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Ficção e jornalismo em "O continente": o caso dos alemães Carl Winter e Carl von Koseritz

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Academic year: 2020

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ANTARES, vol.4, nº8, jul./dez. 2012 42

Ficção e jornalismo em O Continente: o caso dos alemães

Carl Winter e Carl von Koseritz

*

Márcio Miranda Alves**

Resumo

O artigo aborda a relação entre ficção e jornalismo no tema da imigração alemã em O

Continente, primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Notícias

de jornais e revistas aparecem em diversos momentos e em diferentes formas ao longo da narrativa como fontes que sedimentam a construção dos eventos históricos. No caso da imigração, analisamos essa relação a partir das ideias do personagem Carl Winter e a correspondência entre a figura da ficção e o jornalista Carl von Koseritz.

Palavras-chave

Erico Verissimo; O Tempo e o Vento; jornalismo; imigração alemã.

Abstract

This article discusses the relationship between journalism and fiction on the subject of German immigration in O Continente, the first part of the trilogy O Tempo e o Vento, by Erico Verissimo. News from magazines and newspapers appeart many times and in different ways through the narrative as sources that support the creation of the historical events. In the case of immigration, we analyse this relationship from the ideas of the character Carl Winter and the correspondence between the fictional character and journalist Carl von Koseritz.

Keywords

Erico Verissimo; O Tempo e o Vento; journalism; german immigration.

*

Trabalho produzido no âmbito de um estágio de doze meses (doutorado sanduíche) na Universidade Livre de Berlim, em 2011-2012, sob a supervisão de Ligia Chiappini.

**

Graduado em Jornalismo pela Unisinos (2001) e Mestre em Literatura Brasileira pela UFSC (2007). Desenvolve, desde 2009, tese de doutorado na USP, com bolsa CAPES.

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A imprensa em O Tempo e o Vento

A imprensa escrita consiste em uma fonte de informação essencial para a composição do eixo histórico de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Na consulta a jornais e revistas, o autor certifica-se de datas e detalhes de eventos históricos importantes para o período representado, conforme podemos observar na construção ficcional das revoluções de 1923 e 1930 e das eleições presidenciais de 1910 e 1945. Essa opção do escritor pela pesquisa em edições de jornais e revistas não se restringe, porém, aos grandes temas da política gaúcha e nacional. As referências à imprensa também contemplam os folhetins, as encenações teatrais e o próprio processo do fazer jornalístico, evidenciado pelos jornais fictícios, jornalistas e tipógrafos presentes na narrativa.

Denominamos essa técnica utilizada em O Tempo e o Vento de “recurso jornalístico”, empregada pelo autor para garantir certo efeito de “verdade” e “credibilidade” aos fatos narrados na ficção. O recurso aparece de diferentes formas na trilogia, seja na transcrição direta de notícias ou na simples menção a determinado jornal, e pode variar conforme aumenta a distância temporal entre o momento da criação literária e a época representada. No caso específico da imigração alemã, um tema recorrente em O Continente, a relação entre ficção e jornalismo aparece nas figuras do personagem Carl Winter e do jornalista Carl von Koseritz.

Carl von Koseritz e os jornais alemães

A imprensa alemã foi um meio eficaz de propagação das aspirações das lideranças alemãs no Rio Grande do Sul do século XIX. Embora existam divergências quanto à importância dos jornais na vida social dos imigrantes e seus descendentes, tendo em vista o analfabetismo e a falta de recursos para a assinatura, alguns estudiosos da imigração apontam a imprensa – ao lado da Igreja e da escola – como uma das instituições fundamentais para a construção de uma sociedade teuto-brasileira e a manutenção da etnicidade alemã.

Gehse (1931, p. 13-14, tradução nossa) afirma que a imprensa,

frente ao governo e ao contexto luso-brasileiro defende os interesses dos imigrantes alemães, dentro das colônias mantém vivo o sentimento de germanidade e estabelece a ligação com a antiga pátria. Além disso, sua importância se estende diretamente aos alemães das novas colônias, onde, exceto por algum livro popular, o jornal e a Bíblia representam a única leitura. Para o colono solitário, o jornalzinho que talvez chega apenas uma vez por mês pelo correio ou que toma emprestado ao vizinho, e do qual tira todo o seu conhecimento, significa aquilo que o livro didático significa

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ANTARES, vol.4, nº8, jul./dez. 2012 44 para a criança. Deve-se levar isso em consideração quando se quer compreender plenamente a importância dos jornais alemães no Brasil.

Essas folhas significaram, entre tantas funções, um espaço privilegiado pelo qual era possível o estabelecimento de alguns dos mecanismos de socialização ou “ressocialização” dos imigrantes, colocando-os em contato com as normas e os valores de uma nova realidade: familiarização, condicionamento, identificação ou imitação (CAPARELLI, 1980, p. 93-94). Intelectuais de diferentes correntes ideológicas utilizaram essa ferramenta na defesa de seus ideais, entre eles o jornalista Carl von Koseritz, um dos mais influentes teuto-brasileiros da época.

Filho do barão von Koseritz, Carl nasceu em Dessau, no ducado de Anhalt, em 1830. Participou em 1848 das revoluções liberais na Alemanha e embarcou para o Brasil na condição de aprendiz de marinheiro em 1851, juntamente com a Legião Alemã contratada pelo Império brasileiro para lutar contra Rosas na Guerra do Prata. Ao chegar ao Rio de Janeiro, engajou-se no 2º Regimento de Artilharia da Legião Alemã, vindo a desertar em Rio Grande, no Rio Grande do Sul.

Em Pelotas, Koseritz exerce as atividades de cozinheiro, de guarda-livros, de professor particular de piano e de docência no Colégio União. Começa a colaborar em 1855 para os jornais Der Einwanderer, de Porto Alegre, e O Noticiador, de Pelotas. Três anos mais tarde adquire uma tipografia e passa a editar o Brado Sul, o primeiro jornal diário de Pelotas. Nesses anos iniciais de atividade jornalística, Koseritz também publica seus primeiros dramas e contos, como as peças Inês e Nini, ambas de 1859, seguindo a corrente do teatro romântico, e as narrativas A Donzela de Veneza e A

véspera da batalha, de 1858, publicadas no caderno literário Ramalhete Rio Grandense.

Apesar de alguns lampejos literários, a vocação de Koseritz residia na atividade jornalística, mais precisamente na polêmica política. Logo começa a usar os jornais com essa finalidade, enfrentando os progressistas, que pertenciam ao partido dominante na cidade. A intromissão de um descendente alemão nos assuntos da política, agravada pelo fato de esse não ser sequer naturalizado brasileiro, era considerada uma afronta pelos luso-brasileiros. Após atacar com violência as autoridades, Koseritz foi obrigado a fechar o jornal por ordem do delegado de polícia, até poder comprovar que o periódico tinha um editor brasileiro como redator responsável. Esse editor surge na figura de Domingos José de Almeida, ex-combatente na Revolução Farroupilha, que se oferece para assumir a responsabilidade pela publicação do jornal, a tempo de participar

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da campanha eleitoral de 1860.

Preocupado com a segurança da família, Koseritz muda-se para Rio Grande, onde atua como redator do jornal O Povo e colabora com o liberal Eco do Sul, além de fundar o Ateneu Rio-Grandense, uma escola de instrução primária e secundária. Pouco depois, em uma de suas viagens a Porto Alegre, recebe um convite para assumir a direção do jornal Deutsche Zeitung. Koseritz aceita o convite e muda-se com a família para a Capital da Província, assumindo as funções em junho de 1864. Sob o seu comando, o Deutsche Zeitung torna-se o primeiro porta-voz das aspirações da minoria alemã e através do qual os imigrantes passam a discutir seus próprios problemas e a intervir na esfera pública da Província.

O início da atuação jornalística de Koseritz na Capital assinala o princípio da expansão da imprensa teuto-gaúcha, justamente porque várias outras folhas surgem com a finalidade de combater as ideias propagadas pelo Deutsche Zeitung. Em edições bissemanais, Koseritz exerce intensa influência sobre os imigrantes alemães de todas as colônias e transforma-se na “mais eminente e interessante personalidade dos quadros da colonização alemã no Rio Grande do Sul, até o fim do Império”, nas palavras de Roche (1969, p. 659-60). Pelas páginas do jornal, ele procura incentivar os alemães a participarem da vida política e civil brasileiras, através da naturalização, além de fornecer orientações de ordem prática nas aéreas do direito, da economia e da saúde.

A concepção teuto-brasileira de Koseritz girava em torno da conciliação entre a situação política e econômica dos imigrantes e seus descendentes, ligados ao Brasil pela cidadania brasileira, e a manutenção da germanidade transmitida pelos laços culturais e pelo sangue. Em outras palavras, Koseritz propunha integração política, fidelidade ao Brasil e plena contribuição da força de trabalho alemã para o desenvolvimento da nova pátria, ao mesmo tempo em que defendia a peculiaridade étnica alemã – o Deutschtum. Essa ideologia, a princípio recebida com estranhamento até mesmo pelos teuto-brasileiros, pregava a possibilidade de sucesso no casamento entre pertencimento ao Estado brasileiro e especificidade cultural pela herança de sangue conformada pelas instituições próprias da comunidade (SEYFERTH, 1999, p. 299).

Para realizar com maior eficiência o seu projeto de integração do elemento alemão à sociedade brasileira, Koseritz amplia seu campo de atuação em diferentes jornais escritos em português. Um ano após assumir a redação do Deutsche Zeitung, já dirigia paralelamente o jornal conservador A Ordem, que teve curta duração. Em

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seguida, atua no Mercantil, onde conquista prestígio durante a cobertura da Guerra do Paraguai conclamando leitores e correligionários a pegarem em armas. A partir de 1868, começa a colaborar com o Jornal do Comércio, que funcionava como órgão oficial do partido liberal oposicionista. Em 1869, os liberais fundam seu próprio jornal, A

Reforma, e Koseritz assume a direção de redação, sendo considerado um dos mentores

intelectuais da ideologia liberal no Sul do Brasil.

Na década de 1870, Carl von Koseritz dedica-se a defender as ideias em voga na Alemanha em torno do Kulturkampf. Empolgado com as teorias evolucionistas e o materialismo científico, ataca de todas as formas o cristianismo, sem poupar os jesuítas nem os luteranos. Para Koseritz, ciência e religião não podiam conciliar-se e, além do mais, a influência da igreja católica fazia-se sentir na política e na legislação do país, motivos suficientes para ser combatida. No Jornal do Comércio, Koseritz publica uma série de artigos que são reunidos no volume Roma perante o século (1871), nos quais aborda temas como a infalibilidade papal e o celibato, denunciando a identificação da Igreja com os jesuítas e a dominação desses últimos sobre o clero. Também publica A

Maçonaria e a Igreja (1873) e edita o semanário maçom A Acácia, criado em 1876,

além do álbum humorístico dominical A Lanterna (1877). Na temática do evolucionismo, publica A terra e o homem à luz da moderna ciência (1884), em que defende o pioneirismo do Rio Grande do Sul na introdução dos princípios evolucionistas no Brasil.

A influência de Carl von Koseritz no campo da opinião pública cresce a cada ano, principalmente a partir de 1879, quando começa a trabalhar na Gazeta de Porto

Alegre, folha que o alça à condição de um dos principais jornalistas em atividade no

Brasil. Aproveitando-se da independência editorial da Gazeta, desvinculada de partidos políticos, Koseritz amplia a sua área de atuação, tratando de temas tão variados como filosofia, economia, política, geografia, folclore, literatura, linguística e etnografia. Assim, sempre preocupado em contribuir para o progresso do Brasil, ele transforma a

Gazeta em um dos melhores jornais doutrinários do país, acompanhado com interesse

pelos intelectuais de todo o Império.

Além de uma intensa atividade nas folhas gaúchas, Koseritz também escrevia regularmente para jornais publicados na Alemanha, nos quais defendia o Rio Grande do Sul como destino para os imigrantes. No Allgemeine Auswanderungs-Zeitung, jornal editado por um agente de imigração em Rudolstadt, Alemanha, encontra-se uma série de

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artigos com o título de “A Província do Rio Grande do Sul”. Publicados entre os meses de janeiro de 1863 e julho de 1864 e divididos em 12 diferentes temas1, esses artigos são escritos a partir da realidade da cidade de Rio Grande e publicados de forma sequencial. No texto de abertura, ele afirma que decidiu oferecer ao jornal os resultados de sua experiência como imigrante alemão no Rio Grande do Sul para relatar a verdade sobre a colonização, justamente para confrontar parte da imprensa alemã que tratava de atacar a imagem do Brasil.

Nesses artigos Koseritz, preocupa-se constantemente em apresentar aos leitores a imagem de uma terra onde o clima é agradável, o solo é fértil, as doenças graves não existem, as riquezas naturais continuam intactas, as oportunidades de negócios são abundantes e o povo alemão já desfruta de conforto e bem-estar. O jornalista busca revelar aos leitores alemães a ideia de que a província tem costumes e características próprias, mas de uma forma que essas diferenças pareçam atraentes aos olhos de quem pensa em se mudar. Chama atenção para a variedade e quantidade de plantas frutíferas silvestres e procura impressionar os leitores com as características peculiares de algumas frutas. Quando aborda aspectos da fauna, detalhando as principais espécies de aves e répteis, o jornalista tranquiliza os leitores quanto aos animais ferozes, que seriam raros e pouco vistos.

Koseritz salienta a liberdade garantida aos cidadãos brasileiros por lei. Não existe outro país, afirma, onde impera tamanha liberdade de consciência e de imprensa, de negócios e de ofícios, como no Brasil – “nada de tributos importunos, nada de opressão policial”. Assegura nunca ter sido vítima de repressão ou violência e que foi amparado pela lei sempre que dela precisou. Sobre o exercício da fé religiosa, aponta o jornalista que não existem limitações para os protestantes, que possuem suas igrejas e paróquias. “Não existe um povo mais tolerante do que os brasileiros, que são muito indiferentes à religião”.

Em linhas gerais, o discurso apresentado por Koseritz nesses textos publicados na imprensa da Alemanha é um esboço das ideias que norteiam toda a sua campanha de jornalista, político e intelectual até o final da vida. Ele considera o alemão um ser

1 Esses temas aparecem na seguinte ordem: 1 - Introdução; 2 - Descrição da Província; 3 - Condições climáticas, solo e produtos; 4 - A agricultura e seus produtos; 5 - O mundo animal de Rio Grande; 6 - Comércio, produtos manufaturados e ofícios; 7 - Navegação, meios de comunicação e serviço postal; 8 - Orientação pública e religiosa; 9 - Os habitantes da Província; 10 - Costumes e rituais; 11 - A situação política; 12 - O elemento alemão na província.

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dotado de capacidade laboral e intelectual superior, qualidade necessária para influenciar o desenvolvimento da província e do país, bem como garantir um futuro de riqueza e prosperidade para todos os imigrantes. O Rio Grande do Sul, nesse contexto, reúne todas as condições para os imigrantes realizarem a missão que outros povos não poderiam realizar. Essa superioridade, herança da germanidade, reflete-se em várias atividades, como ele descreve:

Nas cidades, o comércio alemão é o mais significativo; o artesanato alemão é o mais renomado, o médico alemão o mais procurado, as farmácias alemãs as mais frequentadas; engenheiros alemães conduzem as obras, agrimensores alemães medem os terrenos, professores alemães ensinam os jovens brasileiros. [...] As imponentes florestas do norte do Rio Grande desaparecem ao modo alemão; estradas e pontes são construídas por ele, seu vapor corta os rios do interior e a força e a inteligência alemãs modificam o futuro em todos os lugares com uma imponente ferrovia. E por isso o governo do Brasil incentiva mais do que qualquer outro a emigração alemã e procura atraí-la através de vantagens reais. (Allgemeine Auswandererungs-Zeitung, 28/07/1864, nº 31, p. 123, tradução nossa).

A figura de Koseritz em O Continente

A presença de Carl von Koseritz, em O Continente,2 nasce das memórias do médico Carl Winter e da troca de cartas entre os dois. Na narrativa, Koseritz e Winter encontram-se uma única vez no hospital de caridade de Rio Grande, em 1851, onde o médico trabalhava gratuitamente socorrendo os doentes. Na ocasião, ambos recém haviam chegado ao Brasil em situações bem diferentes, mas pelo mesmo motivo: os dois abandonaram a Alemanha por conspirarem contra o governo.

Além do nome e do envolvimento com o movimento revolucionário na Alemanha, existem poucas semelhanças entre Koseritz e Winter. Enquanto o primeiro tem muitos planos para o futuro, o segundo apenas deixa-se ficar em Santa Fé, sem ambições de contribuir para o desenvolvimento da Província ou das colônias de imigrantes. Nesse sentido, o comportamento de Winter segue na contramão do modelo de progresso das famílias alemãs representadas no romance. Fechado para o relacionamento com seus compatriotas estabelecidos em Santa Fé, Winter preserva a amizade com Koseritz como um elo entre a vila e a Alemanha. O médico admira os planos e as realizações do amigo, chamado com afetuosa ironia de “meu ilustre barão”, utilizando a vida do outro como um modelo que ele poderia, mas não tem coragem, de seguir.

2 Utilizamos nesse artigo a seguinte edição: VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento - O Continente. Tomo II. Porto Alegre: Globo, 1956. Nas citações dessa obra, indicaremos apenas o número da página.

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A relação entre o médico e Koseritz repete uma técnica narrativa recorrente no romance O Tempo e o Vento, que é a da apropriação de discursos da imprensa ou de jornalistas para reforçar o discurso ficcional. Embora Winter exponha ideias originais sobre cultura e sociedade no círculo social de Santa Fé, privilégio de quem estudou em Heidelberg, ele também busca nos jornais e nas palavras do amigo jornalista algumas citações para complementar o seu pensamento. Koseritz ratifica em seus escritos muitas “verdades” que Winter gostaria de dizer aos nativos, de “código rudimentar e rígido de comportamento”, mas as evita por medo de magoar os vizinhos.

No episódio “Ismália Caré”, aparecem algumas referências aos escritos de Koseritz reunidos no livro A terra e o homem à luz da moderna ciência. Trechos dessa obra são apresentados por Carl Winter durante uma discussão com o padre Atílio Romano. Para o religioso, Winter era “um ateu incorrigível” e Koseritz “outro herege de má morte”.

Com o busto inclinado sobre a mesa, o garfo em riste, o médico olhava fixamente para o padre enquanto falava:

– “O mais crente dentre vós acreditará que a terra seja o centro do Universo e que o sol, a lua e todos os astros só foram criados para fazerem o serviço de lampiões?” O vigário escutava-o sorrindo e mastigando.

[...]

Winter brandia ainda o garfo.

– “A Bíblia é obra de homens ignorantes; a história da criação é um mito, e Laplace tinha razão quando Napoleão I lhe perguntou por que não falara em Deus ao expor o seu sistema de mecânica celeste: “Sire, je n’avais pas besoin de cette hypothèse!”

[...]

– Nada disso é novidade para mim, doutor! Disse ele. – Todos esses autores ateus seus amigos são também meus conhecidos. Tenho seus livros à minha cabeceira e isso é um sinal de que não os temo (p. 965-66, grifos do autor).

A intensa campanha promovida por Carl von Koseritz nos jornais escritos em alemão no Rio Grande do Sul e na Alemanha em defesa das colônias de imigrantes não é explorada em O Continente. Sobre o tema da imigração lemos apenas que “von Koseritz escrevera-lhe havia pouco cartas cheias de entusiasmo pelo futuro da colonização germânica” (p. 639) e, já no episódio “A Guerra”, que “agora era uma figura pública importante, escrevia belos artigos em português, fazia jornalismo, metia-se em política e interessava-metia-se pelas colônias alemãs – das quais era uma espécie de maioral” (p. 748). O conteúdo das cartas trocadas entre o médico e o jornalista tampouco se dedicam ao assunto. A figura de Koseritz tem na narrativa a função de servir como um interlocutor do solitário Winter, mas, salvos os trechos citados acima, nada mais é possível conhecer sobre suas ideias.

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Podemos concluir, a partir dos detalhes biográficos de Koseritz apresentados na narrativa, que Erico Verissimo realizou pesquisas sobre o personagem histórico. Como praticamente todos os estudos em torno da vida do jornalista abordam o seu trabalho enquanto liderança da comunidade alemã, seguramente o autor também tinha conhecimento das campanhas de Koseritz e dos principais problemas decorrentes do processo de assimilação dos alemães do contexto brasileiro. A opção de Erico Verissimo, ao reconstruir a formação do povo gaúcho, foi a de evitar uma abordagem em primeiro plano do tema da imigração, preferindo uma perspectiva que privilegia a sensação do desconforto e do estranhamento a partir da figura do médico.

Observações de Carl Winter

O tema da imigração alemã é abordado em O Tempo e o Vento a partir de um sujeito culto que foge da Alemanha por motivos políticos. Carismático e tolerante, tomado por todos como um confidente, Winter tem o perfil adequado para tornar-se um observador capaz de decifrar o caráter do gaúcho, circulando livremente em todos os ambientes de Santa Fé.

Natural de Eberbach e formado em medicina pela Universidade de Heidelberg, Winter chega a Santa Fé em 1851, após passar por Rio de Janeiro, Rio Grande e Porto Alegre. Quando questionado sobre os motivos que o levaram a abandonar sua pátria, Winter confirma a participação na revolução liberal alemã, mas prefere contar uma história mais dramática:

Estou aqui principalmente porque Gertrude Weil, a Fräulein que eu amava, preferiu casar-se com o filho do Burgomestre. Isso me deixou de tal maneira desnorteado, que me meti numa conspiração, que redundou numa revolução, a qual por sua vez me atirou numa barricada. Ora, essa revolução fracassou e eu me vi forçado a emigrar com alguns companheiros. (p. 550)

O plano inicial de Winter era fazer clínica, juntar algum dinheiro e retornar à Alemanha quando o governo garantisse indulto aos revolucionários. O que acontece é bem diferente do planejado, e Winter abandona-se em Santa Fé. Sempre adiando para a semana seguinte a ideia de seguir viagem para qualquer lugar do mundo onde houvesse “agradável convívio humano”, o médico sente-se atraído pela simplicidade de Santa Fé, onde precisa competir por clientes com os curandeiros locais e acostumar-se a novos hábitos, preenchendo seus vazios com a leitura dos poemas de Heinrich Heine.

Alto, magro, de barba ruiva e chapéu alto, Winter não se parece com ninguém daquelas bandas, apesar de não ser o primeiro alemão em Santa Fé – as famílias Schutz

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e Kunz se estabeleceram na vila antes da Revolução Farroupilha. Tem o costume de falar sozinho em alemão, caminhando pelas ruas da vila, e é observado como um ser exótico. Para muitos, trata-se de um louco vestido de roupas de veludo em cores extravagantes, muito justas ao corpo, e coletes de fantasia. Ele, por sua parte, sabe que suas roupas justificam o falatório, mas prefere vestir-se como se estivesse em Berlim ou Munique. Acreditava que no dia em que abandonasse as modas europeias e começasse a se vestir como os nativos, “mais da metade do encanto de viver naquela terra estaria perdida” (p. 547). Além disso, Winter sempre amara sua independência e considerava-se um “individualista”, e uma maneira de se afirmar como indivíduo e de defender a sua independência era vestir-se daquele modo inconfundível.

Pelo menos nos primeiros anos de estadia em Santa Fé, Winter recusa o chimarrão, o cigarro de palha e o contato físico com as mulatas. Em suas reflexões, observa que naquela província os homens não eram civilizados e não consegue evitar comparações entre os costumes da sociedade local e da alemã. Escuta as histórias de duelos entre gaúchos e castelhanos e as compara com os duelos acadêmicos de Heidelberg; ouve as cantigas gaudérias pobres de melodia e as compara com o som do quarteto de cordas do qual fazia parte tocando ao violino Mozart, Beethoven e Schubert.

Winter também não gostou do que viu nas colônias alemãs. Seus compatriotas o irritavam tanto quanto os nativos e “muitos deles eram estúpidos e cheios de preconceito” (p. 554), havendo entre eles os que se envergonhavam do título de colonos e declaravam ser exilados políticos, rejeitando a imagem do imigrante que foge da fome e dos impostos. O médico não deixa de notar que muitos haviam assimilado “todos os maus hábitos dos naturais da terra” (p. 554), vivendo amasiados com mulatas e negras, andando descalços, habitando ranchos miseráveis e contaminados pela sífilis. Eram desprezados pelos estancieiros e, por sua vez, desprezavam os luso-brasileiros. “Era triste ver como em seus baús e sacos, junto com roupas e tarecos, haviam trazido para o Brasil todos os prejuízos, rivalidades e mesquinhezas de suas aldeias natais. Não compreendiam – os insensatos! – que lhes seria possível passar a vida a limpo naquela pátria nova”(p. 554).

Essa opinião não impede sua crença na capacidade dos alemães de contribuírem para o desenvolvimento do país. Winter reflete que os colonos fazem o que podem e, apesar de todas as dificuldades, já colhem os frutos do seu trabalho.

Estava certo de que eles poderiam ajudar com o seu trabalho e seus conhecimentos o progresso do Brasil. Os que ali haviam chegado até então lutavam com toda a sorte

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ANTARES, vol.4, nº8, jul./dez. 2012 52 de dificuldades: as distâncias, a falta de meios de comunicação, a ignorância dos nativos e a indiferença dos governos. Faziam, entretanto, o que podiam. Aos poucos iam realizando coisas, fundando colônias novas, cultivando a terra, exercendo, enfim, um apreciável artesanato. (p. 639)

Mesmo encontrando defeito em tudo e em todos, Winter aos poucos também se deixa envolver pelos costumes locais. Uma de suas primeiras providências em Santa Fé é comprar a escrava Gregória, encarregada de preparar as refeições e manter a casa em ordem. No episódio “A Guerra”, situado em 1869, já encontramos Winter numa situação de total imersão na cultural local, tomando chimarrão, fumando os cigarros de palha e, quando o corpo exigia, deitando-se com índias e chinocas. Nesse momento, devido à morte de Gregória, o médico alemão possui o seu segundo escravo, dessa vez um jovem que recebe o nome de Heinrich Heine em homenagem ao seu poeta preferido. As ordens ao escravo são dadas em alemão, uma situação que revela a intenção do personagem de se manter de alguma forma ligado às suas raízes, mesmo que seu interlocutor pouco entenda do idioma.

As esquisitices de Winter não impedem que se torne médico da família Cambará e uma das presenças frequentes do Sobrado. Confidente dos principais integrantes da família, Winter transforma-se em um mediador de conflitos e conselheiro sentimental. Observa tudo com um olhar analítico e encara os problemas de relacionamento ora como tragédia, ora como comédia, comparando personagens e eventos da literatura com os acontecimentos que presencia em Santa Fé. Na comédia humana da vila, encarada por ele como uma paródia do que vira na Europa, “os atores seriam menos consumados, o cenário mais pobre. Mas os eternos elementos do drama lá estavam: o amor, o ódio, a cobiça, a inveja, o desejo de poder e de riqueza, a sensualidade, a vingança... e o mistério” (p. 610).

No episódio “A Teiniaguá”, que transcorre entre 1853 e 1855, Winter vive às voltas com os problemas de relacionamento entre Bibiana, o filho Bolívar e a nora Luzia. Com o casamento entre Bolívar e Luzia, incentivado por Bibiana, os Cambará voltam a ocupar a propriedade que um dia perderam para Aguinaldo Silva, pai de Luzia, em uma hipoteca. A união, no entanto, custa caro ao filho do Capitão Rodrigo, sempre tratado com maldade pela esposa. Participando desses acontecimentos como ator e como espectador, Winter sente prazer em ver o desenvolvimento daquela “rústica comédia provinciana”, já que não havia outro teatro em Santa Fé.

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conversas dos homens, Luzia participa das discussões, para escândalo de Bibiana e surpresa das visitas. Seu conhecimento vem, além dos livros, da leitura de jornais recebidos de Porto Alegre, nos quais ela se informa sobre os eventos fora do universo da vila. Durante uma reunião no Sobrado, transcorre o seguinte diálogo entre ela e Winter: “– Recebi ontem jornais de Porto Alegre – disse Luzia. – O senhor depois que ler? – Claro! Quero ver o que está acontecendo por esse mundo velho” (p. 633). Em seguida, ela lamenta a falta de distrações como bailes, teatros e concertos em Santa Fé. Nesse sentido, os números atrasados de jornais têm para Luzia e Winter finalidades semelhantes. Enquanto ela precisa ler para se sentir mais próxima da Corte e das opções de lazer, uma vez que odeia a vida pacata da vila, ele não quer perder o contato com os acontecimentos do mundo externo, uma forma de lembrar que a qualquer hora pode partir em busca de um lugar mais “civilizado”.

As referências a artigos e notícias de jornal nessa fase da narrativa são, no entanto, poucas e pontuais, revelando que o emprego do recurso jornalístico diminui conforme cresce o distanciamento temporal entre o momento da escrita e a época em que a narrativa se situa. Por exemplo, quando os personagens discutem sobre as vantagens e desvantagens das estradas de ferro, lemos:

– E vosmecê acha que um dia essas coisas vêm aqui pra Província? Winter ia responder quando Luzia o interrompeu:

– Estive lendo nos jornais que vão inaugurar este ano a primeira estrada de ferro do Brasil.

– Mas vai custar a chegar até aqui – observou Bolívar. – Tudo custa. Leva anos e anos.

– Quanto mais custar – sentenciou Bibiana – melhor pra nós.

A estrada de ferro a que Luzia se referia pertencia a uma companhia inglesa. Quando passara pelo Rio de Janeiro, Winter ficara surpreendido ante o número de firmas e agências comerciais britânicas que lá existiam. (p. 638)

É natural, nesse caso, que os jornais tenham publicado notícias sobre as obras de construção da primeira estrada de ferro do Brasil, inaugurada em abril de 1854, no Rio de Janeiro. Apesar de não constar na narrativa o nome do jornal nem a data da notícia, é interessante notar que, mesmo no longínquo ano de 1855, as novidades da Corte chegam ao universo rural de Santa Fé pelas páginas dos jornais. Seguramente Erico Verissimo não teve acesso a folhas dessa época, mas as informações históricas tiradas de outras fontes entram na narrativa através dos personagens leitores de jornais. Outro exemplo está na descrição da epidemia do cólera que fez milhares de vítimas entre 1855 e 1856, inclusive em Porto Alegre, onde Bolívar a Luzia viajavam a passeio. As informações sobre a origem e a propagação da peste são apresentadas no formato de

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recortes de jornal, embora o narrador não deixe evidente sua fonte.

Conheciam-se agora notícias mais detalhadas da epidemia de cólera-morbo. Tinha sido trazida do Rio por passageiros do vapor Imperatriz, que ancorara em fins de 1855 no porto do Rio Grande. A peste começara nas charqueadas de Pelotas, alastrara-se pelas localidades vizinhas e atingira Porto Alegre onde se dizia que o número de casos fatais ia além de mil. As carroças da municipalidade andavam pelas ruas a recolher cadáveres, que na maioria dos casos estavam de tal modo desfigurados, que se tornava impossível identificá-los. [...] Recolhiam-se os mortos às carroçadas. Abriam-se no cemitério valas comuns onde os corpos eram despejados e em seguida cobertos de terra. O êxodo da cidade era enorme. Quem podia fugir, fugia. Havia pavor em todas as caras e em algumas pessoas a palidez e a algidez do medo eram confundidas com os sintomas da peste asiática. O Barão de Muritiba, chefe do governo provincial, estava tomando providências para evitar que o mal se alastrasse pelo resto da Província. Contratava médicos e enviava-os para vários municípios. (p. 671-2, grifo nosso)

Os exemplos da estrada de ferro e da epidemia de cólera têm um efeito diferente sobre as personagens da narrativa, mas o propósito do autor parecer ser o mesmo. Consiste essa estratégia em refletir no universo de Santa Fé alguns acontecimentos importantes do período, os quais dificilmente chegariam ao conhecimento dos habitantes sem a participação das folhas impressas. Assim, a notícia da construção da ferrovia serve para revelar, ao mesmo tempo, diferentes pontos de vista sobre a ideia de progresso e a consciência do atraso em que vivem os moradores de uma pequena vila no interior do Rio Grande do Sul. Já os detalhes sobre a propagação do cólera mostram como uma doença vinda de tão longe pode afetar a tranquilidade de uma pequena vila distante do centro dos acontecimentos.

Ainda no episódio “A Teiniaguá”, o conteúdo jornalístico auxilia Winter nas longas e polêmicas conversas sobre política, economia e religião com o Padre Otero, o juiz de direito Dr. Nepomuceno e Aguinaldo Silva. Amparado por um conjunto de ideias liberais e pelas cartas e jornais recebidos de seu amigo Carl von Koseritz, o médico questiona as crenças e o modelo de trabalho e de desenvolvimento dos nativos. Nesses diálogos, o médico faz observações lúcidas sobre os principais problemas da província, apontando os erros daquela gente e o perigo que representa a falta de esforços pela promoção do progresso.

No episódio “A Guerra”, o tema das discussões realizadas no Sobrado – com o Major Graça substituindo Aguinaldo Silva, já falecido – versa principalmente sobre questões políticas, como os rumos da Guerra do Paraguai, as intrigas na Corte e o crescimento dos ideais republicanos. Para o militar, a ideia de república é coisa de “meia dúzia de mocinhos que andam com as cabeças cheias de leituras exóticas e ideias extravagantes”; para o padre, “o perigo está em certas ideias radicais que importamos da

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Europa”; para o Dr. Nepomuceno, “é o progresso”; Luzia, que também participa das conversas, observa que se vive uma época interessante em que muita coisa está acontecendo, “basta ler um jornal!” (p. 799).

– A guerra civil nos Estados Unidos... – enumerava Luzia. – A libertação dos escravos, a morte de Abraão Lincoln... Ah! E a maravilhosa história de Maximiliano, imperador do México... Ainda ontem estive lendo a respeito dele num almanaque. (p. 799-800)

Nessas discussões, Winter sai em defesa dos princípios liberais, exaltando os propósitos da Revolução Francesa que “virão para ficar”. Por intermédio dos jornais da Alemanha, Winter acompanha “com o interesse de quem lê uma novela fascinante” (p. 802) as ideias políticas em marcha na Europa. O fato de estar em Santa Fé, “por assim dizer, um outro planeta”, leva o médico a encarar o curso da História de uma perspectiva diferente, com mais lucidez justamente por estar vendo tudo à distância. Com a ressalva de que “o ponto de vista não é propriamente meu. Mas eu o aceito. Li-o em algum livro ou artigo de jornal” (p. 803), o médico argumenta que apesar das violências, vinganças e ódios pessoais a revolução deixou uma herança que nem as guerras de conquista de Napoleão conseguiram apagar.

– Os Direitos do Homem, as liberdades inalienáveis do indivíduo, o direito que cada cidadão tem à liberdade, à propriedade e à segurança. A liberdade de imprensa, de culto e palavra para todos, sem nenhuma distinção.

– Patacoadas! – exclamou o vigário. – A liberdade? Para que é que o povo quer liberdade? Para ser ateu, herege, licencioso? Liberdade para tomar a mulher do próximo? Liberdade para caluniar, mentir, ofender? Liberdade para quebrar os mandamentos divinos? Libertinagem, isso era o que queriam esses senhores da Revolução Francesa.

[...]

O major perguntou:

– E vosmecê acha, doutor, que essas ideias foram alguma vez postas em prática? – Eu já disse que Napoleão atrasou o relógio da História. Ainda há países que não saíram de todo das sombras da Idade Média. Mas em certos círculos do mundo floresce o pensamento liberal. A semente foi lançada. Não resta a menor dúvida. [...]

– Essa igualdade com que os senhores liberais sonham – insistiu o militar – pode muito bem significar desordem, desrespeito e anarquia.

– Eu compreendo muito bem que vosmecês prefiram a ideia da monarquia, da manutenção dos privilégios da igreja e da nobreza, e da submissão do povo. (p. 805-6)

Ainda seguindo os pensamentos de Winter, no episódio “Ismália Caré” ele participa das discussões em torno do movimento que prega a proclamação da República. Para frear o entusiasmo de Licurgo Cambará e Toríbio Rezende, republicanos empolgados com a causa da abolição e a campanha contra o Imperador, o médico mostra-se cético com a possibilidade de o povo derrubar a monarquia, pois acredita que

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“neste país nunca se fará nada sem a interferência direta ou indireta da espada. Só virá a República se o exército quiser” (p. 901). Contra a sugestão de uma revolução de ideias, apoiada no discurso de que a época da barbárie já passou, como a defende Toríbio, Winter argumenta que todas as medidas adotadas pelas nações sob a justificativa do progresso e do desenvolvimento – citando a ocupação da Inglaterra no Egito – não passam de interesse comercial. E salienta:

– Sou um homem sem paixões – disse Winter. – Não tenho partido. Nem sequer nasci neste país. Um dia posso ir-me embora para a Alemanha e não voltar mais. Limito-me a ler, ouvir, observar e tirar minhas conclusões. Os senhores botam todas essas questões num pé puramente ideológico. Eu prefiro levar a coisa para o lado do interesse material. (p. 905)

Assim como mudam seus hábitos culturais, abalam-se também as certezas do médico em relação a sua postura neutra e sem paixões. Talvez cansado de ser o único indivíduo em Santa Fé capaz de analisar os eventos políticos e sociais sem envolvimento pessoal, Winter pergunta-se, se às vezes não seria melhor “participar de todas as paixões, enlamear-se nelas, não ficar à margem da vida, preocupado em analisar todos os lados das pessoas e das questões, querendo dizer sempre a palavra mais justa e serena, que no fim era quase sempre a mais cínica e a menos humana” (p. 907).

A angústia de Carl Winter nasce justamente de sua consciência de que o tempo passou e ele continua sendo aos 63 anos um homem solitário, solteiro, escravo da rotina e sem esperanças de um dia retornar a sua pátria. Sente-se preso àquela terra como uma árvore de raízes profundas, “mas uma árvore que não ama o solo em que está plantada e que não tira dele o alimento de que necessita para vicejar com toda a plenitude” (p. 907). Reflete que no fim conseguiu tudo o que queria, ou seja, ser um viajante sem bagagem, compromissos, família, propriedades ou contratos. Manteve-se plenamente livre, mas questiona-se sobre o uso que fizera da liberdade conquistada: “Guardara-a apenas como uma daquelas famílias de Santa Fé entesouravam joias antigas dentro dum escrínio, no fundo duma gaveta, não as usando nunca, nunca se desfazendo delas nem mesmo nos momentos de maior necessidade. Um luxo inútil, enfim!” (p. 970)

Com uma postura crítica, o médico Carl Winter parece o único personagem de O

Continente, de uma extensa galeria de tipos, capaz de refletir com lucidez sobre o

passado, o presente e o futuro da sociedade gaúcha e brasileira. O olhar clínico de quem conhece bem os pontos fortes e fracos dos homens, inclusive os seus próprios, permite a Winter fazer não apenas um julgamento do comportamento moral e ético da

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comunidade, como também antecipar os rumos da História. Ele é a própria voz do autor em sua tarefa de construir sob os mais diversos aspectos a essência cultural do gaúcho.

Observando os habitantes de Santa Fé, sobre os quais exerce uma ascendência quase paterna, Winter usa suas faculdades intelectuais para interpretar o comportamento do povo, acentuando em geral suas qualidades menos louváveis em constantes comparações com os costumes “civilizados” dos europeus. Por não pertencer ao grupo local, o imigrante aproveita a condição de ser o “outro” para estudar os seus vizinhos. Apesar de aderir a alguns dos costumes da terra, mantém-se a uma distância segura da postura moral e ideológica dos nativos, associando questões como honra e hombridade a um modo primitivo de encarar os problemas.

Com características particulares de formação e caráter, Carl Winter complementa a variedade de raízes étnicas presentes na formação do povo gaúcho. A condição diferenciada de médico e intelectual permite ao personagem o papel de um observador distanciado dos acontecimentos, muitas vezes substituindo as funções descritivas do próprio narrador. A partir de suas reflexões sabemos detalhes dos hábitos alimentares, do vestuário, da maneira de pensar e agir dos nativos da província. Assistindo a tudo como o espectador de uma comédia ou de uma tragédia, dependendo dos atores, da cena e do ponto de vista, o médico descreve o perfil social dos gaúchos sob um ângulo novo na literatura, tarefa que outro personagem do romance não poderia desempenhar sem prejuízo à coerência do enredo.

Partindo dessa constatação, acentua-se que o projeto inicial do autor de O Tempo

e o Vento de evitar o estereótipo e a exaltação do gaúcho, tarefa que se completa

somente ao final da trilogia com a corrupção de Rodrigo e o desmembramento da família Cambará, começa a ganhar forma justamente na construção do personagem Carl Winter. É ele o responsável por vasculhar o íntimo da personalidade do povo, expondo seus pontos fracos, talvez sendo o primeiro a exercer essa crítica na galeria de personagens da literatura que gira em torno da formação cultural do Rio Grande. O médico alemão, nesse sentido, amparado por jornais e por clássicos da literatura, revela-se um obrevela-servador habilidoso, exercendo o papel de sociólogo, antropólogo, juiz e professor.

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A correspondência entre Winter e Koseritz

As cartas trocadas entre Carl Winter e Carl von Koseritz não apresentam qualquer semelhança com as cartas escritas pelos colonos alemães e publicadas nos jornais. Isso porque no caso dos imigrantes não havia troca de correspondência entre remetente e destinatário. As cartas eram escritas pelos alemães que tinham algo de importante para relatar sobre suas experiências no novo país e geralmente eram endereçadas aos jornais.

Na ficção de O Tempo e o Vento, existe a correspondência entre remetente e destinatário, e as cartas não são escritas para serem publicadas. Elas partem quase sempre do médico e têm duas funções principais: relatar detalhes da “comédia” presenciada pelo personagem em Santa Fé e descrever a rotina da vila, acentuando a melancolia e a tristeza do remetente. No sentido contrário, ou seja, de Koseritz para Winter, temos apenas dois trechos de cartas no episódio “A Teiniaguá”, ambos destinados a fornecer conselhos ao médico.

O primeiro conselho é o que leva Winter a transferir residência de Rio Grande para Porto Alegre:

“Por que não vai clinicar na bela cidade que os açorianos ergueram às margens dum magnífico estuário e no meio de colinas verdes? Entre as muitas vantagens que ela oferece, tem a de ficar a pequena distância de São Leopoldo, que meu caro poderá visitar periodicamente quando sentir a nostalgia do Vaterland” (p. 553, grifos do autor)

Winter não se agrada de Porto Alegre, “gostou do cenário mas detestou os atores”, e escreve ao amigo contando sobre seus “agravos e idiossincrasias”. Koseritz responde com outra sugestão:

“A única vantagem que um homem solteiro tem sobre o casado é a da mobilidade. Pois se não gosta de Porto Alegre, mude-se. O meu caro doutor é um homem livre. Por que não tenta as colônias? Vá visitá-las a título de experiência. Talvez goste delas e fique por lá” (p. 554, grifos do autor).

Winter foi conhecer as colônias, não gostou e não ficou, preferindo estabelecer-se em Santa Fé. As cartas que escreve a Koestabelecer-seritz estabelecer-servem como um meio de confissão para suas angústias e um antídoto contra a solidão e o estranhamento, sempre destacando a condição de não pertencimento àquele grupo social.

Como nesta carta, escrita em 1853:

“Tu ao menos tens como desabafar: és jornalista, escreves os teus artigos e de certo modo já pertences a esta pátria. Quanto a mim, continuo a ser apenas o Dr. Carl Winter, um exilado, um imigrante, um intruso; e tenho de calar a boca mesmo quando sinto vontade de sacudir esta gente de sua apatia exasperante. Mas é preciso reconhecer que essa apatia se revela apenas no que diz respeito ao trabalho metódico e previdente, pois quanto ao resto nunca vi gente mais ativa. Estão sempre

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ANTARES, vol.4, nº8, jul./dez. 2012 59 prontos a laçar, domar, parar rodeios, correr carreiras e principalmente a travar duelos e ir para a guerra” (p. 604, grifos do autor).

Não demora muito, porém, para Winter começar a se adaptar à nova cultura. E o processo de aculturação do personagem fica evidente no conteúdo das cartas enviadas a Koseritz. Em 1855, ele escreve uma extensa carta em que revela já estar bem integrado aos costumes locais:

“Mein lieber Baron: Faz hoje quatro anos que estou em Santa Fé. Já não uso mais chapéu alto, minhas roupas europeias se acabam e eu desgraçadamente me vou adaptando. Isso me dá uma sensação de decadência, de dissolução, de despersonalização. Sinto que aos poucos, como um pobre camaleão, vou tomando a cor do lugar onde me encontro. Já aprendi a tomar chimarrão, apesar de continuar detestando essa amarga beberagem. (Pode alguém compreender as contradições da alma?) Eu vivia em castidade forçada por falta de mulheres de que eu gostasse e que quisessem dormir comigo. Meus sonhos eróticos eram povoados de fêmeas louras e eu tinha de me contentar com esses amores oníricos, mas agora, meu caro, de vez em quando, este espírito já vacilante cede aos gritos desta carne fraca – que, diga-se de passagem, continua muito magra sobre essa ossatura – e trago para a minha cama, altas horas da noite, com a cumplicidade soturna da bela Gregória, chinocas, índias, e até mulatas. Depois dessas orgias, tiro o violino do estojo e tomo um banho de música. Ou então abro o meu Heine e me encharco de poesia. E nas muitas semanas de castidade que se seguem volto a sonhar vagamente com mulheres germânicas. Ah, meu amigo, sou personagem dum drama que Goethe não escreveria nunca, um drama que não daria glória a ninguém porque é sórdido, sem propósito e vazio. Mas é um drama, ou melhor, uma comédia. Por que não me vou daqui? Por quê? Não sei. Alguma coisa me prende a essa terra. Não é propriamente afeição, não é amor. É hábito, e o hábito é como uma esposa que cessamos de amar e que já aborrecemos, mas à qual estamos apegados pela força... do hábito, e por preguiça. A inércia, Carl, tem muita força. A rotina é uma balada insípida de rimas óbvias.

A vida aqui é monótona. Nunca acontece nada. De vez em quando sou chamado a atender um homem que foi estripado por outro num duelo por causa de pontos de honra, discussões em carreiras, jogos de osso, cartas, ou chanteira. Mas mesmo isso se transforma em rotina, porque um intestino é igual a outro intestino; as reações das pessoas em tais ocasiões são mais ou menos as mesmas. Os pacientes aguentam os curativos sem gemer. Os outros nunca estão de acordo sobre quem provocou a briga ou quem está com a razão.

Raramente aparece uma cara nova na vila. Um dia é igual a outro dia. O correio chega uma vez por semana, quando chega. Uma carroça leva quase dois meses para ir ao Rio Pardo e voltar. As gentes em geral são boas, mas duma bondade meio seca e áspera. Os assuntos, limitados. Fala-se em gado, em cavalos, em tropas invernadas, comidas, campos ou então em histórias de brigas, guerras e revoluções passadas ou guerras e revoluções que estão para vir.

[...]

Mudando de assunto direi que estes invernos rigorosos, de Santa Fé, em que às vezes sentimos mais frio dentro das casas que fora delas, me ensinaram a beber uma mistura deliciosa, que mein lieber Baron deve já conhecer. É cachaça com mel e suco de limão. Positivamente divino! Se te contarem Carlos, que morri embriagado num sarjeta em Santa Fé, podes acreditar na história, apenas com uma restrição: é que em Santa Fé não tem sarjetas pela simples razão de que não tem calçadas, como não tem também lampiões nas ruas, e como, em última análise, não tem nada. Talvez seja essa carência de tudo que me fascina e prende.

Para não deixar de falar em política, o meu amigo não acha que é muito mau para todos nós que a França tenha agora um novo Napoleão? Sinto mais pressentimentos, Carl, muito maus pressentimentos.

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ANTARES, vol.4, nº8, jul./dez. 2012 60 Manda-me notícias de teus planos. Quando sai o jornal? E a escola? Já encontraste a brasileira do teu coração? Quando puderes, manda-me livros e jornais. Os jornais podem ser até bem antigos, porque nesta vila esquecida de Deus e dos homens, estou me convencendo cada vez mais de que o tempo, afinal de contas, não passa duma invenção dos relojoeiros suíços para venderem suas engenhocas. Manda livros, senão vou acabar esquecendo até o alemão. Já li mais de mil vezes meu volume de Heine. E o meu Fausto está inutilizado, porque a bela Gregória deixou-o cair dentro da água da tina de lavar roupa.” (p. 652-56, grifos do autor)

Essa extensa carta pode ser dividida em quatro temas principais. Na primeira parte, o destinatário lamenta sua experiência de aculturação, classificando esse processo de “despersonalização” e “decadência”. É difícil para o médico admitir que a sua ligação com a cultura germânica desaparece aos poucos, mesmo contra a própria vontade. A imposição dos costumes locais é mais forte que sua determinação de permanecer um alemão “autêntico”. Por isso, acaba cedendo ao hábito do chimarrão e ao sexo com índias e mulatas. Como sempre ocorre em suas reflexões, Winter questiona-se por qual razão não abandona aquela terra, e conclui que os culpados de sua desgraça são a inércia, a preguiça e o hábito. Sem objetivos nem projetos que o levem para longe de Santa Fé, deixa-se ficar e envolver pelas tradições da cultura local. Para não perder o pouco que o diferencia dos outros, atira-se aos poemas de Heine e ao violino.

Na segunda parte, o médico trata de apresentar algumas características de Santa Fé. Nesse trecho, a carta substitui o papel do narrador onisciente. Observações e descrições que seriam feitas pelo narrador acabam saindo da pena do médico, um recurso que se pode verificar também nos episódios “Cadernos de pauta simples” e “Do diário de Silvia” e no Almanaque de Santa Fé, escrito pelo Dr. Nepomuceno. No caso analisado agora, Winter reclama da monotonia, da rotina, da distância e da falta de novidades em uma vila onde os assuntos são escassos.

Em geral, as observações do médico condenam os hábitos, mas não o caráter dos gaúchos, uma constatação que não se limita às cartas e se estende também ao fluxo de consciência do personagem. Se por um lado ele vê os gaúchos como pessoas boas, embora de comportamento áspero, por outro não deixa de observar que as brigas e as guerras estão sempre no centro das conversações. Em outras palavras, para Carl Winter os gaúchos são bárbaros e primitivos, mas têm boa índole. Nesse mesmo trecho da carta o remetente também comenta sobre o frio rigoroso do inverno, amenizado com muita cachaça, para concluir que Santa Fé não oferece sequer sarjeta para o embriagado cair. Uma vila que não tem estrutura básica alguma, nem calçada ou lampiões, mas que

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mesmo assim tem a força de fascinar o alemão. Talvez seja essa pobreza material, no fundo, o motivo que o prende a Santa Fé, uma explicação coerente com o fato de ele não ter disposição para trabalhar pelo progresso e desenvolvimento da província.

O terceiro assunto abordado na carta trata de política internacional. Se normalmente nos diálogos com os moradores de Santa Fé o médico costuma criticar a política da Inglaterra, inclusive dirigindo ofensas à Rainha, desta vez ele revela preocupação com a França. Na condição de intelectual e único personagem capaz de refletir sobre eventos políticos nesse momento da narrativa, Winter demonstra capacidade de ver e até antecipar crises. No caso da Inglaterra, o médico direciona seu ódio à política de interferência do país nos problemas mundiais, principalmente sobre a questão da escravidão, coisa que os seus interlocutores não são capazes de perceber. Na carta dirigida a Koseritz, o comentário em relação à França sinaliza que o “mau pressentimento” de Winter tem fundamento porque significa a deflagração da guerra franco-prussiana. O médico refere-se ao imperador francês Napoleão III, que declara guerra aos estados germânicos em 1870. Nesse sentido, a correspondência entre a figura da ficção e o personagem histórico também tem o papel de introduzir na narrativa alguns acontecimentos da História – substituindo justamente a função do “recurso jornalístico”. Importante lembrar, ainda, que são os jornais que mantêm o médico informado sobre as novidades da Europa e permitem que comente tais assuntos.

No último trecho da carta, não menos importante, Winter lembra o amigo sobre o envio de jornais para a vila. No campo da leitura, o médico não tem outro recurso além dos poemas de Heine. No entanto, a poesia não permite ao leitor a percepção da passagem do tempo nem o seu lugar na História, pois os versos apresentam paisagens e sensações livres à imaginação, porém distantes da realidade. Já os jornais, mesmo de números atrasados, proporcionam ao leitor a certeza de ser um espectador da História. Se quiser, pode ser também protagonista, bastando para isso retornar à Europa, ao centro dos acontecimentos. Sem a narrativa jornalística, portanto, o tempo não existe para Winter. Nem relógios ou calendários podem substituí-la.

No outono de 1856, Winter escreve uma nova carta a Koseritz.

“No outono, meu caro barão, fico em permanente estado de poesia. É quando me lembro mais de Eberbach e de Trude. Mas tanto a aldeia como a moça me parecem agora ficções, elementos dum conto de fadas tão distante como a história de Hänsel und Gretel que ouvíamos no tempo de meninos. Se há coisa que lamento é não saber pintar. Tenho visto crepúsculos incrivelmente belos, tão belos que é uma pena que se percam. Alguém devia prendê-los numa tela.

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ANTARES, vol.4, nº8, jul./dez. 2012 62 Jogo partidas de gamão com o juiz de direito e me divirto duplamente: com o jogo e com a cara de meu parceiro. O Padre Otero, que parecia tão meu amigo, ultimamente deu para reprovar a vida que levo, pois não vou à missa, não contribuo com dinheiro para as obras da igreja e de vez em quando externo minhas ideias heréticas. E sabes como se desforra? Recomendando aos paroquianos que procurem o Clotário da homeopatia ou o Zé das Ervas, o curandeiro. Continuo nas boas graças do Junker. O velho Amaral de sete filhos, dois homens e sete mulheres, de sorte que no casarão sempre há algum doente, o que me obriga a visitas quase diárias.

[...]

E sabes, meu caro barão, o que me impressiona nestas gentes? É o ar natural, terra-a-terra com que dizem e fazem as coisas mais dramáticas. Estou começando já a descobrir diferenças entre os habitantes das várias regiões dessa Província. Os da fronteira são mais dramáticos e pitorescos que os desta região missioneira. Gostam de lenços de cores vivas, falam mais alto, contam bravatas e amam os gestos e frases teatrais. Se eu tivesse de eleger o homem representativo desta região, não escolheria Bento Amaral nem Bolívar, mas Florêncio, o meu bom, discreto e bravo Florêncio Terra.

Perdoa-me essas minúcias. Quando vivemos por muito tempo num mundo tão limitado e pobre como este, acabamos conferindo às suas intriguinhas, às suas pessoinhas e às suas coisinhas uma importância universal.

Mas este outono, meu caro Carlos, é grande aqui e em qualquer outra parte do universo. Aristóteles haveria de gostar de dias e campos como estes para as suas dissertações peripatéticas. Estou certo de que houve um erro qualquer na distribuição das raças. Quando Deus criou o mundo ele destinou a esta terra outras gentes que não estas. Haverá ainda um meio de corrigir esse erro? Eis aqui uma pergunta perigosa, que nos poderá levar a complicações tremendas.” (p. 661-3, grifos do autor)

Alguns temas repetem-se em comparação à carta anterior, mas há diferenças interessantes. Percebe-se que Carl Winter começa a se distanciar de seu passado, revelando dificuldade para resgatar da memória as lembranças da terra natal e de seu antigo amor. Cada vez mais integrado a Santa Fé, lembra-se da vila de Eberbach e de Gertrude Weil como se fossem cenário e personagem irreais. Ao mesmo tempo, relata a situação de sua amizade com o juiz, o coronel e o padre, ressaltando que a relação com o primeiro é apenas diversão e passatempo, e com o segundo, uma conveniência. Já a amizade com o sacerdote, com o qual o médico tenta manter um diálogo filosófico, não vai bem devido à intolerância do religioso – que orienta os fiéis a solicitarem os serviços do curandeiro em prejuízo do médico ateu. Winter também reflete outra vez sobre as características dos habitantes da Província, procurando entender o “ser gaúcho”. Observa as diferenças entre o homem da fronteira e o das missões – mesmo sem nunca ter estado na fronteira –, e conclui que o caráter representativo da região são a discrição e a bravura, citando como exemplo a personalidade de Florêncio Terra.

Por último, destacam-se dois comentários particularmente interessantes que nascem de divagações sobre os crepúsculos do outono. Na abertura da carta, escreve o remetente que o outono em Santa Fé o deixa em “estado de poesia” para, ao final,

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questionar se realmente o povo nativo merece tão belas paisagens. Winter escreve que Deus criou o mundo e destinou a terra a outro povo que não o gaúcho, e pergunta se “haverá um meio ainda de corrigir esse erro?”.

Ao formular essa questão, que pode levar a “complicações tremendas”, o médico expressa um discurso comum dos imigrantes alemães, que aponta a superioridade da raça ariana para promover o progresso da Província e do Brasil – frequente na fala do jornalista Carl von Koseritz e de outros intelectuais germânicos. Winter acredita que o povo alemão tem uma capacidade de desenvolvimento superior à dos brasileiros e sugere, inclusive, que os homens e mulheres da província se casem com alemães e não com negros e índios, pois somente assim um futuro glorioso estaria garantido. Ele pensa, realmente, que os gaúchos não merecem a terra que habitam. Nas entrelinhas, sugere a hipótese de que um dia a Província pode vir a ser tomada por outro povo, o alemão, mas essa ideia o assusta.

Por essa mesma época, Winter escreve outra carta ao amigo jornalista:

“Espero que o meu barão tenha realizado os seus sonhos, que seu jornal seja um sucesso e a escola outro. Quanto a mim, sou um fracassado. O médico da municipalidade tem agora as preferências do nosso Junker local. [...] O meu caro amigo já reparou que, em última análise, uma pessoa não passa duma porção de paixões, cercada de incompreensão por todos os lados? Este pequeno arquipélago de Santa Fé não está propriamente no Mar Tenebroso, mas sob sua aparência de quietude e rotina tem também seus dramas. E eu, como médico, faço o curioso papel de lançadeira, indo e vindo a conduzir a frágil linha que costura esse tecido dramático. Creio que estou ficando literato, tão literato que não se admire o meu bom amigo se um dia eu lhe mandar sonetos ou pensamentos filosóficos para seu jornal. Pois dramas não faltam por aqui, meu caro. Eu os vejo, eu os cheiro, eu os ouço, eu os apalpo. Há dramas no casarão do velho Amaral. Dramas nas casas dos colonos da Nova Pomerânia. Dramas até no quintal do vigário, meu vizinho e inimigo. Drama há também no peito encatarroado do Dr. Nepomuceno. Mas o maior drama de todos está no Sobrado. Como médico – ah, a nobre, a sublime profissão médica! – não devo quebrar o sigilo sagrado; mas como velho tagarela que aprecia o espetáculo da vida, fico ardendo por contá-los ao mundo. Um dia ainda nos havemos de encontrar para uma longa palestra. Falaremos de tuas realizações, Carl, de teus projetos. Falaremos um pouco também sobre o passado. Diremos mal de Napoleão III, da Inglaterra e principalmente dessa augusta vaca, a rainha Vitória.” (p. 697-8, grifos do autor)

À parte mais um comentário sobre frustrações profissionais e política internacional, o que chama a atenção nessa carta são as observações do médico sobre o “tecido dramático” da vida cotidiana de Santa Fé. Por trás do reconhecimento de Winter quanto ao seu papel de mediador, revela-se a verdadeira função do personagem na narrativa.

Os personagens principais nos episódios analisados são Bibiana, Luzia, Bolívar, Licurgo e Maria Valéria, habitantes do Sobrado e protagonistas da saga

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familiar. Carl Winter não faz parte da família, mas tampouco deve ser visto apenas como o médico. Muito mais do que isso, ele desempenha o papel “de lançadeira, indo e vindo a conduzir a frágil linha que costura esse tecido dramático” (p. 698). A onisciência do narrador revela os pensamentos do médico sob todos os pontos de vista, mas pouco nos fala sobre o fluxo de consciência dos protagonistas da família Terra-Cambará. Por isso, Winter torna-se um personagem central de O Continente, cujas reflexões desenham o perfil das figuras principais da narrativa e as insere no contexto histórico, costurando o tecido dramático ao social.

Se por um lado o médico necessita dos jornais enviados por Koseritz para tomar conhecimento dos acontecimentos mundiais e, assim, poder comentá-los com seus amigos, por outro não necessita mais do que sua perspicácia e curiosidade para observar o “espetáculo da vida” em Santa Fé. Ele está próximo de todos e conhece os seus segredos, mais até do que o padre. Sem ter com quem conversar sobre esses pequenos dramas, Winter dedica-se a escrever longas cartas através das quais confessa suas fraquezas – como o desejo por Luzia – e analisa o comportamento dos integrantes do grupo social. Agindo como um cientista que busca desvendar pequenos detalhes para compreender o todo, o médico cruza dados, levanta hipóteses e arrisca conclusões.

Pode-se dizer que Carl Winter interpreta os dramas alheios, sem deixar de desmascarar os seus próprios, com a habilidade de um romancista. Não por acaso, o médico é o personagem de O Continente que melhor traduz as ideias do autor sobre a formação do Rio Grande do Sul. É pela voz e a pena de Carl Winter que Erico Verissimo se faz presente na narrativa, construindo aos poucos a imagem que pretende formar do povo do Sul no extenso quadro da ficção. Da vasta galeria de personagens de

O Tempo e o Vento, Carl Winter é o primeiro em ordem cronológica a descrever os

traços sociais do gaúcho, procurando despi-lo de seus trajes característicos para analisá-lo de um ânguanalisá-lo menos parcial, proporcionado pela visão de um imigrante alemão. Mesmo que se repitam alguns valores já conhecidos do discurso literário, como a bravura e a bondade, em geral as impressões do médico tendem a apontar os pontos fracos da personalidade do gaúcho. Isso porque essas análises não são conclusivas apenas nos adjetivos, mas, também, na descrição do comportamento pernicioso da família protagonista.

Referências

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