se em grupos. Mas se reconheciam, se aceitando sem estranhice, feito diversos gados, quando encurralados de repente juntos.”

Assim, tocando a sua narração como um rebanho, Manuelzão relembra muitos casos conforme o povo vai chegando para a festança: “Estória! — ele disse então. Pois minhamente: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a gente ouvia contada, a narração dos outros, de volta de viagens.”

No meio da noite, nas tréguas da festa, as histórias de reis, rainhas e vaqueiros de Joana Xaviel destacam-se: “Se furtivava o sono, e no lugar dele, manavam as negaças de voz daquela mulher Joana Xaviel, o urdume das estórias. As estórias tinham amarugem e docice. A gente escutava, se esquecia de coisas que não sabia.”

A celebração da missa, no dia seguinte, anima ainda mais a festa, que prossegue com danças e violas, cantigas populares e quadrilhas sertanejas, além da farta comida. Antes do povo ir embora, porém, o velho Camilo, “todo vivido e desprovido”, também conta um caso, o “romance do Boi Bonito, que vaqueiro nenhum não agüentava trazer no curral...” O único vaqueiro que conseguira domar o Boi Bonito, chamado apenas de Menino, fora “dino” (digno) e não quisera dote ou prêmio pela proeza conquistada, queria apenas que o Boi Bonito pastasse livre naquelas paisagens.

Inebriado pela história de seo Camilo, Manuelzão se revigora e não sente mais o peso dos sessenta anos nas costas: sente-se pronto para conduzir a boiada pelas Gerais:

“ — Espera aí, seo Camilo... — Manuelzão, que é que há?

— Está clareando agora, está resumindo... — Uai, é dúvida?

— Nem não. Cantar e brincar – hoje é festa – dançação. Chega o dia declarar! A festa não pra se consumir – mas para depois se lembrar... Com boiada jejuada, forte de hoje se contando três dias... A boiada vai sair. Somos que vamos.

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AS PERSONAGENS

A personagem principal de Campo Geral é Miguilim, criança de oito anos que nasce e cresce no seio de um família sertaneja típica. Revela-se um menino sensível, delicado e inteligente ao longo da narrativa. Sonhador como a mãe, possui uma fixação pelo mar, que não conhece.

Os irmãos:

Dito: o irmão mais querido de Miguilim, seu verdadeiro amigo. Apesar de mais novo, apresenta uma sabedoria inata e prudência incomum, as quais o protagonista muito admira. Pessoa muito doce, Dito gosta de todos e nem mesmo o pai brigava com ele. Sua lenta agonia e conseqüente morte provocada pelo tétano causam grande sofrimento em Miguilim, que leva consigo para o resto de sua vida as palavras do irmão à beira da morte: “Miguilim, Miguilim, vou ensinar agorinha o que eu sei demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...”

Tomezinho: o mais novo entre os seis irmãos, com quatro anos de idade. Era arruivado, como Dito. Drelina: muito bonita, tinha cabelos compridos e louros.

Chica: tinha cabelos pretos, iguais aos da mãe e os de Miguilim. Todos diziam que tinha “malgênio”. Tinha muita afeição por Miguilim, que também gostava muito dela e com ela queria se casar quando crescesse. Sabia cantigas de roda e dançava bem. Liovaldo: o mais velho entre os irmãos, não morava com a família, e sim com o tio Osmindo Cessim, quem lhe pagava os estudos. Ninguém se lembrava das feições do irmão até ele aparecer com o tio para visitar a família durante quinze dias. Miguilim não gostava dele, achava que ele era tão ruim quanto o Patori. Os dois brigam quando Liovaldo bate em Grivo, grande amigo do protagonista. A mãe, Nhanina: muito bonita, com longos cabelos pretos, era uma pessoa muito romântica. Deixou-se envolver com o cunhado e com Luisaltino, companheiro do marido na roça. Era o grande amor de Miguilim, que por muitas vezes ficava com ela magoado por não o defender da fúria do pai.

O Pai, Nhô Béro: de tanto que maltratou Miguilim, a criança chegou a planejar sua morte, mas depois chegou à conclusão de que, à sua maneira, ele o amava. Possuidor de verdadeira obsessão por Nhanina, chega a ponto de matar Luisaltino e depois cometer suicídio por sua causa.

O tio, Terêz: irmão de Béro e amante de Nhanina, é expulso de casa por Vovó Izidra por manter um caso com a cunhada. Tinha um carinho enorme por Miguilim, que por ele também muito se afeiçoara. Acaba se casando com Nhanina no fim da narrativa. A tia-avó, Vovó Izidra: matriarca da família, era tia de Nhanina por parte de mãe e a criou como filha, já que a irmã era “mulher-atoa”. Possuidora de um grande senso de justiça, foi ela quem expulsou tio Terêz de casa e de lá foi embora quando ele voltou para se casar com Nhanina após a morte de Béro. Chegou a defender Miguilim da ira do pai, dizendo que Nhô Béro tinha “osso no coração”. A avó, Vó Benvinda: mãe de Nhanina, não cria a filha por ser “mulher-atoa”.

Jé: vaqueiro da fazenda,mantém um caso com Maria Pretinha.

Saluz: vaqueiro que toma conta da fazenda junto com Nhô Béro, é casado com Siarlinda.

Rosa: a cozinheira, é ela quem ensina o papagaio a dizer: “Miguilim, me dá um beijim” e “Dito, Expedito!” Mãitina: negra velha e beberrona, considerada feiticeira, é também agregada da família.

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Ainda fazem parte do núcleo de personagens:

Seo Deográcias: pai de Patori, é o curandeiro da região.

Patori: Filho de seo Deográcias, possuidor de um gênio muito ruim, ensinava besteiras para Miguilim sempre que podia. Por assassinar um rapaz, foge da região e pouco tempo depois é descoberto morto.

Seo Aristeo: vaqueiro alegre, bonito, persuasivo e comunicativo, conhecedor de rezas e simpatias, é o único que consegue convencer Miguilim de que não vai morrer quando o menino aposta com Deus. “‘Ele é um homem bonito e alto’ – dizia Mãe. – ‘Ele toca uma viola...’”

Sô Sintra: dono da fazenda onde vivem. Os animais:

Cães: Pingo-de-Ouro (também chamada por Miguilim de Cuca, é a sua cadelinha do coração. Ele fica muito triste quando o pai se

livra dela por estar velha e cega); Gigão (o maior de todos, gostava de brincar com os meninos e defendia-os de tudo), os três veadeiros brancos (Seu-Nome, Zé-Rocha – Zerró -, Julinho-da-Túlia - Julim); os quatro paqueiros de trela (Catita, Caráter, Soprado e Floresto) e o perdigueiro Rio-belo.

Gatos: Qùóquo e Sossõe.

Papagaio: Papaco-o-Paco, muito apegado à Rosa, quem lhe ensinava falas e cantigas.

Outras personagens:

Dr. Lourenço: médico que descobre a miopia de Miguilim e, por ter a ele se afeiçoado, resolve levá-lo para a cidade para estudar. Grivo: menino muito pobre que vendia casca de árvore. Apenas passa pelo Mutum, mas Dito e Miguilim se afeiçoam muito a ele. Siarlinda: esposa do vaqueiro Saluz, contadora de histórias, inspira Miguilim para começar também a criar histórias.

Em Uma Estória de Amor, a personagem principal é Manuelzão, vaqueiro de mais de sessenta anos, que tem a sua trajetória lentamente reconstituída em meio à festa que oferece para a “inauguração” da capela. Seu perfil marca-se pela dedicação ao trabalho de vaqueiro e administrador da Samarra: “Ele Manuelzão nunca respirara de lado, nunca refugara de sua obrigação. Todo prazer era vergonhoso, na mocidade de seu tempo” Ao longo da narrativa, porém, percebe-se uma necessidade do protagonista por reconhecimento e admiração, como sendo homem de valor: “Ah, todo o mundo, no longe do redor, iam ficar sabendo quem era ele, Manuelzão, falariam depois com respeito.”

Ao contrário de Campo Geral, o universo de Uma Estória de Amor é muito grande. Muitas pessoas povoam a narrativa, sobre as quais falaremos melhor a seguir.

Adelço: Filho de Manuelzão com “um caso rápido”, era um “rapagão cabeludo, escurado, às vezes feio até, quando meio zarolho remirava, com Manuelzão nada se parecia. A mãe morrera pontual, Manuelzão não se lembrava do nome dela.” Não era possuidor da simpatia do pai: “Carecia de um filho, prosseguinte. Um que levasse tudo levantado, sem deixar o mato rebrotar. Não o Adelço — ele sabia que o Adelço não tinha esse valor. Doía, de se conhecer: que tinha um filho, e não tinha. Mas esse Adelço saíra triste ao avô, ao pai dele Manuelzão, que lavrava rude mas só de olhos no chão, debaixo do mando dos outros, relambendo sempre seu pedacinho de pobreza, privo de réstia de ambição de vontade. Desgosto... Como ter um remédio que curasse um erro, mudasse a natureza das pessoas?” Visto como mesquinho e maldoso, era “um homem aguardando para ser ruim”. Tinha muita afeição (apenas) pelos filhos e, principalmente, pela esposa, de quem não gostava de se separar, contrariando o que era normal para o seu povo, já que não ter lua de mel é, para um vaqueiro, motivo de orgulho, um sinal de que se é trabalhador árduo: “Por conta disso, para não se separar da Leonísia (...) não se oferecera insistido para chefiar a comitiva da boiada — deixara que a ele mesmo, Manuelzão, competisse aquela ida. O Adelço tinha-se feito peso-mole de melhor não ir: pois queria era ficar, encostelado, aproveitando os gostos de marido, o constante da mulher, o bebível, em casa com cama.”

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Leonísia: esposa de Adelço, era linda e formosa. Ao contrário do marido, era “boa, uma sinhá de exata, só senhora. Aquela tinha um sinal de um sabido anjo-da-guarda — pelo convívio que ela encorajava, gerência de companhia.” Até mesmo a mãe de Manuelzão, criatura tão estimada por ele, reconheceu seu caráter: “Sobre Leonísia, ela redisse: — ‘Esta procede produzindo de si, certa no esquecível e no lembrável...’-; e não dosou o bem querer, que era para uma neta, para uma filha.” Durante a festa, ela ficou sendo a “dona-de-casa”.

Dona Quilina: mãe de Manuelzão, já falecida desde o início da narrativa. Foi por ela que o filho mandou construir a capela. Seo Camilo: velho, com mais de oitenta anos, era pobre e vivia de esmolas. “À vista, não se percebia fosse tão idoso. (...) Seria talvez de todas as criaturas dali o mais branco, e o de mais apuradas feições, talvez mesmo mais que Manuelzão.” Era uma criatura boa e humilde tal qual a mãe de Manuelzão. Ganha importância ao fim da narrativa ao contar a história do “Boi Bonito”.

Joana Xaviel: a contadora de histórias da festa. Não tinha morada fixa, “morava desperdida, por aí, ora numa ora noutra chapada”. Demonstrava grande entusiasmo ao contar suas histórias.

Federico Freyre: dono da Samarra, chefe de Manuelzão. Não pôde ir à festa e mandou para o seu organizador uma carta se desculpando, o que fez com que a estima do vaqueiro por ele aumentasse ainda mais.

Frei Petroaldo: padre que fora chamado para benzer a capela, celebrar a missa e batizar e crismar o povo da Samarra. “Estrangeiro, alimpado e louro, com polainas e culotes debaixo do guarda-pó, com o cálice e os paramentos nos alforjes.”

Promitivo: ajudante de Manuelzão e muito querido por ele. Alegre, era muito parecido, na opinião de Manuelzão, com Leonísia, “um o retrato da outra. Só que ele era valdevinos, no tanto que ela era trabalhadeira”. Ajudara Manuelzão a montar a festa.

José de Deus: mulato surdo-mudo que foi assim apelidado por não saberem qual era o seu nome.

João Urúgem: eremita que fora viver no “pé-de-serra” após ser acusado de furto. Guardava raiva da população de todo o baixio “por conta do falso que contra ele tinham em outro tempo acusado”. Urúgem acreditava que Manuelzão fosse castigar todos que viviam por lá em seu nome. Vivia em uma choupana em meio a árvores e moitas e “fedia a mijo de cavalo”. Saiu de sua morada apenas para ir à festa.

Seo Vevelho: “sitieiro abastado” conhecido de Simião Faço e Jenuário, era “tocador de música” e foi com seus filhos, os quais possuíam esse mesmo ofício tocar na festa de Manuelzão.

Chico Bràabóz: “o preto da rabeca”. Com feições de mouro e nariz pontudo, Chico gostava de beber e tinha muita memória para músicas, danças e cantigas: “Chico Bràabóz, preto cores pretas, mas com feições. Ô homem da pólvora quente! Se chegava, animante, simples social, o mundo inteiro pregado na ponta de seu nariz. (...) Já estava meio chumbado, bebeu mais do que o copo manda. Chico Bràabóz tocava rabeca, sua rabeca sarafina escura, como de um preto zinco, de folhão”. Falava tudo em versos: “Meu repertório, eu tenho ele no cocoricó...”

Acizilino: velho companheiro de Manuelzão, haviam trabalhado juntos na juventude, mas agora aquele era empregado deste. Manuelzão o descreve como sendo tão trabalhador quanto ele: “Acizilino, depois do casamento, podia ter tomado de folga, de gala, de repouso; se tanto, se duvidar, uns dias. Mas fez questão de sair com a gente, ele casou num sábado e se saiu na segunda (...) por fora de uns mais de quarenta e cinco dias, ida e volta só.”

Pruxe: violeiro que animou a festa de Manuelzão. Maçarico: sobrinho de Pruxe, era “o maior dançador”.

João Orminiano e Queixo-de-Boi: dois vaqueiros de Federico Freyre em outra fazenda, a Santa-Lua. Trouxeram para o dono da festa recados do patrão, o qual se desculpava em uma carta por não ter podido ir à festança. Ambos acabaram ficando para a festa que, apesar de estar no final, ainda estava animada.

Seo Lindorífico: “valioso fazendeiro, mas homem amigo, sensível no sentimental”. Muito educado, era “homem de gestos”, admirado por todos por sua fineza.

A história ainda traz algumas outras personagens que são citadas por terem ido à festa, mas elas não são de extrema importância para o desenvolver da narrativa e não há a necessidade de comentá-las.

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GÊNERO LITERÁRIO

A crítica não chegou a uma conclusão definitiva sobre o gênero de Manuelzão e Miguilim. Por mais que muitos considerem o obra uma coletânea de duas novelas, o próprio Guimarães Rosa não designou para ela uma classificação exata. Nas primeiras edições do livro, ainda com o nome de Corpo de Baile, a página introdutória apresenta a indicação de “sete novelas”; no índice do primeiro volume, a obra vem definida como “poema” e no índice remissivo, o autor chama-a de “romance”.

Poderia ser um romance, já que o núcleo da narrativa é entremeado de digressões, descrições e dissertações e aprofundamento psicológico das personagens principais. Por outro lado, não seria absurdo dizer que a obra é composta por duas novelas, já que ambas histórias possuem seqüências de ações desencadeadas a partir do relacionamento da personagem principal com outras pessoas, com as quais convive. A prosa, porém, pode ser aproximada da poesia, se pensarmos no estilo poético de Rosa, repleto de aliterações, onomatopéias, ritmo característico e trabalho sugestivo vom a linguagem.

Dessa forma, o melhor a fazer é livrar a obra de classificações, já que Manuelzão e Miguilim transcende quaisquer rotulações.

TEMPO E ESPAÇO

A localização de ambas histórias abrem as suas respectivas narrativas e constroem-se em um espaço natural, aberto, nos Gerais, onde se pode ter contato íntimo com a natureza, apesar da falta de recursos. Campo Geral, por sua vez, possui um tom de fábula: “Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutum. No meio dos Campo Gerais, mas num covão em trechos de matas, terra preta, pé de serra.” (Início de Campo Geral)

“Ia haver a festa. Naquele lugar — nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo.” (Início de Uma Estória de Amor).

O tempo das narrativas é indeterminado. Em “Miguilim”, porém, ele é marcado pela sucessão dos dias e das noites, assim como as estações do ano, fundamentais para quem vive no campo. A marcação temporal se dá apenas pelo amadurecimento psicológico do protagonista. O tempo interior (ou psicológico) é, portanto, preponderante na narrativa. Bolle, em Fórmula e Fábula, estuda os contos de Guimarães Rosa, afirmando: “Em Corpo de Baile, a caracterização dos personagens e a representação de conflitos psicológicos passam a dominar, em detrimento da ação”.

Em Uma Estória de Amor, entretanto, toda a narrativa é construída às vésperas da saída de uma boiada e possui exatamente a duração de desde os preparativos da festa organizada por Manuelzão até sua realização e seu término.

FOCO NARRATIVO

Ambas as narrativas possuem um narrador onisciente em terceira pessoa. Há, porém, grande utilização do discurso indireto livre (a personagem exprime seus pensamentos e sentimentos em meio à fala do narrador) e, portanto, os discursos do narrador e personagem acabam se confundindo, marca característica do estilo roseano.

Apesar de Campo Geral ser narrada em terceira pessoa, a narrativa é filtrada pelo ponto de vista de uma criança de oito anos: Miguilim. Assim, o mundo será apresentado sob essa ótica, e isso também vale para o linguajar utilizado pelo autor.

Em Uma Estória de Amor, o narrador parece falar pela boca de Manuelzão, o qual filtra não somente a linguagem como também o ponto de vista da narração.

A segunda história da obra, assim como a primeira, é conduzida sem divisão em capítulos; tangida como uma boiada, o que faz com que o leitor relacione a própria forma (disposição e linguajar sertanejo) com o mundo das Gerais.

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ANÁLISE DE CAMPO GERAL

“Não gosto de falar de infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados ou policiais do invasor, em pátria ocupada. Já era míope e nem mesmo eu, nem ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento , com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.”

Depoimento de Rosa

Beth Brait diz que “Campo Geral é uma narrativa profundamente lírica que traduz a habilidade de Guimarães Rosa para recriar o mundo captado pela perspectiva de uma criança”. Criança esta que, se analisarmos o depoimento de Rosa acima transcrito, traduz os sentimentos e recordações do autor em relação à sua própria infância: a miopia, os adultos como “soldados do invasor”, a facilidade para inventar histórias etc. Assim, traços autobiográficos do escritor tornam-se nítidos. Miguilim, se lembrarmos de suas intuições e reações, reflexões mentais, problemas morais, deslumbramento diante da natureza, apreensiva sensibilidade, desejo de compreender e ser compreendido e pudor no sofrimento, é um “menino poeta”.

Henriqueta Lisboa in “O Motivo Infantil na Obra de Guimarães Rosa”. Guimarães Rosa. Org. Coutinho, p.174

A personagem principal de Campo Geral é um menino de oito anos. É delicado, criativo e possuidor de um senso moral (de certa forma, intuitivo) muito aguçado. Quando questiona se deve ou não entregar o bilhete do seu tio Terêz para sua mãe, por exemplo, a angústia toma conta de seu ser por não saber o que é certo. Mas como saber o que é certo? A criança acaba por perguntar, com certa dose de obsessividade, aos que o rodeiam “como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma cousa, mesmo os outros não estando vendo”. É claro que, por terem diferentes personalidades, cada um responde a ele uma coisa diferente, confundindo ainda mais o menino, a quem o sofrimento não deixa em paz. Miguilim não divide a angústia com ninguém, por uma questão de honra. Oscila entre o dever e a amizade, o gosto de ser dócil e o desgosto de praticar o proibido, enfim, luta entre o bem e o mal. Sua decisão de não entregar o bilhete e contar a verdade para o tio acaba sendo puramente intuitiva e escrupulosa. O bem vence: “Miguilim chorava um resto e ria, seguindo seu caminho... Andava aligeirado, desafogueado, não carecia mais de pensar.” Mas o sofrimento também teve o seu lado positivo. Por causa dele, a criança “bebia um golinho de velhice”, isto é, amadurecia.

Outras passagens do texto também demonstrarão o amadurecer do garoto. A morte do irmão admirado e querido, Dito, metafisicamente sábio, faz com que Miguilim se entregue ao choro convulsivo, às “lágrimas quentes, maiores do que os olhos”. “(...) todos os dias que vieram depois eram tempo de doer”. Contrariamente à passagem anteriormente exposta, aqui Miguilim tem que conviver com um drama não de ordem pessoal, mas a uma tragédia inelutável. E, novamente, o sofrimento o faz crescer.

Porém, a mais significativa passagem em que o autor claramente conota o crescimento do menino é representada pela sua revolta em relação ao domínio paterno. Por ter sido ferido nos brios, Miguilim luta contra a represália do pai e o demonstra quando, por estar “nas tempestades”, pisa, quebra e arrebenta seus próprios brinquedos. Metaforicamente, ele decide por fim à sua infância e “vira homem” repentinamente.

Por fim, a experiência da separação acentua esse crescimento. A personagem se deixa levar para longe do cuidado de sua família, ou seja, deixa-se crescer definitivamente. Nesse mesmo momento, Miguilim começa a enxergar o mundo por outros olhos, literalmente. Sua miopia é descoberta e ele pede emprestado ao médico seus óculos para que ele possa ver o Mutum pela última vez. Dessa vez ele consegue realmente perceber a beleza do lugar e de seus familiares. Despedindo-se deles, despede-se também de sua infância e parte para uma nova vida na cidade grande.

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O neoplatonismo é demonstrado não somente pela incessante busca das personagens de Campo Geral pela Verdade, Beleza e Bondade, mas também pelo mito da caverna de Platão. Elas parecem intuir que estão acorrentadas na caverna do mundo sensível (de onde conseguem enxergar apenas sombras da Verdade, do mundo inteligível), ansiando assim sua ascensão para o mundo das Idéias (inteligível), onde poderiam alcançar a perfeição, a felicidade da completude. Tal característica é claramente demonstrada na própria personalidade dos dois irmãos, intuitivos, como podemos notar pelas passagens abaixo demonstradas:

“Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, quando sabia, espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele pensava precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade. De onde o Dito tirava aquilo? Dava até raiva, aquele juízo sisudo, o poder do dito de saber e entender sem as necessidades.” (grifo nosso)

“ ‘— Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo ?’ ‘— A gente sabe e pronto.’ ”

“Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de onde, me afrontando...”

“De onde era que o Dito descobria a verdade das coisas ? Ele estava quieto, pensando noutros assuntos de conversa, e de repente falava aquilo. ‘ – De mesmo, de tudo, essa idéia consegue chegar em sua cabeça, Dito?’ Ele respondia que não. Que ele já sabia, mas não sabia antes que sabia.”

O estoicismo de Zenão aparece em “Miguilim” na busca da personagem principal pela virtude e perfeição como no caminho para alcançar a felicidade, através da introspecção. Além disso, a força moral com que Dito enfrenta a dor física e a morte demonstra novamente outra marca clara dessa corrente filosófica. Como exemplo, transcrevemos a seguir uma passagem da época em que Dito já estava agonizando por causa do tétano: “(...) o Dito tinha alegrias nos olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir a vida inteira.”

A filosofia de Epicuro é demonstrada na relativização do conceito de felicidade como resultado da moderação, do exercício de dominar as vontades e renunciar aos prazeres causadores de males e no prazer alcançado na superação da própria dor: “Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”.

O “complexo de Peter Pan” (desejo de permanecer criança para sempre), o de “Caim e Abel” (separação de irmãos) e o de “Édipo” (amor excessivo do filho pela mãe) são três arquétipos que podem ser facilmente identificados na história. O primeiro é demonstrado pelo desejo de não crescer que possuía Miguilim e pelo seu ódio e falta de compreensão por certas atitudes dos adultos: “(...) a alma dele temia gritos, tinha nojo das pessoas grandes”, que matavam tatu por judiação. O segundo pode ser percebido pelo conflito existente entre o pai de Miguilim (Nhô Béro) e seu irmão (tio Terêz), o qual possuía um caso amoroso com a cunhada, mãe do menino (Nhanina). Os irmãos acabam se separando durante a história e Terêz é obrigado a deixar a casa. Por último, podemos perceber o grande amor que o protagonista de Campo Geral sentia pela mãe. Além de considerá-la muito bela, chega a enfrentar o próprio pai quando soube que este a agredia fisicamente.

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ANÁLISE DE UMA ESTÓRIA DE AMOR (FESTA DE MANUELZÃO)

Nesta narrativa, que comparada a Campo Geral é igualmente lírica, focaliza-se uma outra ponta da vida. Acompanhamos, paralelamente ao decorrer da festa de consagração de uma capela que o protagonista mandou construir a pedido de sua falecida mãe, as preocupações do vaqueiro e administrador Manuelzão: solidão, velhice, doença, pobreza, trabalho. À beira dos sessenta anos, gastara toda a sua força de trabalho a serviço do latifundiário Frederico Freyre. Em recordações do passado misturadas com fatos do presente, a festa aparece como se fosse a própria súmula de seus dias.

“Manuelzão” focaliza o universo sertanejo em seus costumes, crendices, labutas, no seu sentimento religioso e, sobretudo, na sua espontaneidade. O sertanejo, por não ter sido ainda corrompido pela civilização (como na filosofia rousseauniana romântica do “bom selvagem”), revela-se bom e puro.

Servindo de ligação entre as cenas, o tema boi reaparece aqui e ali, dominante, ora como o próprio animal, ora como o vaqueiro ou instrumento de trabalho.

Como o próprio título expressa, “Manuelzão” é mesmo um estória de amor: a natureza em geral se mistura. Gente rica e pobre, brancos e negros, homens e mulheres se reúnem para uma festa de confraternização em uma capelinha. Apesar da rudeza de um sertão inóspito, a mensagem que o autor tenta transmitir é positiva, alegre.

Relembrando sua vida e vislumbrando outras famílias, Manuelzão sente falta de uma estabilidade doméstica que não possuiu por ter sido sempre um vaqueiro “largado pelo mundo”. Até mesmo seu filho foi gerado por um “caso rápido”, o protagonista não conseguiu nem ao menos se lembrar do nome da mãe de seu filho. E o fato de tê-lo ido buscar já indica uma certa nostalgia por parte de Manuelzão, como se quisesse garantir um sucessor para cuidar de “suas” terras. Leonísia, a nora, desperta no sessentão esse mesmo sentimento nostálgico: “nem havia de ter coragem: e a Leonísia sendo tão bonita — mulher para conceder qualquer felicidade sincera”.

Mas Manuelzão procura resistir à velhice, apesar do medo que sentia pela morte: de todo não queria parar, não queria suspeitar em sua natureza própria de um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo. Resistiu. Temia tudo na morte.” E consegue mesmo resistir, já que a narrativa termina com o próprio saindo para comandar mais uma vez uma boiada.

Comentaremos agora a relação entre as três figuras femininas mais importantes que aparecem em Uma Estória de Amor: D. Quilina, Leonísia e Joana Xaviel. A festa de “inauguração” da capela só é realizada porque D. Quilina, mãe de Manuelzão, apreciara a vereda da Samarra e manifestara o desejo de erigir a capela “num ponto ideado”, onde, mais tarde, fora enterrada. Assim, ele organiza a festa, mas com um discreto intuito de concretizar o desejo materno. Além disso, como coloca Passos em sua obra Guimarães Rosa — do feminino e suas estórias, a imagem de sua mãe “ressurge nas experiências mais pessoais de Manuelzão, condensando-se aos marcos determinantes da própria constituição do lugarejo. Suporte da estória que não é apenas de amor e fio propiciador do jogo mnêmico passado / presente, a festa se desenrola com a chegada dos convidados, portadores de destinos sociais diversos, e a erupção de cantares, recitações, quadras, especialmente veiculados pelos contadores Camilo e a capioa Joana Xaviel” (p. 126). Sua nora, por sua vez, também esconde a oscilação do vaqueiro por um afeto “socialmente proibido”, assim como sua mãe, associando as duas pelo modo de agir. Aliás, a primeira já havia amado a segunda como filha ou neta, considerando-a “certa no esquecível e no lembrável...” Leonísia configura-se como substituta materna e modelo de “formosura” para um casamento feliz. O próprio capataz, percebendo seus desejos mais íntimos, considera-se velho demais para o casamento: “— doideiras! — idades passadas (...) já estava desconsentido para casamento.” Por outro lado, esses “maus pensamentos” o fazem se sentir culpado e, de certa forma, rival do próprio filho, já que só Adelço “tinha direito de olhar” Leonísia. Este é classificado como o “contrário da festa”, ou seja, avesso às alegrias, religiosidade e desprendimento das duas mulheres. Mas Manuelzão nada opinava sobre ele, já que não iria interferir em “assuntos de homem”.

Quanto a Joana Xaviel, Manuelzão lhe faz sérias restrições, já que suas histórias, apesar de fascinantes, não retratam uma realidade religiosa, e sim da completude do desejo, transgredindo-se lei e regras. Ouvi-la é conviver justamente com o que o vaqueiro tenta negar, fazendo aflorar a culpa que o perturba. Ele não se conforma com o fascínio que a mulher provocava na mãe e em seo Camilo: “(...) Por que havia de ser que logo as pessoas tão cordatas, tão quietas, como a mãe de Manuelzão ou como o velho Camilo, é que davam de engraçar com gente solta assim, que nem Joana Xaviel?”

As figuras femininas que permeiam a história são, como pudemos perceber, de extrema importância para o desenvolvimento da narrativa.

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A REVOLUÇÃO ROSEANA

Para iniciar este item, transporemos um trecho mencionado por Pedro Xisto no ensaio “À busca da poesia”, o qual se encontra no livro de Coutinho anteriormente citado:

(...) Assim o é na prosa de Guimarães Rosa, como fora nos longínquos inícios do gênero. A prosa global, onde as repartições e as ligações sintáticas ou, ainda, não existem ou já foram superadas. O todo é o que conta. A palavra, como entidade. E não como parcela ou fragmento que, mesmo tendo garra sobre a estrutura, com isto a ressalta apenas. A palavra é o inerente. As palavras, a cadeia. Estas, a prosa. Aquela, a poesia. As palavras estão, sempre, voltadas para a palavra.

Podemos perceber com tal afirmação, além de ser difícil definir o gênero literário do livro aqui estudado, como já foi visto, que a palavra é de extrema importância para a significação em Rosa. Não somente em Campo Geral como em toda a sua obra, podemos enxergar a inovação da linguagem literária, que provém, em boa parte, dos Gerais. O próprio autor diria em entrevista concedida a Günter Lorenz: “... meu método... implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original.”

Sobre o aspecto lingüístico da revolução roseana, devemos acentuar a maneira criativa com que o autor trabalha os recursos expressivos da linguagem. Tomando como matéria-prima a fala do sertanejo mineiro, submete-a a um cuidadoso processo de estilização, depurando-a e enriquecendo-a com recursos estilísticos eruditos. Dentre os processos de experimentalismo lingüístico do autor, destacam-se:

A) Apropriação de recursos lexicais já existentes na língua moderna ou arcaica:

Para exemplificar este item, temos o uso de regionalismos e de vocábulos de origem indígena e os termos e expressões arcaicos, eruditos (latinismos, por exemplo, como “o Magnificat era o que se rezava”) e coloquiais (plebeísmos, ou seja, corruptelas para fixar a linguagem popular são um bom exemplo: “Miguilim, me dá um beijim”);

B) Neologismos

Ou seja, a criação de palavras a partir de radicais já existentes. Podemos subdividir este aspecto em diversos grupos, de acordo com o processo de formação. Dentre eles, destacam-se:

1 – Afixação: todos os prefixos e sufixos utilizados pelo autor já existem na língua portuguesa. Sua inovação estaria justamente nas novas combinações em que se encontram (ex.: “devagaroso”, “gordotes”, “destemestes”, “devôo”, “visluz”, “sonhosa”, “manhanil”, “ninhagem” — de pássaros —, “mortescência”)

2 – Aglutinação: em Guimarães Rosa, as palavras podem ser compostas da fusão de dois vocábulos distintos que mantêm o significado originário (ex.: “surruído” – sussurro + ruído; “adormorrer”: adormecer + morrer) ou podem ser compostas da transposição de uma unidade de significado para um novo núcleo lexical que, embora corrente na língua, não tenha nenhuma relação com ela (ex.: “garcejo”: garça, mas baseado no padrão de “gracejo”; “enxadim”: enxada, mas baseada no padrão de “espadachim”).

3 – Criação interparadigmática: formação de vocábulos que pertencem a duas classes gramaticais diferentes, como substantivos provenientes de verbos, verbos provenientes tanto de substantivos como de adjetivos, advérbios derivados de adjetivos, entre outros (ex.: “trevar”, de trevas; “maduramente”, de maduro; “aguardo”, de aguardar; “malcriar-se”, de malcriado). 4 – Analogia: um dos processos mais importantes para Rosa, permite a criação de neologismo a partir de modelos já existentes.

Por exemplo: a criação de um verbo como “centaurizar”, proveniente de centauro, segue o padrão dos verbos em –izar; “maduramente”, oriundo do adjetivo maduro, segue o padrão dos advérbios em –mente.

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C) Citação de provérbios sertanejos

Ex.: “...hoje é dia de são gambá; é de branco perder e de preto ganhar”; “Fumaça prá lá, dinheiro prá cá”.

D) Ênfase através da repetição de palavras

Ex.: “Queria que fosse tudo igual ao igual, sem esparrame nenhum, nunca”; “Um certo Miguilim morava (...) longe, longe daqui...”

E) Desarticulações ou desvios sintáticos e lexicais Anacolutos, silepses, entre outros. Ex.: “A gente vamos lá!”.

F) Emprego de aliterações, assonâncias, onomatopéias

“Vagalume, lume, lume, seu pai, sua mãe, estão aqui!...”; “O vento viív..., viív... Assoviava nas folhas dos coqueiros”; “...o pio do sanhaço grande, o ioioioim deles...”

G) Inclusão de cantos e modinhas populares no discurso narrativo “Olerê, lerê, lerá, morena dos olhos tristes, muda esse modo de olhar...” “Eu desci p’r’aqui abaixo

no meu macho mar-chador... Vou-me embora, ei! ai!”

Entretanto, Guimarães Rosa não inovou apenas a linguagem em sua dimensão formal. Ele revolucionou totalmente o modo como se fazia literatura. Por estar o todo significativo no interior da própria palavra, e não na estrutura frasal como acontecia até então, o autor de Sagarana foi de um brilhantismo inovador. “A língua roseana deixou de ser unidimensional. Converteu-se em um idioma no qual os objetos flutuam numa atmosfera em que o significado de cada coisa está em contínua mutação.”

Oliveira, Franklin de. “Revolução Roseana” in Guimarães Rosa. Org. Coutinho

A palavra sertão, por exemplo, possui diversas cargas semânticas: realidade geográfica, realidade social, realidade política, dimensão folclórica, dimensão psicológica conectada com o subconsciente humano, dimensão metafísica, entre outras.

Como pudemos perceber, a renovação de uma linguagem não possui, para Guimarães Rosa, uma função meramente estilística. Afinal, como disse o próprio autor para Lorenz, “somente renovando o idioma se pode renovar o mundo”.

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REGIONALISMO E UNIVERSALISMO

Parece contraditório falar de regionalismo e universalismo em uma mesma obra, mas tal paradoxo ocorre não somente em Campo

Geral como em toda a obra de Guimarães Rosa.

Como o de Mário de Andrade, o regionalismo do escritor aqui estudado não se restringe a uma área geográfica especificamente brasileira, mas constitui uma fusão dos diversos “falares” existentes no país. Em proporção mais ou menos equilibrada das mais variadas regiões do Brasil, ele forma, junto com os termos de origem indígena, um complexo que só pode ser designado como brasileiro de um modo geral. O autor de Macunaíma, porém, desejava criar uma língua brasileira independente do português falado na Península Ibérica. Nessa tentativa, ele não foi além de unir vários “regionalismos” existentes em todo o Brasil. Contrariamente a ele, Rosa visava criar uma linguagem universal, capaz de transmitir os conflitos básicos do homem. A eliminação da oposição linguagem / temática (forma e conteúdo) por ele conseguida foi uma das suas maiores contribuições para a literatura brasileira. Partindo de uma realidade regional e utilizando em suas narrativas os costumes do sertanejo mineiro, o autor consegue captar a essência do ser humano em permanente evolução cósmica, em busca da transcendência, da dignidade, da realização, da felicidade. O crítico Assis Brasil afirma em sua obra Guimarães Rosa: “João Guimarães Rosa realiza, no plano nacional, de particular sentido universal, no que diz respeito à unidade tema - linguagem e ao corte transversal do homem, obra da mesma força e significação das de Pound, Joyce, Macdiarmid, Faulkner, Elliot e outros. O escritor mineiro entrou para a linhagem dos inventores, e sua obra (...) ficará como um dos marcos raros de genialidade”.

BIBLIOGRAFIA

BOLLE, Willi. Fórmula e Fábula. São Paulo: Perspectiva, 1973. BRAIT, Beth. Guimarães Rosa. São Paulo: Abril Educação,1982.

BRASIL, Assis. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1969.

COUTINHO, Afrânio (Org.). Guimarães Rosa. 2. ed, Col. Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. DANIEL, Mary. João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos Textos. 21. ed, São Paulo: Cultrix, 1998

PASSOS, Cleusa Rios. Guimarães Rosa: do feminino e suas estórias. São Paulo: FAPESP / Hucitec, 2000. ROSA, Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 30. ed, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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