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A CERÂMICA COMUM DO NOROESTE DA PENÍNSULA IBÉRICA E OS LIMITES DA ROMANIZAÇÃO

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Academic year: 2021

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A CERÂMICA COMUM DO NOROESTE DA PENÍNSULA IBÉRICA E OS LIMITES DA ROMANIZAÇÃO

Maria Isabel D'Agostino Fleming Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo

Comentários teóricos sobre análise cerâmica

Em relação aos estudos cerâmicos, o peso dos estudos de iconografia levou a considerar o vaso – a maior parte das vezes decorado – como um objeto cultural em um sentido completamente diferente do seguido nos estudos que se voltam para a distribuição e adoção de certas formas cerâmicas e de certas decorações para identificar elementos de ordem cultural, sócio-econômica ou ainda tecnológica, apenas para citar os domínios principais a que se associa este material. A abordagem funcional, que fala de sistemas técnicos antes de falar de sistemas culturais, é antiga, mas enfrenta dificuldades de diversas ordens. E é nesta abordagem que desejo me deter, com a seguinte pergunta: em que nosso conhecimento das funções e dos usos da cerâmica, nossos conhecimentos das cadeias operatórias da fabricação dos vasos podem afetar as concepções relativas aos contatos entre culturas? O material imenso e ainda pouco explorado da cerâmica dita comum – o que recorta mais ou menos a cerâmica não decorada, ou ainda a de cozinha e de armazenamento – oferece uma entrada privilegiada em dois domínios diferentes, o do uso das cerâmicas na economia doméstica e o da fabricação dos recipientes. Todos os dois têm em comum o poder de ser analisados com instrumentos originados da antropologia das técnicas, como os conceitos de sistema técnico ou de cadeia operatória (A. Leroi-Gourhan, 1943, 1945; Pierre Lemonnier, 1996).

Nossas leituras, entretanto, se apoiam o mais frequentemente em relatórios parciais. A abordagem das oficinas de ceramistas e o estudo de suas atividades estão longe de ser perfeitamente dominados. As estruturas de produção que vieram à luz continuam excepcionais e as sínteses raras. As informações fornecidas pelas fontes literárias sobre a organização social das oficinas ou sobre a fabricação das cerâmicas são muito esporádicas. Se o estudo do mobiliário permite muito claramente destacar a

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presença de diferentes técnicas e a existência simultânea de vários ceramistas, a ausência de descobertas relativas às estruturas pertencentes às oficinas cerâmicas apresenta o problema do sistema de produção desses objetos. Apesar disso, os pesquisadores frequentemente se dedicam ao estudo das condições de produção da cerâmica. Deste ponto de vista um rápido olhar à literatura científica ou aos manuais é suficiente para destacar que este contexto é geralmente o menos conhecido do conjunto da trajetória de um vaso e, entretanto, o mais questionado. A partir do a priori, segundo o qual o contexto de consumo será relativamente conhecido, é recuperado o da produção segundo as deduções tiradas do primeiro. Isso supõe que a relação entre os dois contextos permanece inalterada. Seguindo esses passos surge a ideia de que o produtor fabrica em função das necessidades do consumidor.

Para avançarmos nestas questões, é preciso retomar os termos desta relação entre modos da produção e modos do consumo das cerâmicas. Para tanto, será preciso questionar a relação entre uma produção e seu contexto, ou seus contextos de utilização, com a abordagem conjunta desses dois aspectos e considerando a cerâmica como um conjunto. A unidade de estudo não é o vaso ou a série morfológica e/ou estilística, mas os sistemas de função ou os tipos de produção. Se, de um lado, o universo da cerâmica fina decorada é frequentemente susceptível a diversas interpretações, a cerâmica comum, por sua vez, parece constituir um marcador de contato cultural extremamente confiável que permite seguir com precisão os processos de integração, adaptação ou de recusa. Esta abordagem pode nos esclarecer não apenas certos aspectos da organização econômica do mundo antigo, mas também as formas possíveis de relação entre outros povos mediterrânicos. Em que esta linha de pesquisa esclarece ou modifica os estudos sobre os contatos e as trocas interculturais?

O foco é abordar essencialmente o grupo de cerâmicas ditas comuns, de cozinha e estocagem. A cerâmica culinária, assim como as outras cerâmicas comuns, há muito foi abandonada em proveito das cerâmicas finas, melhor datáveis e de grande difusão. Na abundância e na variedade das produções indicar o vasilhame utilizado para preparar e cozer os alimentos não é fácil, ainda mais quando uma sólida tradição privilegia o estudo das formas em detrimento do estudo do uso, como testemunha a terminologia empregada. Além disso, esta questão inevitavelmente envolve outras igualmente difíceis: a bateria de cozinha é determinada pelo tipo de cozinha e, portanto,

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entretanto, corresponde de maneira direta aos nossos propósitos, na medida em que pode ser analisado como índice de duas cadeias operatórias: 1) a fabricação dos vasos propriamente dita; 2) a preparação e conservação dos alimentos.

A proximidade dos problemas estimula a não separar as duas cadeias operatórias, mesmo se no fundo, o alcance social, econômico e cultural das mesmas não seja igual. Além disso, convém lembrar imediatamente uma distinção metodológica entre a função, finalidade global, geral do recipiente, decorrente de suas propriedades geométricas ou físicas, e seu uso, um modo particular cuja função é estabelecida para tal ou tal circunstância.

A evolução ou estabilidade das formas desta cerâmica, com efeito, podem ser estudadas para precisar particularmente a função dos diversos recipientes e igualmente, partindo dos contextos arqueológicos, os hábitos culinários das populações diversas envolvidas. A maior parte dos estudos apoia-se em formas precisas e se limita a uma análise tipo-cronológica. A rede de distribuição ou os contextos de utilização dos vasos são raramente analisados. Convém desde já perguntar-se como a cerâmica comum, enquanto reveladora dessas duas cadeias operatórias, pode afetar os estudos sobre as culturas em contato. Alguns estudos, como o de Michel Bats (1988) sobre o vasilhame de alimentação na Provença entre os sécs. IV- I a.C., mostraram pertinentemente como a introdução e a evolução de certas formas no repertório cerâmico local respondem, em muitos casos, a necessidades relativas à prática de mesa. A partir disso, três eixos de pesquisa se nos oferecem:

1. a passagem de uma forma dada de um sistema técnico (alimentar) a um outro; 2. a cohabitação de dois ou três sistemas técnicos (problema que se coloca tanto para a preparação de alimentos quanto para a produção dos vasos);

3. a análise interna dos sistemas técnicos.

Esses passos permitem esclarecer ao mesmo tempo o contexto de produção, o de utilização como também o próprio meio de troca.

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Diagnóstico dos estudos cerâmicos do noroeste da Península Ibérica – relativos à cerâmica pré-romana da Idade do Ferro

O contexto cerâmico em estudo com base nesses pressupostos teóricos é o da cerâmica comum do noroeste da Península Ibérica, relacionada a povoados fortificados da Idade do Ferro denominados castros. Interessam-nos especialmente as mudanças ocorridas a partir da presença mais efetiva romana nessas regiões, séc. I a.C. – séc. II d.C. Visa-se compreender as dinâmicas, continuidades e transformações culturais das populações locais.

De modo geral, conforme exposto acima, as escavações publicadas ou relatórios carecem de uma série de informações que contextualizem com precisão os materiais exumados. Pouco se conhece do material cerâmico das campanhas e que desde então se encontra nas reservas dos museus. São frequentes as confusões entre a cerâmica da Idade do Ferro pré-romana com a cerâmica de tradição indígena produzida em período romano – que atualmente alguns denominam "cerâmica comum romana".

Confusões que se explicam pelas teses romanistas nos estudos castrejos, presentes praticamente até a metade dos anos 1990, assim como pelas reiteradas abordagens tipologistas da cultura material, baseadas nas formas finais e nas decorações, e incapazes de obter novas informações de nosso objeto de estudo. Além disso, a "cerâmica comum" não é habitualmente considerada, já que o interesse dos especialistas centrou-se em certos tipos decorados com os quais se pudessem enquadrar cultural e cronologicamente os assentamentos castrejos. Em consequência, observam-se trabalhos que, em vez de falar de cerâmica pré-romana e cerâmica comum romana (entenda-se aqui a cerâmica de tradição indígena) fazem alusão a cerâmicas brutas e pouco trabalhadas e outras mais esmeradas, nas quais aparece o engobo (Jordá Cerdá et al. 1989).

Outra característica dos estudos da cerâmica comum é a frequência das atribuições etnicistas, como, por exemplo, quando se afirmou a celticidade dos castros asturianos usando como argumento um fragmento do bojo de um vaso de cerâmica com decoração excisa Uría Ríu (1941).

Além dos estudos etnicistas acrescentem-se os estudos frequentes funcionais-economicistas, nos quais só se considera a função culinária ou de armazenamento dos

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vasos, sem que essas explicações sejam acompanhadas pelos significados históricos concretos das peças, ou seja, pelo aspecto simbólico de toda a cultura material.

Retornando à aplicação dos preceitos teóricos, uma forma de evitar esses inconvenientes é a utilização das cadeias operatórias tecnológicas, no nosso caso, a tecnologia cerâmica. Trata-se de ver, portanto, como a tecnologia de cada grupo é diferente, pois responde a pautas sociais, pelo que, as limitações meio-ambientais são apenas um dos fatores que se deve ter em conta como critério analítico. As cadeias operatórias nos possibilitam ver todas as "decisões tecnológicas" – e, portanto, culturais – que levam uma matéria prima desde seu estado natural ao seu estado fabricado e que, em suma, são as leis que governam a ação sobre o mundo material. Nesta perspectiva, se atribui a mesma importância a dois fatores:

1°) o conhecimento tecnológico específico (que não está apenas limitado pelos fenômenos físicos, como a matéria e a energia, como postulam as aproximações tradicionais, mas que se encontra mergulhado em um amplo sistema simbólico);

2°) um sistema tecnológico sem o sentido sistêmico de redes causais, cujos elementos sejam a ação, a matéria prima e as ferramentas.

Os sistema tecnológicos de cada sociedade costumam estar relacionados estruturalmente (por exemplo, a tecnologia cerâmica com a metalúrgica). Neste tipo de estudos evita-se o determinismo unidirecional, primando a correlação e reciprocidade entre sistema tecnológico e organização social, ao mesmo tempo em que se torna possível aplicar um dos principais avanços do pós-processualismo, como unir em um mesmo modelo explicativo o funcional e o simbólico do mundo material. O estudo das técnicas nos permite aproximações sociológicas porque as técnicas são, sobretudo, produções sociais, sendo a cultura e não a natureza a principal limitação da técnica.

Quanto às atividades ceramistas no contexto castrejo, podem ser identificadas várias fases através das variações nas cadeias operatórias, as quais coincidem com modificações na estrutura da própria habitação. Tomando como exemplo o sítio arqueológico de San Martín, no castro de San L. Luís (Astúrias), no último estágio da cadeia operatória pré-romana aparecem pela primeira vez peças da cadeia operatória "comum romana ou de tradição indígena de período romano", assim como Terra

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operatórias nos estratos mais modernos indica que a cadeia operatória pré-romana perdurou pelo menos até a passagem do séc. I ao II d.C., momento a partir do qual estaria completamente substituída pela cerâmica de tradição indígena e as equivocadamente chamadas "vasilhas de luxo". Isso permitiria englobar este último estágio do mundo castrejo (período de 125/100 a.C. – 100/125 d.C.) sem que no momento haja argumentos para diferenciar uma fase pré-romana de uma romana. Não se sabe até que ponto continuaram a ser feitos vasos com orelhas (uma forma muito típica pré-romana), mas seguramente deu-se uma substituição desses pelos de borda com perfuração. Continuam os vasos com bordas facetadas, curvas e retas, mas vemos aparecer travessas, que talvez reflitam mudanças gastronômicas, pois podem ser usadas para panificação, substituindo presumivelmente os mingaus de cereais.

Dentro da espacialidade doméstica encontram-se certos indícios de atividades femininas, como o moinho circular, os elementos de fusos ou a lareira. A cerâmica pré-romana descrita nas escavações do castro San L. Luís pode ser considerada um dos melhores exemplos de atividades femininas realizadas na própria habitação, uma vez que no Noroeste da Península Ibérica pensa-se que esta tecnologia se encontrou em mãos femininas até que a introdução da cerâmica "comum romana" e as "vasilhas de luxo" provocaram o final do artesanato cerâmico de cada castro.

Estamos falando, portanto, de métodos de aprender e transmitir um conhecimento tecnológico, de modelos mentais de processos materiais, de uma especialização hereditária e de escolhas tecnológicas fortemente regidas por normas sociais. Tanto as escolhas tecnológicas, as características de uma Cadeia Operatória, as ferramentas utilizadas ou os produtos finais podem ser sentidos pelas artesãs que desenvolveram a cerâmica em um sentido identitário, talvez em chave de gênero, de identidade artesanal ou de ambas as coisas ao mesmo tempo. Se atendermos à complementaridade das tecnologias de cada sociedade, um de nossos objetivos deve ser o modo em que as sociedades castrejas estruturaram simbólica e espacialmente um artesanato metalúrgico em mãos masculinas que reforça a ideologia guerreira com um artesanato cerâmico em mãos femininas.

O estudo do material cerâmico a partir das Cadeias Operatórias permitiu confirmar níveis estratigráficos da II Idade do Ferro, já conhecidos por datação de Carbono 14 no castro de San L. Luís, bem como reconhecer ao menos uma unidade de

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ocupação formada por várias estruturas circulares e assentar as bases cerâmicas dos tipos específicos pré-romanos da parte sul-ocidental asturiana e noroeste lionês.

Estudos de cultura material deste tipo, comparados com os de outras tecnologias, permitem, em última instância, rastrear o possível conteúdo étnico pré-romano de limites referidos em época clássica.

Por outro lado, o uso das Cadeias Operatórias nos revela a improdutividade de categorias clássicas nos estudos cerâmicos tal como a oposição mão/torno, ou as análises tipológicas baseadas nas formas finais. Uma indefinida combinação de conceitualizações e ações executivas abre-se diante de nós, com a possibilidade de reconhecer tradições tecnológicas historicamente situadas. A mudança fundamental na Cadeia Operatória pré-romana não se produziu tanto nas formas e decorações, mas na rotação empregada e a sequência de montagem. No nível social esta mudança supôs o fim do controle tecnológico feminino de uma tradição milenar e o fim das produções locais ou auto-suficiência tecnológica.

O longo processo de passagem da produção cerâmica pré-romana para a romana, que durou praticamente dois séculos e meio, espelha a dificuldade de romper tradições estruturais, fortemente arraigadas no interior de populações dominadas e que estabelecem os limites da romanização no contexto doméstico.

Referências bibliográficas

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LEROI-GOURHAN, A. Milieu et Techniques. Sciences d'aujourd'hui. Albin Michel, Paris, 1945.

URÍA y RÍU, J. Fragmentos de cerámica excisa en el Castelón de Coaña (Asturias).

Referências

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