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feito: livrar-se da alma recessiva. Livrar-se de mim. Nossos pais ficaram muito aliviados quando minhas aparições começaram a desaparecer, quando os

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Academic year: 2021

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Prólogo

A

ddie e eu nascemos dentro do mesmo corpo, os dedos fantasmagóricos de nossas almas entrelaçados antes de inspirarmos o ar pela primeira vez. Os primeiros anos que passamos juntas foram também os mais felizes. Depois vieram as preocupações, a tensão em torno da boca de nossos pais, os olhares de censura de nossos professores do jardim de infância, a pergunta que todos sussurravam quando achavam que não estávamos escutando.

Por que elas não estão se definindo?

Definindo.

Tentávamos pronunciar a palavra com nossa boca de 5 anos, experimentando-a na língua.

De-fi-nil-do.

Sabíamos o que significava. Mais ou menos. Significava que uma de nós deveria assumir o controle. Que a outra deveria se desvanecer. Hoje eu sei que é muito, muito mais do que isso. Mas aos 5 anos, Addie e eu ainda éramos ingênuas, ainda não tínhamos consciência.

O verniz da inocência começou a se desgastar no primeiro ano. Nossa orientadora pedagógica de cabelos grisalhos fez o primeiro arranhão.

— Sabem, queridas, a definição não é assustadora — dissera ela enquanto observávamos sua boca fina pintada com batom vermelho. — Agora pode parecer que é, mas acontece com

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todo mundo. A alma recessiva, seja de quem for, simplesmente vai... dormir.

Ela nunca mencionou quem achava que sobreviveria, mas não precisava. No primeiro ano, todos acreditavam que Addie tinha nascido como a alma dominante. Ela podia nos mover para a esquerda quando eu queria ir para a direita, recusar-se a abrir a boca quando eu queria comer, gritar Não quando eu queria desesperadamente dizer Sim. Ela podia fazer tudo isso com pouquíssimo esforço e, conforme o tempo passava, eu ficava cada vez mais fraca enquanto o controle dela crescia.

Mas às vezes eu ainda conseguia forçar minhas aparições, e o fazia. Quando mamãe perguntava sobre nosso dia, eu reunia todas as minhas forças para contar a ela a minha versão das coisas. Quando brincávamos de esconde-esconde, eu nos fazia abaixar atrás das cercas em vez de correr para bater no pique. Aos 8 anos, eu nos sacudi quando estávamos levando café para o papai. As queimaduras deixaram cicatrizes em nossas mãos.

Quanto mais minha força diminuía, mais ferozmente eu lutava para ficar, avançando de todas as maneiras que podia, tentando convencer a mim mesma de que não desapareceria. Addie me odiava por isso. Eu não conseguia evitar. Lembrava da liberdade que costumava ter; nunca de forma completa, é claro, mas me lembrava de quando eu podia pedir a nossa mãe um copo d’água, um beijo quando caíamos, um abraço.

“Desista, Eva”, gritava Addie sempre que brigávamos.

“Sim-plesmente desista. Vá embora.”

E, por muito tempo, acreditei que um dia eu iria.

Fomos ao nosso primeiro especialista aos 6 anos. Os es-pecialistas eram muito mais insistentes do que a orientadora pedagógica. Eles faziam seus testezinhos e suas perguntinhas e cobravam honorários que não eram nada diminutos. Quando nosso irmão menor chegou à idade de se definir, Addie e eu já tínhamos passado por dois terapeutas e quatro tipos de medi-camento, todos tentando fazer o que a natureza já deveria ter

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feito: livrar-se da alma recessiva. Livrar-se de mim.

Nossos pais ficaram muito aliviados quando minhas apa-rições começaram a desaparecer, quando os médicos vieram com laudos positivos nas mãos. Eles tentavam esconder, mas nós ouvíamos os “finalmente” sussurrados do lado de fora de nossa porta horas depois de terem nos colocado para dormir. Durante anos, tínhamos sido o incômodo da vizinhança. O segredinho sórdido que não era tão secreto. As garotas que simplesmente não se definiam.

Ninguém sabia que no meio da noite Addie me deixava emergir e andar pelo nosso quarto com minhas últimas forças, tocando os vidros frios da janela e chorando minhas próprias lágrimas.

“Sinto muito”, sussurrava ela nesses momentos. E eu sabia que sentia mesmo, apesar de tudo o que tinha dito antes. Mas aquilo não mudava nada.

Eu estava apavorada. Tinha 11 anos, e ainda que durante toda a minha curta vida tivesse ouvido que era natural a alma recessiva se desvanecer, eu não queria ir. Queria mais 20 mil nasceres do sol, mais 3 mil dias de verão na piscina. Eu queria saber como seria dar o primeiro beijo. Os outros recessivos ti-nham sorte por desaparecer aos 4 ou 5 anos. Eles sabiam menos. Talvez tenha sido por isso que as coisas findaram desse jeito. Eu queria a vida demais, me recusava a abrir mão dela. Não desvaneci completamente.

Meu controle motor desapareceu, sim, mas eu fiquei, presa em nossa cabeça. Observando, ouvindo, mas paralisada.

Ninguém além da Addie e de mim sabia, e ela não contaria. Nessa época, sabíamos o que esperava as crianças que nunca se definiam, que se tornavam híbridas. Nossa cabeça estava cheia de imagens das instituições onde elas eram amontoadas e de onde nunca mais voltavam.

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orien-tadora pedagógica se despediu de nós com um sorrisinho satis-feito. Nossos pais estavam em êxtase. Eles empacotaram tudo e nos mudamos para um lugar novo, uma nova vizinhança a quatro horas de distância, onde ninguém sabia quem éramos e podíamos ser mais do que Aquela Família Com a Menininha Estranha.

Eu me lembro de ver nosso novo lar pela primeira vez quando olhei por cima da cabeça de nosso irmão menor e através da janela do carro para a pequena casa bege com telhado escuro de madeira. Lyle chorou quando a viu, tão velha e malcuidada, com o jardim repleto de ervas daninhas. Enquanto nossos pais estavam no frenesi de acalmá-lo, descarregar as coisas do caminhão de mudança e arrastar as malas para dentro, Addie e eu fomos deixadas sozinhas por um instante e ganhamos um minuto para ficar simplesmente paradas no frio do inverno e respirar o ar cortante.

Depois de tantos anos, as coisas finalmente estavam do jeito que deviam. Nossos pais podiam olhar os outros nos olhos no-vamente. Lyle podia ficar perto de Addie em público outra vez. Entramos em uma turma do sétimo ano que não sabia de todos os anos que tínhamos passado encolhidas em nossa carteira, querendo poder sumir.

Eles podiam ser uma família normal, com preocupações normais. Eles podiam ser felizes.

Eles.

Eles não percebiam que não eram eles. Ainda éramos nós. Eu ainda estava ali.

— Addie e Eva, Eva e Addie — cantava nossa mãe quando éramos pequenas, nos pegando no colo e nos girando no ar. — Minhas menininhas.

Agora, quando ajudávamos a fazer o jantar, papai só per-guntava:

— Addie, o que você gostaria de comer hoje?

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Eva e Addie. Era só Addie, Addie, Addie. Uma menininha, não duas.

Referências

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