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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras

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Academic year: 2021

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras

MEMÓRIA E HISTÓRIA NA OBRA O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE

Rosilene Teodora da Silva

Belo Horizonte 2014

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Rosilene Teodora da Silva

MEMÓRIA E HISTÓRIA NA OBRA O ALEGRE CANTO DA PERDIZ DE PAULINA CHIZIANE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa.

Linha de Pesquisa: Identidade e alteridade na literatura Orientadora: Profª Dr ª Terezinha Taborda Moreira

Belo Horizonte 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Rosilene Teodora da

S586m Memória e história na obra O alegre canto da perdiz de Paulina Chiziane / Rosilene Teodora da Silva, 2014.

103 f.

Orientadora: Terezinha Taborda Moreira

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Chiziane, Paulina, 1955- O alegre canto da perdiz – Crítica e interpretação. 2. Memória na literatura. 3. História na literatura. 4. Identidade. I. Moreira, Terezinha Taborda. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(679).09

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Rosilene Teodora da Silva

MEMÓRIA E HISTÓRIA NA OBRA O ALEGRE CANTO DA PERDIZ DE PAULINA CHIZIANE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa.

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira (Orientadora) – PUC Minas

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Priscila Campolina de Sá Campello (PUC Minas)

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Íris Maria da Costa Amâncio (UFF).

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AGRADECIMENTOS

À FAPEMIG, que financiou os meus estudos por todo o período, sem o qual eu não conseguiria concluir esta etapa.

À minha orientadora, Terezinha Taborda, pela escuta, paciência, sabedoria, dedicação e competência, sem quem seria impossível realizar este trabalho.

À Berenice, funcionária da secretaria, que sempre se mostrou solícita.

A todos (as) os (as) professores (as) do curso, que contribuíram com a construção do meu conhecimento.

Aos meus amigos, que sempre foram compreensivos e tolerantes comigo nos momentos de dificuldades e de abdicação em estar com eles.

À minha família, em especial ao Marcos, Fabrício, Vinícius e Camila, que sempre acreditaram em mim e me incentivaram todos os dias.

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Os buracos no discurso, os espaços vazios e as lacunas e os silêncios não são os espaços onde a consciência feminina se revela, mas as cortinas de um “cárcere da língua”. (HOLLANDA, 1994 – destaques da autora).

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RESUMO

A dissertação tem como objetivo analisar a utilização da memória como recurso literário na construção da narrativa O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, pautada em reflexões e conceitos ligados à memória, história, identidade e esquecimento. Parte-se do pressuposto de que a obra é toda construída como uma trama de memórias de mulheres que, além de compor o enredo ficcional, retomam também a história oficial de Moçambique, colocando-a em perspectiva. Assim, procura-se mostrar como o romance se articula por meio da retomada das memórias subterrâneas das mulheres, que se colocam como um contraponto em relação à memória coletiva do país seja quando esta se refere aos valores da tradição moçambicana ou quando focaliza aqueles assumidos a partir do processo colonial.

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ABSTRACT

The dissertation has as objective to analyze the use of memory usage as a literary device in the construction of the narrative O alegre canto da perdiz, Paulina Chiziane, based on ideas and concepts related to memory, history, identity and oblivion. Breaks the assumption that all the work is built as a web of memories of women who, besides composing the fictional plot, also reproduce the official history of Mozambique, putting them in perspective. Thus, it attempts to show how the novel is articulated through the resumption of subterranea memory of women posed as a counterpoint to the collective memory of the country, is when it refers to the values of the Mozambican tradition focuses or when those assumed from the colonial process.

Keywords: Memory. History. Identity.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS………..11

1. OS FIOS NA TESSITURA DA FICÇÃO...14

1.1 Memória e história...25

2. O GRITO SILENCIOSO DAS MEMÓRIAS SUBTERRÂNEAS...38

2.1 A subversão da subalternidade feminina...55

3. MEMÓRIA E IDENTIDADE...69

CONSIDERAÇÕES FINAIS...95

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11 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Paulina Chiziane, em sua obra O alegre canto da perdiz, fará uso tanto da memória quanto da história na composição de seu romance. Chiziane, primeira mulher moçambicana a publicar um romance em seu país, abre sua sequência de romances com Balada de amor ao vento – 1990; em seguida, Ventos do

Apocalipse – 1993; O sétimo juramento – 2000; Niketche. Uma história de

poligamia – 2002; obra que lhe rendeu o prêmio José Craveirinha de 2003 e O

alegre canto da perdiz – 2008. Sua obra tem como característica abordar temas

tais como as relações de subserviência feminina, tanto no lar como entre nações e grupos étnicos, a assimilação, o racismo, a subjugação de valores africanos a valores europeus, assim como a poligamia.

As personagens mulheres que compõem o romance de Chiziane têm, dentro da narrativa, a oportunidade de verem suas vozes emergirem, dando à história oficial outra ótica, agora pelo viés feminino e não mais pelo masculino, como sempre foi. A construção de um discurso feminino coloca em cena a questão da submissão da mulher moçambicana ao homem ao longo da história do país.

A escolha da obra O alegre canto da perdiz como objeto de estudos se deu em função da mesma ser toda constituída como uma trama de memórias várias, que vão compondo todas as histórias das personagens e, assim, compondo também o romance. Temos nele um movimento constante de retomada das várias histórias que vão construir a narrativa, uma vez que é sempre a partir da memória das personagens que outras personagens vão surgindo, assim como suas histórias de vida. A temática da obra é a emersão de vozes femininas silenciadas por uma cultura patriarcal, assim como por um processo de dominação e colonização que

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impõe àqueles que estão à margem o silêncio. Portanto, serão essas reflexões que nortearão os capítulos que compõem esta dissertação.

No primeiro capítulo, além de ser apresentada a obra de Chiziane, O alegre

canto da perdiz, também são apresentados os fios utilizados pela autora para a

tessitura do romance. Dentre esses fios estão a memória, assim como a história de Moçambique vista por um viés feminino. O suporte teórico de Heloísa Buarque de Holanda (1994) se fez necessário para a discussão de como a história tem deixado as mulheres fora da descrição de seus fatos. No que concerne à discussão relativa à questão da memória e da história, diversos são os autores que auxiliam nesse estudo para um melhor entendimento da utilização da memória como recurso na composição da narrativa, tais como Paul Ricoeur (2012); Fernando Catroga (2001); Joel Candau (2011); Jacques Le Goff (1992); Pierre Nora (1993); J. Vansina (1982); Michel Pollack (1989); Hayden White (1994); Frantz Fanon (1968); entre outros.

As discussões que se propõe a partir dos textos teóricos e do romance têm o objetivo de mostrar como a memória pode ser utilizada pela literatura como instrumento na construção da narrativa, assim como essa mesma memória se estrutura e se consolida na construção da história e vice-versa.

No segundo capítulo, vários foram os teóricos que deram suporte às discussões propostas, dentre eles, Gayatri Chakravorty Spivak (2010), uma vez que ela discute como a história colocou a mulher em uma situação de dupla subordinação, primeiro pela cultura patriarcal, segundo pelo sistema colonial.

A contribuição teórica de Heloísa Buarque de Holanda (1994) também se fez necessária, uma vez que traz uma grande contribuição no que concerne à discussão acerca de como os grupos silenciados vão manifestar-se a partir da linguagem da ordem dominante. Michel Pollack (1989), trazendo a discussão sobre memórias

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clandestinas e inaudíveis, contribuiu para a reflexão de como essas podem ficar comprometidas até o dia que se fizerem ouvir. Nesse capítulo é apresentado como as personagens mulheres do romance, apesar de aparentarem apatia, ou de serem silenciosas, são na verdade silenciadas por uma sociedade que não lhes permite manifestarem-se e como, mesmo apesar da imposição de uma condição submissa, elas subvertem essa condição, fazendo emergir suas vozes silenciadas pela história oficial.

No terceiro e último capítulo discute-se como a memória compõe a identidade e como a identidade feminina das quatro personagens mulheres, Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta, são colocadas no romance, como algo em constante construção. Cada uma, a sua maneira e com suas histórias, terá sua identidade sendo constituída, modificada, reconstruída, ora a partir dos mitos fundadores, ora a partir da retomada de uma história compartilhada por essas mulheres ao longo de suas vidas dentro do romance. Outro aspecto que se apresenta ainda neste capítulo é como a tradição se faz arma de resistência contra o processo de assimilação da cultura do europeu, resguardando a cultura autóctone para se pensar e construir o futuro da nação moçambicana.

Pensando na perspectiva da literatura como um viés pelo qual os autores africanos de língua portuguesa puderam se expressar e colocar em foco aquilo que a história oficial omitiu ou simplesmente não considerou relevante, justifica-se a leitura da obra de Chiziane pelo diálogo que ela estabelece com a história, a memória e a identidade. Nesse sentido, Inocência Mata (2006) nos auxilia com seu estudo acerca do uso da literatura como instrumento para trazer à tona as vozes dos silenciados, e, consequentemente, preencher lacunas deixadas pela história.

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14 1 OS FIOS NA TESSITURA DA FICÇÃO

O romance O alegre canto da perdiz, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, traz à tona a reflexão acerca da subjugação feminina à masculina ao longo dos tempos, seja devido ao regime patriarcal da cultura tradicional moçambicana, seja em razão da subjugação humana, cultural e histórica de Moçambique à cultura e à religião do colonizador português. Além disso, encena os dilemas de um presente pós-independente no qual o país ainda convive com resquícios dessa subjugação, herança tanto da cultura patriarcal quanto do passado colonial.

Heloísa Buarque de Hollanda, citando Lerner, lembra-nos que:

As mulheres têm sido deixadas de fora da história não por causa das conspirações maldosas dos homens em geral ou dos historiadores homens em particular, mas porque temos considerado a história somente em termos centrados no homem. Temos perdido as mulheres e suas atividades porque lhes temos colocado questões históricas inapropriadas às mulheres. Para retificar isto, e para iluminar áreas de escuridão histórica, devemos, por algum tempo, focalizarmo-nos numa indagação centrada na mulher, considerando a possibilidade da existência de uma cultura feminina inserida na cultura geral partilhada por homens e mulheres. A história deve incluir um relato da experiência feminina através do tempo e deveria incluir o desenvolvimento da consciência feminista como aspecto essencial do passado das mulheres. Esta é a tarefa fundamental da história das mulheres. A questão central que ela levanta é: como seria a história se vista através dos olhos das mulheres e ordenada pelos valores que elas definem. (LERNER apud HOLLANDA, 1994, p. 45).

Ecoando as reflexões apresentadas por Hollanda, o romance de Chiziane propicia ao leitor (a) perceber, a partir de um olhar feminino e através da ficção, como a mulher sentiu e vivenciou, ao longo do tempo, tanto no período colonial quanto no presente pós-colonial moçambicano, a pressão de uma cultura patriarcal. É a oportunidade, via ficção, de perceber o registro de uma história de guerras e de um processo de domínio e colonização de um povo por via de um olhar feminino.

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Assim, encontramos na obra a construção de um discurso feminino, o que coloca em cena a questão da submissão da mulher moçambicana ao homem ao longo da história do país. As personagens mulheres que compõem o romance vão, cada qual a sua maneira, superando imposições sociais ao longo de suas histórias de vida. Essas histórias de superação, assim como de subversão, da condição de submissão feminina, vão sendo apresentadas ao leitor (a) pela narradora.

Em função disso, o romance O alegre canto da perdiz é construído a partir do imbricamento da memória individual, da memória coletiva, assim como da história. Nele Chiziane apresenta as personagens a partir da presentificação do passado das mesmas, sendo, portanto, a memória o cerne da estruturação do romance.

Ao longo das civilizações, o significado da palavra memória ganhou várias dimensões, dentre elas as dimensões mítica, cognitiva, individual e coletiva. Façamos então um exercício de memória para retomarmos sua dimensão mítica como ponto de partida para conceituá-la.

Para o filósofo Platão, a memória é uma representação presente de algo ausente, daquilo que já não é. Essa representação traz à tona sentimentos e emoções outrora vividos, uma vez que o individuo que os experimentou no passado também os rememora, juntamente com os fatos que relembra.

Já Aristóteles, segundo Paul Ricoeur, vai tratá-la como representação de uma coisa anteriormente percebida. Para o filósofo, “memória é tempo” (RICOEUR, 2007, p. 27), uma vez que a lembrança vem acompanhada por essa noção.

Na dimensão individual, de acordo com Joel Candau, a memória é uma faculdade humana e, portanto, todo indivíduo, com exceção de casos patológicos, é dotado dela. Para ele a memória se constitui a partir de seleções constantes daquilo

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que será armazenado ou descartado, lembrado ou esquecido. De acordo com Candau,

Na relação que mantém com o passado, a memória humana é sempre conflitiva, dividida entre um lado sombrio e outro ensolarado: é feita de adesões e rejeições, consentimentos e negações, aberturas e fechamentos, aceitações e renúncias, luz e sombra ou, dito mais simplesmente, de lembranças e esquecimentos. A lembrança, tal como ela se dispõe na totalização existencial verbalizada, faz-nos ver que a memória é também uma arte da narração que envolve a identidade do sujeito e cuja motivação primeira é sempre a esperança de evitar nosso inevitável declínio. (CANDAU, 2011, p. 72).

A memória resguarda que não nos esqueçamos de nossa identidade, o que pressuporia, segundo Joel Candau, o esvaziamento do sujeito.

Sem memória o sujeito se esvazia, vive unicamente o momento presente, perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua identidade desaparece. Não produz mais do que um sucedâneo de pensamento, um pensamento sem duração, sem a lembrança de sua gênese que é a condição necessária para a consciência e o conhecimento de si. (CANDAU, 2011, p. 59).

O sujeito sem memória tem sua história limitada ao seu presente, esvaindo-se, assim, sua identidade, seu passado, sua história, o que inevitavelmente compromete sua constituição identitária.

A memória coletiva, por sua vez, depende da individual para consolidar-se, pois é a partir desta que aquela vai ser construída, passando de um indivíduo a outro por várias vezes até que se solidifique como tal no grupo. Os mitos fundadores são um bom exemplo de memória coletiva que perdura ao longo dos tempos, assim como o são também as comemorações pátrias, familiares e etc.

A partir do romance O alegre canto da perdiz o (a) leitor (a) poderá perceber que a evocação de uma lembrança não é feita do mesmo modo por todos os indivíduos, assim como também não o é pelas personagens do romance. Cada um

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pode ter sua memória acionada a partir de mecanismos diversos tais como situações várias, sons, sensações, odores, visões etc. Segundo Candau,

mesmo que exista em uma determinada sociedade um conjunto de lembranças compartilhadas pelos seus membros, as sequências individuais de evocação dessas lembranças serão possivelmente diferentes, levando em consideração as escolhas que cada cérebro pode fazer no grande número de combinações da totalidade de sequências. (CANDAU, 2011, p. 36).

Cada indivíduo fará, dentro do grupo de lembranças armazenadas pela memória, sua própria seleção do que emergirá, independentemente daquelas compartilhadas por uma sociedade.

Já o termo memória aplicado no plural pode também relacionar-se com a literatura confessional, a autobiografia, o diário, uma vez que esses gêneros utilizam para tanto uma narrativa em primeira pessoa, colocando o relato de experiências pessoais. As memórias são, portanto, nesse sentido, “artifícios ficcionais”, assim como o personagem.

Além disso, o mesmo termo no plural pode fazer referência à multiplicidade de memórias tanto individuais quanto coletivas que cada um tem de algo que foi relembrado. Nesse caso, o termo refere-se às lembranças de situações já passadas, vivenciadas, armazenadas pelo indivíduo ao longo de sua vida, na relação com o outro.

Aristóteles, que agora retomo por via de Márcio Seligmann-Silva, conceitua a memória como “um conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, com um adicional temporal; trata-se de um conjunto de imagens de coisas do passado.” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 11).

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Portanto, a memória pode ser pensada como um reviver do passado trazendo para o presente o que já não é, como se imortalizasse o que passou, e que por isso mesmo não se pode resgatar por outro meio que não o da recordação.

A narrativa O alegre canto da perdiz é articulada como forma de mostrar a composição da identidade de mulheres moçambicanas negras a partir das lembranças da trajetória de vida das personagens Serafina, Delfina, Maria das Dores, Maria Jacinta, entre outras. Para isso traz à tona, em seus trinta e cinco capítulos, a saga das personagens Delfina e Maria das Dores. O romance, ao contar a saga dessas duas mulheres (mãe e filha), faz uma releitura da origem dos povos moçambicanos desde as lendas do matriarcado, por meio das quais recupera o papel do feminino na criação humana no universo mítico de Moçambique, até a contemporaneidade, momento em que a mulher é chamada a participar da construção do país independente.

O romance tem início com a personagem Maria das Dores, que após caminhar solitária por vários anos, em busca de seus três filhos, chega ao rio Licungo, onde toma banho nua, o que é interpretado pela população local como ares de desafio aos costumes do povo do lugar. Pela voz da narradora a personagem é apresentada ao leitor (a) no momento em que é vista nua às margens do rio pelas mulheres da aldeia:

Um grito colectivo. Um refrão. Há uma mulher nua nas margens do rio Licungo. Do lado dos homens. - Ah? Há uma mulher na solidão das águas do rio. Parece que escuta o silêncio dos peixes. Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma escultura Maconde. De olhos pregados no céu, parece até que aguarda algum mistério. – Quem é ela? (CHIZIANE, 2008, p.11).

Nesse excerto, que dá início à narrativa, o (a) leitor (a) tem a oportunidade não só de tomar conhecimento das características da personagem Maria das Dores,

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mas também de iniciar uma busca através da história dessa personagem. Sendo um pouco observador o (a) leitor (a) poderá, a partir da atitude da personagem que inicia o romance, já perceber as incógnitas que perpassarão toda a história, uma vez que a narradora coloca, como uma das características da personagem, a de ser alguém que parece guardar algum mistério.

Considerada louca pelos seus atos, Maria das Dores é apedrejada e amaldiçoada pelas mulheres da vila. Em seguida as mulheres da aldeia iniciam uma verdadeira inquisição a ela. Querem saber quem é ela, de onde vem e por que está nua. A personagem nada responde e foge por entre as águas do rio. Depois que a multidão se vai ela retorna ao mesmo lugar e inicia então uma reflexão, assim como questionamentos sobre sua identidade e sua história. A partir das memórias de Maria das Dores vão surgindo, então, várias outras histórias que compõem o romance, demonstrando os conflitos, contradições e contrastes das personagens dentro de toda a trama narrativa.

A partir do espanto causado pela “louca do rio” e da ira coletiva, a mulher do régulo, respeitada mulher da comunidade e única a não se espantar com o episódio, explica às mulheres da aldeia que não há mau presságio, anúncio de seca ou de tormenta no aparecimento da mulher nua no rio. Ela, então, consegue acalmar a multidão. A narradora assim apresenta ao leitor (a) o impacto causado pelas palavras da mulher do régulo às mulheres da aldeia:

- Ela trazia uma boa nova escrita pelo avesso – garante a mulher do régulo. – Mensagem de fertilidade. Essa maluca era a verdadeira mensageira da liberdade, minha gente. A multidão se espanta e a mulher do régulo sorri. Da boca adocicada ela solta os melhores acordes. Dos braços pequenos abre-se um manto confortável como as asas de uma águia, onde a multidão de mulheres se aninha como rebentos de pássaros. Do seu peito solta-se um sopro de coragem que a brisa transporta para cada um. A multidão ouve sua voz a penetrar. O sorriso a desabrochar. A mente a vadiar na paisagem dos princípios. O medo a escapar. Os ânimos se acalmando. O espírito a serenar. A princípio a voz ouvia-se perto. Depois longe. Mais longe ainda

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20 como alguém falando de amor no mais profundo dos sonhos. Era uma canção que recordava às mais novas todas as coisas antigas, dos princípios, no conto do matriarcado. (CHIZIANE, 2008, p. 20).

A mulher do régulo desmistifica o episódio que parecia sobrenatural aos olhos das mulheres da vila Gurué. E ela o faz apresentando às mulheres da aldeia várias histórias que remontam ao matriarcado e que perpassam a narrativa em vários momentos, uma vez que ela que tem conhecimento do passado e do presente do povo dos montes gelados do Namuli, local de onde Maria das Dores retornara ao ser encontrada nua na beira do rio Licungo.

Maria das Dores continuou vagando pela cidade sem saber que ali encontraria seus filhos, Benedito, Fernando e Rosinha, que foram criados por uma freira, após serem resgatados por militares, no período da guerra colonial, por ocasião de sua fuga com os filhos, vinte e cinco anos atrás, da casa de Simba, seu marido, pai de seus filhos e homem para o qual ela fora entregue pela mãe Delfina como pagamento de dívidas.

A memória é acessada o tempo todo pela narradora do romance, muitas vezes por via da contação de histórias, com o recurso à expressão “era uma vez”. É que a autora, apesar de utilizar o recurso da escrita para o registro da narrativa, coloca como cerne da obra a contação oral, uma vez que é a partir das memórias e histórias contadas que se constrói o romance. A narradora do romance, ao iniciar a contação de suas histórias, utiliza para tal uma chave de acesso ao tempo ficcional: “Era uma vez...” (CHIZIANE, 2008, p. 21), instaurando assim o pacto ficcional.

No excerto acima, a narradora apresenta ao leitor (a) a reação das mulheres ao ouvirem a voz da mulher do régulo, evidenciando como a contação de histórias tem o poder de leva-las a uma viagem ao passado, tanto para conhecê-lo quanto

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para entenderem o presente, cujas contradições lhes são apresentadas por meio da nudez da personagem Maria das Dores.

No excerto que se segue a narradora traz para o presente da narrativa, através da contação, a história da origem do povo moçambicano, das invasões, da dominação desse povo e da sua luta contra a escravidão. Para tanto ela faz uso da memória coletiva, assim como da história, para formular e apresentar ao leitor (a) a origem das mulheres da aldeia, assim como a história delas através da história dos seus antepassados. Ao intervir junto às mulheres da aldeia contando-lhes a história da origem de Moçambique, a mulher do régulo leva-as à reflexão, assim como as leva também, através da memória, ao passado, para que possam, por meio da rememoração, entender o seu presente:

Somos de diferentes gestas. Diferentes ventres. Diferentes lugares. Uns nascendo nos canaviais, outros na estrada. Uns no alto mar. Outros em camas douradas dos príncipes. Uns fugiram de casas de luto cobertas de fogo. Fogo posto. Por demônios. Demônios que incendeiam as águas dos rios. Outros nasceram da solidão dos guerreiros, solidão de heróis. Heróis vencedores e vencidos. Somos heróis do Atlântico, heróis da travessia dos mares bravos, para a escravatura na Guiné, Angola e São Tomé. Temos o sangue dos franceses, brasileiros, indianos de Goa, Damão e Diu, desterrados nos palmares da Zambézia. Viemos da nobreza e da pobreza. Viemos em passos silenciosos dos fugitivos, em passos agressivos de conquistadores. Nascemos diferentes vezes com diferentes formas. Morremos várias vezes, silenciosamente, como os montes na corrosão dos ventos. (CHIZIANE, 2008, p. 24).

Ao retomar esse poder da contação de histórias de envolver o ouvinte e levá-lo a desprender-se momentaneamente do presente e viajar ao passado, colevá-loca-se em evidencia como essa tradição da contação de histórias se faz presente na narrativa de Paulina Chiziane, resguardando, na escrita, a oralidade tradicional da cultura moçambicana:

O pensamento colectivo viaja para o longe, para lá onde não se pode voltar nunca mais. Para o tempo das lutas sangrentas, tempo de sofrimento. Com

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22 bandos de gente correndo para cá e para lá. Matando-se. Odiando-se de dia, na hora do combate. Amando-se de noite, na pausa de fogo e deixando marcas de passagem. O ódio gerando amor na morte do sol. Cada um recorda o seu próprio percurso. As pedras do caminho. Percursos alegres, tristes, desesperados, espinhosos. E começam a pensar na louca do rio com brandura. (CHIZIANE, 2008, p. 24).

Michael Pollak (1989) vai tratar dessa memória, nomeada por alguns autores como coletiva, como memória “enquadrada”. Ele chama de enquadramento da memória ao trabalho realizado para se manter a coesão de fatos passados para trazê-los para o presente, assim como para manter uma fronteira do que o grupo tem em comum. Esse trabalho tem limitações e exige imparcialidade do sujeito ao fazê-lo:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.(...) Todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a certas exigências de justificação. (POLLAK, 1989, p. 10).

O sujeito terá, a partir da memória, sua sensibilidade – no que concerne ao pertencimento a um determinado grupo – aguçada. É esse sentimento que ora dá ao grupo coesão ou não, a ideia de pertencimento a uma determinada sociedade ou não. Nesse sentido justifica-se o enquadramento da memória dentro de uma sociedade, uma vez que esse cerceará aquelas lembranças que se tem interesse em trazer para presente.

A esposa do régulo, ao trazer à tona rememorações de uma história comum às mulheres da aldeia, realça o sentimento de pertencimento delas àquela comunidade. Essa retomada leva as mulheres a perceberem Maria das Dores como

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fruto da história do país delas, dos seus antepassados, de suas famílias, histórias compartilhadas ou vivenciadas também por elas e assim a complacência com Maria das Dores emerge, abrindo espaço para um olhar diferenciado para a sua nudez.

Já a retomada do passado da personagem Delfina, mãe de Maria das Dores, se faz pela descrição de sua trajetória de angústia e aflição ao longo da vida, mas também pela arrogância que a leva a desprezar os valores de sua cultura para assimilar a cultura branca portuguesa. A personagem, na descrição da narradora, é comparada a um “monumento na praça” (CHIZIANE, 2008, p. 42), remetendo a um símbolo histórico que traz consigo lembranças do passado de um povo, o qual está metaforizado pela figura da personagem. Em sequência a narradora apresenta todo o aprendizado e experiência adquiridos pela personagem a partir do seu sofrimento e da sua vivência, utilizando, para tanto, palavras que expressam a sua dor, como se observa abaixo:

Fica ali até muito depois de o sol nascer, como um monumento na praça. Mendiga prostrada na esquina de uma rua, esperando a sentença do destino. Exausta de tanto marchar nos caminhos do deserto. Aprendeu com quantos espinhos se faz uma dor. Conhece o tamanho do rosto pelas lágrimas que caem dos olhos à boca. Conhece a partitura da música do choro. A dimensão de um grito, pelo número de vezes que chamou por Maria das Dores vagueando nos confins do universo. Ou no fundo da terra. Conhece o número de grãos de sal em cada lágrima. Sabores? Conhece apenas o fel, o vinagre e o álcool. O velho coração de bêbada sonha com alegrias sem fim no dia em que Maria voltar. (CHIZIANE, 2008, p. 42).

Ao dizer do aprendizado de Delfina a narradora faz uso de metáforas que vão retomar sua história de privação, sofrimentos, desespero, preconceito, subjugação e exposição às mazelas que o histórico de colonização e guerras pela independência do país lhe impôs. Em meio às suas lembranças é apresentada ao leitor (a) uma síntese do seu passado de buscas por ascensão social, algumas conquistas, muitas perdas, assim como várias derrotas, desilusões, dores e vinganças. Ao relembrar

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essa trajetória de vida outros personagens são apresentados, tais como o marido negro José dos Montes, o amante Simba e o segundo marido branco José Soares:

Tive todos os homens do mundo. Dois maridos, muitos amantes, quatro filhos, um prostíbulo e muito dinheiro. O José, teu pai negro, foi a instituição conjugal com que me afirmei aos olhos da sociedade. O Soares, teu padrasto branco, foi a minha instituição financeira. O Simba, esse belo negro, foi minha instituição sexual, o meu outro eu de grandezas imaginárias, que me deixou para ser teu marido. (CHIZIANE, 2008, p. 44).

Delfina é fruto do processo de “desumanização” imposto ao negro pelo colonialismo, conforme analisa Frantz Fanon (1968), o que é apresentado ao leitor (a) a partir das várias memórias da personagem que compõem a narrativa. A narradora traz à tona a história de abuso sexual pelo qual passou Serafina, aproximando sua história à de Delfina, que por sua vez converge com a de Maria das Dores, metaforizando, assim, um ciclo de subjugação humana e feminina pelo qual passaram as mulheres no período do domínio de Moçambique por Portugal. Delfina, ainda muito jovem, assim como fez com a filha Maria das Dores, fora entregue pela mãe, Serafina, a um homem velho e branco em troca de vinho. A partir daí sua vida será marcada pela prostituição, para a qual contará com a conivência da mãe:

O velho branco estava no quarto escuro esperando por ela. Segurou-a. Apalpou-a. Sugou-a. A mãe sorria lá fora, tomando um copo de vinho e esperando por ela. Foi um momento de conflito intenso, em que não conseguia entender a alegria da mãe perante o pecado original. (CHIZIANE, 2008, p. 78).

Como assimilada, o sonho de Delfina era casar-se com um homem branco e rico que poderia virar o jogo da sua vida de negra submetida ao processo colonial, que pudesse dar-lhe o que ela nunca teve, propiciando-lhe ascensão e visibilidade social. Aqui encontramos, retratado no romance, o cruzamento de uma memória

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histórica, oficial, com as memórias da personagem. A política de assimilação foi uma tentativa da França e de Portugal de destruir a tradição cultural de suas colônias africanas e, através da europeização, formar uma elite negra privilegiada por colaborar com os colonizadores.

Assim, a história de Delfina pode ser pensada como uma metáfora do processo de mestiçagem pelo qual passa a nação moçambicana, assim como todas as ações praticadas pela personagem para alcançar seus objetivos podem também ser pensados como uma metáfora do caminho percorrido por muitos moçambicanos, e talvez pelo próprio país, ao longo do processo de colonização.

1.1 Memória e história

A história, assim como a memória, faz reviver aquilo que já não é, aquilo que faz parte do passado. Ambas resguardam que algo possa ser rememorado, retomado, revivido, revisitado no presente, propiciando que se pense, que se reviva, que se analise aquilo que já passou que já ocorreu.

É a memória que, segundo Paul Ricouer (2007), garante que algo ocorreu antes que se forme sua lembrança. A ação de lembrar pressupõe a ocorrência de um evento e consequentemente de um agente para o ocorrido.

Memória e história imortalizam o passado, não permitem que ele se esvaia, que morra ou que caia no esquecimento. Através da história tem-se a oportunidade de revisitar o passado por via da escrita, de monumentos, museus etc. Ela permite que se possa materializar o que a memória guardou, assegurando que o fato não se perca no passado e desapareça.

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Segundo Hayden White, “o discurso histórico só é possível quando se pressupõe a existência do ‘passado’ como algo que se pode falar de maneira significativa.” (WHITE, 1994, p. 21 – destaque do autor). Se o discurso histórico se baseia em um passado para materializá-lo, por via da escrita, a memória fará o seu trabalho de presentificar esse passado, para que então a história sirva-se dele para se constituir como tal.

Inicialmente a memória alimenta a história com seus registros, mas a história também dá a sua contribuição para alimentar a memória. Ambas se complementam, se alimentam, se constroem e vão se tecendo. Encontraremos pontos convergentes entre elas, tais como a presentificação de um passado, o resguardo de fatos ocorridos para serem lembrados ou rememorados para que não caiam no esquecimento. Mas há também divergências.

Segundo Pierre Nora, memória e história se opõem, uma vez que a primeira é atual, coletiva, plural e individualizada, enquanto a segunda representa um passado e tem vocação para o universal. Para Pierre Nora,

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. (NORA, 1993, p. 9).

É exatamente o que opõe memória e história que as fazem se complementar. Enquanto uma é atual a outra é o registro para se garantir que um fato não fique restrito à memória de uma minoria e sim que possa ser acionado no momento em

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que se deseja rememorar algo, trazendo o passado para o presente. De acordo com Pollack,

A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. (...) A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. (POLLACK, 1992, p. 4).

Sendo parte da memória herdada, como afirma Pollak, fica então a cargo do repasse dessa memória para outrem o resguardo da herança memorial de um povo. É a transmissão dessa herança que fará com que um povo tenha uma história comum, sentindo-se parte dela, consolidando-se assim como nação.

A memória é acionada muitas vezes inconscientemente, sem ter sido convocada. É ela que, sendo colocada em ação conscientemente, ou não, pelo sujeito, traz para o presente o passado armazenado, que, acionado por um dos sentidos do indivíduo, emergirá.

No entanto, há também momentos de controle do acionamento da memória pelo sujeito. Exemplo disso é o próprio romance O alegre canto da perdiz, uma vez que esse foi construído ficcionalmente, como foi dito, tendo como pano de fundo uma fatia da história da colonização de Moçambique por Portugal, assim como do período pós-colonial do país.

Paulina Chiziane, ao escrevê-lo, certamente fez acionamentos voluntários tanto de sua memória individual quanto da história do país para compor sua trama narrativa de forma que o fato histórico do colonialismo, mesmo vindo à tona a partir da memória das personagens, pudesse ter uma sequência cronológica de acontecimentos que justificasse o tempo da narrativa. Segundo Candau:

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28 Através da memória o indivíduo capta e compreende continuamente o mundo, manifesta suas intenções a esse respeito, estruturando-o e coloca-o em ordem (tanto no tempo como no espaço) conferindo-lhe sentido. (CANDAU, 2011, p. 61).

Logicamente que o que é trazido à tona, tanto pela memória quanto pela história, emerge posteriormente a um processo de compreensão, seleção e organização do que se pretende evidenciar. O foco que se dá a algo selecionado não pode ser visto como desprovido de uma intencionalidade, qualquer que seja ela, pois há uma intenção no que é evidenciado pela história, assim como pelo que se externa a partir do que a memória deixa emergir. Para Hayden White, tanto o texto histórico quanto o ficcional são providos de uma intencionalidade, qualquer que seja, o que segundo ele aproxima o texto histórico do ficcional:

Assim como o discurso poético, tal como foi caracterizado por Jakobson, o discurso histórico é “intencional”, ou seja, é sistematicamente tanto intra como extra referencial. Essa intencionalidade dota o discurso histórico de uma qualidade de “coisa” semelhante à da enunciação poética, e esta é a razão por que qualquer tentativa para compreender como o discurso histórico trabalha a fim de produzir um efeito-conhecimento deve se basear não numa análise epistemológica da relação da “mente” do historiador com um “mundo” passado, mas antes num estudo científico da relação das coisas produzidas pela e na linguagem com outras espécies de coisas que compreendem a realidade comum. (WHITE, 1994, p.6 – destaques do autor).

Para Hyden White, o trabalho que é feito com a história, na perspectiva de organizá-la dentro de um espaço temporal, assim como também de colocá-la em uma sequência dos fatos, para que se tenha uma coerência, a fim de levar o outro a entendê-la, aproxima-se do trabalho que é feito na construção da ficção. Em ambas, história e ficção, o escritor necessita de um enredo em uma sequência temporal, assim como também seleciona o que, segundo sua intenção ou propósito, ele quer evidenciar, colocar em foco. A narrativa é o modo utilizado por ambas, história e

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ficção, para a escrita daquilo que se pretende contar, tanto ficcionalmente quanto historicamente. De acordo com White,

O discurso literário pode diferir do discurso histórico devido a seus referentes básicos, concebidos mais como eventos “imaginários” do que “reais”, mas os dois tipos de discurso são mais parecidos do que diferentes em virtude do fato de que ambos operam a linguagem de tal maneira que qualquer distinção clara entre sua forma discursiva e seu conteúdo interpretativo permanece impossível. (WHITE, 1994, p. 5 – destaques do autor).

Ainda segundo Hayden White, os historiadores, ao fazerem o trabalho da escrita da história, utilizam as mesmas estratégias linguísticas utilizadas na escrita da ficção. Para ele, o que a história escreve advém de uma interpretação de um evento do passado, antes que se torne fato, pelo viés da história. Essa interpretação faz com que a história não seja meramente a descrição de eventos ordenados cronologicamente e sim que haja coerência na narração desses fatos, o que inevitavelmente a aproxima da escrita da ficção:

Na passagem do estudo de um arquivo para a composição de um discurso e para a sua tradução numa forma escrita, os historiadores têm de empregar as mesmas estratégias da figuração linguística utilizadas por escritores imaginativos para dotar seus discursos daqueles tipos de significados latentes, secundários ou conotativos que requererão que suas obras não só sejam recebidas como mensagens, mas sejam lidas como estruturas simbólicas. O significado latente, secundário ou conotativo contido no discurso histórico é a sua interpretação dos eventos que constituem seu conteúdo manifesto. O tipo de interpretação tipicamente produzido pelo discurso histórico é o que dá àquilo que de outra forma permaneceria apenas uma série de eventos cronologicamente ordenados a coerência formal do tipo de estruturas-de-enredo encontradas na ficção narrativa. A atribuição de uma crônica de eventos de uma estrutura-de-enredo, que eu chamo de operação de “enredamento”, é feita por meio de técnicas discursivas que são de natureza mais tropológica do que lógica. (WHITE, 1994, p. 7 – destaques do autor).

Vale lembrar que a história não é a descrição fidedigna de fatos ocorridos e armazenados pela memória. No processo de transcrição do que está na memória para a história há mudanças, transformações, visões diferenciadas do que passou, o

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que vai comprometer o registro do evento. Catroga nos auxilia a entender melhor essa relação entre memória e história ao conceituá-las. Para ele,

a historiografia será uma reconstituição sempre problemática e incompleta do que já não existe; por isso, constitui uma laicizadora operação intelectual, assente na análise e na atitude crítica. (...) a memória será sempre fundacional, sacralizadora e reactualizadora de um passado que, estando ainda vivo, tende a fundir-se num eterno presente. (CATROGA, 2001, p. 53).

Ao dizer que a história, ao reconstituir o passado, é sempre problemática e incompleta, Catroga está levantando a questão daquilo que a história não traz à tona para ser presentificado, daquilo que ela desconsidera, deixando de lado.

A história, por vezes, lança mão do recalcamento de lembranças, dependendo da intenção ou do propósito de quem a conta. Muitas vezes a história silencia memórias que não servirão a interesses políticos, desconsiderando memórias e eventos ocorridos com aqueles que se encarrega de deixar à margem, excluindo-os do discurso oficial, portanto, silenciando-os. O que será contado pela história oficial será aquilo que uma elite considera relevante a seus interesses, o que exclui as memórias ou eventos das classes subalternas e ou dominadas. De acordo com Catroga, “também a historiografia, apesar de falar em nome da razão crítica, se edifica sobre silêncios e recalcamentos.” (CATROGA, 2001, p. 57).

A memória e a história se complementam e se constroem em um processo mútuo no qual ambas irão contribuir para a consolidação de eventos individuais e ou coletivos. No trecho que se segue, no qual a narradora do romance O alegre canto

da perdiz apresenta o momento em que a mulher do régulo conta para as mulheres

da aldeia a história da sua origem, percebe-se uma ação da personagem no sentido de consolidar um evento coletivo da tradição oral moçambicana, ou seja, a apresentação de uma história comum àquelas mulheres, mas que a história oficial

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de Moçambique construída até a Independência do país não contemplou, para que elas se sintam pertencentes a um mesmo grupo de mulheres que tiveram suas histórias locais silenciadas:

Era uma vez... No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em mundos separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias avançadas, até tinham barcos de pesca. Dominavam os mistérios da natureza e tudo... eram puras, mais puras que as crianças numa creche. Eram poderosas. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne crua e alimentavam-se de raízes. Eram canibais e infelizes. Um dia, um homem jovem tentou atravessar o rio Licungo, para saber o que havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora, que meteu o homem no seu barco. Como houvesse frio, a jovem tentou reanimar o moribundo com o calor do seu corpo. O homem olhou para o corpo dela, completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro. Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os mistérios da criação. E depois... A velha senhora era uma exímia contadora de histórias. Ela sabe as circunstâncias exactas em que se deve usar uma imagem e outra. O que deve ser omitido e o que deve ser dito. (CHIZIANE, 2008, p. 21).

A Mulher do régulo, ao contar essa história para as outras mulheres, rasura a história oficial de Moçambique. O exercício da retomada da memória de um passado tradicional, realizado pela personagem, se faz trazendo à tona lembranças que, por via da contação de história, serão apresentadas às mulheres do presente. Assim, memória, história e esquecimento formam, na narrativa de Paulina Chiziane, uma tríade na qual se inter-relacionam, interpenetram, compõem-se, complementam-se, para então fazer surgir o que é ficcionalmente revelado.

A literatura, por não ter compromisso com a realidade, mas dialogar com ela, ficcionaliza fatos históricos colocando-os em cena sem ter que ficar presa à veracidade dos mesmos. Nesse sentido muitos foram os autores africanos que, na impossibilidade de se manifestarem contrários ao sistema político de colonização de seu país, utilizaram a literatura como um dos meios de se manifestar contrariamente à política imposta a eles, ou para divulgarem a história a partir de um ponto de vista

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mais individual e menos direcionada por uma história oficial dos fatos elaborada a partir de uma visão ocidental que excluía os valores tradicionais moçambicanos.

Nesse sentido vários foram os intelectuais em Moçambique que, no período pós-colonial, problematizaram as relações socioculturais e históricas do processo de colonização do país.

A esse respeito Inocência Mata (2006) faz uma reflexão acerca dos intelectuais dos países africanos de língua portuguesa, que fizeram uso da literatura como meio de divulgar a história do país e manifestarem-se com relação ao sistema de governo que lhes foi imposto:

É que não raro é apenas por via da literatura que as linhas do pensamento intelectual nacional se revelam, e se vêm revelando, em termos de várias visões sobre o país, actualizando identidades sociais, colectivas e segmentais, conformadas nas diversas perspectivas e propostas textuais. (MATA, 2006, p.33.)

Pensando na perspectiva da literatura como um viés pelo qual os autores africanos de língua portuguesa também puderam se expressar e colocar em foco aquilo que a história oficial omitiu ou simplesmente não considerou relevante, justifica-se a leitura da obra de Chiziane pelo diálogo que ela estabelece com a história, a memória e a identidade. Nesse sentido, mais uma vez Inocência Mata nos auxilia com seu estudo acerca do uso da literatura como instrumento para, como já foi dito, possibilitar a emersão das vozes dos silenciados, através das personagens, ou ainda, preencher lacunas deixadas pela história. De acordo com Mata:

o autor – em pleno domínio e responsabilidade sobre o que diz, ou faz as suas personagens dizerem – psicografa os anseios e demónios de sua época, dando voz àqueles que se colocam, ou são colocados, à margem da “voz oficial”: daí poder pensar-se que o indizível de uma época só encontra lugar na literatura. (MATA, 2006, p. 33 – destaques da autora).

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Assim, podemos pensar que as personagens femininas do romance de Chiziane fazem emergir vozes silenciadas ao longo e pela história oficial de Moçambique. Essas personagens podem ser lidas como metonímias dos milhares de mulheres silenciadas e subalternizadas, ora pelo sistema patriarcal que vigora em Moçambique, ora pelo processo de colonização pelo qual passou o país.

De acordo com Gayatri Chakravorty Spivak, “O termo subalterno descreve as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.” (SPIVAK, 2010, p. 12).

O que se percebe no romance de Paulina Chiziane é que, apesar de ocuparem um lugar de subalternidade, as mulheres reivindicam seus lugares, seus espaços, contrariando a condição de silenciamento a que são submetidas.

A obra O alegre canto da perdiz mostra bem essa relação entre memória, história e silêncio ao fazer emergirem, no espaço narrativo, as memórias das personagens, especialmente as femininas.

Em uma das passagens da obra, referente à personagem Serafina, fica evidente o como fato de as mulheres perderem seus filhos para o processo escravocrata fez com que elas criassem uma resistência, assim como uma aversão à própria etnia. Nesse momento, o (a) leitor (a) tem a oportunidade de perceber como a memória da personagem Serafina é apresentada dentro do contexto da história do período colonial de Moçambique. Para a personagem, nesse momento da narrativa, se ter filhos negros é o que alimenta e mantém a escravidão, então, o melhor é aderir ao discurso colonial da “melhoria da raça”, exterminando a raça negra e, assim, combater a escravidão, lutando com as armas que as mulheres têm contra ela, o sexo. No excerto a seguir, no qual Serafina aconselha a filha Delfina a

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melhorar a raça casando-se com um homem branco, fica perceptível como essa ideia proliferou entre as mulheres negras que tiveram seus filhos tomados para servirem como escravos dentro do sistema colonial:

- Melhora a tua raça, minha Delfina! Repete inconscientemente o que ouvia da boca de tantas mães negras. E dos brancos. Casar com um preto? Confirmando que o sexo é uma arma de combate em tempo de guerra. Casar com um preto? Palavras comuns na boca dos marinheiros. Que os próprios negros adoptam como verdades inquestionáveis. As frases ouvidas gravam-se na mente e materializam-se. E as falsidades ganham a forma de verdade. Serafina absorveu a vida inteira as injúrias nos gritos dos marinheiros, que acabaram semeadas na consciência. Na arena da consciência luta contra ti próprio, numa batalha sem vitória. O estigma da raça deixou sementes cancerígenas, que se multiplicam como a raiz de um cancro, e matarão gerações, mesmo depois da partida dos marinheiros. (CHIZIANE, 2008, p. 92)

A ideia de “melhoria” da raça, defendida pela personagem Serafina, não pairou somente entre as mães negras que perderam seus filhos, ou porque foram mortos na guerra, ou porque foram raptados para serem vendidos como escravos, mas também entre os outros negros e brancos, ficando assim instaurado o preconceito racial que se prolifera, estigmatizando a raça negra, colocando-a como uma raça fadada à submissão, ao sofrimento, à humilhação, ao desrespeito, à pobreza, à escória.

Segundo Frantz Fanon (1968), o trauma deixado pelo processo de dominação e humilhação colonial, ao invés de impor um estado de submissão ao colonizado e de apatia a esse processo, vai levá-lo a uma ira que terá uma força tão grande quanto a da opressão dos mesmos. Essa ira vai levar o colonizado a, inicialmente, lutar contra os seus, uma vez que ele ainda não tem como lutar contra o colonizador. A necessidade da reação torna-se inerente ao processo de dominação. O colonizado sente que algo tem de ser feito, que ele precisa combater e lutar contra aquele que o humilha, que lhe tira a sua cultura, sua dignidade, que quer

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lo para melhor dominá-lo. Apesar de sentir vontade de reagir contra aquele que o ataca e oprime, o colonizado sabe que o sistema é maior que ele. Então ele combate os seus, extirpa suas dores interiores naqueles que estão na mesma condição de domínio que ele. Fanon explica que os colonizados:

mal abriram os olhos viram seus pais ser espancados. Em termos de psiquiatria, ei-los “traumatizados”. Para a vida inteira. Mas essas agressões incessantemente renovadas, longe de os induzir à submissão, atiram-nos numa contradição insuportável pela qual cedo ou tarde o europeu pagará. Depois disso, o aprendizado a que por sua vez serão submetidos, aprendizado de humilhação, dor e fome, suscitará em seus corpos uma ira vulcânica cujo poder é igual ao da pressão que se exerce sobre eles. Será, dizeis vós, que só conhecem a força? Por certo; de início será apenas a do colono e, pouco depois, a deles, isto é, a mesma que recai sobre nós da mesma maneira que o nosso reflexo vem do fundo de um espelho ao nosso encontro. (FANON, 1968, p. 11 – destaques do autor).

A análise feita por Fanon acerca da condição do colonizado nos ajudará a compreender melhor as atitudes e ações das personagens Serafina e Delfina. Inicialmente o (a) leitor (a) tende a vê-las como vilãs, como mulheres desumanizadas, atrozes, uma vez que a primeira entrega a própria filha à prostituição e a segunda usa a filha como moeda de troca no pagamento de uma dívida. Compreendemos melhor também as atitudes racistas dessas personagens. Como querer e aceitar uma raça que é a peça propulsora de tanta dor, discriminação e humilhação? Como querer dar continuidade ou resguardar a existência de uma raça subjugada? Uma vez que é exatamente o domínio dessa raça que causa tanta atrocidade àqueles que a ela pertencem, porque querê-la bem, ou sentir-se orgulhoso de pertencer a ela?

A ideia de purificação da raça, defendida tanto por Serafina quanto por Delfina, é o instrumento que ambas acreditam ser eficaz no combate à guerra racial que se instaurou entre colonizador e colonizado. É a maneira que ambas encontram

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para reagir a tudo que as faz sentirem-se menores, desumanizadas, subjugadas, inferiores, a maneira pela qual desafiam o sistema colonial. De acordo com Memmi (1977):

A primeira tentativa do colonizado é a de mudar de condição mudando de pele. Um modelo tentador e muito próximo a ele se oferece e se impõe: precisamente o do colonizador. Este não sofre de nenhuma de suas carências, tem todos os direitos, goza de todos os bens e se beneficia de todos os prestígios; dispõe de riquezas e de honrarias, da técnica e da autoridade. É, enfim, o outro termo da comparação que esmaga o colonizado e o mantém na servidão. A primeira ambição do colonizado será a de igualar-se a esse modelo prestigioso, de parecer-se com ele até nele desaparecer. (MEMMI, 1977, p. 106).

Todo o processo de colonização e, por conseguinte, de dominação e controle do colonizado vai fazer com que esse busque meios e modos de reação, o que é inerente ao ser humano quando se sente, de alguma forma, ameaçado ou mesmo atacado na sua condição básica de ser humano. Fanon, ao discorrer “sobre o pretenso complexo de dependência do colonizado”, apresenta o processo de negação e não aceitação da sua cor pelo qual passa o negro a partir da chegada do branco colonizador, que vai impor não só uma diferença racial, econômica e social entre ambos, mas também a ideia de supremacia racial do branco. Fanon assim expressa o sentimento do colonizado:

começo a sofrer por não ser branco, na medida em que o homem branco impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, “que sou uma besta fera, que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornecedor de cana macia e de algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no mundo.” (FANON, 2008, p. 94 – destaques do autor).

É a ideia de superioridade racial do branco que vai levar o negro, retratado no romance, a não querer ser negro, a negar sua raça, seus valores, suas crenças, sua cultura. Ele então passa a querer assimilar o que é do branco, uma vez que lhe é

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imposto o tempo todo que o branco é melhor, que ser branco é a única maneira de ser respeitado e tratado como ser humano. O negro, então, passa não só a querer ser branco, mas também a querer ter tudo o que o branco tem assimilando sua cultura, seus costumes e etc. Passa a querer um (a) cônjuge da raça branca, afinal de contas há melhor maneira de sua aceitação, assim como de ascensão social, do que constituindo matrimônio com o branco?

A personagem Delfina pode ser pensada como esse negro que quer ser aceito dentro de uma sociedade que valoriza e respeita somente o branco, introjetando o racismo que vai acompanhá-la e contra o qual ela não consegue lutar. No capítulo nove, quando Serafina conhece José dos Montes, ao vê-lo sua memória aciona lembranças da dor da perda dos filhos para a guerra. A narradora traz à tona essas lembranças de Serafina, como pode se ver no trecho a seguir:

Serafina fica com os olhos presos à imagem de José. Barro esculpido. Filho dos matagais e dos palmares. Nascido no ventre negro da escravatura. Aquela imagem desperta fantasmas, ressuscitando sóis antigos, numa viagem ao passado. O pátio da casa sitiado. Celeiro em chamas. Gente em pânico à procura de abrigo na sombra de um grão de areia. Terra em lágrimas. Gente em debandada, apanhada, acorrentada. Bastonadas de sipaios. Gritos lascinantes de filhos desaparecendo no mapa do tempo. Corpos caindo como fruta madura. Os muzambezi resistindo, avançando, matando e morrendo aos gritos: pátria ou morte, mas nunca a escravatura! Três crianças arrancadas dos braços de Serafina ao som das balas, na noite fúnebre dos sipaios. Dentro do coração da Serafina, a contradição. É assolada por um desejo irresistível de abraçar, afagar e mimar aquele jovem com ternura de mãe. O desejo é derrubado por espíritos adormecidos na tatuagem da memória. Vira-se para José e fala num tom agressivo. – Que nível tens tu para casar com a minha Delfina? – Eu? – Vamos, responde-me, homem maldito! (CHIZIANE, 2008, p. 94).

Nesse excerto o (a) leitor (a) encontra, nas memórias de Serafina, a compreensão de suas atitudes. A vivência da escravidão que arrancou dela os filhos é que vai fazer com que Serafina se torne uma pessoa tão dura, que vê no casamento da filha Delfina com um branco o único meio de evitar que ela passe pelas mesmas dores e perdas que sofrera.

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38 2 O GRITO SILENCIOSO DAS MEMÓRIAS SUBTERRÂNEAS

Memórias subterrâneas são aquelas que não tiveram lugar na história oficial, pertencentes, geralmente, àqueles grupos de excluídos que, de alguma forma, foram silenciados, uma vez que estão à margem, não tendo, portanto a oportunidade de se fazerem ouvir ou de se verem representados pela história dita oficial. É em função dessa história oficial que se seleciona e se determina o que é, ou não, relevante de ser apresentado por ela, de acordo com interesses políticos que irão determinar o que será dito ou não dito, o que será apresentado como lembranças de uma memória totalizadora, a fim de se consolidar como memória coletiva ou não. De acordo com Pollak:

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa (...) uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. (POLLAK, 1989, p. 9).

A história leva em consideração as memórias e eventos que, de alguma forma, atenderão a interesses meramente políticos. Por ser organizada, e por isso mesmo ter credibilidade, e ser tida como oficial, a história faz com que aquele que a lê acredite fielmente no que ela traz como verdade irrefutável, desconsiderando totalmente outras versões dessas mesmas ocorrências. As classes abastadas terão suas vozes representadas pela história, mas os subalternos não conseguem se fazer ouvir, serem representados por essa mesma história. Novamente buscando Pollak, vemos que:

O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não-dito”

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39 à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples “montagem” ideológica, por definição precária e frágil. (POLLAK, 1989, p. 10 – destaques do autor).

Nesse sentido é possível se fazer uma leitura da obra O alegre canto da

perdiz como um espaço aberto à emersão dessas vozes chamadas por Pollak de

“clandestinas e inaudíveis”. A obra permite que, pelo viés da literatura, se faça um contraponto à história oficial de Moçambique, masculina e branca, propondo uma reflexão sobre como essa conta a versão do ponto de vista da elite patriarcal e colonial, deixando à margem aqueles que lá foram colocados ao longo da história.

Como já dissemos, a história da dominação de Moçambique por Portugal, o processo de miscigenação advindo dele, assim como a história do período imediatamente posterior à independência moçambicana, vem à tona como pano de fundo das histórias das personagens femininas que integram o romance de Paulina Chiziane, que recria, ficcionalmente, a história da dominação, da luta, do sofrimento, das perdas, dos danos e da reconstrução do país, sob a perspectiva das mulheres.

No contexto narrativo, encontramos uma narradora que, além de apresentar ao leitor (a) a história de mulheres que, por meio de suas memórias, encenam o inicio da colonização de Moçambique, também deixa notória a percepção crítica dessas personagens mulheres em relação à apresentação romanceada que a história oficial faz deste momento de domínio e escravidão dos moçambicanos.

Por isso, em O alegre canto da perdiz várias são as vozes silenciadas que, emergindo no romance, terão a oportunidade de subverter a condição de silêncio e subalternidade imposta às mulheres por viverem em uma sociedade que, além de ser colonizada/colonizadora, também é patriarcal, o que silencia duplamente a mulher. De acordo com Spivak (2010), as mulheres passaram por um processo

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duplo de colonização, tanto na esfera doméstica quanto na esfera pública. A pesquisadora acentua as armadilhas e as aporias em que pode cair, até mesmo, a historiografia radical, dando atenção particular a exemplos de histórias que continuam sendo ignoradas ainda hoje por historiadores revisionistas, especialmente a história das mulheres subalternas nativas. Para Spivak, essas mulheres foram submetidas a uma dupla colonização porque, na esfera doméstica, submetem-se ao patriarcado dos homens e, na esfera pública, ao patriarcado e ao colonialismo.

A partir das memórias das personagens o (a) leitor (a) vai tomando conhecimento das atrocidades das quais elas foram vítimas, uma vez que são duplamente violentadas. Primeiro quando os colonizadores impõem-lhes uma substituição de sua cultura em detrimento de uma cultura europeia, abarcando aí tanto a língua, como as tradições, costumes, entre outros. Depois quando elas são abusadas sexualmente, ou são obrigadas muitas vezes a se prostituírem para resguardar o alimento para o sustento da família, perdendo assim sua dignidade, sua esperança, seus preceitos morais e éticos em detrimento de uma luta constante contra a subjugação, a fome, a morte e a humilhação, em busca apenas da sobrevivência, pois os sonhos foram tolhidos, usurpados.

Vejamos então como o romance de Chiziane faz essa abordagem a partir das personagens femininas.

No caso da personagem Maria das Dores, as mulheres da aldeia, ao iniciarem uma verdadeira inquisição a ela, querendo saber quem é, de onde vem e por que está nua, detonam os questionamentos dela acerca do seu passado. A personagem nada responde e foge por entre as águas do rio. Depois que a multidão se vai ela retorna ao mesmo lugar e inicia uma reflexão, numa tentativa de resgatar, por via da

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