Base empírica da semântica
Luiz Arthur Pagani
Uma das tarefas mais árduas de um domínio de conhecimento cientíco é delimitar cla-ramente o seu âmbito de atuação.
Na Semântica, por exemplo, uma mera denição da área como `a parte da Linguística que estuda a signicação', se por um lado delimita seus estudos dentro da jurisdição da Linguística (que já dispõe de uma longa tradição de institucionalização, mesmo no Brasil), por outro ainda deixa muita coisa em aberto, porque a Linguística se subdivide em diversas áreas, com metodologias completamente distintas; além disso, o mais complicado na de-nição é que o próprio termo signicação mais esconde do que revela, já que é um termo técnico que depende do conhecimento sobre uma grande parte da área para ser compreendido adequadamente.
Assim, o que parece ser mais produtivo é delimitar esse domínio do conhecimento atra-vés do seu embasamento empírico. A Semântica empregada no presente trabalho postula metodologicamente que seu objeto de estudo é a competência semântica manifestada pe-los falantes de uma determinada língua natural; assim, da mesma maneira que um falante, quando adquire o português, tem a capacidade de julgar se uma expressão é uma expressão bem formada nesta língua (ou seja, sabe que Pedro comprou uma bola é uma sentença; mas que uma comprou bola Pedro não é), ele também adquire a capacidade de julgar que certas expressões da sua língua podem ou não se relacionar com determinadas situações do mundo ou, mais especicamente, que certos grupos de sentenças (ou talvez suas enunciações) têm uma relação de determinação da verdade em relação a uma certa sentença. Na tradição linguística recente, chamamos a primeira capacidade de `competência sintática', e a segunda de `competência semântica'.
Chierchia [3, p. 173] chama de `consequência' essa relação na qual a verdade de um
grupo de sentenças obriga a verdade de uma outra sentença.1 E, na verdade, essa relação
já é estudada há muitos anos dentro daquilo que denominamos de Lógica (Mortari, por exemplo, em seu manual de introdução à Lógica [6, p. 21], chama de `argumento' o conjunto com todas as sentenças; o grupo de sentenças que leva à verdade de uma outra é chamado de `premissas', e a sentença cuja verdade decorre das premissas é chamada de `conclusão').
De qualquer maneira, o que nos importa neste momento é que, independentemente de
perspectivas normativas que manuais de Lógica podem adotar,2 podemos constatar que os
1Outros termos tradicionalmente empregados na área para designar esta mesma relação são
acarreta-mento e implicação.
2Mortari [6, p. 46] aponta como um dos objetivos centrais da Lógica a produção de bons argumentos;
esse termo muitas vezes é entendido com um pendor legislativo, como se apenas a Lógica determinasse a única maneira correta de argumentar. Copi [4, p. 19], por exemplo, arma que a Lógica é o estudo dos métodos e princípios usados para distinguir o raciocínio correto do incorreto.
falantes de português, mesmo sem qualquer formação escolar, podem julgar com facilidade que a sentença (3) é consequência (conclusão) inevitável se a premissa for (2), mas não se for (1) exemplo de Chierchia [3, p. 173].
(1) Léo trará o bolo de chocolate ou Maria trará a torta de maçã. (2) Léo trará o bolo de chocolate e Maria trará a torta de maçã. (3) Léo trará o bolo de chocolate.
Além de julgamentos em relação aos tradicionais conectivos sentenciais, os falantes de português também aprendem algumas relações entre os itens lexicais (basicamente,
pala-vras),3 de forma que podem julgar facilmente que a sentença (4), quando verdadeira, nos
obriga à verdade da sentença (5). (4) Pedro é solteiro.
(5) Pedro não é casado.
Observe que o inverso não ocorre: Pedro pode não ser casado mesmo sem ser solteiro (se ele for viúvo, ele não é casado, mas ele também não é solteiro). Portanto, qualquer falante de português é capaz de produzir julgamentos como estes baseados nesta capacidade de perceber relações de conssequência entre sentenças.
Esses julgamentos de consequência podem ser bastante sosticados, e independem dos fatos extra-linguísticos. Qualquer falante de português pode facilmente identicar, por exem-plo, que a verdade da sentença (7) decorre da verdade da sentença (6), mas não o contrário; já no outro par, a relação se inverte: é a sentença (8) que decorre da sentença (9) novamente, os exemplos são de Chierchia [3, p. 175].
(6) No máximo três brasileiros fumam.
(7) No máximo três brasileiros fumam cigarro. (8) Pelo menos três brasileiros fumam.
(9) Pelo menos três brasileiros fumam cigarro.
Observe-se que apenas duas coisas variam nos dois pares de sentenças acima: 1) nas duas primeiras aparece a expressão no máximo, enquanto nas duas últimas a expressão é pelo menos; 2) a primeira e a terceira falam em fumar, enquanto a segunda e a quarta falam em fumar cigarro. Considerando que fumar denota o conjunto dos fumantes e que fumar cigarro denota o conjunto dos fumantes de cigarro, e como esses dois conjuntos estão numa relação de subconjunto (o conjunto denotado por fumar cigarro é subconjunto do conjunto
3A relação mais imediata não seria a de consequência, mas a de contradição: a sentença (4) não pode
ser verdadeira quando a negação da sentença (5) ou seja, Pedro é casado também for, e vice-versa: Pedro não pode ser casado, se for solteiro; nem pode ser solteiro, se for casado. Julgamentos de contradição também fazem parte da competência semântica dos falantes de uma língua.
denotado por fumar), a competência de julgamento diferente entre estes dois pares de sen-tença pode ser explicada atribuindo-se a no máximo e a pelo menos operações inferenciais distintas: o primeiro atua decrescentemente (do conjunto para o subconjunto), enquanto o segundo atua crescentemente (do subconjunto para o conjunto).
Um outro exemplo desta mesma competência semântica apontado por Chierchia [3, p. 176] é o chamado paradoxo do imperfectivo. Observando os dados abaixo, é fácil constatar que qualquer falante de português, independentemente de seu nível cultural, sabe avaliar que a sentença (11) é consequência de (10), mas a sentença (13) não é consequência de (12). (10) Ontem Léo estava empurrando um carrinho.
(11) Ontem Léo empurrou um carrinho. (12) Ontem Léo estava atravessando uma rua. (13) Ontem Léo atravessou uma rua.
Curiosamente, as sentenças (10) e (12) têm exatamente a mesma estrutura sintática, assim como o par (11) e (13). A principal diferença entre as sentenças (10) e (12) está relacionada ao fato de que a interrupção arbitrária da ação descrita em (10) não afeta a avaliação de sua realização, o que não acontece com a sentença (12) ou seja, quem es-teve empurrando um carrinho necessariamente empurrou o carrinho; mas alguém que eses-teve atravessando uma rua pode não ter conseguido atravessá-la e como a completude (ou per-fectividade, para usar o termo técnico) em português pode ser expressa pela categoria verbal do aspecto, uma explicação para o paradoxo (o fato de uma sentença imperfectiva ter uma consequência que outra sentença também imperfectiva não pode ter) é a de que empurrar um carrinho é um predicado atélico (não tem um objetivo que precisa ser cumprido para a ação ser considerada completa; ou seja, ela se realiza apenas sendo iniciada), enquanto atravessar uma rua é um predicado télico (cuja ação precisa atingir um determinado obje-tivo para poder ser considerada completada; no caso especíco, é preciso que quem estiver atravessando a rua chegue até a calçada oposta de onde saiu).
Essa mesma instabilidade categorial (o fato de que palavras de mesma categoria gra-matical apresentem características semânticas inferenciais distintas) ainda aparece em mais um exemplo de Chierchia [3, p. 61]. A verdade das sentenças (14) e (15), qualquer falante do português é capaz de concluir a verdade da sentença (16).
(14) Este pão é teu. (15) Este pão é alimento. (16) Este pão é teu alimento.
As três sentenças a seguir, apesar de apresentarem a mesma estrutura, não apresentam o mesmo padrão inferencial; aqui, a verdade das sentenças (17) e (18) não é suciente para que um falante do português conclua a verdade da sentença (19).
(18) Este cachorro é pai. (19) Este cachorro é teu pai.
O que distingue os dois conjuntos de sentenças em (14)(16) e (17)(19) são as palavras
alimento e pai.4 Enquanto a palavra alimento denota um objeto autônomo (o conjunto
das coisas que são comestíveis), a denotação da palavra pai envolve necessariamente dois indivíduos: alguém só é pai se tiver um lho (por isso, palavras como pai são chamadas de termos relacionais, pois denotam uma relação). Assim, em (18), o cachorro só pode ser pai de algum outro cachorro; como lhotes de cachorro não são donos dos seus pais, não se pode concluir (19).
Esta capacidade de julgamento semântico também se manifesta na interpretação de sen-tenças como (20) e (21).5
(20) Léo solicitou a Hugo curá-lo. (21) Léo prometeu a Hugo curá-lo
Alguém que tenha aprendido português é capaz de perceber que o comportamento do
pronome oblíquo lo varia de uma para outra.6 Na sentença (20), o pronome pode ter como
antecedente o mesmo referente de Léo, e não o de Hugo; além disso, o pronome também pode ter uma interpretação dêitica, se referindo a alguém que não tenha sido mencionado na sentença, mas está acessível no contexto extra-linguístico. Usando índices subescritos, podemos representar essa potencialidade anafórica como em (22).
(22) Léoi solicitou a Hugoj cvj curá-loi,∗j,k.
Nesta notação, o índice i liga a denotação do pronome à referência do nome Léo; já a ligação entre a denotação do pronome e a referência do nome Hugo não ocorre (indicado pelo asterisco antes de j); o sujeito de curar aparece aqui como um pronome sem realização fonética cv (uma categoria vazia) que pode se relacionar anaforicamente a Hugo; a inter-pretação correspondente é a de que Léo solicita a Hugo que Hugo cure o Léo. Finalmente, o índice k, distinto de i e de j, nos indica qe há uma terceira possibilidade referencial, diferente da denotação de Léo e de Hugo, que pode ser efetivada; a interpretação agora seria a de que Léo solicita a Hugo que Hugo cure alguém que não é nem o Léo nem o Hugo.
Há ainda uma outra interpretação, se imaginarmos que Léo, além de cumprir a função de sujeito de solicitou (Léo é quem solicita), também exercer o papel de sujeito de curar
4As palavras pão e cachorro servem apenas para não criarmos sentenças pragmaticamente estranhas:
ainda que algumas culturas usem o cachorro como alimento, não é o caso da nossa; não costumamos também acreditar que pães tenham lhos. Tomamos também a liberdade de substituir a palavra riqueza, usada na tradução, pela palavra alimento pelo mesmo motivo.
5Exemplos, mais uma vez, de Chierchia [3, p. 194]. Tomamos a liberdade de modicar ligeiramente a
primeira sentença, que era Léo pediu a Hugo para curá-lo, de forma a manter uma equivalência estrutural entre ambas. Além disso, a análise apresentada aqui é um pouco mais elaborada do que aquela apresentada por Chierchia.
6Como o exemplo envolve uma variedade mais formal, estamos supondo aqui falantes que tiveram alguma
(Léo é quem cura): assim, como já há uma cadeia anafórica entre Léo e o sujeito vazio de curar, o pronome lo precisa constituir a sua própria anáfora, distinta desta; então ele não pode se relacionar a Hugo. Isso pode ser representado como em (23); nesta interpretação Léo solicita a Hugo que Léo cure Hugo.
(23) Léoi solicitou a Hugoj cvi curá-lo∗i,j,k.
Já na sentença (21), o antecedente do pronome só pode ser o referente de Léo, mas não o de Hugo; ao contrário da sentença anterior, a interpretação de que Léo promete a Hugo que Hugo vai curar o Léo é completamente bloqueada. Mas a mesma interpreação dêitica também pode ocorrer aqui; ou seja, a de que Léo promete a Hugo que ele, Léo, vai curar alguém que não é nem o Lèo e nem o Hugo). Vemos isso representado em (24).
(24) Léoi prometeu a Hugoj curá-lo∗i,j,k
Apesar de (21) compartilhar uma estrutura de interpretação da anáfora com (20), esta apresenta uma alternativa interpretativa de que aquela não dispõe. Como a única diferença na cadeia fonológica das duas sentenças é a alternância entre os verbos solicitou e prome-teu, a distinção deve estar associada a uma diferença de interpretação destes verbos (não há muita restrição sobre o que podemos solicitar; mas para prometer precisamos respeitar algumas exigências, como a espectativa de que o que se promete seja do interesse do interlo-cutor voltaremos novamente a esse assunto quando falarmos de atos de fala) que restringe a interpretação de (21), mas não a de (20).
O que se conclui da observação de todos estes casos é que a explicação dos fenômenos depende sempre de uma identicação inicial de uma competência semântica dos falantes sobre conjuntos de sentenças. Efetivamente, nenhum desses exemplos é diferente do velho exemplo de silogismo em (25)(27).
(25) Todo homem é mortal. (26) Sócrates é homem. (27) Sócrates é mortal.
O importante a notar aqui é que, para além do objetivo de identicar raciocínios válidos, da Lógica, os falantes de uma língua manifestam uma capacidade cognitiva de inferência através da língua, e o objeto de estudo da Semântica ca empiricamente acessível através da testagem desta competência semântica.
Referências
[1] Gennaro Chierchia. Semantica. Il Mulino, Milano, 1997.
[2] Gennaro Chierchia. Semântica. Editora da UNICAMP & Editora da UEL, Campinas & Londrina, 2003. Tradução de [1], por Luiz Arthur Pagani, Lígia Negri & Rodolfo Ilari.
[3] Gennaro Chierchia. Semântica. Editora da UNICAMP, Campinas, 2008. Traduzido por Luiz Arthur Pagani, Lígia Negri & Rodolfo Ilari; 2a edição de [2].
[4] Irving M. Copi. Introdução à Lógica. Mestre Jou, São Paulo, segunda edition, 1978. [5] Cezar A. Mortari. Introdução à Lógica. Editora UNESP & Imprensa Ocial do Estado,
São Paulo, 2001.
[6] Cezar A. Mortari. Introdução à Lógica. Editora UNESP, São Paulo, 2a. edition, 2016. (de [5], revista e ampliada).