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Crimes sexuais em Joinville (1916-1950): relações de gênero e discurso jurídico nos processos crime de estupro e defloramento

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José Vitor Lemos de Oliveira

CRIMES SEXUAIS EM JOINVILLE (1916-1950): RELAÇÕES DE GÊNERO E DISCURSO JURÍDICO NOS PROCESSOS

CRIME DE ESTUPRO E DEFLORAMENTO

Dissertação submetida ao Programa de

Pós-Graduação em História da

Universidade Federal de Santa

Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em História.

Orientadora: Profª. Drª. Janine Gomes da Silva

Florianópolis 2018

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer à minha orientadora, Professora Dra. Janine Gomes da Silva, pelos comentários oportunos e sucessivas leituras atentas de meus escritos, bem como pelas várias conversas elucidativas – pessoalmente e via Skype. Sua contribuição para minha pesquisa ao longo dos dois últimos anos foi fundamental, fazendo com que os objetivos analíticos propostos fossem empreendidos com êxito.

Agradeço à Professora Dra. Joana Maria Pedro por presidir a Banca de Qualificação da presente dissertação em razão da ausência da Professora Dra. Janine Gomes da Silva.

Às Professoras Dras. Cláudia Regina Nichnig e Teresa Kleba Lisboa, por terem participado das Bancas de Qualificação e Defesa desta dissertação, contribuindo tão proveitosamente para o desenvolvimento da pesquisa, por meio de leitura atenta e comentários e sugestões oportunas.

À professora Dra. Beatriz Gallotti Mamigonian, por ter concordado com que eu realizasse o Estágio em Docência em sua disciplina de Brasil Império, sendo esta uma das etapas mais gratificantes e desafiadoras do mestrado, bem como por ter me aceitado como aluno ouvinte de um tópico especial ministrado no ano de 2015.

Aos amigos dos tempos de graduação na Univille, especialmente o Joelson Lopes Maciel, com quem compartilhei as angústias e conquistas ao longo dos quatro anos de graduação e dois de mestrado; o Jeferson Luiz Freitas, pela agradável companhia nas viagens à Florianópolis durante o segundo semestre de 2016, nas quais pude discorrer sobre minhas inquietações teóricas e metodológicas; e o Dhuan Luiz, único com quem podia desabafar e discutir questões referentes à pesquisa antes e depois das partidas de futebol semanais.

À Professora Arselle Fontoura, por ter me incentivado a ingressar no Programa de Pós-graduação em História da UFSC, enquanto minha orientadora de iniciação científica na graduação.

Aos familiares próximos: meu sogro Marco Aurélio, que muitas vezes me levou e esperou na rodoviária de Joinville nos horários mais inoportunos; à minha sogra Ivete, que me aliviou nas tarefas domésticas para que eu pudesse redigir esta dissertação; ao Alan, meu irmão, que sempre demonstrou curiosidade para com meus estudos historiográficos.

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pudesse levar adiante meus estudos.

À Bruna, pelo apoio incondicional nos últimos cinco anos, muitas vezes me impedindo de desistir dos desafios eventualmente surgidos. Suas palavras reconfortantes e a paciência demonstrada diante de meu humor instável foram um refúgio nos tempestuosos momentos de dúvida e adversidade.

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RESUMO

Este trabalho tem o objetivo de analisar os processos de crimes sexuais da Comarca de Joinville produzidos entre os anos de 1916 a 1950. A imprecisa noção jurídica de “honestidade” norteava os discursos de todos os envolvidos em tais processos, pois determinava se as vítimas dos crimes de estupro e defloramento/sedução eram ou não merecedoras da proteção da Justiça. A constante tentativa empreendida pelos operadores do direito de enquadrar uma moça como “honesta” ou “desonesta” levava a um perscrutamento cabal da vida desta: as suas condições de trabalho e lazer, se andavam desacompanhadas pelas ruas da cidade, a influência dos familiares em sua conduta e (nos casos de defloramento/sedução) a natureza de seu relacionamento com o acusado. Com relação à conduta dos acusados de crimes sexuais, por sua vez, raras eram as ocasiões em que uma atitude investigativa era realmente empreendida, demonstrando assim que tais processos se tratavam mais de um julgamento do proceder das vítimas do que dos próprios acusados. Além da constatação dessa nítida discriminação de gênero praticada pelos operadores do direito, o caráter multiétnico de Joinville (cidade que recebeu grande leva de imigrantes europeus em meados do século XIX) também influenciou de maneira importante o desenrolar dos processos de crimes sexuais nessa comarca, pois as relações entre descendentes de colonizadores europeus e brasileiros (de sobrenome português) eram muitas vezes conflituosas e marcadas por uma segregação étnica evidente. A noção de infância presente nos autos de crimes sexuais será objeto de análise na parte final desta dissertação, bem como o discurso jurídico elaborado pelo advogado Marinho de Souza Lobo, bacharel responsável pela defesa de muitos dos acusados de crimes sexuais no período estudado. Para a realização de tal proposta analítica, empreendemos o cruzamento de nossas fontes centrais (os processos crime) com a bibliografia já produzida sobre o tema em questão, trabalhos que nos fornecem ferramentas metodológicas úteis para a leitura das fontes, e documentos produzidos na época estudada, como jornais, obras de juristas conceituados e legislação em vigência. Por fim, em tais processos é clara a existência de uma “justiça de gênero”, tanto na aplicação das leis, como no recebimento das denúncias na delegacia de polícia. Antes de qualquer coisa, havia um julgamento moral da conduta das mulheres, que deveriam provar em sua personalidade a existência do extremamente subjetivo conceito de “honestidade”.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the processes of sex crimes of the region of Joinville produced from 1916 to 1950. The vague notion of "honesty" guided the speeches of all those involved in such processes, because determined if the victims of the crimes of rape and deflowering/seduction were or not worthy of protection from justice. The constant attempt undertaken by lawyers of framing a girl as "honest" or "dishonest" led to a thorough examination of your life: their conditions of work and leisure, if they were alone in the streets of the city, the influence of family members in your conduct and (in the case of deflowering/seduction) the nature of your relationship with the accused. With respect to the conduct of the accused of sex crimes, for your time, rare are the occasions when an investigative attitude was actually undertaken, which demonstrates that such processes were more of a trial of the conduct of the victims than of their own accused. In addition to finding this vivid gender discrimination practiced by the lawyers, the multi-ethnic character of Joinville (city that received a great influx of European immigrants in the mid-19th century) also influenced important manner the processes of sexual crimes in that region, because the relationships between the descendants of European settlers and Brazilians (Portuguese surname) were often conflicting and marked by a clear ethnic segregation. The notion of childhood present in cases of sex crimes will be the subject of analysis in the final part of this dissertation, as well as the legal discourse prepared by lawyer Marinho de Souza Lobo, responsible for defending many of the accused of sex crimes in the period studied. For the realization of such analytical proposal, we made the crossing of our historical sources (crime processes) with bibliography ever produced on the subject in question, studies that provide us with useful methodological tools for reading of the sources, and documents produced at the time of study, such as newspapers, texts of renowned jurists and legislation in effect. For end, in such processes there is clear the existence of a “gender justice”, both in the application of the laws, and in the receiving of the denunciations in the police station. Before any thing, there was a moral judgement of the conduct of the women, who should prove in his personality the existence of the extremely subjective concept of “honesty“.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Fotografia da menor Ana Adeia Jacomini apresentada pela testemunha de defesa Maximiliano Baggio, ano de 1932...63

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LISTA DE ANEXOS

ANEXO A – Guilherme Luiz Abry, Juiz de Direito da Comarca de

Joinville entre os anos de

1933-1937...206 ANEXO B – Marinho Parísio de Souza Lobo, bacharel que exerceu a advocacia na Comarca de Joinville entre as décadas de 1930 e 1950...207 ANEXO C – Capa de um processo crime de estupro do ano de 1935...208 ANEXO D – Certidão de casamento apresentada em processo crime de

defloramento do ano de

1936...209 ANEXO E – Auto de exame de defloramento anexado a processo crime

de sedução do ano de

1942...210 ANEXO F – Atestado de pobreza apresentado em processo crime de

estupro do ano de

1949...211 ANEXO G – Denúncia de crime de defloramento apresentada pelo Promotor Público ao Juiz de Direito da Comarca de Joinville no ano de 1941...212 ANEXO H – Denúncia de defloramento prestada pela própria vítima na

Delegacia de Polícia de Joinville, ano de

1941...213 ANEXO I – Auto de qualificação (interrogatório) do acusado de estupro

Reinoldo Rau, ano de

1931...214 ANEXO J – Certidão de Nascimento apresentada pelo acusado de

estupro Alberto Grubba, ano de

1931...215 ANEXOS K E L – Cartas trocadas por Lauro Rosa e Júlia Dutra anexadas a processo crime de defloramento, ano de 1932...216 ANEXO M – Edifício do Fórum da Comarca de Joinville durante a

primeira metade do século

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LISTA DE APÊNDICES

APÊNDICE A – Distribuição temporal dos processos por década...205

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – Casos julgados pelos juízes de direito e respectivos veredictos...55 TABELA 2 – Idade das vítimas de crimes sexuais (1916-1950)...60

TABELA 3 – Alusão à violência e

veredictos...96 TABELA 4 – Crime de estupro: decisões emitidas pelo juiz de direito (1913-1950)...104 TABELA 5 – Crime de estupro: veredictos emitidos pelo tribunal do júri (1913-1916) e por audiência de julgamento (1917-1950)...104

TABELA 6 – Idade dos acusados de crimes

sexuais...114 TABELA 7 – Estado civil dos acusados e respectivos veredictos...115 TABELA 8 – Distribuição das profissões de acusados(as) e vítimas e veredictos...133 TABELA 9 – Associação entre a origem dos sobrenomes de vítimas e acusados...140

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 23

1. O DEBATE EM TORNO DA HONESTIDADE NOS CRIMES DE DEFLORAMENTO E ESTUPRO: UMA QUESTÃO DE GÊNERO ... 49

1.1 HONESTIDADE, CONDIÇÕES DE TRABALHO E DIVERTIMENTO DE MULHERES POBRES ... 56

1.2 A INFLUÊNCIA DA FAMÍLIA E DO AMBIENTE NA ANÁLISE DE CONDUTA DAS VÍTIMAS ... 72

1.3 NAMORO E CASAMENTO ... 82

1.4 DEFLORAMENTO/SEDUÇÃO OU ESTUPRO? ... 95

2. MASCULINIDADES, ETNICIDADES E CONDIÇÃO SOCIAL ... 109

2.1 PADRÕES DE COMPORTAMENTO MASCULINO EVIDENCIADOS NOS PROCESSOS DE DEFLORAMENTO/SEDUÇÃO E ESTUPRO ... 111

2.2 CONDIÇÕES SOCIAIS DÍSPARES E SITUAÇÃO DAS “EMPREGADAS DOMÉSTICAS” EM JOINVILLE... 131

2.3 O CARÁTER MULTIÉTNICO DE JOINVILLE NOS AUTOS DE CRIMES SEXUAIS ... 138

2.4 MARINHO DE SOUZA LOBO: ARGUMENTOS DE UM ADVOGADO DE DEFESA NOS CASOS DE CRIMES SEXUAIS DA COMARCA DE JOINVILLE ... 146

2.5 CRIMES SEXUAIS E INFÂNCIA ... 168

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 187

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 193

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INTRODUÇÃO

[Depoimento do acusado:] Que realmente namorou a vítima, mas que ela não era mais virgem na sua primeira relação sexual. Que não tem nada a declarar contra a conduta da vítima, que esta teve um namorado que agora residia em São Paulo. Que nunca prometeu casamento à vítima, mas que tem esta intenção, mas não condições financeiras para tal, visto receber pouco como militar.

[Depoimento da vítima:] Que antes da primeira relação sexual, o acusado prometeu casamento. Que Antonio constantemente ia com ela declarante a bailes, missa e cinema, sem companhia de espécie alguma, por que seu pai depositava confiança nele Antônio, por que frequentava sua casa desde muito tempo (Processo por crime de defloramento. Antônio Américo. 1934. Fórum da Comarca de Joinville (FCJ). Joinville/SC)1.

As citações acima, retiradas de um processo crime de defloramento do ano de 1934, contêm muitas das características presentes em grande parcela dos autos analisados nesta pesquisa: a existência de um namoro entre acusado e vítima (este poderia ser longo ou mesmo de alguns dias de duração), a grande atenção dedicada por todos os sujeitos envolvidos no processo à conduta da vítima (pouco se comentando as atitudes do acusado), a importância da existência de uma promessa formal de casamento para o resultado final do processo, a negação do ato de contrair núpcias por parte do acusado devido ao suposto fato de que a vítima já não era mais virgem no momento da primeira relação sexual entre os litigantes, a análise da forma com que se deu este namoro (os passeios, se em casa ou na rua, os locais frequentados, se havia alguém acompanhando ou vigiando a ambos), o papel desempenhado pelos pais da vítima no caso.

1 Ver anexo D. Para a transcrição de todos os processos crime analisados, foi utilizada a ortografia em vigor no ano de 2018.

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A presente pesquisa tem como objetivo analisar o discurso normatizante (sobretudo de viés jurídico)2 que visava o controle das práticas sexuais da população joinvilense, bem como a maneira como estes agentes viam (se é que viam), se apropriavam ou reagiam a tal discurso de cunho normativo. No que diz respeito à escolha da cidade de Joinville para a realização da pesquisa, esta se deve ao fato de não existir até o momento pesquisa que aborde e problematize os autos de crimes sexuais3 nesta cidade, sendo que foram localizados, digitalizados e analisados 45 processos crimes de estupro e defloramento/sedução.

Quanto ao recorte temporal proposto, acreditamos que uma análise que perpasse tanto a República Velha quanto o governo do presidente Getúlio Vargas – ocorrendo também neste período a mudança de nosso Código Penal, em 1940 – nos proporcione a possibilidade de perscrutar a ocorrência ou ausência de mudanças nas perspectivas dos juristas no que diz respeito aos crimes sexuais e seus desdobramentos na

2 FERRAZ JR. (1997, p. 116) nos expõe a visão dos próprios juristas a respeito desta normatividade do discurso jurídico ao dizer que “todo direito estabelece uma ordem e a coloca fora de discussão. A lei, em princípio, impõe e exige obediência: não se pode aceitar parcialmente uma lei, desejar cumpri-la apenas em parte. Uma norma que entra em vigor constitui, num primeiro momento, um discurso monológico”. O discurso, por sua vez, é “uma representação do imaginário no qual seu autor está inserido”. Porém, apesar de todo discurso possuir seu enunciador (que pode ser um indivíduo ou vários), sua autoria não é exclusiva de seu autor, visto que “um discurso não é fruto de opiniões e visões particulares, mas uma partícula do imaginário dominante que abarca cada indivíduo e [...] pode ser usado para reformular as relações sociais” (SILVA, K., 2006, p. 101).

3 Ressalta-se que na época de nossa análise o termo “crimes sexuais” não era utilizado pelos juristas brasileiros. Tal escolha se deve ao fato de tais delitos estarem relacionados ao exercício da sexualidade de acusados e vítimas e porque a maioria dos pesquisadores que estudam os mesmos delitos também os qualifica como “crimes sexuais”. Segundo o Código Penal de 1890, os crimes de defloramento e estupro estavam inclusos na seção “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. Por sua vez, o Código Penal de 1940 enquadra os delitos de sedução e estupro sob o título “Dos crimes contra os costumes”. Atualmente, o título “Dos crimes contra a dignidade sexual” abrange delitos como o estupro, o assédio sexual e a corrupção de menores. Por sua vez, quando nos referimos às queixosas de tais crimes como “vítimas” e aos denunciados como “acusados”, utilizamos a terminologia utilizada pelos escrivães responsáveis por tais casos.

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cidade de Joinville4. Já o ano de 1916 marca a sanção do primeiro Código Civil brasileiro, sendo este documento um dos pilares da legislação que procurou tornar assimétrica a relação entre homens e mulheres, ao considerar estas como “juridicamente incapazes”. Andréa Borelli fornece-nos uma noção da importância deste código para a tentativa de delimitar os papéis de gênero no Brasil:

O Código Civil da República, que começou a ser discutido em 1890 e só seria sancionado em 1916,

apresentava a fórmula consagrada

internacionalmente de que todos os indivíduos eram livres para desenvolver suas potencialidades dentro dos limites traçados pela lei, que deveria "dirigir e harmonizar as atividades humanas". Em aparente contradição com a ideia desenvolvida nesta tese, o artigo 6º considerava as mulheres casadas incapazes de certos atos na esfera civil.

Considerando-se a liberdade como

4 Joinville fica localizada na região nordeste do estado brasileiro de Santa Catarina. É atualmente a maior cidade deste estado, sendo 1851 considerado o ano oficial de sua fundação. A cidade destaca-se desde meados do século XX como o principal centro industrial catarinense, com ênfase no setor metalúrgico. Sua fundação, de acordo com Janine Gomes da Silva, está ligada aos “estímulos do governo imperial para preencher vazios populacionais e suprir mão-de-obra no país”, como forma de substituição do trabalho escravo, em vias de extinção. Ainda segundo esta historiadora: “Os discursos sobre Joinville falam de “harmonia”, “progresso”, “ordem” e “trabalho”, primando pelo trabalho dos imigrantes alemães. Contudo, para Joinville também vieram dinamarqueses,

noruegueses, suíços, russos e, posteriormente, também italianos.

Costumeiramente, os escritos sobre a colonização de Joinville referem-se apenas aos imigrantes alemães. Estes, por constituírem um grupo mais numeroso, desde o início da colonização fazem-se mais presentes em todas as atividades e, aos poucos, vão “suprimindo” as diferenças com os outros grupos germânicos, (reproduzindo) uma ideologia calcada na etnicidade. Sem falar ainda dos brasileiros, tratados costumeiramente pelos “de origem” como “lusos” ou “caboclos”” (SILVA, J., 2004. pp.23-26). Este elemento “luso”, apesar da pouca visibilidade que lhe é conferida no mito fundador de Joinville, teve importante papel no rápido desenvolvimento industrial pelo qual a cidade passou no início do século XX. Em trabalho posterior (SILVA, J., 2008), Silva ainda destaca que a cidade era dividida entre “alemães” e “lusos” tanto nas relações de sociabilidade, como também geograficamente, sendo que os primeiros ocupavam principalmente a região norte, enquanto os segundos habitavam a porção territorial sul da municipalidade.

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autodeterminação, quando a mulher escolhia o casamento, "escolhia" livremente a situação de sujeição [...] ao escolher o matrimônio, a mulher “aceitava” as condições estabelecidas pela lei e pelo costume, que apontavam para um padrão ideal de casamento. Este padrão determinava comportamentos considerados pelo grupo como conectados às características essenciais de homens e mulheres, conforme a declaração de Afrânio Peixoto: "Iguais, mas diferentes. Cada um como a natureza o fez" (BORELLI, 2006, p. 2).

Ressalta-se que com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, teve início uma campanha de “moralização” da família e de seus valores, que estariam vinculados à própria honra nacional. Quanto ao papel da mulher, esta era vista como a responsável pela educação dos filhos e pela manutenção da estabilidade familiar. Procurou-se assim promover uma moral cristã, que serviria como freio aos impulsos sexuais desenfreados e manteria a mulher em sua respectiva posição de submissão e dependência (MARCH, 2010, p. 61). Em suma, a partir da década de 1930, modelos de comportamento distintos foram atribuídos a homens e mulheres, reforçando o ideário positivista instaurado no início da república.

Portanto, em virtude da importância do Código Civil para a busca do ordenamento e hierarquização das relações de gênero no Brasil, tomamos o ano de 1916 como ponto de partida de nossa análise, assim como abarcamos toda a década de 1940 com o objetivo de perscrutar a forma como os crimes sexuais foram tratados em Joinville com o advento do Código Penal de 1940. Durante estas quatro décadas, Joinville passou por um acelerado período de crescimento econômico, com o surgimento e o aumento do número de fábricas e a remodelação de seu espaço urbano. Isso se nota pelo crescimento do número de operárias que se diziam vítimas de estupro ou defloramento nas décadas de 30 e 40, bem como de testemunhas arroladas empregadas no setor fabril local.

De partida, uma definição dos termos jurídicos “estupro” e “defloramento” faz-se de grande importância para os fins de nossa análise. Na visão de um dos mais conceituados juristas da época no que dizia respeito a crimes sexuais, Viveiros de Castro (1864-1927), defloramento “é a cópula completa ou incompleta com mulher virgem, de menor idade, tendo, na grande maioria dos casos, como consequência o rompimento da membrana hímen, obtido o consentimento da mulher

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por meio de sedução, fraude ou engano” (CASTRO, 1897). Bóris Fausto descreve com clareza o pensamento da época no que diz respeito à importância concedida à integridade do hímen para a análise desta tipologia criminal:

O crime de defloramento define a preocupação central da sociedade com a honra materializada em uma peça anatômica – o hímen – e com a proteção da vagina. O hímen representa sob este aspecto um acidente biológico que veio facilitar o controle da sexualidade feminina através da distinção entre mulheres puras e impuras. Símbolo material de uma abstração, em torno dele estrutura-se uma rede cruzada de imagens sociais. A mulher interioriza o dever de preservar o “selo”, a flor da virgindade, último reduto dos jogos sexuais mais ou menos admitidos; o homem pressente o risco representado pela ruptura do selo fora do leito conjugal ou, inversamente, teme expor-se ao ridículo, casando-se com uma “mulher furada”, como se dizia na linguagem popular da época (FAUSTO, 1984, p. 181). Gleidiane Ferreira ainda destaca que o próprio significado do verbo deflorar traz indícios morais do que estava por trás desta tipologia criminal: de acordo com um antigo dicionário de língua portuguesa, significava ““1. Tirar a flor ou flores a; desflorar. 2. Tirar a virgindade de. 3. Fazer perder o viço, a beleza.” Portanto, na visão da época, deflorar envolvia o ato de macular algo de grande delicadeza, ou seja, degradar uma “flor”, retirar a sua inocência” (FERREIRA, 2014, p. 56).

Houve ainda na época da redação do Código Penal de 1890 grande debate em torno do termo a ser utilizado para nomear tal tipologia criminal, sendo que o então senador Rui Barbosa “preferiu ‘defloramento’ ao termo ‘desvirginamento’, usado pelo jurista Clóvis Beviláqua em seu projeto para o Código Civil. Para Barbosa, a palavra ‘defloramento’ era mais elegante e tradicional” (CAULFIELD, 2000, p. 76).

Portanto, com o advento da República, a relação sexual com mulher solteira entre 16 e 21 anos, se esta fosse considerada honesta, era tida como crime, desde que tal relação – sempre consentida – fosse obtida por meio de “sedução, fraude ou engano”. Contudo, e este foi o ponto de discórdia na grande maioria dos processos analisados, para os

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juízes de direito joinvilenses, para ser considerada “honesta”5, a jovem tinha de provar que era virgem até o momento da primeira relação sexual com o acusado. Geralmente, a “sedução” era evocada pela queixosa e seus representantes para justificar a relação sexual, sendo que a promessa de casamento, como veremos adiante, era a principal modalidade de sedução constante nestes processos. Joana Maria Pedro aponta ainda a existência de uma “construção hegemônica” que permeava toda a sociedade da capital catarinense da passagem do século XIX ao XX e que apregoava que as mulheres, “diversamente dos homens, possuía[m] a honra no uso de seu sexo. Neste processo, ficava bastante clara a dupla moral que condenava as mulheres e enaltecia os homens, na relação com seus sexos” (PEDRO, 1998, p.145).

Outra questão relevante (válida também para o Código Penal de 1940) diz respeito à prestação da queixa no crime de defloramento. Esta não poderia ser realizada pela vítima, em razão da sua menoridade, que era de 21 anos (18 anos, no CP de 1940):

A queixa [...] é feita por seu responsável legal, habitualmente familiares próximos, tais como: pai, mãe, irmãos ou tutores; ou pelo namorado, nos casos de rapto ou fuga com o objetivo de oficializar o matrimônio.

5 O debate em torno da “honestidade” destas jovens era fundamental para o resultado da causa em julgamento. Mas como esta era definida pelos juristas da época? Enquanto que para o homem a honestidade estava relacionada ao fato de ele ser ou não bom trabalhador, cumpridor de sua palavra e provedor de seu lar, para a mulher, tudo girava em torno de sua conduta sexual, independendo de outras “qualidades” que porventura ela viesse a possuir. Segundo Caufield, existiam três planos de honestidade feminina: social, moral e fisiológico (CAULFIELD, 2000, p. 78). Todos estes três fatores estariam interligados, sendo que a mácula em qualquer um destes ameaçava os outros dois. Mas o fator fisiológico – a manutenção da integridade do hímen – era o que deveria ser mais tenazmente resguardado, visto que a perda deste antes do ato sexual julgado significava, quase que sempre, a pecha de “desonesta” por parte dos operadores do direito joinvilenses. O artigo do código penal de 1890 referente a este crime dizia o seguinte: “Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando sedução, engano ou fraude: Pena – de prisão celular por um a quatro anos”. Já no Código Penal de 1940 tratava-se de crime de sedução: “Art. 217. Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança: Pena – reclusão, de dois a quatro anos”.

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A decisão das mulheres de procurarem a delegacia de polícia, nos casos de defloramento, estava

sempre condicionada à aprovação dos

responsáveis legais da pretensa vítima e

reafirmava, dentre outras coisas, que a

sexualidade feminina estava sob controle do poder familiar, em especial do patriarcal. A família realizava a primeira avaliação sobre a necessidade de recorrer aos mecanismos de justiça e sentenciava, ainda que indiretamente, a inocência ou culpa de jovens mulheres (SARTORI, 2011, p. 59).

Já no que diz respeito ao crime de estupro, devemos ressaltar primeiramente que o Código Penal de 1890 definia explicitamente o gênero de vítimas e réus. Estupro, segundo este documento jurídico, seria o ato “pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher”. Sendo assim, como salienta Ferreira, “um ato de violência cometido por um homem contra outro, não poderia ser classificado como estupro, mesmo que se tratasse de um ato que buscasse uma atividade penetrativa e fosse realizado com uso de violência” (FERREIRA, 2014, p. 60).

Os artigos que definiam o crime de estupro no Código Penal de 1890 eram os seguintes:

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena – de prisão celular por um a seis anos.

§ 1º Se a estuprada for mulher pública ou prostituta: Pena – de prisão celular por seis meses a dois anos.

§ 2º Se o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será aumentada da quarta parte.

Art. 269. Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não.

Por violência entende-se não só o emprego da força física, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psíquicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hipnotismo, o clorofórmio, o éter, e em geral os anestésicos e narcóticos (DECRETO N.

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847 DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Código

Penal dos Estados Unidos do Brasil.)6.

Teoricamente, diferente do crime de defloramento, o estupro tenderia a contemplar uma diversidade maior de mulheres, como as casadas, as não virgens, maiores de idade e viúvas, visto que a honestidade não era um requisito exigido para sua qualificação no inciso 2 (apesar de a pena para o estupro de “mulheres públicas” ser menor). Mas nos processos que analisamos, nenhuma dessas categorias femininas foi encontrada: mesmo os casos de estupro envolviam mulheres menores de idade e solteiras que procuravam se mostrar “honestas”. Por fim, o relativismo em torno do termo “abusar com violência” dava margem a interpretações distintas, que variavam de comarca para comarca, assim como de acordo com as pessoas envolvidas nos casos, e muitas vezes, menos referentes ao ato criminoso em si.

Em pesquisa que busca traçar um histórico do crime de estupro na França moderna, Georges Vigarello defende que a culpabilização da vítima nos julgamentos desta tipologia criminal é muito antiga, ao afirmar que os juízes do Ancien Régime francês procuravam indícios de ausência de um comportamento responsável na mulher, “pondo uma dúvida sobre suas decisões pessoais e privadas” (VIGARELLO, 1998, p.43). Neste ponto, o autor afirma que a história do estupro se encontra com a história das representações de feminilidade, visto que as diversas maneiras de recusar à mulher o status de sujeito contribuíam para a desconsideração da violência sexual.

Durante muito tempo, as legislações baseadas no direito romano e seus operadores tenderam a quase que sempre duvidar das acusações de estupro, mesmo com a realização de exames médicos (pouco conclusivos). A questão do consentimento era muito debatida nos autos processuais, sendo que por muito tempo acreditou-se que era necessário que os gritos da vítima fossem ouvidos em áreas urbanas e sua resistência fosse constante, pois qualquer arrefecimento do seu esforço físico seria encarado como anuência ao ato sexual. Para regiões não urbanas, onde não poderiam existir testemunhas, apenas a palavra das moças honestas “de vida e de costumes” era aceita. Segundo Vigarello, a tradição de investigação sobre o proceder da vítima em casos de

6 No Código Penal de 1940 o crime de estupro era definido da seguinte forma:

Art. 213. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de três a oito anos.

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estupro é antiquíssima, sendo completamente desconsideradas circunstâncias como “o medo que paralisa a vítima, aquelas em que a situação impõe o silêncio, aquelas em que a defesa física parece mais perigosa que eficaz, todos os casos em que a iminência do risco dissuade a réplica” (VIGARELLO, 1998, p.45).

E é exatamente tal ignorância jurídica (proposital ou não) que pode ser notada nos processos crime da Comarca de Joinville, quando vemos advogados e juízes de direito declarando improcedentes acusações de estupro pelo fato de ninguém ter ouvido os gritos de resistência da vítima, por não serem encontradas equimoses ou outros ferimentos no corpo da mesma após a realização da perícia médica ou mesmo porque a conduta da queixosa era considerada irregular a ponto de desabonar sua palavra. Vigarello ainda ressalta a crença jurídica de que um homem sozinho era incapaz de estuprar uma mulher caso esta lhe oferecesse tenaz resistência física, pois “a mulher sempre dispõe de meios suficientes” para a salvaguarda de sua honra (VIGARELLO, 1998, p.47). O historiador francês cita ainda o seguinte caso do século XVIII que comprova a existência deste pensamento jurídico que defende a impossibilidade de um homem sozinho conseguir manter relação sexual com uma mulher contra a vontade desta:

Um juiz obriga um acusado de estupro a entregar um saco de moedas à sua acusadora; mas logo tomado pela dúvida e desejando fazer um teste, o mesmo juiz autoriza o homem a retomar a bolsa a qualquer preço; a mulher resiste, se revolta, devolve os golpes que recebe, se debate, aperta o dinheiro contra o peito e o defende tão bem que consegue conservá-lo; daí a certeza da “prova”: a mulher “teria podido defender ainda melhor seu corpo do que seu dinheiro, se quisesse”; a queixa

se transforma em mentira. O estupro

“consumado” seria um estupro consentido; “a honestidade que sucumbe é quase sempre uma

meia-honestidade” (VIGARELLO, 1998, p.48).

É surpreendente como tal pensamento de que a mulher seria totalmente capaz de se defender de uma agressão sexual masculina “se assim o quisesse” ainda pode ser encontrado nos processos crime das primeiras décadas do século XX, como os casos de crimes sexuais da Comarca de Joinville.

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A análise feita por Vigarello da impunidade social nos casos de estupro é notável, pois defende que “a distância social modula a escala de gravidade dos crimes em uma sociedade de classes, distribuindo o peso das violências segundo a condição das vítimas” (VIGARELLO, 1998, p.43). Dessa forma, uma alegação de estupro perpetrado por um patrão contra sua empregada tendia a ser minimizada ou mesmo desconsiderada pelos juristas, ao passo que um indivíduo de poucas posses corria maior risco de ser condenado pelo mesmo crime sexual. Notamos também tal disparidade de julgamento baseada na condição social dos envolvidos na Comarca de Joinville, conforme iremos analisar posteriormente. Tal situação nos leva a conclusão de que os casos destas mulheres que procuravam por justiça no aparato jurídico eram, sobretudo, componentes do que podemos chamar de uma “questão de classe”. A maioria das vítimas nesses processos era de trabalhadoras, que passavam a maior parte dos seus dias fora da proteção do espaço privado. Devido a esta sua situação profissional, transitavam pelo espaço público, que não era o lugar das mulheres ditas honestas, estando muitas das suas queixas vinculadas às relações de subordinação pelo trabalho advindas da necessidade de ganhar a vida.

Por fim, ressaltamos que a pena para o defloramento era muito mais branda se comparada à do crime de estupro, assim como no primeiro havia a relação sexual consentida, ao passo que no segundo se constatava a violência. Para se ter uma ideia da gravidade atribuída aos delitos sexuais em termos de pena, na vigência do Código Penal de 1890 o acusado de estupro poderia ser condenado de um a seis anos de prisão celular7, enquanto que o roubo – um crime contra a propriedade – previa pena de dois a oito anos ao seu infrator. Isto significava dizer “que se apropriar do corpo de alguém para fins sexuais, por meio de violência física ou psicológica, era algo menos grave do que roubar qualquer mercadoria” (SARTORI, 2011, p. 50).

Durante todo o século XX, apenas a mulher poderia ser considerada vítima de crime de estupro – isso só seria mudado com a Lei 12015 de 07 de agosto de 2009, pela qual ficou definido que tanto homens como mulheres poderiam ser considerados(as) vítimas, ou sujeitos passivos. A durabilidade de tal visão jurídica a respeito do crime de estupro evidencia o fato de a sexualidade feminina ter sido, por muito tempo, considerada completamente distinta da masculina. Fatores

7 Esta pena era aplicável apenas se a queixosa fosse considerada “honesta”. Quando a vítima de estupro era “prostituta ou mulher pública”, a pena prevista era apenas de seis meses a dois anos de prisão celular.

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como a possibilidade de gravidez, a maior condenação ao adultério praticado pela esposa e a restrição do prazer feminino ao âmbito do casamento foram utilizados pelos legisladores como pretextos para uma suposta proteção jurídica de sua sexualidade. A culpabilização e estigmatização8 daquelas que fugiam do padrão sexual estabelecido era consequência desta tentativa de normatização da conduta feminina. Contudo, é oportuno lembrarmos que, apesar de sua pretensão totalizante, as legislações nem sempre delimitam as condutas dos indivíduos, pois a sociedade, periodicamente, também provoca mudanças nas leis. A resistência dos sujeitos a estas normas também deve ser levada em conta, sendo que a sua ocorrência furtiva pôde ser percebida por meio de uma leitura criteriosa dos processos que compõem nosso corpo documental.

A historiografia nacional que analisa crimes sexuais na primeira metade do século XX é considerável, o que facilitou nossa compreensão da forma como tais processos ocorriam, de sua lógica interna, bem como dos diversos argumentos utilizados pelos juristas nestes casos. Destaco os principais trabalhos – nacionais e estrangeiros – que de alguma forma influenciaram a escrita do presente trabalho: Sueann Caufield (2000), Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de janeiro (1918-1940); Martha de Abreu Esteves (1989), Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque; Joana Maria Pedro (1994), Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe; Gleidiane Ferreira (2014), Disputas discursivas em torno da violência: crimes sexuais na Fortaleza de inícios do século XX; Georges Vigarello (1998) História do estupro: Violência sexual nos séculos XVI-XX.

A obra de Caufield sobre crimes sexuais no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, fornece-nos o panorama geral no qual coube aos juristas a defesa da honra sexual como forma de civilizar a população da recém proclamada república. Durante os cinquenta anos de vigência do Código Penal de 1890, existiu grande e constante preocupação das

8 Goffman diferencia três tipos de estigma, ao procurar definir o conceito deste: as abominações no corpo; as culpas de caráter e os estigmas tribais, que “podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família” (GOFFMAN, 1988, p. 7). Segundo Estacheski, “o segundo tipo, a culpa de caráter, é que marcava as mulheres não virgens, mas ainda solteiras [...]. A sociedade definia, e ainda define, um comportamento padrão considerado aceitável e depreciava, e ainda deprecia, as pessoas que não se enquadram” (ESTACHESKI, 2013, p. 17).

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autoridades jurídicas com a honra sexual e a virgindade feminina, sendo a família encarada como “base da nação”.

Joana Maria Pedro, ao analisar os jornais de Desterro na passagem do século XIX ao XX, conclui que toda a opinião pública preocupava-se com a honra das esposas, pois esta estaria vinculada “à honra do marido e de toda a família”. Portanto, para as famílias da elite econômica de Desterro, era fundamental que o comportamento feminino não desse margem a qualquer espécie de comentário,

[...] que as mulheres não se tornassem “faladas”, pois, se fossem alvo de “murmurações”, a “honra” das famílias estaria irremediavelmente perdida, assim como estariam em perigo as aspirações de ascensão social e a permanência nos grupos de comando dessa sociedade (PEDRO, 1998, p.67). Segundo os padrões republicanos de ideal feminino, inspirados na doutrina positivista, a mulher estava destinada a exercer o papel de mãe e esposa, sendo que a política, a “cidadania e a igualdade” eram privilégio exclusivo dos homens. Em contrapartida, “as mulheres deveriam permanecer em “seus lugares”, na esfera do privado” (PEDRO, 1998, p.69). Os jornais, por sua vez, se esforçavam em evidenciar tal “natureza doméstica” da mulher, revelando em suas páginas um temor velado a qualquer indício de ideais de emancipação feminina. As mulheres eram consideradas as principais referências da honra das famílias, e “seu comportamento precisava ser, antes de tudo, observado e delimitado” (PEDRO, 1998, p.61).

No entanto, algo que indignava a elite era a presença das mulheres das camadas populares nas ruas das cidades, exercendo as mais variadas atividades laborais em busca da sua sobrevivência e de sua família. Joana Pedro diz que os representantes do poder público de Desterro empreenderam tentativas de impedir a livre circulação destas mulheres nas áreas centrais, pois isto maculava a imagem civilizada e higienizada da cidade que pretendiam criar.

Tal preconceito se refletia nos atos da Justiça, que demonstrava descaso para com a violência feminina e julgava as mulheres pobres “com base em valores que não faziam parte de suas visões de mundo” (PEDRO, 1998, p. 135). Tais mulheres pobres eram reprimidas duplamente: por serem pobres, e por serem mulheres que não correspondiam às imagens que, embora não tivessem sido feitas por elas, eram delas cobradas.

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A honra era um dos temas principais do Código Penal de 1890, e a defesa da honra da família ganhou grande destaque com o advento da República. Por sua vez, no Brasil era concedida muita ênfase ao elemento material do crime: exigia-se o defloramento (rompimento do hímen), ao passo que em outras nações, como a maioria das europeias, não se exigia a virgindade prévia da vítima. Como já mencionado, o padrão de honestidade masculino era completamente diverso do feminino:

Um homem honesto era aquele considerado um bom trabalhador, respeitável e leal; ele não desonraria uma mulher ou voltaria atrás de sua palavra. Em contraste, a honestidade feminina referia-se à virtude moral no sentido sexual, e esse era um tópico de grande preocupação teórica e da jurisprudência (CAULFIELD, 2000, p. 77). Isso nos leva a um importante desdobramento de nossa pesquisa: a análise de masculinidades. Como já mencionado anteriormente, a conduta masculina raramente era debatida nos processos e quando este tema entrava na pauta das discussões, dizia respeito quase sempre à atitude dos acusados enquanto trabalhadores e provedores do sustento de seu lar. Mas tal situação de aridez do debate sobre a conduta masculina não nos impede de irmos mais a fundo em nossa tentativa de produzir uma narrativa que aborde a questão das masculinidades atuantes em Joinville na primeira metade do século XX e evidenciadas nos processos crime de defloramento e estupro desta Comarca.

Um ponto que baliza nossa análise diz respeito ao fato de as masculinidades não poderem ser estudadas, nem entendidas, por si só. Fernando Bagiotto Botton esclarece esta transversalidade de fatores que o historiador leva em conta em seus estudos sobre masculinidade(s):

Diversas outras “estruturas” e instituições sociais devem ser levadas em conta nos estudos

masculinos, como: etnia, classe social,

nacionalidade, geração, temporalidade,

territorialidade, dentre diversos outros fatores altamente relevantes que não devem ser suprimidos numa pesquisa histórica (BOTTON, 2007, p. 117).

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Como veremos ao longo deste trabalho, no caso de Joinville, tais fatores são relevantes para qualquer análise primária dos processos crime em questão, em virtude da pluralidade e diversidade de agentes neles envolvidos.

Realizar um estudo sobre masculinidades não significa adotar uma perspectiva que dicotomiza as diferenças entre homens e mulheres. De maneira alguma pensamos em duas esferas distintas, o que significaria que quando estudamos comportamentos masculinos ou masculinidades procederíamos “como se as mulheres não fossem uma parte relevante da análise” (CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2013, p. 251). Pelo contrário, faz-se necessária e salutar uma abordagem relacional de gênero, na qual concedemos igual relevância aos comportamentos masculino e feminino, sobretudo em sua constante interdependência.

Reconhecer esta relação dimensional do gênero, de acordo com Benedito Medardo, nos possibilita “desconstruir os argumentos culpabilizantes sobre os homens” que durante muito tempo fizeram parte do pensamento de determinados segmentos do movimento feminista. Ao invés de procurarmos “culpados”, seria muito mais produtivo se procurássemos compreender como as relações de gênero se institucionalizam, como determinado padrão de masculinidade se sobrepõe, ou como dado comportamento feminino idealizado é construído socialmente, a ponto de permear o aparato jurídico de uma nação (MEDRADO e LYRA, 2008, p. 820). Tal postura não implica em uma negação das injustiças as mais variadas sofridas pelas mulheres ao longo da história (e que são nítidas nos processos de crimes sexuais analisados), mas nos leva a reconhecer que “muitos homens em condições sociais (a)diversas também enfrentam, cotidianamente, a impossibilidade/obrigação de responder ao modelo hegemônico de masculinidade” (MEDRADO e LYRA, 2008, p. 826).

Por fim, cabe lembrar que o padrão de masculinidade hegemônico é sustentado tanto pelo “vasto segmento dos homens que se sentem gratificados, usufrui seus benefícios e, dependendo da situação e da relação estabelecida, pode acionar diferentes atribuições de masculinidade” (MATOS, 2001, p. 50), quanto pelas mulheres que “concedem a tal hegemonia”. Trata-se, portanto, de processo complexo, que envolve diversos agentes em posições conflitantes ou não.

A especificidade da fonte utilizada nesta pesquisa é outro fator importante a ser ressaltado. Caufield alerta que é preciso tomar precauções no ato da leitura de processos criminais como fonte de informação sobre valores culturais (o que nos propomos a fazer ao longo

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do presente trabalho), primeiramente devido à clara ocorrência de uma sempre presente “mediação oficial” (CAULFIELD, 2000, p.38). Esta pode ser constatada pela linguagem técnica que certamente não foi originalmente proferida pelos depoentes, o que indica uma adaptação de vocabulário realizada pelos escrivães. A maioria de tais depoentes era analfabeta ou dotada de baixo grau de instrução e letramento, nos fazendo crer que palavras como “membro viril”, “hemorragia”, “partes genitais”, “cópula carnal”, dentre outras, muito provavelmente não faziam parte de seu vocabulário. Portanto, conclui-se que certas nuanças dos testemunhos originais foram obscurecidas em nome de um discurso jurídico tecnicamente padronizado. As perguntas e sugestões feitas pelos interrogadores são também quase que totalmente omitidas dos autos, o que nos impede de perceber os prováveis direcionamentos propostos e aplicados às falas dos depoentes. Devemos nos lembrar ainda que os depoentes “encarnavam personagens” diante da Justiça com o objetivo de convencer os oficiais de polícia e juízes de direito, ao passo que suas atitudes e visões de mundo muitas vezes não correspondiam à sua fala nos autos.

No entanto, apesar destas mediações oficiais, podemos seguir um método de análise que nos possibilita ver além da linguagem padronizada e técnica dos processos crime. Caufield indica como tal esforço analítico pode ser empreendido com sucesso:

Entretanto, é possível encontrar, nas entrelinhas dos depoimentos, evidências de como vítimas, réus e testemunhas descrevem não somente os acontecimentos que os levaram à Justiça, mas também diversos relacionamentos sociais e condutas que eles consideravam certos e errados. Mesmo quando mentem ou inventam posturas morais, fazem-no de uma forma que acreditam ser verossímil e, portanto, ajudam a traçar os limites da moralidade comum (CAULFIELD, 2000, p.39).

Nos processos, papéis sociais são cristalizados e identidades são demarcadas, determinando posições específicas para homens e mulheres. Como defende March, os processos devem ser encarados como “fragmentos”, nos fornecendo apenas rastros elaborados a partir de uma teatralização ou representação do passado. Portanto, esse tipo de fonte não deve nos levar a fazer considerações generalizantes, onde ‘o

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desvio se torna regra’ (MARCH, 2010, p.54). Por sua vez, os processos crime são fontes que dão voz a todos os segmentos sociais, pois as suas convocações de testemunhas nos permitem vislumbrar “as redes de sociabilidade e solidariedade, as rixas, enfim, os pequenos atos cotidianos das populações do passado” (BACELLAR, 2005, p. 37)9.

Cláudia Regina Nichnig destaca ainda que o olhar de um historiador perante a legislação deve procurar dar ‘historicidade à legislação e desconstruir as definições que apontam as leis como algo que é dado como pronto e acabado’. Ademais, o poder legislativo está longe de ser imparcial, pois as leis “representam os interesses daqueles que as impõem” (NICHNIG, 2013, p. 19). Tais leis visam a proibição, a regulamentação e o controle de práticas, muitas vezes sob o disfarce da proteção de direitos dos indivíduos. No entanto, apesar desta tentativa de imposição que se opera cotidianamente, ocorrem também “as resistências às legislações, pois os sujeitos muitas vezes não aceitam passivamente o que determinam as normas comportamentais da sociedade e das leis” (NICHNIG, 2013, p. 23).

Uma característica marcante dos processos criminais que é levada em conta no presente trabalho diz respeito à análise de comportamentos considerados desviantes, razão de ser deste tipo de documento jurídico, e como podemos por meio de tais “desvios” tomar conhecimento de uma norma social. Ora, “se um comportamento é considerado desviante, a partir dele, portanto, se pode compreender uma norma”. Realiza-se então uma “operação inversa”, partindo-se do “problema” para enfim se chegar ao entendimento do “normal” (MARCH, 2010, p.54). Além do mais, não encontramos apenas “excepcionalidades” nos processos criminais – nos depoimentos de testemunhas, vítima e acusados, notamos vários fragmentos do cotidiano destes sujeitos.

Dentre as muitas cautelas tomadas no trato destas fontes, grande importância deve-se dar ao cuidado de não se tomar aquilo que é dito

9 Neste mesmo texto, Bacellar tece considerações sobre a análise dos documentos a ser empreendida pelo historiador: “Documento algum é neutro, e sempre carrega consigo a opinião da pessoa e/ou do órgão que o escreveu. [...] um dos pontos cruciais do uso das fontes reside na necessidade imperiosa de se entender o texto no contexto de sua época, e isso diz respeito, também, ao significado das palavras e das expressões. [...] Acima de tudo, o historiador precisa entender as fontes em seus contextos, perceber que algumas imprecisões demonstram os interesses de quem as escreveu. [...] Antes de tudo, ser historiador exige que se desconfie das fontes, das intenções de quem a produziu, somente entendidas com o olhar crítico e a correta contextualização do documento que se tem em mãos” (BACELLAR, 2005, p. 63-64).

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pelos sujeitos à Justiça como uma “porta ou janela para o passado”, por meio da qual poderíamos realizar uma “reconstrução de toda a sociedade onde o processo foi instaurado” (MARCH, 2010, p. 55). O processo, para Peter Burke, é um momento de excepcionalidade na vida do sujeito, onde ele representa um papel (de vítima, acusado, testemunha de acusação ou defesa) que muitas vezes não condiz – parcial ou totalmente – com sua atitude cotidiana. É justamente esta faceta “teatralizada” dos processos criminais que não deve em momento algum ser esquecida, o que nos motiva a realizar uma leitura “nas entrelinhas” dos mesmos (BURKE, 1992). O processo de “construção da verdade” nos processos judiciais ocorre de maneira sutil, conforme assinalado por Mariza Corrêa:

[...] no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde quase toda a sua importância e o debate se dá entre os atores jurídicos, cada uma deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce o seu ponto de vista. Neste sentido, é o real que é processado, moído, até que se possa extrair dele um esquema elementar sobre o qual se construirá um modelo de culpa e um modelo de inocência (CORRÊA, 1983, p. 40).

Faz-se necessário, portanto, tomar conhecimento das características constitutivas do discurso jurídico que permeia os processos crime, sendo a Análise de Discurso importante ferramenta para tal fim. Tal método analítico deixa o enunciado em prol da enunciação e dos efeitos de sentido, passando a importar então a relação emissor/receptor contida nos mais variados tipos de discursos. Nenhum discurso está isento de ideologia, sendo que esta, muitas vezes, encontra-se “escondida” ou velada em suas entrelinhas, cabendo ao historiador perceber seus indícios – o que pode ser levado a termo por meio da Análise de Discurso. Os discursos jurídicos

e também seus enunciadores, estão imersos num ritual que lhes estabelece uma cena, linguagem,

códigos, referentes, efeitos de sentido e

enunciatários específicos. Portanto, ao efetuar a análise dos processos-crime de defloramento, deve-se ter em mente que os processos dessa natureza possuem uma cena onde foram criados.

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Essa cena diz respeito ao contexto vivenciado pelos sujeitos dos processos, dentro e fora do ambiente jurídico (MARCH, 2010, p.58).

Cada uma das falas contidas nos processos que analisamos foram produzidas com um fim específico pelo seu emissor, visando a um ou mais receptores. A linguagem jurídica utilizada por tais personagens possui códigos específicos, que são partilhados por promotores, advogados e juízes – o que, por sua vez, torna tal linguagem excludente tanto interna como externamente10.

Eni Orlandi diz ainda que a Análise de Discurso procura fazer compreender como “os objetos simbólicos produzem sentidos”, sendo que não haveria, portanto, uma “verdade oculta por trás do texto”, como poderíamos ser levados a pensar, mas sim “gestos de interpretação que o constituem” e que devem ser compreendidos pelo analista. Distinta da inteligibilidade e da interpretação possíveis na leitura de um texto, a compreensão visada pela Análise de Discurso procura saber como um dado objeto simbólico “produz sentidos [...]. Saber como as interpretações funcionam”. Nas palavras de Orlandi:

Quando se interpreta já se está preso em um sentido. A compreensão procura a explicitação dos processos de significação presentes no texto e permite que se possam “escutar” outros sentidos que ali estão, compreendendo como eles se constituem. Em suma, a Análise do Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de

significância para e por sujeitos. Essa

10 Baseando-se na obra de Michel Foucault, March define a exclusão interna como o ato do advogado, por exemplo, deter “o comentário, ou seja, [este] se utiliza de discursos previamente elaborados pelo Poder Judiciário (como as leis) para justificar seu posicionamento. Outra forma de exclusão interna mencionada por Foucault é a disciplina que lhe confere o domínio do objeto, do conjunto de métodos e preposições consideradas verdadeiras, ou seja, possui as regras e definições técnicas, além dos instrumentos que permitem ao advogado elaborar seu discurso com base no discurso jurídico.” Já a exclusão externa, basicamente, diz respeito à “vontade de verdade” mencionada por Foucault, que se ampara “no “suporte institucional” e, em consequência, num conjunto de práticas e no conhecimento dos referentes pela sociedade discursiva. Assim o discurso jurídico também se caracteriza pela “interdição” ou palavra proibida, pois não se pode dizer tudo e em qualquer situação” (MARCH, 2010, p. 59).

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compreensão, por sua vez, implica em explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido. Produzem-se assim novas práticas de leitura (ORLANDI, 2009, p. 26).

*

No Brasil, após a proclamação da República, nota-se uma tentativa sistematizada de instauração de modelos de comportamento distintos para homens e mulheres. A partir de uma idealização do conceito de “progresso” da nação, delimitavam-se modelos do masculino e do feminino:

A mulher deveria voltar seu tempo aos afazeres domésticos e à educação de seus filhos, ou seja, pertenceria ao domínio privado, enquanto o homem pertenceria ao domínio público. O espaço da rua, reservado aos homens, era considerado culturalmente como inadequado para mulheres de boa índole. Esse espaço possuía um caráter simbólico que retratava a preocupação da sociedade com relação ao encontro entre homens e mulheres. A rua poderia ser considerada como um dos locais em que havia essa transgressão das normas da moralidade impostas às mulheres pela sociedade (MARCH, 2010, p.62).

Papel importante neste processo de normatização dos papéis de gênero tiveram os médicos higienistas da virada do século XIX para o XX. Estes acreditavam que possuíam o direito de “disciplinar a sociedade”, ao sustentar uma diferenciação entre os corpos, mantendo assim homens e mulheres em posições desiguais na sociedade.

Como já mencionado, as fontes escolhidas para análise neste trabalho são 45 processos crime de estupro e defloramento, distribuídos entre os anos de 1916 a 1950. Todos estes foram produzidos na jurisdição da Comarca de Joinville, que abrangia na época municípios menores como Jaraguá do Sul e Schröeder. Parte destes processos é manuscrita, o que tornou muito mais morosa sua leitura, ao passo que aqueles produzidos na década de 1940 são quase que totalmente datilografados. Todos se encontram arquivados no Fórum da Comarca de Joinville, embora suas condições de acondicionamento sejam bastante precárias e inadequadas. Não há qualquer espécie de

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catalogação destes, que se encontram depositados em caixas plásticas que não contêm nenhuma descrição em sua parte externa. As caixas próximas ou sobre o assoalho da sala do arquivo do Fórum de Joinville foram atingidas pela chuva e pela elevada umidade típica desta cidade, o que fez com que a maioria deles se deteriorasse. É provável que muitos processos de estupro e defloramento/sedução produzidos na época de nossa análise tenham se perdido devido a estas condições de acondicionamento inadequadas. Devido à já mencionada falta de catalogação desses processos, sua seleção e digitalização se fez em um período de várias semanas, sendo para tanto indispensável a utilização de luvas e máscara – como forma de proteger a integridade dos documentos e a saúde do pesquisador. Estagiários do fórum posteriormente me informaram, surpresos, que as salas do arquivo em que realizei a coleta das fontes contam há anos com uma população de escorpiões: felizmente, meus maiores contratempos nesta etapa da pesquisa se deveram à falta de catalogação e organização dos processos crimes que constituíram nosso corpo documental.

Destes 45 processos, 17 são casos de estupro e 28 são acusações de defloramento (ou sedução, de acordo com o Código Penal de 1940). Mas deve-se notar que muitos destes casos foram caracterizados como crime de estupro apenas devido à pouca idade das vítimas, o que juridicamente implicava em acusação de “estupro presumido”. No entanto, a análise propriamente dita dos advogados e do juiz de direito em tais processos se assemelhava às dos casos de defloramento e sedução. Nota-se também que a distribuição temporal destes processos de acordo com as décadas abarcadas por nosso recorte temporal nos revela os seguintes números: na década de 1910, foram localizados seis processos de estupro e um de defloramento; na década de 1920, um caso de estupro e oito de defloramento; na década de 1930, sete processos de estupro e sete de defloramento; e na década de 1940, três casos de estupro e doze de defloramento/sedução (ver apêndice A).

Entre as vítimas, a profissão predominante era a de operária (11 no total), seguidas das lavradoras (6). Mas muitas delas eram classificadas como “domésticas” nos autos, o que gera incerteza quanto a se tal classificação dizia respeito a empregadas domésticas ou moças que não exerciam profissão remunerada fora do lar. Já no que diz respeito aos acusados, a profissão predominante era a de lavrador, seguida dos operários e dos empregados do comércio. Quanto aos veredictos emitidos pelos juízes de direito em exercício, 22 denúncias foram declaradas improcedentes, 17 procedentes e 6 foram anuladas em razão de casamento entre acusado e queixosa (ver anexo D).

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Os julgamentos de crimes sexuais na Comarca de Joinville, apesar de serem analisados pelos juristas sob o prisma dos códigos penais de 1890 e 1940 – de abrangência nacional –, apresentam características próprias desta cidade de colonização europeia, como a segregação étnica que era notória na primeira metade do século XX. Sobre esta divisão étnica existente em Joinville, Janine Gomes da Silva comenta que

A cidade, como sinalizam várias memórias, era “toda separada”. [...] São histórias de distinções que começaram a ser redefinidas no momento da Nacionalização. “Naquele tempo”, conforme narrativas de várias pessoas, de um lado moravam os “brasileiros”, era o Brasil. Já do outro moravam os “alemães” (na verdade a maioria era apenas descendentes de alemães e não de naturalidade alemã), era a Alemanha. Uma cidade dividida por uma linha imaginária que, para quem viveu naquela época, expressava uma cartografia bem nítida: mais para o sul os brasileiros, falando mais em português, e para o norte os alemães, utilizando corriqueiramente o idioma alemão (SILVA, J., 2008, p. 227).

Voltando à nossas fontes, raros eram os casos em que a vítima possuía sobrenome estrangeiro e o acusado tinha ascendência “portuguesa”/“brasileira” – ou vice-versa. Também notamos nestes autos a ocorrência de um descaso por parte dos promotores públicos e juízes de direito às declarações das vítimas que indicavam ter existido o crime de estupro, sendo tais casos debatidos e julgados como se tratando de delitos de defloramento/sedução. Contudo, tais acusações de estupro por parte das queixosas em muitos casos eram feitas contra seus próprios noivos/namorados, aparentemente esperando estas a reparação da honra perdida por meio do casamento.

A metodologia utilizada na presente pesquisa consistiu na análise documental das fontes: sua retirada do estado caótico em que se encontravam no órgão do poder judiciário de Joinville, seguida de uma posterior organização dos processos selecionados e digitalizados seguindo uma divisão por ano e década. Paralelamente à leitura e transcrição destes processos, foi realizada pesquisa bibliográfica de obras pertinentes aos objetivos propostos antes da realização de nossa análise documental. Teses e dissertações da área do Direito (sobretudo

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da História do Direito) foram de grande importância para a compreensão de determinadas especificidades da legislação referente a crimes sexuais na vigência dos códigos penais de 1890 e 1940. Já os trabalhos da historiografia nos forneceram os parâmetros de uma metodologia analítica que questiona a própria produção do discurso jurídico (a chamada “construção da verdade” que se opera nos processos judiciais), indo além do debate puramente jurídico que geralmente encontramos nas pesquisas da área do Direito. Definida uma base referencial teórica, foi empreendida a análise mais aprofundada das fontes primárias, visando à escrita da presente dissertação: os processos crime foram mencionados e citados neste trabalho segundo a sua pertinência para os temas abordados, independente de seus veredictos. Ressaltamos que a obtenção de autorização para acessar estes processos crime foi árdua, tendo sido necessário o contato com a Diretoria de Documentação e Informações do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, preenchimento de diversos formulários e meses de espera até que os arquivos solicitados fossem liberados para pesquisa na Comarca de Joinville.

Por sua vez, a questão problema que norteou a redação deste trabalho refere-se à construção do discurso de culpabilização da vítima, que – em maior ou menor grau – é onipresente nos processos de crimes sexuais da Comarca de Joinville no período analisado. Apesar de passado mais de um século desde o ano inicial de nosso recorte temporal, nota-se ainda, nos dias atuais, a presença deste discurso de culpabilização das vítimas de crimes sexuais. E esta lamentável permanência se dá tanto no âmbito jurídico – durante o julgamento do acusado – quanto nos veículos noticiosos que nos permitem um vislumbre da opinião pública sobre o tema (como as atuais redes sociais, por exemplo). “Que roupa ela estava usando? Ela bebeu antes de isso acontecer? Onde ela estava? Ela o provocou, não?” são perguntas que podemos visualizar quase sempre que nos deparamos com manchetes de redes sociais que relatam crimes de estupro, assédio sexual ou até mesmo abuso de menores.11 Enquanto acadêmico do curso de História da Universidade da Região de Joinville, tive a oportunidade de entrar em contato com as obras de autoras(es) que trabalham com a categoria

11 De acordo com pesquisa realizada no Brasil pelo Instituto Datafolha no ano de 2016, “42% dos homens disseram que "mulheres que se dão ao respeito não são estupradas", enquanto 32% das próprias mulheres acreditam nessa mesma premissa”. [...] Por sua vez, “30% [do total de pessoas entrevistadas] disseram que "mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”” (BBC Brasil, 14 de janeiro de 2018).

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