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As múltiplas vozes de Ananse: reflexões sobre a voz no processo criativo de uma atriz inspirada nos griots

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Academic year: 2021

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ESCOLA DE TEATRO E ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

TÂNIA CRISTINA DE SOUSA SOARES

AS MÚLTIPLAS VOZES DE ANANSE:

REFLEXÕES SOBRE A VOZ NO PROCESSO CRIATIVO DE UMA ATRIZ

INSPIRADA NOS GRIOTS

Salvador 2012

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AS MÚLTIPLAS VOZES DE ANANSE:

REFLEXÕES SOBRE A VOZ NO PROCESSO CRIATIVO DE UMA ATRIZ

INSPIRADA NOS GRIOTS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro e Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Eliene Benício Amâncio Costa

Salvador 2012

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Escola de Teatro - UFBA Soares, Tânia Cristina de Sousa.

As múltiplas vozes de Ananse: reflexões sobre a voz no processo criativo de uma atriz inspirada nos griots / Tânia Cristina de Sousa Soares. - 2012.

128 f. il.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eliene Benício Amâncio Costa.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2012.

1. 1. Atores. 2. Expressão vocal. 3. Contadores de história. 4. Teatro. 2. 5. Cultura afro-brasileira. I. Universidade Federal da Bahia. Escola 3. de Teatro. II. Título.

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Dona Terezinha e Seu Almir, pais queridos e dedicados, primeiras vozes a me embalar. Rafael e Clara, marido e filha amados, por caminharem ao meu lado.

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Aos Deuses, criadores,

Aos mestres ancestrais que caminham comigo com passos imperceptíveis aos meus ouvidos. Aos meus pais por todo amor e zelo dedicados a mim.

Aos meus irmãos e irmãs que nunca me fizeram esquecer de uma infância maravilhosa.

À minha filha Clara Soares pela alegria franca e oportunidade de vivenciar o amor incondicional. À meu amado companheiro Rafael Morais pelo constante aprendizado e parceria na arte e na vida. À minha orientadora, Professora Eliene Benício, pela confiança e generosidade na realização deste mestrado.

Às Professoras Daniela Amoroso e Elisa Mendes, integrantes da minha banca examinadora, pela gentileza e disponibilidade em contribuir para a configuração final deste trabalho.

A todos os professores da graduação e pós-graduação com quem tive a possibilidade de ser instigado a aprender e a alargar as fronteiras do saber, em especial Meran Vargens, que muito contribuiu com este trabalho.

Aos parceiros e amigos do grupo Teatro Griô, pelo incentivo e amor à arte teatral, e especial Zidi Brandão, Alcides Valente e Diogo Ferreira.

À Gilson Rodrigues, em memoria, pela delicadeza e parceria sincera. Eduardo Tudella, Amadeu Alves, Maicon Alisson, Cristiano Borges e Marcelo Jardim, pela presença e dedicação na realização do espetáculo Na Teia de Ananse.

À nossa cadela Mel que aqueceu meus pés em momentos de solidão criativa e frio. À CNPQ, pelo apoio financeiro.

A todos os mestres com quem tive a oportunidade de cruzar na vida, sejam os do teatro, da arte do palhaço, ou da de contar histórias. Meu carinho todo especial a Lydia Hortélio, Natalie Mentha, Nadja Turenko, Daniela Regnoli, André Casaca, Eliene Benício, Luiz Marfuz, Hebe Alves, Harildo Déda, Iami Rebouças, Paulo Dourado, Paulo Cunha, Vanda Machado e Carlos Petrovich.

Às Irmãs Ancilas do Menino Jesus pelo acolhimento na Casa Bethânia nos momentos de estudo. Às vozes inspiradoras dos terreiros de candomblé da Bahia, que alimentam a minha alma de artista. A todos estes eu apresento a minha gratidão, o meu carinho e respeito.

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Esta pesquisa teórico-prática traz reflexões acerca do uso da voz do ator a partir do processo criativo do monólogo “Na Teia de Ananse” inspirado nos contadores de história de matriz africana, os griots, onde inventa-se uma contadora de histórias a partir de procedimentos de criação e de encenação. A dissertação que resultou num exercício de encenação, aborda os meios e modos de atuação utilizados pela atriz Tânia Soares para compor personagens a partir das múltiplas vozes do contador de histórias da tradição oral. Os procedimentos apontados, dialogam intensamente com a pesquisa de Rafael Morais de Souza, intitulado “Na Teia de Ananse: Um Griot no Teatro e sua Trama de Narrativas de Matriz Africana”, do Mestrado em Artes Cênicas da UFBA. O uso expressivo da voz, as experiências vividas, a utilização de improvisação, emoção e memória, a interação com o público, corroboram para o processo criativo e a escrita do texto, revelando a importância do trabalho vocal do intérprete como mobilizador para a construção dramática. As referências bibliográficas destacam diversos autores que abordam as áreas de teatro, cultura e mitologias africanas e afro-brasileiras, memória, improvisação teatral e técnica vocal.

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This research provides theoretical and practical reflections on the use of voice actor from the creative process of the monologue "The Web of Ananse" inspired by the storytellers of African origin, the griots, the invention where a storyteller from procedures creation and staging. The dissertation which resulted in a scenario exercise, discusses the ways and means of action used by actress Tânia Soares to compose characters from the multiple voices of the storyteller's oral tradition. The procedures mentioned, intense dialogue with the research of Rafael Morais de Souza, entitled "The Web of Ananse: A Griot Theatre and its Plot Narratives of African Matrix", the Master of Performing Arts of the university. The expressive use of voice, the experiences, the use of improvisation, emotion and memory, the interaction with the public, serve to support the creative process and writing the text, revealing the importance of the vocal work of the interpreter as a mobilizer for dramatic construction. The references highlight several authors that address the areas of theater, culture and mythology african and African-Brazilian, memory, theatrical improvisation and vocal technique.

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Foto 1. Ananse vira o dono de todas as histórias... 44

Foto 2. Experimentações na Noite Griô... 59

Foto 3. Experimentações na Noite Griô... 59

Foto 4. Ensaio aberto... 62

Foto 5. Memória da gestação... 66

Foto 6. Ananse é o juiz imparcial... 74

Foto 7. Cena de entrada da velha Griote... 85

Foto 8. Ananse e o pote da sabedoria... 100

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1. INTRODUÇÃO ... 10

2. VOZES QUE CAMINHAM COMIGO... 13

2.2 VOZES NO MEU CAMINHAR... ... 18

2.2.1 A Voz e a minha trajetória acadêmica... ... 18

2.2.2 A Voz e a minha trajetória artística ... ... 29

3. A VOZ DO CONTADOR DE HISTÓRIAS ... 40

3.1 Em busca de uma voz ancestral... ... 40

3.1.1 A voz da tradição oral ... ... 42

3.1.2 Da inspiração para a criação poética ... ... 50

3.2 como a palavra escrita Transformou-se em voz ... ... 53

4. IMPROVISAÇÃO, EMOÇÃO E MEMÓRIA NA PALAVRA VIVA... 63

4.1 Memórias conduzidas pela voz ... ... 63

4.2 A improvisação – Presente no jogo da criação e da encenação... ... 72

5. A VOZ É O FIO QUE COSTURA A TRAMA... 81

5.1 ANANSE, CENÁRIO DE MUITAS VOZES ... ... 82

5.1.1 O Caminho de dar voz às personagens... ... 82

5.1.2 A personagem Griote ... ... 83 5.1.3 A Voz de Ananse ... ... 89 5.1.4 A Personagem narradora... ... 90 5.1.5 As Personagens da Narrativa ... ... 94 6 CONSIDERAÇOES FINAIS... 101 REFERÊNCIAS... 104 ANEXOS ... 109

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1.INTRODUÇÃO

Esta pesquisa surge a partir do processo criativo que resultou na apresentação do espetáculo “Na Teia de Ananse”1, monólogo interpretado por mim e dirigido por Rafael Morais de Souza, cujo texto dramático foi concebido em coautoria comigo. A encenação constitui-se como um exercício prático desta dissertação e foi apresentada de 08 de abril a 01 de maio de 2011 no Espaço Cultural da Barroquinha, na cidade de Salvador – Ba. Nesta dissertação, são realizadas reflexões acerca do processo criativo do monólogo, onde inventamos uma contadora de histórias, inspirada nos narradores tradicionais africanos, os griots, que a partir de uma trama de narrativas da tradição oral, reinventa-se em múltiplas vozes. Nesta escrita, destaco o uso expressivo da voz e lanço um olhar atento para investigar de que forma ela mobiliza a construção poética.

A minha trajetória artística e experiências vividas são levadas em conta na feitura do espetáculo, de acordo com os procedimentos artísticos2 desenvolvidos pelo grupo de teatro do qual faço parte, o Teatro Griô3. Desta forma, a pesquisa destaca etapas do processo criativo onde a voz articula-se com a minha trajetória artística, com as escolhas estéticas e dialoga com diversos aspectos relativos ao processo de criação e de encenação.

A Dissertação está dividida em quatro capítulos. Na primeira, abordo o meu percurso artístico até a encenação da obra “Na Teia de Ananse”, valorizando a trama de vida como um fio que costura o meu caminho até a encenação. Ainda neste capítulo, destaco as minhas vivências como aluna e professora da Graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia, e, de que forma estas experiências contribuíram para o meu interesse e escolha do objeto de pesquisa desta dissertação de Mestrado. Ressalto, neste momento, a cadeia de transmissão vocal no meu percurso acadêmico e artístico, estabelecendo paralelos entre a metodologia aplicada no processo criativo e as contribuições do(as) professores(as) na minha formação.

Na segunda seção, apresento as vozes ancestrais dos contadores de história, as quais me

1 Monólogo inspirado nos contadores de história de matriz africana apresentado de abril a maio de 2011 no Espaço Cultural da Barroquinha, em Salvador-Ba.

2 Conjunto de práticas desenvolvidas pelo grupo Teatro Griô em suas oficinas de formação e incorporadas ao trabalho do ator a partir da recriação de um contador de histórias de matriz africana. Esses procedimentos envolvem o estudo do texto narrativo, sua transposição para a cena, a construção das personagens e a criação dramatúrgica onde as experiências de vida podem ser incorporadas ao trabalho.

3 Grupo de pesquisa, formação e prática da arte teatral, que surge em 1998, criado por Rafael Morais e Tânia Soares, tendo como inspiração poética os contadores de história de matriz africana, artistas populares e palhaços. O grupo realiza espetáculos, saraus poéticos, oficinas, mostras artísticas, consultoria artística, preparação de elencos profissionais e produção teatral.

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inspiro e contextualizo a tradição oral na qual estão inseridos, destacando a figura dos griots, narradores tradicionais africanos, a fim de revelar, sob o ponto de vista da prática com o grupo Teatro Griô, qual foi o caminho escolhido para a construção do trabalho vocal realizado no espetáculo e suas implicação no fazer artístico. Em seguida revelo como foi realizado os procedimentos para transposição do texto narrativo para a cena teatral. Fica explicitado neste capítulo, que desvelo um modo próprio de criação dramática que dialoga com aspectos de minha vida pessoal de artista e, minha herança ancestral, unindo as práticas milenares do contador de histórias às do ator.

Na terceira seção, descrevo como a memória pessoal entrelaça-se com a memória coletiva, presente nas narrativas de tradição oral, e, de que maneira as memórias da atriz são utilizadas como material dramatúrgico e como se dá a sua transposição para a cena teatral, destacando ainda como os aspectos vocais entrelaçam-se na encenação destas memórias. Também ressalto a importância da improvisação no processo criativo, nos ensaios e no próprio momento da encenação, revelando as estratégias utilizadas para interação com o público e sua relevância no contexto da atuação e da expressividade vocal.

A última seção é dedicada exclusivamente às reflexões do processo criativo na construção das personagens e vozes da peça “Na Teia de Ananse”. Apresento, com observações que imbricam vida e arte, os momentos da sala de ensaio, os encontros abertos ao público, as tentativas, êxitos e fracassos que construíram o dia a dia do processo de criação do monólogo, revelando os caminhos que foram trilhados e também os desvios e dificuldades que, ainda assim, contribuíram para a sua realização.

Finalmente considero, que a dissertação apresentada, afirma uma metodologia em construção, estabelecida através de caminhos próprios, guiados por vozes inspiradoras e de grande enriquecimento pessoal e artístico, onde elementos como a voz entrelaçam-se à trama de narrativa de tradição oral, às memórias pessoais e técnicas teatrais, o que poderá possibilitar aos leitores, mais um olhar sobre um processo criativo, sob o ponto de vista de uma atriz que está envolvida na criação e encenação da obra teatral.

Concatenar os elementos que fazem parte deste trabalho teórico-prático levaram-me a tecer uma escrita que mescla relatos, memórias, impressões, trechos do texto construído, emoções, sons, inspirações e subjetividades de modo a sinalizar um processo altamente intuitivo, sobre o qual pretendo discorrer nesta dissertação e por outro lado, esta escrita, tenta aproximar o leitor da riqueza e multiplicidade de elementos que compõem um processo criativo desta natureza.

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Para as análises teóricas da presente pesquisa qualitativa, descritiva e reflexiva sobre a expressão vocal como inspiração no processo criativo do ator, os pontos articulados foram o ofício do ator, a expressão vocal, a improvisação, aspectos da memória, a relação com o público e a encenação de histórias e mitos de matriz africana. As fontes bibliográficas delineiam alguns autores teatrais como Grotowski (2007), Barba (1994) e Stanislavski (1972), que destacam o trabalho com a voz como um importante elemento no desempenho do ator. Hampatê-Bá (1982), Jan Vansina (1982) e Clyde Ford (1999) que abordam a história, cultura e mitologias africanas, apresentando um ponto de vista revelador sobre as tradições africanas e sua visão de mundo. Reginaldo Prandi (2001), Beata de Yemonjá (1997), Vanda Machado (1999), Carlos Petrovich (2000), Mestre Didi (1994), todos com o riquíssimo material de contos e mitos afro-brasileiros que inspiram, educam e oferecem um panorama diversificado de histórias de Orixás, animais e gentes. Sandra Chakra (1993) e Viola Spolin (1979), com pesquisas sobre improvisação teatral no teatro e na educação. Incluo também Paul Zumthor (2007) na sua pesquisa sobre a poética da oralidade e dissertações relacionadas a expressividade corporal e vocal no trabalho do ator. Dentre elas, tomo como referência as dissertações de Iami Rebouças Freire (2001) e Meran Muniz da Costa Vargens (2005) do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, além da dissertação de Rafael Morais de Souza (2011) sobre a construção de uma trama de narrativas de matriz africana de um ator inspirado nos griots africanos, cujo texto narrativo, do qual sou coautora, é o ponto de partida da minha investigação vocal.

É importante observar que esta dissertação constitui-se como um trabalho de pesquisa que permite-me articular, dentro de um processo criativo, diferentes aspectos ligados à expressividade da voz, seja no aspecto técnico, lúdico, criativo, seja ligado ao discurso poético do artista, a suas inspirações e experiências de vida. Esta pesquisa também possibilita confrontar experiências, descobertas, dificuldades e teorias através de procedimentos artísticos que apontam para uma metodologia ainda em construção, mas que tem-se desenvolvido ao longo da minha prática artística.

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2. VOZESQUECAMINHAMCOMIGO

“Para um ator uma palavra não é simplesmente um som, é uma evocação de imagens”

STANISLAVSKI

Neste capítulo, ocupo-me de revelar as vozes que caminharão comigo ao longo desta dissertação as quais fizeram parte das minhas experiências pessoais, do meu aprendizado acadêmico e das minhas prática artísticas e profissionais no caminho de investigação da expressividade vocal. Estas vozes estarão presentes no processo criativo da encenação do espetáculo “Na Teia de Ananse”, algumas delas sendo revisitadas em análises práticas e teóricas ao longo da dissertação. Percebo a sua presença nos pregões ouvidos na infância que surgem como inspiração poética, bem como nas lições aprendidas e compartilhadas por professores e artistas, onde essas vozes, configuram-se como fatores imprescindíveis para o desenvolvimento da presente pesquisa.

2.1 A MEMÓRIA DAS VOZES NO MEU OUVIDO

Um dos primeiros sons que marcaram a minha infância foi o dos pregões que passavam na minha rua, por volta de 1980. Eram diversos vendedores dos mais variados produtos como vassouras, panelas, artigos de cama, mesa e banho, assim como amoladores de facas e vendedores de frutas, verduras e raízes. Em particular, um desses vendedores despertava a minha atenção. Era o vendedor de aipim, cuja voz ia “crescendo” nos meus ouvidos à medida que ele se aproximava da minha casa. A frase cantada e extremamente longa daquele vendedor me chamava atenção e ficou nos meus ouvidos até hoje. Sua voz firme e macia, entoava uma melodia que era um misto de pedido e lamento. Posso fechar os olhos e ouvi-lo novamente mercar o seu produto, assim como posso ver a figura velha, negra, miúda e alegre do homem pregoando por todo o bairro, sendo

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ouvido a uma grande distância. “Aipimmmmmmmmmmmmôôôôô! É barato ou não éééééé?”4. O hábito de menina, de fechar os olhos e abrir os ouvidos a perceber sons variados, sempre me acompanhou. Desde sempre andava na rua, no tempo em que as crianças andavam na rua livremente, de olhos fechados, por pura diversão e prazer de ouvir o mundo. Essa brincadeira de criança instigou-me a perceber uma variedade de sons, timbres, entonações, sotaques a encantar-me e permanecerem como memórias a serem acessadas. Hoje os pregões foram, em sua maioria, substituídos por carros de som e suas vozes são escassas. Assim como o som das vozes das mães da gente chamando no fim da tarde de brincadeiras para tomar banho e café. Vozes ouvidas de longe, a nos conduzir para casa. Fecho os olhos e também escuto as vozes na casa de meu bisavô, pai de minha mãe, cantando rezas nas noites de terço5, onde haviam muitas vozes e a minha voz era apenas um fio que ia se apagando para observar as bocas que dançavam junto com os cantos de fé.

Abro os olhos e hoje, ao observar meu caminho desde menina, percebo as poderosas possibilidades expressivas que a voz pode oferecer ao trabalho do ator, sobretudo no campo imagético. Como assinala Piccoloto (2002), sobre a percepção auditiva da voz: “Ouvimos a voz e o indivíduo está à nossa frente. Sua imagem viva forma-se em nossas mentes e uma série de projeções, sentimentos, emoções e julgamentos são automaticamente desencadeados pelo simples fato de ouvirmos.( p.71).”

Muitos anos mais tarde, na Graduação, ao decidir sobre qual trabalho apresentar para a disciplina Expressões Dramáticas do Folclore Brasileiro, da grade curricular do Bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, escolhi pesquisar sobre a expressão dramática dos pregões. O objeto de estudo eram as vozes destes vendedores de rua que utilizam de criatividade, e tradição para apregoar produtos a fim de conquistar a sobrevivência e a atenção dos clientes. Realizei entrevistas com diferentes vendedores que utilizavam diversas estratégias para atrair o público como cantigas, rimas, versos, sons e usos os mais variados do corpo e da voz para almejar êxito e se destacar entre os demais. Em particular, impressionou-me a potência da projeção vocal de um vendedor de balas de Jequié, conhecido como baleiro jovem, famoso em toda a região de Ilhéus e Itabuna por seu timbre marcante ouvido às grandes distâncias.

Essas vozes sempre me fascinaram poeticamente. Ao ouvi-las, desde sempre, sentia que inspiravam-me artisticamente, mas não entendia direito como utilizar essa “poesia sonora” em meu

4 Vendedor de aipim do bairro São Caetano, onde vivo desde a infância, localizado na península itapajipense, na cidade de Salvador-Ba.

5 Hábito familiar, ligado a tradição católica de rezar todas as noites, um conjunto de orações como Ave-Marias e Pai Nossos. As rezas eram realizadas na casa de minha família materna em Cruz das Almas, interior da Bahia.

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trabalho artístico. Entender que caminhos nos levam a perseguir uma prática artística é, para mim, refletir sobre o nosso modo de ver, compreender, sentir e ouvir o mundo que nos cerca. É estabelecer qual trabalho poderá ser impactante para revelar, nesta prática, o que o artista quer expressar quando cria uma obra artística. O que o mobiliza a criar? Porque escolhe um caminho e não outro? Qual seria a importância para outros que tenham acesso à obra artística deixada como legado? O que nos leva a querer entender os caminhos traçados na feitura da obra? Talvez, pelo fascínio, como bem afirma Cecília Almeida Salles em seu livro Crítica Genética: “O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra. Ele detecta a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas” (2008, p.32). Além do fascínio em esmiuçar a gênese da obra artística, também há, segundo Salles, um aprofundamento no olhar de quem investiga um entranhamento em busca de responder questões submersas:“As forças psíquicas em ação, pretendem deixar os aspectos exteriores para ver outra coisa, ver além, ver por dentro, em suma, escapar à passividade. (…) O avesso de todas as coisas e a imensidão íntima das pequenas coisas são visitadas” (p.32). Creio que investigar nossa criação artística, possibilita aprofundar as questões que a norteiam, ampliar as possibilidades criativas, confrontar ideias e, se necessário, traçar novos caminhos.

Julgo importante assinalar a importância de investigação do percurso artístico neste trabalho por possibilitar uma visão do que pretende-se alcançar como resultado artístico. Neste percurso, como em qualquer outro semelhante, diversos elementos farão parte da criação artística, que pode surgir a partir de diversas fontes, como imagens, fotografias, relatos, um texto, um sonho, ou até mesmo uma palavra. Meu caminho nesta dissertação é aguçar o olhar sobre este fluxo criativo, onde sou ao mesmo tempo objeto e sujeito, e, perceber elementos que contribuem para o meu desenvolvimento como atriz e pesquisadora. Neste olhar, tento enxergar a minha criação artística por diferentes vieses conduzidos pelo trabalho vocal e perceber que caminhos podem ser abarcados no percurso artístico a partir deste elemento. Salles (2008) afirma o perfil investigativo do pesquisador da obra artística, que quer vê-la por dentro, pelo profundo interesse pela obra em construção: “O pesquisador busca a história das obras; vive numa estreita ligação com um ato eminentemente íntimo; e procura pelos princípios (ou alguns princípios) que regem esse processo.” (p.33).

Escolher a via vocal como um caminho concreto de investigação artística nem sempre foi uma atitude consciente para mim, mas sempre foi um caminho presente, desde o princípio da minha trajetória artística, como poderá ser percebido nesta pesquisa. Para mim, fez-se necessário trilhar alguns caminhos para perceber que a intuição, a técnica, as experiências vividas e a investigação

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artística me levariam a uma maior consciência de diversas possibilidades criativas do uso da voz para a criação de personagens, dramaturgia e outros aspectos relacionados a encenação. Hoje, ao discorrer sobre tais questões, percebo claramente os elos entre as experiências vividas no meu percurso artístico, e como estes elementos são recorrentes no meu trabalho, como relatarei em diversos exemplos ao longo deste texto.

O espetáculo “Na Teia de Ananse” é o ponto de convergência onde me proponho a refletir sobre o modo de trabalho de uma atriz que utiliza a via vocal como uma possibilidade de compor personagens, atmosferas, sonoridades e, sobretudo, possibilidades artísticas aliadas à suas experiências pessoais e a uma trama de narrativas de matriz africana e afro-brasileira. A trama relata as aventuras e desventuras do astuto Ananse em busca de poder, fortuna e glória. Como um herói às avessas, Ananse alcança êxito em algumas aventuras e noutras fracassa. Devido ao seu caráter ambíguo mete-se em confusões, artimanhas e trapaças, mas ao mesmo tempo é reconhecido pela sua ousadia, sagacidade e inteligência. O espetáculo é conduzido por uma contadora de histórias, que ora parece existir numa esfera atemporal, ora dialoga com o público no tempo presente, apresentando sob múltiplas vozes narrativas de origem africana relacionadas a aranha mítica Ananse, que ensinou aos homens o ofício de tecer e mitos advindos da cultura afro-brasileira relacionados à criação do mundo e aos ensinamentos dos mais velhos. As memórias e relatos da atriz transpostos para a cena, assim como as sonoridades desenvolvidas na sala de ensaio costuram-se às narrativas.

A voz é um dos principais objetos deste processo criativo e, esta, tem um papel fundamental no desenvolvimento humano e na relação do indivíduo com o mundo. A voz é constituída tanto de aspectos objetivos, quanto subjetivos. Os fonoaudiólogos Le Huche e Alali (2001) afirmam que além das consideráveis diferenças de uma pessoa para outra, a voz apresenta-se em um mesmo indivíduo sob múltiplos aspectos. Para abarcar o estudo desta multiplicidade, eles classificam a voz de acordo com o instrumento vocal, a expressividade da voz, as circunstâncias em que ela é utilizada e de acordo com a intencionalidade do sujeito e no tipo de ação empreendida de acordo com o grau variável de consciência no seu uso. Além de oferecer diversas possibilidades de análise como parâmetros físicos, expressivos, psicológicos, emocionais, culturais e educacionais, a voz é uma das extensões mais fortes de nossa personalidade, constituindo-se em elemento essencial ao ofício do ator.

O processo de desenvolvimento técnico vocal para o ator envolve aspectos amplos, visto que o fenômeno da presença da voz no teatro requer a aplicação dos recursos vocais no processo

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criativo, o que compreende técnicas e linguagens. Neste processo, o ator expressa-se por meio do corpo, voz, emoção, dentre outros aspectos. Esta condição impõe ao ator a necessidade de conhecimentos técnicos e domínio sobre seus instrumentais físico, vocal e criativo. Desta forma, a preparação vocal do ator deve conduzi-lo ao aprimoramento dos aparatos físico e vocal e a capacitação para aplicação dos conhecimentos adquiridos na sua formação na criação artística , objetivando a conscientização e potencialização de seus recursos de expressão. Há, desta forma um trajeto a ser percorrido, respeitando as características individuais, para uma compreensão corporal do processo de produção da voz e das suas possibilidades de utilização no desenvolvimento da voz poética.

O entendimento sobre o uso da voz e da fala nesta dissertação parte do princípio que corpo e voz não se dissociam na atuação. Embora, no transcorrer da escrita, eu possa dar ênfase a um desses elementos seja para exemplificar algum processo educativo, de experimentação e de criação artística, seja para enfocar melhor algum aspecto, o leitor não deve perder de vista que na ação dramática voz e corpo estão interligados, tanto pelo aspecto anatômico e fisiológico quanto pelo fato de atuarem como unidade expressiva. Como sintetiza Frederico Cunha Santiago (2001) num trecho da sua dissertação de Mestrado intitulada “Encenam Voz e Corpo”:

Há uma metamorfose do corpo ao ser significado pela própria ação da voz. Isso faz com que haja uma reorganização fisiológica do corpo para manifestar suas emoções/sentimentos e as ações/ideias do texto em todas as suas camadas: situações nas quais a personagem está envolvida, ou seja, nas suas características (físicas e psicológicas), nas suas ações, nas suas intenções, nos seus objetivos, no subtexto, no ideal do dramaturgo, do diretor e do próprio ator. (p.2)

Se ao longo deste trabalho direciono meu olhar sobre o papel da voz e da fala, é tão somente para falar do seu papel múltiplo no espetáculo “Na Teia de Ananse” e refletir sobre as diferentes abordagens relacionadas ao ofício do ator. Reflexões estas que se ligam às minhas experiências de vida e às vozes ancestrais dos contadores de histórias de matriz africana articuladas neste trabalho. Bem como, às vozes dos professores que atuaram na minha formação profissional, na construção de uma teia sonora ligada à minha própria voz e ao processo criativo em questão. Falar dessas vozes também me conduz por um caminho de percepção de aspectos ligados ao poder da palavra e ao discurso por mim defendido em cena, assim como as escolhas do que dizer e os meios artísticos utilizados para isso.

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2.2VOZESNOMEUCAMINHAR

“A textura sonora de uma linguagem é um código emocional que dá testemunho das emoções que o forjaram”

PETER BROOK

Procurarei descrever, nesta seção, o processo pelo qual o interesse na utilização expressiva da voz surge em minha trajetória acadêmica, artística e profissional, e, como este caminho intuitivo mostrar-se-á profícuo na interação com determinados professores e suas contribuições para a ampliação de meus horizontes teóricos e artísticos, desde as experiências no Grupo de Teatro da Escola Técnica Federal da Bahia; passando pelo Curso Livre de Teatro da UFBA; pela Graduação em Artes Cênicas, onde além das aulas de técnica vocal, tive a oportunidade de participar de projetos de iniciação científica cujas pesquisas tinham como foco a expressão vocal para o ofício do ator; até a experiência como Professora Substituta de Disciplinas ligadas à voz no Curso de Artes Cênicas da UFBA, sem esquecer das experiências artísticas vivenciadas nos processos criativos de espetáculos e diversos cursos de formação complementar com atores e encenadores que inspiraram-me através de suas inspiraram-metodologias desenvolvidas especificainspiraram-mente para o trabalho vocal do ator. Desta forma, ao recorrer à experiência vivenciada no processo de formação com tais professores e artistas, faço uma reflexão sobre algumas de suas lições, as quais contribuíram, sob o meu ponto de vista, com o percurso artístico e a construção das práticas abordadas nesta pesquisa. Algumas experiências aqui apresentadas compreendem as áreas de ensino, pesquisa e extensão na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, e outras o contexto artístico externo ao âmbito acadêmico. Não almejo obedecer a uma ordem cronológica dos fatos, mas, tão somente, destacar pontos a serem alinhavados no transcorrer deste estudo.

2.2.1 A Voz e a minha trajetória acadêmica

Participeicomo aluna, durante o ano de 1992, do Curso Livre de Teatro da UFBA, Curso de Extensão da Universidade Federal da Bahia, onde tínhamos aulas de interpretação teatral, expressão corporal e vocal. Embora já tivesse experimentado a prática teatral desde o ensino médio, não havia

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tido contato com práticas voltadas especialmente para o trabalho vocal do ator. A professora Hebe Alves da Silva6, conduzia suas lições de expressão vocal para o teatro de maneira leve e descontraída, os exercícios propostos possibilitavam o primeiro contato da maioria dos alunos com a percepção estética de sua voz. Todos, iniciantes na arte teatral, experimentavam “soltar a voz”, como solicitado pela professora. Devido à pouca experiência, poucos percebiam que havia nos jogos e exercícios uma metodologia na qual buscava-se eliminar as tensões corporais que prejudicavam o desempenho vocal. Naquele momento, a professora Hebe Alves levava os alunos a perceberem a importância do relaxamento corporal para a atuação.

O meu interesse com o trabalho vocal naquela época era tão somente o de melhorar o desempenho em cena. As complexidades que o trabalho vocal exigiria ao ofício do ator ainda era um mistério. Ao me deparar com o trabalho técnico com a voz, obtive maior percepção de algumas dificuldades relacionadas à projeção vocal e articulação das palavras. À medida que ia realizando os exercícios de respiração, ressonância, vibração, articulação e projeção propostos, percebia melhoras gradativas7 no meu desempenho como atriz. Depois desta experiência no Curso Livre de Teatro da UFBA, reencontrei a Professora Hebe Alves no ambiente acadêmico da Escola de Teatro da UFBA, desta vez na Disciplina de Expressão Vocal, no ano de 1995. A sua condução das aulas levava-nos a aprofundar a percepção das relações entre corpo e voz, as conexões existentes entre tensão e relaxamento e suas implicações na emissão da voz e da fala. Ela ainda destacava a importância da respiração, da articulação dos órgãos bucais como mandíbula, língua e boca e como os sons podem ganhar em qualidade e projeção, através da liberação de tensões. Hebe conduzia diversas improvisações associando o corpo com a voz de maneira extremamente prazerosa. Percebi, nas suas aulas, através de experimentações vocais, que os sons, formados por vogais e consoantes “brincavam” na laringe em diversos tons abaixo e acima, compondo pequenas células sonoras. Esse jogo lúdico, através de uma prática que denotava um amplo conhecimento técnico e metodológico com a voz, fez-me ampliar o meu entendimento sobre a prática vocal e possibilidades criativas do ensino da técnica.

A Graduação em Artes Cênicas apresentou-se como o ambiente propício para experimentações e descobertas. Sempre percebi certa inquietação por aprender técnicas que me possibilitassem maiores possibilidades artísticas, talvez por este motivo tenha me envolvido em

6 Professora Adjunta e Chefe do Departamento de Fundamentos do Teatro da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Mestre (2001) e Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2008), com Doutorado-Sanduíche na Universidade de Nanterre - França. Bacharel em Direção Teatral. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Interpretação e Direção Teatrais, atuando principalmente nos seguintes temas: espetáculo teatral, ensino, pesquisa, extensão, teatro e montagens didáticas.

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projetos de extensão, iniciação científica e montagens didáticas. Um dos momentos mais instigantes, no qual foi possível perceber o estudo da voz como elemento de destaque na formação do ator, foi durante a participação como monitora do Professor Armindo Bião8 na disciplina de Dicção Teatral Eletiva, durante o ano de 1996. O professor estimulou-me a buscar bibliografia e entender mecanismos fisiológicos da voz. Os alunos da disciplina, eram provenientes de variados cursos da Universidade Federal da Bahia. As aulas consistiam basicamente de exercícios de respiração, dicção e leitura de textos. Quando o professor solicitava-me a conduzir algum exercício com os alunos, percebia um duplo aprendizado, ou seja, ao mesmo tempo em que conduzia, aprendia ali mesmo com os alunos, e suas respectivas dúvidas, como por exemplo, sobre o funcionamento do aparelho fonador, a importância da respiração no processo da fala. Percebia, naquele momento, que também já começava a colocar em prática exercícios conduzidos por outros professores do curso de Bacharelado em Artes Cênicas, como a professora Iami Rebouças9, a qual no trecho abaixo explicita este mecanismo:

Todos os que lidam com voz sabem que, no caso da fonação, a lógica da respiração caminha em direção contrária à observada na respiração funcional, na fase da expiração. Para que haja uma produção sonora é preciso que o diafragma faça um trabalho ativo na expiração, controlando a saída de ar.

Quando expiramos, jogamos os nossos resíduos para fora do organismo, “limpando” o sangue. Há um relaxamento das estruturas e as “comportas” são então abertas, deixando que o “lixo” passe. Esse ato é involuntário, acontece sem que a gente precise se dá conta. Mas, quando a intenção é usar a voz, o mecanismo se altera e o diafragma começa a ser solicitado para a atividade, em lugar de simplesmente relaxar. As pregas (ou cordas) vocais criam uma resistência para a passagem do ar. Elas resistem, mas o ar vence essa resistência, então há “vibração nas cordas” e nasce o som vocal. Daí ele vai ser amplificado, articulado, projetado, transformado em notas, sílabas, palavras, discurso, linguagem. Essa é uma explicação simplificada, apenas para lembrar que o processo de fonação exige um trabalho ativo dos músculos expiratórios. (FREIRE, 2001,p. 17)

De fato, como afirma Le Huche e Allali (2001), o estudo fisiológico dos órgãos responsáveis pelo uso da voz e da fala contribuem para o desenvolvimento de quem utiliza-os de maneira profissional, como o ator que utiliza a voz como instrumento de trabalho:

8 Brasileiro de Salvador, Bahia (de 1950), Pesquisador 1A do CNPq, Armindo Bião é Professor Titular Associado, no Brasil, à Universidade Federal da Bahia UFBA, e, na Europa, à Université de Paris Ouest Nanterre La Défense e à Maison des Sciences

de l Homme Paris Nord. Licenciado em Filosofia pela UFBA (Brasil), Mestre e Doutor pela Université em Anthropologie Sociale et Sociologie Comparée pela Université René Descartes Paris V, Sorbonne e Pós-Doutor em Études Théâtrales et Littéraires pela Université de Paris Ouest Nanterre La Défense (França). Atua nas áreas das Artes do Espetáculo e da Cultura

Baiana (Matrizes Estéticas e Relações Internacionais).

9 Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia;É professora Assistente I no Departamento de Fundamentos do Teatro da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Atua desde 1981, quando integrou o elenco da montagem Ubu-Rei Efemérides Patafísica, de Alfred Jarry resultado do III Curso Livre de Teatro do TCA, dirigido por Paulo Dourado. Na sua trajetória profissional, constam mais de 40 peças de teatro. Recebeu o Prêmio Braskem de Melhor Atriz Baiana 1998 (Mãe Coragem) e 2000 (Umbigüidades).Atualmente cursando doutorado em Artes Cênicas com a pesquisa ULTERIDADES... Interpretação e Recepção como Processo de Criação Cênica.

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O esforço para reter noções anatômicas precisas tem como principal interesse obrigar a imaginar corretamente- e de maneira duradoura - a disposição geral dos órgãos e a maneira pela qual eles se agrupam. É esse sentido que este esforço se torna útil e, ao que parece, dificilmente substituível, ao menos para quem se interessa profissionalmente pelo assunto. (p.10)

Trago ainda a contribuição da Tese de Doutorado de trabalho de Juliana Trasel,(2008) “ Os Princípios da Ressonância Vocal na Ludicidade dos Jogos de Corpo-Voz para a Formação do Ator”:

A importância do estudo fisiológico contribui para a compreensão do funcionamento do corpo com vistas à organização de procedimentos, de técnicas vocais e de jogos vocais para as exigências da dinâmica cênica, potencializando as qualidades vocais na dinâmica do movimento para ação criativa artística. (p.14).

Desta forma a maneira como o aluno vai compreender a dinâmica vocal interfere diretamente no seu aprendizado, ou seja, não são meras informações estanques, mas uma compreensão que o auxiliará ao longo da vida da profissional e que é aprendida de maneira teórico-prática.

Julgo fundamental destacar, para entender a metodologia da professora Iami Rebouças, a sua atitude de revelar aos seus alunos, dificuldades vocais em sua trajetória artística e como através da superação, ela torna-se uma profissional das artes cênicas especializada em expressividade vocal. Compartilhar com os alunos as suas próprias dificuldades e portanto deixando-os à vontade para relatar e trabalhar as suas, me estimulou, como aluna, a perceber e investigar em minha própria experiência dificuldades que interferiam na minha expressividade em cena como por exemplo, uma tendência de não abrir muito a boca para falar. Percebi tratar-se de um jeito de falar cotidiano comum na minha família, onde todos se entendiam perfeitamente. Aliado a isto, também possuo uma limitação da articulação mandibular por conta de uma mordida cruzada e apresento, desta forma, dificuldades para execução de alguns exercícios. Como já relatado, Iami Rebouças havia revelado as dificuldades com a voz no início da sua carreira e segundo as suas próprias palavras, esses obstáculos a impulsionaram a seguir adiante, a buscar especialistas e técnicas que a auxiliassem a melhorar seu desempenho cênico. Ao “driblar” estes desafios, ela conquistou reconhecimento pela sua atuação na construção vocal de personagens teatrais. No espetáculo “Umbiguidades”, resultado prático de sua Dissertação de Mestrado, ela exemplifica de maneira bem humorada esses percalços em seu ofício ao personificar Baêa, um simpático torcedor do time do Bahia que em determinado momento da peça, narra, como um locutor futebolístico, a trajetória da atriz e a superação de suas dificuldades vocais, até a conquista do prêmio de Melhor Atriz. Em sua

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dissertação, resultado deste trabalho, ela relata:

É indiscutível a importância que tem o desempenho vocal para um ator. No meu processo de aprendizagem como atriz houve sempre a necessidade de dar uma atenção especial a esse desempenho, pelo fato de ter enfrentado dificuldades em diversos aspectos envolvendo a dicção e a voz. Mesmo para os que não enfrentam particularmente dificuldades na área de expressão vocal a atitude de pesquisador já é fundamental, para que haja um aprimoramento técnico com um resultado estético cada vez mais aprimorado. No meu caso tive um maior compromisso com esse “estado de alerta” por apresentar condições desfavoráveis. (FREIRE, 2001, p.18)

Sua atitude em instrumentalizar os alunos com exercícios técnicos, fazendo-os dispor de diferentes e variados exercícios corporais e vocais, fizeram-me perceber o leque de possibilidades que o professor pode apresentar ao aluno. Iami Rebouças reforçava a ideia de que a partir de uma prática contínua o ator pode adquirir uma qualidade técnica que o permite auxiliar a superação das dificuldades e conquistar melhor qualidade vocal na cena. Vale ressaltar que Iami também apresentava diferentes exercícios para as diversas dificuldades dos alunos. Orientava-os, caso houvesse necessidade, consultar-se com um médico especializado como um fonoaudiólogo ou otorrinolaringologista, ou até mesmo um dentista, para investigar algum problema dentário ou da estrutura óssea, enfim, ela tinha um cuidado diferenciado e sempre afetuoso com os alunos. Além disso, ela também recomendava uma continuidade do trabalho vocal a partir de uma prática regular de exercícios que propiciassem conforto, e levassem em consideração as particularidades de cada um, como destacado a seguir:

Toda essa discussão a respeito do que seria mais apropriado no procedimento respiratório para a fonação, traz outra vez à pauta a idéia de que as particularidades do indivíduo serão, portanto, determinantes para a sua prosódia, a começar pela sua respiração, cuja mecânica é condicionada às variantes de caráter e de estado psíquico ou sócio cultural. Conclui-se daí que não existe a

priori um modelo vocal. Existe um padrão de referência que pode ser social ou estético.

(FREIRE, 2001,p.17)

O trabalho minucioso da professora Iami Rebouças de possibilitar o entendimento do aparelho fonador, o processo respiratório, a emissão sonora e as diferenças entre a voz falada no cotidiano e a voz no teatro, fizeram-me atentar para o uso da voz na construção de personagens, onde o ator dispõe de técnicas capazes de adequar-se aos diferentes papéis que executa. Sobre este assunto, Iami Rebouças destaca:

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Existem leis que regem o funcionamento do chamado Aparelho Fonador, responsável pela produção da fala. Quando a criança aprende a falar não consegue reproduzir exatamente toda a gama de sonoridades que existe no seu idioma, e, a não ser que a pessoa apresente algum distúrbio, os ajustes acontecem naturalmente. Cada um deve aprender a “tocar” seu instrumento. O primeiro passo é aprender a ouvir.

Não existe só um caminho para se conquistar um bom desempenho na fala profissional. Vários métodos já foram desenvolvidos, aprovados, contestados, reconsiderados. A diversidade de fatores emocionais, sociais, físicos e culturais faz da expressão vocal de cada indivíduo um caso particular, que deve ser considerado como tal, pelo seu professor ou terapeuta vocal. (p. 17)

Ao aprimorar seu mecanismo de escuta, o ator, que interage com o meio, com o colega e consigo mesmo, permite-se ampliar sua percepção e sensibilidade artística. Saber ouvir é uma habilidade que pode ser adquirida pelo ator e que propiciará um grande enriquecimento nos campos da percepção, desenvolvimento das potencialidades vocais e expressivas. Vale a pena ressaltar que no campo fisiológico a audição está diretamente ligada à regulação da fala. Ao ouvir a linguagem desenvolve-se e é aprimorada.

Meran Vargens, sempre destacou a importância da escuta em seu trabalho como professora de expressão vocal. Era comum, nas suas aulas, reservar um tempo para que cada aluno falasse, e somente falasse, e outro somente escutasse. Após esse exercício simples, de falar e escutar, podíamos perceber em graus diversos a habilidade de cada um em reter informações. Este era apenas um dos muitos exercícios utilizados pela professora para desenvolver a capacidade de ouvir dos alunos, tão fundamental na arte teatral.

Quando fui monitora de Meran Muniz da Costa Vargens10, em 1996, na Disciplina Prática da Interpretação Teatral, ligada ao desempenho do ator e à voz, percebi um fato peculiar na sua metodologia. Ela conduzia o aluno não apenas a vivenciar a prática na aula, mas, posteriormente, a perceber e registrar os exercícios vocais. Ela pedia que cada aluno tivesse seu caderninho pessoal de registro e que ao final de cada aula, anotasse, através de sua própria percepção, com desenhos, rabiscos, metáforas, ou seja, à seu critério, os exercícios que haviam sido propostos na sala de aula. Como monitora, era-me solicitado o registro dos exercícios somente após a aula. Eu deveria vivenciar a aula na prática e, de maneira alguma observar e anotar os exercícios enquanto estes fossem executados pelos alunos, mas, também eu, experimentava cada atividade proposta em aula. Nos momentos de registro eram perceptíveis as dificuldades em realizar descrições e anotações sobre os exercícios de prática vocal. Uma das maiores dificuldades para mim era a de ainda não

10 Possui graduação em Educação Artística Habilitação Em Artes Cênicas pela Universidade Católica do Salvador (1985), mestrado em Theatre Arts Performance - University of London (1997) e doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2005). Atualmente é professora adjunto II da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Interpretação Teatral, atuando principalmente nos seguintes temas: ator, expressão vocal, interpretação, improvisação teatral e expressão vocal para o ator, teatro e literatura, contadores de historia, ator narrador.

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saber como transpor para o papel, de maneira clara e precisa, toda a vivência praticada durante a realização das atividades. Registrava então, todas as minhas percepções, desde as relacionadas aos aspectos fisiológicos como as posturas, tensões, até aos aspectos mais subjetivos como as emoções alcançadas, através de desenhos e anotações. Ainda nos dias atuais, quando revisito um desses velhos cadernos, sei exatamente qual foi o exercício proposto, ao ponto de conseguir visualizá-lo. Na época, ao observar os diversos cadernos, quando estes eram compartilhados11 com os colegas em determinado momento da disciplina, percebi, que o registro escrito de voz era diferente para cada pessoa de acordo com a sua percepção e vivência própria no aprendizado em sala de aula. Como relata a própria Meran Vargens em sua Tese de Doutorado sobre o trabalho teatral, o que a meu ver também se aplica ao trabalho vocal:

O trabalho teatral em qualquer dos campos é extremamente pessoal. É corpo-a-corpo. É constante comunicação com o outro e com o meio. Isso requer dos processos criativos e dos procedimentos técnicos um número sem fim de atalhos para alcançar os resultados desejados. A cada pessoa, uma dificuldade, a cada grupo, uma necessidade. (2005, p. 72)

Outra dificuldade detectada na realização das anotações tratava-se da própria situação, de estar a praticar as aulas, e de registrar passo a passo tudo o que acontecia. Eu me entregava aos exercícios querendo extrair deles o máximo, e tal atitude, aparentemente impeditiva, acabava por não prejudicar o registro posterior dos exercícios, ao contrário, ali se evidenciava o valor de havê-los experienciado. Atualmente, percebo a importância desta metodologia, pois considero imprescindível o entendimento de um exercício vocal pela vivência.

Outra vivência significativa na minha formação, que posso destacar como um embrião desta pesquisa, foi a prática na disciplina de Expressão Vocal ministrada por Meran Vargens, onde cada aluno incumbia-se de criar um solo de 15 a 30 minutos, traçando um objetivo artístico e um técnico, assim como uma metodologia do que pretendia almejar naquele momento. Como descreve a professora sobre os propósitos desta disciplina, em sua Tese de Doutorado:

A ideia de determinar o tempo de duração dos solos é impulsionar o ator a ir além dos seus limites. O desafio é sustentar a atenção da plateia tendo como foco essencial um texto, ou seja, a manipulação e uso das palavras. Ao ver-se sozinho e diante de 15 ou 30 minutos com o espectador, todos os seus “truques de interpretação” no que se refere aos vícios de linguagem oral virão à tona.(2005, p.119)

11 Havia um momento na Disciplina em que os alunos trocavam os cadernos, o que possibilitava analisar as diferentes formas de registro de um mesmo grupo de exercícios.

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Lembro que decidi pesquisar as possibilidades de utilização da voz, explorando sonoridades cotidianas através de diferentes personagens. Compus, desta forma, fragmentos de cenas onde utilizava elementos técnicos como criação de personagens, a partir da voz, teatro de animação, técnica de palhaço e canto. A investigação vocal passeava por sons como espirros, soluços, murmúrios, choro, palavra falada, palavra cantada e silêncios. Vale ressaltar que muito mais do que a busca por um resultado estético da montagem, a disciplina continha um aprendizado que proporcionava a cada um refletir sobre a criação artística, como ressalta Meran Vargens (2005):

À medida que ele escolhe o que montar, terá respondido à uma pergunta que insisto e estimulo durante toda a primeira fase do processo:o que você quer dizer? O que é ser um artista? Você está fazendo teatro e em teatro está escolhendo ser ator porque? Para que? E ele assume o resultado pela obra artística. (p.45)

A metodologia utilizada pela professora levou-me a perceber, hoje, o quão frutífero o trabalho revelou-se. Sob diferentes aspectos, acredito que foi um momento inspirador para a construção de um modo de trabalhar que dialoga intensamente com meus anseios artísticos. O papel da professora foi o de indicar caminhos a serem percorridos pelo aluno. Como bem assinala Meran Vargens (2005), descrevendo o seu modo de condução na Disciplina:

O aluno escolhe a estética a ser utilizada e torna-se seu próprio diretor. Então como professora, atuo no pano de fundo. Deflagro o processo, observo e interfiro nos suportes técnicos, artísticos e de ordem do espírito que se tornem necessários. Mantenho o foco do processo vocal em ação. Desta forma atravesso o obstáculo da tentação de ensinar como fazer teatro. Guio o aluno para seguir a sua voz interior, suas imagens secretas, seus impulsos conhecidos em direção a uma forma estética já existente, ou estranha ao nosso universo de linguagem. Com isso estimulo cada um a ir em busca do seu teatro da sua identidade artística.(p.45)

Posso afirmar que as professoras Iami Rebouças, Hebe Alves, Meran Vargens, juntamente com o professor Armindo Bião, tiveram um papel fundamental no meu aprendizado prático e teórico. Hoje, com o passar dos anos, é possível constatar que suas aulas indicaram-me um profundo entendimento da arte de ensinar. Através destes Mestres e Doutores em Artes, também eles artistas, encontrei o caminho para acessar autores que trabalhavam com o tema, como, Lilia Nunes (1972) Glorinha Buettemuller (1977), Eudósia Quintero (1989), Le Huche e Alali (2001), dentre outros. A metodologia de tais professores(as), que orientam o aluno a perceber quais os mecanismos e caminhos possíveis para trabalhar a sua expressividade vocal, fizeram-me, por

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afinidade, construir um modo de trabalhar onde “aprender a aprender” é fundamental. Cada professor, ao exercer o seu ofício, me possibilitou um aprendizado vivencial, além do cabedal técnico, por haverem imprimido o aprendizado de valores importantes ao meu desenvolvimento profissional e pessoal. Vislumbro, assim, que o processo de aprendizado vocal para o ofício do ator, não se resume a uma série de exercícios técnicos, de maneira alguma direciona para um receituário, depende, sim, da atitude e disposição do aluno/ator em trilhar o seu aprendizado, pois a transmissão das práticas vocais fazem-se principalmente a partir da vivência, de pessoa a pessoa, como um ofício tradicional. E através deste aprendizado, o aluno pode desenvolver a autonomia criativa.

Desta forma, percebi em mim esse viés de ensino vivencial, propositivo e perceptivo já como Professora Substituta de Expressão Vocal da Universidade Federal da Bahia, durante o período de 2007 a 2009, ao ministrar componentes curriculares para os Cursos de Bacharelado em Interpretação Teatral e Licenciatura em Artes Cênicas. Ao sentir a necessidade de rever meus cadernos de exercícios, livros e anotações, percebi que utilizava muitos exercícios assimilados durante a Graduação, mas, também os adequava ou adaptava-os conforme a necessidade da turma. Sempre reservava um tempo da aula para a experimentação vocal a partir de estímulos criativos. Dei-me conta, através da prática, que o meu trabalho desenvolvido com a voz seja como artista ou professora era muito mais um trabalho perceptivo e de experimentação criativa do que um trabalho estritamente técnico.

Os alunos de licenciatura tinham muita “sede” de aprender exercícios na intenção de formar uma espécie de repertório. Eles queriam se instrumentalizar através de exercícios técnicos, o que era perfeitamente compreensível, visto que no futuro seriam professores de teatro, mas essa ansiedade às vezes atrapalhava a fruição do aprendizado. Percebi, que o entendimento do trabalho vocal era cercado de “tabus” por parte destes alunos. Uma destas questões relacionava-se ao aspecto quantitativo, ou seja, almejavam saber uma grande quantidade de exercícios técnicos, o que os prejudicava em muitos momentos a apreender os benefícios qualitativos dos exercícios. Outra questão, era a dificuldade de entender e realizar as experimentações com a voz de forma criativa, ou seja, não conseguiam relacionar o aspecto lúdico de trabalhar a expressão vocal associando-o à técnica. De um modo geral, alguns alunos, acreditavam que o trabalho vocal restringia-se à realização tão somente de exercícios mecânicos. Constatava, desta forma, no momento em que utilizavam a voz em cena, que eles não conseguiam perceber a sua própria expressividade nem a conexão com os exercícios propostos em sala de aula.

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e intrínsecos como a técnica e a expressividade, ou o jogo dentro da técnica, aponta para um entendimento onde o racional e o emocional ou o sensível estão em campos opostos, visto que o próprio elemento a ser trabalhado, ou seja, a voz, compreende aspectos físicos, emocionais, psicológicos e expressivos. Hampatê Bã (1982), estudiosos da cultura africana das savanas, traz uma excelente contribuição quando declara sobre o processo de aprendizado na tradição oral:

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela se recupera e se interliga diversos aspectos. Pode parecer caótica aqueles que não lhes descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas (…) ela é ao mesmo tempo religião,conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar a Unidade primordial. (p 183).

Não precisamos ir tão longe para perceber que nas manifestações de matriz afro-brasileira onde os elementos jogo e ritual estão interligados, há uma via dupla. Zeca Ligièro coolabora com questão quando afirma:

Uma forte características das performances afro-brasileiras em geral, é justamente a via dupla entre o jogo ( a brincadeira e o ritual). Neste sentido aspectos geralmente tidos como opostos nas denominadas religiões ocidentais encontram nas celebrações afro-brasileiras um campo fértil de distensão e reencontro com as forças da natureza (e ancestrais também) - forças estas que se apresentam ordenadas e caóticas. (p.114-115)

Realizei com a turma de Licenciatura em Artes Cênicas uma série de exercícios associando a criação de personagens a estímulos vocais. Os exercícios eram realizados em duas etapas iniciadas por uma cantiga popular12. A primeira delas era a de preparação, onde realizávamos exercícios de técnica vocal, a outra de exercícios criativos voltados para a improvisação e criação de cenas. Os exercícios técnicos eram focados na prática da respiração, no sentido de expansão da musculatura intercostal e fluxo respiratório, seguidos de relaxamento, articulação, ressonância e projeção. Desde este momento já interligava os exercícios a ações físicas, ora conduzidas por mim ora pela imaginação deles, como desenhar no espaço, em diversas direções caminhos a serem percorridos com a voz. Em seguida, os alunos se reuniam em dupla onde um era a voz da personagem e o outro o corpo, como num jogo de marionete. Só que a proximidade corporal fazia com que eles se unissem como um corpo só. Durante as improvisações, a voz da personagenm, assim como suas ações, eram criadas através de experimentações a partir das técnicas vocais. Deste modo, os alunos experimentavam diferentes vozes para as personagens e desta forma entendiam como a técnica pode

12 No momento inicial onde cantávamos em roda percebia que alguns alunos achavam “ bobo” cantar uma ciranda ou cantiga de roda com versos. Para alguns deles o trabalho vocal deveria ser conduzido de maneira mais “ formal”.

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ser articulada num trabalho expressivo à medida que lhes era solicitado por mim destacar a articulação, a projeção, ou intenções vocais como brincar com os tons e a linguagem. A cada aula, realizávamos estas duas etapas, aliando o trabalho técnico ao de criação artística, com exercícios variados, instigando os alunos a perceberem a relação estreita entre técnica e experimentação criativa e de que forma poderiam lançar mão destas possibilidades. O resultado do trabalho proposto foi tão estimulante para os alunos que as cenas criadas com as personagens integraram a Mostra final daquele semestre.

Os alunos do Bacharelado em Interpretação Teatral agiam de maneira diferente. Eles permitiam-se experimentar e “brincar” com a voz, tinham uma ideia da função dos exercícios e sabiam realizá-los corretamente. Porém, inquietava-me a percepção de que tais alunos entendiam o exercício vocal como uma prática desvinculada do exercício corporal, e a de que tais exercícios eram realizados de maneira meramente mecânica, sem envolvimento e empenho pessoal, quase como exercícios realizados numa academia de ginástica. Esses alunos cursavam o último, ou penúltimo semestre, e, ainda assim, dependiam sempre do professor para conduzir a prática e o trabalho criativo. Era perceptível a postura destes alunos que realizavam o trabalho vocal como um trabalho estritamente técnico. Buscava conduzir as aulas de modo a privilegiar a prática e reinventar exercícios que desencadeassem esse processo criativo vocal, no qual os alunos pudessem perceber as possibilidades da voz, a sua espacialidade, o espaço interno, praticar a respiração, executar com inteireza exercícios simples. Desta forma, alguns exercícios experimentados por mim ao longo de minha prática foram adaptados e busquei criar espaços de experimentação artística aliados ao aprendizado da técnica vocal. Considero que isto estimulou os alunos a perceberem a importância de conciliar um trabalho técnico a um trabalho criativo na sua formação artística.

Minhas tentativas foram no sentido de conduzir um trabalho mais livre e intuitivo, aliado a um trabalho técnico. Estas experiências fizeram-me perceber que o trabalho de expressão vocal, é uma etapa na formação do ator que precisa ser aprofundada por cada um a partir do entendimento e potencialidades do seu aparelho vocal com adequação, criação e reinvenção de exercícios. Ao mesmo tempo pode ser um campo de investigação e criação artística, sobretudo na composição de personagens. Percebi também que o espaço da sala de aula é um ambiente propício ao aprendizado das práticas vocais, e, por sua vez, abrem possibilidades estéticas a serem desenvolvidas num processo criativo.

Através destes exemplos, percebo que o trabalho vocal experimentado e apreendido durante o período da Graduação em Artes Cênicas desenhou-se como fios sensíveis de transmissão

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conduzidos pelos professores, passando por mim e chegando até aos meus alunos, onde o foco principal foi tecer uma prática propícia ao aprendizado.

Constatei ser o campo das possibilidades criativas o viés que mais me mobiliza no trabalho com a voz, onde a técnica apresenta-se como uma aliada essencial para ampliação das possibilidades criativas a serviço do ator e seu ofício. A experiência como professora levou-me a perceber também que o aprendizado é contínuo e o ensino da prática vocal para a cena aponta caminhos amplos a serem experimentados, tanto pelo educador, quanto pelo educando, e a disponibilidade de aprender, ensinar, experimentar, vencer desafios e propor soluções criativas traz um crescimento para ambos. A meu ver, com todo e qualquer exercício teatral, mas principalmente com os exercícios ligados à expressão vocal, estes desenham possibilidades, que podem ser exploradas, por qualquer aluno que queira aprofundar a prática artística, mas é preciso ter uma disponibilidade, um espírito de pesquisador, uma abertura para aprender, para investigar, numa postura propositiva. Tal vivência levou-me a compreender o aprendizado como uma via de mão dupla, onde o aluno e o professor constroem no momento da sala o conhecimento, num ato propiciador de encontro e descobertas que pode reverberar em outras instâncias da vida do artista, como aconteceu comigo.

Após esta experiência como aluna e professora da Graduação em Artes Cênicas da UFBA, percebi que o trabalho de expressão vocal pulsava em mim como um percurso favorável à autonomia criativa, em sintonia com a minha crença da utilização da voz e da fala como um poderoso recurso para o ator/aprendiz, e para o professor de teatro.

2.2.2 A Voz e a minha trajetória artística

A possibilidade de trilhar um caminho autoral sempre esteve presente na minha formação artística, e há muito, a busca por técnicas que permitissem uma maior liberdade criativa fizeram-se presentes nessa minha trajetória, fazendo-me buscar em diversas linguagens como a mímica, o circo, o teatro de rua, a narração de histórias, entre outras, motivações para a criação cênica.

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sobre Mímica Corporal Dramática13 ministrado por Nadja Turenko14 que voltara de seus estudos na França. Ex-aluna do Curso Livre de Teatro da UFBA, Nadja foi a responsável por trazer a técnica criada e desenvolvida por Etienne Decroux15 para a Bahia. Até aquele momento não percebia que havia outra possibilidade de mímica a não ser a pantomima. Ingressei no curso particular de Mímica Corporal Dramática conduzido pela Professora Nadja Turenko, e dei continuidade ao estudo diário desta técnica de 1995 a 1998. Durante a aula o uso da voz era restrito, ficávamos quase todo o tempo em silêncio e somente ouvíamos e víamos as instruções da professora. A aula consistia no aprendizado prático da técnica e momentos de improvisação individual ou em grupo. Nas aulas voltadas principalmente ao treinamento da técnica, realizávamos exercícios com ênfase na respiração e exercícios voltados para as articulações e expressividade do corpo. Em seguida executávamos séries complexas de exercícios de dinâmicas corporais, ritmo, peso, explosão muscular, partituras e pequenas peças do repertório da Mímica Corporal Dramática. Na segunda metade da aula improvisávamos sobre algum tema específico. Durante todo esse período, cerca de duas horas de aula, mergulhava no silêncio, naquele momento não se fazia necessário usar a voz para expressar-me. A atenção dos alunos era conduzida para a prática dos exercícios. No entanto, percebia claramente a presença da voz nos silêncios, no trabalho diário de controle da respiração, em sons que não eram exatamente palavra falada, mas a utilização da voz necessária, imprescindível. A minha impressão era a de que os sons e as palavras estavam sendo esculpidos através do corpo. Percebia a conexão entre o corpo e a respiração, de maneira fluida, a comunicar. A mímica utilizava códigos próprios de interpretação, trabalhando possibilidades corporais pautadas numa “gramática corporal” 16 particular. A intenção de utilizar a voz sempre esteve presente nos estudos de Decroux, que contrariamente a um pensamento reinante, não acreditava que o silêncio era a condição única da mímica, ao contrário, afirmava que a técnica poderia conciliar expressão verbal, canto e música, contanto que não obscurecesse o jogo corporal.

Concomitantemente a este estudo, cursava a Graduação em Artes Cênicas. Procurava, então, espaços onde pudesse experimentar a prática adquirida nas aulas de mímica. Não tínhamos, na

13 Arte autônoma criada e desenvolvida ao longo de 40 anos por Etienne Decroux a partir da representação corporal do homem e sua relação e interação com o mundo visível e invisível. O aprendizado constitui-se em treinamento prático, transmitidos de mestre a aluno através de série de exercícios, como marchas, figuras, cerca de 80 peças dramáticas realizadas em solos, duos, trios ou grupos.

14 Atriz e professora de Mímica Corporal Dramática, formada na técnica, desenvolveu trabalhos nas áreas de cinema, teatro e televisão. Atuou na Cia L'anje Fou, em Paris e em companhias de teatro de Salvador.

15 Foi um grande ator e mímico francês. Depois de estudar na Escola de Vieux-Colombier, de Jaques Copeau, participou da cia de Charles Dullin, trabalhou sob a direção de Antonin Artaud e Louis Jouvet, tendo atuado no cinema e no teatro.

16 Série de estudos sobre as partes do corpo que se interligam para formar posturas corporais codificadas, assim como peças teatrais. Forma a base de estudos sobre a qual um mímico dramático realiza seu treinamento diário.

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Escola de Teatro, naquele momento, a proposta de realizar montagens didáticas a cada semestre, esta tarefa, ficava a cargo de cada professor. Desta forma, sentíamos necessidade de experimentar o momento de aprendizado que estávamos vivendo. Foi nesse sentido que engajei-me no projeto Ato de Quatro17, um espaço de experimentação formado por quatro cenas inéditas criadas pelos alunos da Escola de Teatro, com entrada gratuita, que acontecia todas as segundas-feiras. Na inauguração do evento, utilizando a técnica de mímica corporal dramática, criei uma releitura da personagem Penélope. Conta o mito grego, que Penélope era uma fiandeira, esposa de Ulisses, mãe de Telemâco que aguarda o retorno do marido da Guerra de Tróia. A narrativa, encontrada na Odisséia de Homero, conta como Penélope consegue ludibriar os pretendentes ao reino de Ítaca, fazendo-os acreditar que se casaria com um deles, assim que terminasse uma peça de bordado. Ela, utilizava o ardil de tecer a peça durante o dia para à noite desfazê-la, assim ela retardava o tempo à espera de seu amado. A cena foi dirigida por João Lima18, que também atuava na apresentação. Experimentávamos desta forma as possibilidades do trabalho com a utilização da voz aliada à estética da mímica corporal dramática na cena. As possibilidades, de experimentação estética da voz para a encenação, estavam focadas na força implícita da palavra, no silêncio da espera, onde a respiração da personagem era o foco de atenção que possibilitava o público perceber o passar do tempo e a ausência de um ente querido. Inspirada em exercícios da técnica experimentados na sala de aula, contávamos uma história sobre o amor, a angústia da espera, a partir de uma ação que se repetia ao longo dos anos. O tempo, dilatado através da ação de fiar, possibilitava a inserção do jogo de sons e silêncios que compunham a cena. A utilização expressiva da respiração, com pequenas sonoridades como murmúrios, gemidos e expirações, buscava transmitir emoções sem a palavra falada. Um canto, acompanhado por um atabaque dialogava com a atmosfera melancólica proporcionada pela ausência. Neste exemplo percebe-se a sutileza que o trabalho vocal pode proporcionar na criação artística e sua adequação em diferentes estéticas.

A utilização do trabalho vocal para a atuação em espaços não-convencionais, como o teatro de rua e espaços diversos do palco frontal italiano, foi vivenciado por mim no ano de 1998, durante um extenso período de greve de professores e servidores da Universidade Federal da Bahia. Decidi trancar o semestre e realizar, por conta própria, ao lado do então colega da Graduação em Artes

17 Núcleo criado por alunos de graduação, em 1996, constitui-se em montagens dinâmicas de peças de curta duração e de cenas selecionadas de peças teatrais, apresentadas em conjunto de quatro delas, todas dirigidas e interpretadas pelos próprios alunos da escola de teatro, e apresentadas semanalmente na Sala Experimental- Sala 5 da Escola de Teatro da UFBA.

18 Diretor baiano formado pela Universidade federal da Bahia, premiado com diversos trabalhos. Atua na área de Direção, interpretação Teatral e palhaçaria.

Referências

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