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O Homem que Sabia Javanês

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Academic year: 2021

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O Homem que Sabia Javanês

O conto “O homem que sabia javanês” usa equilibradamente uma certa dose de humor, para fazer uma crítica profunda e bem elaborada , que, embora reflita a realidade da época em que foi escrito - ano de 1911 - pode, cem anos mais tarde, ser encarado como um alerta permanente contra toda a falta de escrúpulos que ainda hoje assola a nossa sociedade.

A estória começa com dois amigos à mesa de uma confeitaria - nada mais brasileiro que pedir uma cerveja e dar asas a uma boa conversa - e é assim que Castelo, o personagem principal, começa a contar a seu amigo Castro, como tem conseguido viver bem e tranquilo, de um lugar a outro, aplicando golpes e usando de artifícios dos mais pitorescos, para ludibriar pessoas das mais simples às mais influentes, logrando sempre bom êxito, e tirando sempre vantagem de qualquer tipo de situação.

Percebe-se que o autor deseja através de seus personagens, dividir a sociedade em três tipos de pessoas:

1. aquelas que tem o dom de mentir, enganar, roubar, vilipendiar, aproveitar-se dos outros e ainda assim não sentirem o mínimo tipo de constrangimento, remorso ou arrependimento em relação a isso, muito pelo contrário, sentem-se verdadeiramente vitoriosas em relação às suas conquistas;

2. em segundo plano estariam aquelas pessoas que, apesar de não terem coragem, ou pior, apesar de não terem o dom de agir desta mesma maneira, ainda assim admiram e louvam a quem quer que seja capaz de vencer na vida usando de toda espécie de ardis por mais escusos que sejam; são aqueles que inclusive, sentem orgulho de serem seus amigos para talvez poder desfrutar de seu prestígio e influencia de alguma forma, são aqueles para quem um sujeito que leva a vida como o Castelo – é um verdadeiro herói;

3. e no terceiro grupo, estão as pessoas que são ludibriadas. O autor faz questão de deixar nas entrelinhas, que existem vários tipos de pessoas que são enganadas, seja por excesso de ingenuidade, ou por ignorância, por excesso de boa-fé nos outros, ou porque isto lhes é conveniente; o autor deixa implícito um questionamento sobre se as pessoas estão sendo realmente enganadas ou se simplesmente estão se deixando enganar, o que seria bem mais contundente; e por fim, o texto faz questão de deixar bem claro que o maior numero de pessoas situa-se exatamente nesta terceira condição.

A partir deste ponto de vista, passemos a analisar um pouco mais de perto estas afirmações.

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O 1º. Grupo de Pessoas – OS CASTELOS

Já no segundo parágrafo, Lima Barreto faz questão de traçar o perfil do primeiro tipo, que, a seu ver, é capaz de tudo para alcançar o sucesso sem muito esforço; não é uma pessoa iletrada, inculta - é um bacharel (não cita em qual área - talvez propositadamente, levando a supor que há farsantes em todas as áreas do saber ), ainda assim completa a informação nos dando a entender que tal pessoa é capaz de esconder sua real condição e fazer-se passar por outra, se isso convém a seus interesses.

“ - Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. “ (pag 1).

Ao longo do texto, o autor faz questão de deixar pistas que nos confirmam esta primeira informação, como por exemplo, a iniciativa de Castelo em ir à Biblioteca Nacional consultar uma enciclopédia a fim de obter informações para corroborar o seu plano de passar-se por professor de um idioma que sequer conhecia. “Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encicyclopedié letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito.”(pág 8).

Ou mais à frente, quando já em conversação com o Barão de Jacuecanga, Castelo revela que, somente consegue compreender algo dos escritos antigos a ele apresentados, pelo fato do prefácio ser escrito em inglês, o qual ele compreende e assim apresenta ao ingênuo ancião, uma breve interpretação do propósito do livro.

“Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio.”(pág 10).

Além disso, em todos os momentos da narrativa, as falas do personagem Castelo - o trapaceiro - são muito bem elaboradas, com palavras cultas e seu procedimento discreto e educado em meio à sociedade em geral, denota a ídéia do autor de que ele é uma pessoa inteligente que sabe muito bem o que está fazendo, sendo graças a essas qualidades, muito bem aceito. Ele é um homem agradável, de boas maneiras, que tanto consegue sair-se bem no convívio em casa do Barão, como perante ministros, sábios e até chefes de estado.

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O 2º. Grupo de pessoas – OS CASTROS

O segundo tipo de pessoas ilustrado no texto de Lima Barreto, vem representado no amigo Castro, o amigo de copo de cerveja, ou seja, aquele amigo que, apesar de não ter acesso à toda a vida social e ao prestígio de que o outro desfruta, ainda assim é um bom companheiro para as horas de lazer, pessoa íntima em quem se pode confiar ao ponto de revelar as mais sórdidas empreitadas, na certeza de não perder jamais a sua cota de admiração, muito antes ao contrário, são pessoas perante as quais os Castelos da vida serão sempre muito bem-vindos ao ponto de elevarem-se quase à categoria de um ídolo.

Entrando a terceira linha do texto, o autor já nos apresenta a índole deste tipo de personagem, quando na pessoa do próprio Castelo, fala do amigo:

“O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:

— Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo ! “

A descrição da reação de Castro frente aos relatos de Castelo, demonstra que ele está claramente maravilhado com tudo que ouve, ao ponto de estar calado, para poder mais atentamente acompanhar a narrativa. No momento de pausa, a opinião do sujeito que acaba de esgotar mais um copo de cerveja, insinuando com que grande prazer este desfruta da conversa, vem a ser uma verdadeira afronta, pois ele acha a vida de expedientes e negociatas que o amigo empreende, “muito engraçada!”.

Neste ponto, Lima Barreto faz uma alusão ao personagem do folhetim francês do século XVIII, Gil Blas, como a dar uma ideia de qual tema pretende abordar, e também deixa no texto uma pista de qual possa ter sido sua fonte de inspiração ao escrever seu conto. É digno de nota que o romance francês contava a estória de Gil Blas, o qual tendo nascido na miséria e tendo passado por sucessivas situações ora valendo-se do acaso, ora da própria esperteza, acaba por terminar seus dias senhor de um castelo, amigo do rei e secretário do primeiro ministro.

E é só isso. O Castro segue como mero plano de fundo que exalta ainda mais a falta de caráter de ambos, quando afirma que o Brasil é imbecil e burocrático. Com poucas porém decisivas linhas, percebe-se a capacidade que o autor tem de expressar exatamente o perfil do Castro, que, absurdamente assim como acontece na vida real, ouve e acompanha passivo o relato de todas as falcatruas cometidas, sempre ao longo do texto, mais preocupado com o bem estar do Castelo em meio às situações comprometedoras em que ele se envolve, do que com o fato de dezenas de pessoas estarem sendo iludidas, lesadas, roubadas e pior que isso, o fato de seu amigo chegar a ser um representante da nação em um cargo de alta importância mesmo sendo desonesto.

O Castro parece não se dar conta de nada disso, a única coisa que lhe parece realmente empolgante é o fato do amigo conseguir sempre se dar bem no final, não importa a qual custo.

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3º. Grupo de pessoas : Os Barões de Jacuecanga e outros afins

O texto de Lima Barreto é tão rico no desdobramento destes pontos, que

não me parece exagero dizer que facilmente seria possível escrever um livro sobre o tema abordado por ele, atenho-me todavia aos fatos principais, os quais com certeza lançam luz sobre os prévios e demais comentários.

Quando descreve o Barão de Jacuecanga, por exemplo, ele começa por descrever em pormenores como era a sua casa, a aparência de desleixo por toda a parte, a começar pelo jardim, o aspecto exterior da casa há muito sem pintura, as telhas faltando, os quadros empoeirados, e em meio a tudo aquilo, um vaso de louça delicado, que salta aos olhos do observador, deixando escapar os traços de

personalidade do possuidor daqueles bens, em meio ao que parece um encontro informal.

“mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...”

Nota-se que o autor estabelece uma ligação entre a descrição do lugar e a personalidade do Barão, quando no desenrolar da estória, este se mostra tão desleixado em relação aos estudos quanto o é em relação ao cuidado da própria casa, semelhantemente, o ponto que se destaca acerca do vaso de porcelana seria a pureza, a fragilidade, a ingenuidade do velho, que somado ao cansaço da vida o leva a aceitar como solução para um problema difícil, ainda que seja uma mentira, como forma de minimizar seu sofrimento.

Além destes traços mais marcantes, a velhice, o desleixo e a ingenuidade, Lima Barreto acrescenta ao perfil do Barão de Jacuecanga ainda outros atributos que fazem dele a vítima perfeita: é mais supersticioso que racional, acredita em tudo que os outros dizem - o velho javanês, o avô e o pai disseram que o livro contém o destino da sua família mesmo sem compreenderem o tal livro - sendo essa mesma atitude que o leva a acreditar em tudo que o Castelo diz que está escrito no livro; é surdo, o que torna quase impossível ouvir alguém que o queira alertar que está sendo enganado, e por fim, o autor nota que ele seja pouco inteligente, pois aprende e desaprende, até que enfim, desiste dos estudos.

Embora o Barão de Jacuecanga exemplifique uma grande parcela

daqueles que são enganados por pessoas mal intencionadas, nem todo o

universo dos ludibriados é composto de pessoas inocentes, ingênuas e de

pouca instrução. O autor introduz como exemplo disto, o personagem seguinte:

“Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a

admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única!

Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse

isso, ah! onde estava !”

O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do

barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se

pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu

javanês.”(pág.11).

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A estória de Castelo sai então do convívio da casa do barão e alça vôo rumo à uma escalada social sem precedentes. Ainda nesse ponto o autor é perfeito quando descreve no rol dos iludidos, outra classe de pessoas, as que apesar da aparente erudição, deixam-se levar pelas amizades e pelo círculo social mais que pela realidade dos fatos, ou seja, confiam em qualquer pessoa que lhes tenha sido apresentada por um amigo ou conhecido do mesmo meio social em que está. É a tão conhecida e tão enraizada na cultura brasileira: síndrome do Q.I., ou seja, “quem indicou”.

A partir daí o autor apenas acrescenta personagens e mais personagens à lista dos engodados pelo esperto Castelo, que passa pelo Visconde de Caruru, o Ministro das Relações Exteriores, um congresso de sábios linguistas na Europa, jornalistas e diplomatas, chefes de estado, e muitos outros em vários países pelo mundo afora, parece mesmo não haver limites nesta lista e seria impossível de serem citados todos... até mesmo o presidente da república!

Este tipo de pensamento nos leva a refletir dois tipos de situações possíveis de terem sido propostas pelo próprio autor: será que essas pessoas que são enganadas tem plena consciência disso? - nesse caso se deixam ser enganadas a fim de também usufruir algum nível de proveito desta situação porque lhes é conveniente; ou, pura e simplesmente admite-se que as pessoas que são tidas por sábios e eruditos e ocupam os mais influentes, decisivos e importantes cargos públicos do nosso país dos quais dependem todo o destino da nação, não sejam assim tão inteligentes quanto aparentem ser?

Receia-se que, de acordo com o texto, as duas opções possam estar certas.

Conclusão:

Com tristeza nos deparamos ao final do conto com um quadro nítido de admiração e acomodação por parte do amigo Castro, e com o vaticínio da continuidade da situação deplorável de mentiras e farsas, por parte do Castelo, que o autor tão magistralmente expõe com o uso da palavra “vamos”.

“— É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja. — Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser ?

— Que?

— Bacteriologista eminente. Vamos? — Vamos.”

A crítica ácida que Lima Barreto fez há mais de cem anos ainda hoje reflete um fator preponderante que infelizmente tornou-se um dos grandes símbolos do Brasil, tanto aqui como no exterior: a nódoa da corrupção generalizada. A total falta de escrúpulos que insiste em marcar a sociedade brasileira em todas as classes sociais e em todas as direções, nos leva a considerar o fato inegável de que existam atualmente, mais Castelos, mais Castros e mais Barões de Jacuecanga do que gostaríamos de admitir.

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Lamentamos tão somente o fato de que em seu texto o autor não tenha nos deixado como referencial, um quarto personagem, que poderia bem representar os valores morais, éticos e civis que tanto esperamos ver aflorar e ganhar força no contexto nacional.

Ou talvez, ainda, ouso imaginar que, propositalmente, o escritor tenha desejado que este quarto personagem estivesse implícito nas entrelinhas, a todo o tempo, sendo provocado dentro de cada um de nós através da leitura; para que cada um de nós também desejasse ser parte de um outro grupo de tipos de pessoas, que prezem e valorizem conceitos como: verdade, honestidade, dignidade, patriotismo e respeito.

...

Aluna: LETICIA RACHEL FERNANDES DA SILVA Curso: Letras – Inglês 1º. Período

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