1. INTRODUÇÃO
Durante a graduação em Fonoaudiologia, estudei sobre as implicações na linguagem devido a problemas neurológicos. De todas elas, a que mais me intrigou, seguramente, foi a afasia. Como podia um falante se perder na própria língua?
Porém, antes de me aproximar da afasia, foi oportuno pesquisar fenômenos linguísticos em outro grupo: os parkinsonianos. No ano de 2006, inserida no programa de iniciação científica da Universidade Católica de Pernambuco, duas alunas da graduação e eu desenvolvemos no Grupo de Convivência de Parkinsonianos da Unicap uma oficina de leitura e escrita abordando diversos gêneros textuais. A oficina era parte da metodologia da pesquisa1.
A oficina foi bem aceita no grupo e os participantes aderiam com entusiasmo às atividades de tal maneira, que para não deixar de participar, eles criavam estratégias a fim de superar as dificuldades motoras que apresentavam, haja vista que, por vezes, interferiam na execução da atividade. Assim, topicalizavam textos, tornando-os mais curtos, faziam uso preferencial de verbos e adjetivos, omitiam elementos de coesão, desenhavam, colavam as palavras, chamavam para explicar o que tinham desenvolvido.
No ano de 2007, a oficina de leitura e escrita foi desenvolvida com o grupo de afásicos, também da UNICAP, com a mesma aceitação e envolvimento encontrado no outro grupo, porém com muito mais dificuldade para a execução das atividades que a dos parkinsonianos que era predominantemente motora. Contudo, ocorreu a mesma emergência para a linguagem, a mesma recorrência a recursos da linguagem e estratégias e para a comunicação.
Neste grupo, a oficina de leitura e escrita também fazia parte da metodologia de pesquisa no programa de iniciação científica2, agora com afásicos.
Nesta, investiguei a ocorrência de elementos de coesão referencial na produção escrita. O resultado da pesquisa apontou que na escrita dos participantes afásicos
1 Pesquisa financiada pelo CNPq com o título Organização discursiva do parkinsoniano: fatores paralingüísticos – o caso da coesão referencial
2 A Linguagem do afásico: fatores paralingüísticos – o caso da coesão referencial, 2008. Pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPq junto ao Grupo de Convivência de Afásicos da UNICAP.
não ocorreram elementos de coesão referencial, contudo, o fenômeno de coesão ocorria e se dava pelas relações que o sujeito estabelecia com seus interlocutores fora do texto, embora, a partir dele.
Durante o estágio curricular em terapia, atendi uma paciente afásica com muita dificuldade para falar, mas com um bom resquício de escrita. Como apoio para comunicação, tinha a sua disposição um bloco de anotações e a escrita funcionava como mediadora da conversação. A escrita dessa paciente não se organizava numa estrutura frasal. Contudo, ao utilizar este recurso, ocorria, por vezes, a palavra ou frase em questão ser pronunciada pela paciente durante a escrita, para sua própria surpresa. Pareceu-me que a escrita ajudava a paciente a acessar essas informações e eu não explorava isso terapeuticamente.
Com essas observações e vivências, minha monografia3 foi um estudo de caso com esta paciente. Considerando que os gêneros são norteadores do uso social da linguagem e que, particularmente, esta paciente parecia apresentar bons resultados com o uso da escrita, quis investigar que repercussões um trabalho com escrita na clínica fonoaudiológica acarretaria à fala de uma pessoa afásica.
Diante dos resultados do estudo pode-se concluir que as atividades com gênero textual na modalidade escrita da língua ofereceu estratégias para a organização linguística do sujeito da pesquisa. Levando em consideração a interrelação da fala e da escrita no processo de comunicação, os gêneros funcionaram como norteadores do uso, forma e conteúdo linguístico nos eventos discursivos. Dentro do gênero, o léxico pôde gerar uma infinidade de sentidos, corroborado pela interação do interlocutor, no caso, a pesquisadora.
Mesmo após a vivência com os participantes do grupo de afasia e de algumas experiências com outros pacientes afásicos, não encontrei pacientes que se enquadrassem nas descrições nosológicas da patologia cuja definição eu sabia de cor: perda total ou parcial da expressão e/ou compreensão da linguagem por lesão cerebral.
Deparei-me com pessoas que perderam mais que as palavras. Pessoas que perderam a auto-estima, o respeito da família, a companhia dos amigos, a
3 Monografia realizada como requisito para conclusão do curso de graduação em Fonoaudiologia cujo título é
“Produção escrita e oralidade: favorecendo a interação lingüística do afásico”.
dignidade do emprego. Pessoas que se sentiam intimidadas, que ganharam a vergonha de falar, de sair, de encontrar outros e outras coisas. Ganharam a angústia de não serem compreendidos, nem ouvidos, nem respeitados.
Mas também vi que não perderam a coragem e o desejo de estar no mundo e, cada qual à sua maneira, reafirmavam a potencialidade humana para a comunicação. Antes do comprometimento neurológico, o afásico vivenciou sua experiência de mundo mediada pela linguagem. No quadro afásico, precisa criar meios para comunicar-se. A pessoa não perde a sua competência comunicativa. Se assim o fosse, não seria capaz de agir criativamente sobre os recursos que lhe cercam (MORATO, 2008). E foi essa capacidade criativa de permanecer na linguagem por recursos vários que me levou a alguns questionamentos quanto à imagem e reabilitação das pessoas desse grupo.
A fim de compreender qual a origem da concepção de clínica que, ao invés de situar esse sujeito que labuta com seu falar na linguagem, o coloca à margem dela, este trabalho visita a história da Fonoaudiologia, descrevendo um panorama histórico de origem. No capítulo Fonoaudiologia e as primeiras concepções de distúrbios e clínica da linguagem, vê-se o fazer fonoaudiológico se constituindo em meio a fatores históricos, políticos e sociais e que, neste contexto, surgem as primeiras concepções de distúrbios e clínica da linguagem, que, ainda hoje, incidem sobre a prática fonoaudiológica e penalizam os que a ela recorrem.
No capítulo, Linguagem, afasia e afásico é abordado como a linguagem e a pessoa afásica ficaram em segundo plano enquanto se utilizava os fenômenos da afasia para comprovar teorias acerca da organização cerebral e seu funcionamento.
A linguagem, como problema e solução da pessoa acometida pela afasia, foi preterida em favor do conhecimento sobre as relações de causa e efeito entre cérebro e linguagem. Além disso, os estudiosos detiveram-se na difícil tarefa de classificar os tipos de afasia, que mais disseram sobre aspectos anátomo- fisiológicos do cérebro do que sobre a linguagem da pessoa afásica e do que sobre a pessoa com afasia.
A partir de pressupostos teóricos, concebo que há nos gêneros uma configuração genérica da ação comunicativa que pode proporcionar às situações uma estabilidade capaz de influenciar a referenciação, a expressividade e o direcionamento do e no discurso. Os gêneros regularizam os objetos do discurso, a
postura emocional em relação a esses objetos e as relações com os interlocutores (BAZERMAN, 2006; HANKS, 2008).
Socialmente identificáveis e compartilhados pelos membros de uma sociedade, os gêneros norteiam as práticas sociais e organizam a sociedade. No capítulo, intitulado Gênero e interação social: um caminho possível, os gêneros são abordados como a forma material em que a linguagem acontece em contextos concretos de uso. Quer na modalidade oral, quer na modalidade escrita, essas formas relativamente estáveis de enunciados são sedimentadas na linguagem do usuário de uma língua e podem ser um recurso significativo para o resgate da linguagem da pessoa com afasia.
Mesmo sendo a escrita modalidade da língua, a clínica fonoaudiológica tem privilegiado a oralidade em detrimento da escrita, seguramente, devido aos transtornos e impactos que a ausência de fala implica à vida da pessoa afásica. A questão é que, quando faz uso da escrita, realiza-a de maneira dissociada da fala, sem relação com a oralidade, desconsiderando que a escrita, assim como a fala, é modalidade da língua e que ambas obedecem a regras sociais e culturais (MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2005). Além disso, a escrita faz parte da cultura das sociedades modernas, tornando-se essencial para a organização social de maneira que, nessas sociedades, mesmo os que não lêem nem escrevem são por ela influenciados e dessa forma não pode ser apartada da clínica da linguagem (BAZERMAN, 2007).
À luz das concepções interacionistas, concebe-se a linguagem como formas de agência dos indivíduos sobre o mundo, de modo que sua análise deve ser procedida como atividade e não como estrutura (BAZERMAN, 2006, MARCUSCHI, 2008). Dessa forma, afasta-se aqui de embasamentos teóricos que preconizam a estrutura da língua, atividades fora de contexto e abordagens metalinguísticas, contudo, sem desmerecer os avanços que tais teorias proporcionaram no campo científico da linguagem.
Com essa concepção de linguagem, gênero e escrita, esta pesquisa justifica-se por investigar quais os impactos que a utilização de gêneros textuais, numa perspectiva dialógica e de interação, acarretam na construção de sentido do discurso do afásico de modo a colaborar com novos pressupostos para a clínica fonoaudiológica para a reabilitação desse grupo. Compreendendo os termos
“estratégia” e “recurso” como sinônimos, especificamente, foi objetivo desta
pesquisa identificar as estratégias/recursos utilizados pelos afásicos que incidem na construção de sentido. Para esse fim promoveu-se atividades dialógicas e contextualizadas a partir de gêneros textuais.
Espera-se que este trabalho possa contribuir para uma reflexão acerca das concepções de linguagem, bem como de seus distúrbios, na clínica fonoaudiológica. Sobretudo, que possa colaborar para a construção de uma prática clínica que favoreça a reabilitação dos afásicos apoiando-se em práticas que promovam mais que a eliminação de sinais e sintomas patológicos, mas, que visem à ressocialização dessas pessoas.
Compreendo que a linguagem se dá pelo uso e acontece na forma de gêneros que, por sua vez, são sedimentados na linguagem, reconhecidos pelo senso comum, e que remetem a contextos específicos. É por essas formas relativamente estáveis que a comunicação acontece na sociedade, e é por meio desses enunciados que ela se organiza, pela estabilização situacional que promovem e a capacidade de regularizar o discurso e seus elementos (BAZERMAN, 2007, BAZERMAN, 2006, MILER, 2009, BAKHTIN, 1997). Assim, suponho ser por essas formas e/ou a partir delas que uma proposta de reabilitação com fins à ressocialização deve se apoiar.