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PRINCÍPIO E CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA E SUAS APLICAÇÕES NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO PRÓ-REITORIA ACADÊMICA

JOAQUIM JOSÉ DE BARROS DIAS FILHO

PRINCÍPIO E CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA E SUAS APLICAÇÕES NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

RECIFE

2011

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JOAQUIM JOSÉ DE BARROS DIAS FILHO

PRINCÍPIO E CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA E SUAS APLICAÇÕES NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Lúcio Grassi de Gouveia.

RECIFE

2011

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JOAQUIM JOSÉ DE BARROS DIAS FILHO

PRINCÍPIO E CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA E SUAS APLICAÇÕES NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Banca Examinadora: Data de aprovação: __________________

____________________________________________

Prof. Dr. Lúcio Grassi de Gouveia Orientador

____________________________________________

Prof. Dr. Hélio Silvio Ourem Campos

____________________________________________

Prof. Dr. Sérgio Torres Teixeira

_____________________________________________

Prof. Dr. Francisco Antonio de Barros e Silva Neto

(5)

RESUMO

A presente pesquisa aborda as alterações ocorridas no modo sobre o qual se desenvolve o processo civil brasileiro, na perspectiva de superar os estigmas de uma jurisdição omissa e recheada de concepções privatistas e enveredar pelo caminho que se orienta por uma concepção de ser o processo um mecanismo apto a dar mais efetividade ao direito e à promoção da justiça, quando realizado em sintonia com os valores constitucionais. Trabalha-se sob o paradigma da superação da visão individualista do direito processual e da elevação de sua expressão social, atento às disposições do Estado Constitucional, a partir do marco teórico do formalismo- valorativo, a ser realizado por meio de uma legislação menos casuística e atrelada aos princípios fundamentais, que permitem a construção de um processo cooperativo, desenvolvido a partir do princípio do contraditório e da observância a padrões de boa-fé estabelecidos objetivamente.

Palavras-chave: Processo civil. Boa-fé. Paradigmas. Formalismo. Formalismo-valorativo. Boa-

fé processual objetiva. Princípio do contraditório. Cooperação. Lealdade. Proteção da confiança.

(6)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 O PROCESSO ENQUANTO MECANISMO DE PODER E SUA SUBMISSÃO A ARQUÉTIPOS DE BOA-FÉ, LEALDADE E PRESERVAÇÃO DA CONFIANÇA ... 12

3 FACES E DEFINIÇÕES DO INSTITUTO DA BOA-FÉ ... 16

3.1 A BOA-FÉ EM SEU ASPECTO SUBJETIVO ... 18

3.1.1 A aplicação da boa-fé em seu aspecto subjetivo... 19

3.2 A BOA-FÉ EM SEU ASPECTO OBJETIVO ... 22

3.2.1 Embasamento teórico da boa-fé objetiva ... 24

3.3 EXPERIÊNCIAS DA BOA-FÉ OBJETIVA NOS ORDENAMENTOS FRANCÊS E ALEMÃO EM COTEJO COM A EXPERIÊNCIA NACIONAL ... 27

3.4 CONCEITO DE BOA-FÉ ... 29

4 CIÊNCIA JURÍDICA E A INFLUÊNCIA DOS PARADIGMAS ... 32

4.1 A CIÊNCIA POR MEIO DOS PARADIGMAS E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO ... 32

4.2 PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS COMO ELEMENTOS DE RUPTURAS E EVOLUÇÃO DO MODO DE PENSAR E APLICAR O PROCESSO CIVIL ... 32

4.3 NEOCONSTITUCIONALISMO (OU PÓS-POSITIVISMO) E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DA BOA-FÉ PROCESSUAL OBJETIVA... 37

4.4 FASES METODOLÓGICAS DO PROCESSO CIVIL E A POSSÍVEL SUPERAÇÃO DO INSTRUMENTALISMO ... 40

4.4.1 Fase sincretista e as bases para o cientificismo: pré-história do direito processual... 40

4.4.2. O instrumentalismo processual e sua influência na atual doutrina e jurisprudência. 43

(7)

5 O FORMALISMO-VALORATIVO COMO MÉTODO DE APLICAÇÃO DO DIREITO

PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO... 46

5.1 O FORMALISMO PROCESSUAL EM FACE DE VALORES CONSTITUCIONAIS: CONCEPÇÃO DO FORMALISMO-VALORATIVO... 47

5.2 O FORMALISMO-VALORATIVO E O PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO... 51

6 NATUREZA JURÍDICA DA BOA-FÉ EM SEU PLANO OBJETIVO ... 54

6.1 DEFINIÇÃO DE PRINCÍPIO. CRITÉRIOS PARA A DISTINÇÃO DE PRINCÍPIOS E REGRAS ... 55

6.2 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA (E SUA FUNÇÃO) COMO MÉTODO DE APLICAÇÃO DO DIREITO ... 60

6.2.1 O sobreprincípio e o subprincípio da boa-fé objetiva ... 62

6.3 CLÁUSULA GERAL: ORIGEM, SIGNIFICADO E PROPÓSITO... 64

6.3.1 Cláusula geral: conceito e distinções... 68

6.3.2 A vagueza conceitual e outras características das cláusulas gerais ... 71

6.3.3 A concreção como método de aplicação das cláusulas gerais ... 74

6.3.4 Cláusula geral da boa-fé processual objetiva. inciso II do artigo 14 do código de processo civil brasileiro como núcleo axiológico do dever de lealdade no processo. consequências normativas para o desrespeito a uma cláusula geral ... 78

6.5 A BOA-FÉ PROCESSUAL OBJETIVA E A APLICAÇÃO PRÁTICA DA PROIBIÇÃO DO EXERCÍCIO INADMISSÍVEL DE POSIÇÕES JURÍDICAS PROCESSUAIS ... 81

7 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO COMO MEIO DE INTRODUÇÃO DA BOA-FÉ PROCESSUAL OBJETIVA NO SISTEMA BRASILEIRO... 88

7.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA A PARTIR DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO... 89

7.2 A NECESSIDADE DE UM DEBATE JUDICIAL ÉTICO E SUA REALIZAÇÃO POR

MEIO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO... 92

(8)

7.3 O JUIZ EM FACE DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA COOPERAÇÃO.

ATIVISMO JUDICIAL... 93

8 O PROCESSO COOPERATIVO ... 98

8.1 BASE TEÓRICA DO PROCESSO COOPERATIVO ... 100

8.2 OPERACIONALIZAÇÃO OU CONCRETIZAÇÃO DA ATIVIDADE DIALÉTICA E COOPERATIVA: ESPÉCIES DO GÊNERO COOPERAÇÃO DOS TRIBUNAIS COM AS PARTES ... 105

8.2.1 Dever de Esclarecimento... 106

8.2.2 O dever de prevenção ... 108

8.2.3 O dever de consultar as partes ... 111

8.2.4 O dever de auxiliar as partes ... 113

8.3 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO COMO REPRESENTAÇÃO DE UM MODELO DE PROCESSO AUTORITÁRIO... 114

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 116

REFERÊNCIAS ... 119

(9)

1 INTRODUÇÃO

As questões a seguir expostas decorrem da necessidade do desenvolvimento do estudo da ciência processual em sintonia com o direito material e em observância à realidade que o cerca, sob pálio dos ditames constitucionais estabelecidos, com o fim de dar maior efetividade ao direito e à promoção da justiça. Trata-se da busca na mudança do perfil do estudo e aplicação do direito processual civil, desenvolvendo-se um pensar processual sob a ótica dos princípios.

O processo, em linha natural de consequência, pode configurar-se como um simples instrumento de poder, desprovido do intuito de promover justiça. A revisão da postura institucional da atividade jurisdicional, afastando-se dos estigmas de uma jurisdição omissa, é um indicativo de oposição a esse quadro, na medida em que passa a exigir um processo que funcione como ferramenta hábil para convalidar a jurisdição, tornando legítimas suas ordens, posto que as mesmas não seriam o resultado da conclusão de um simples rito, mas decorrente de um mecanismo que reflete valores de uma sociedade. O processo aviado de forma adequada e razoável contribui para que se profiram decisões justas.

Já não se faz suficiente a existência de uma jurisdição que se contenta em aplicar o direito infraconstitucional e que não leva em conta os preceitos que ensejam a construção de uma democracia efetiva ou que não faça uso de um corpo legislativo provido de normas jurídicas das quais decorre o imprescindível dever do Estado de realização da justiça.

Ao Poder Judiciário não é dado apenas o poder de aplicação mecanizada do texto da lei.

No exercício da jurisdição exige-se do aplicador do direito um conhecimento interdisciplinar e atenção à realidade fática que circunda o caso em análise.

Em sendo o processo o mecanismo que permite o exercício da jurisdição, é preciso analisar a suposta antinomia existente entre formalismo processual e justiça, a partir da perspectiva do estudo do processo sob o olhar dos valores constitucionais que, sem desprezar o formalismo, dispõe que o direito processual vincula-se ao direito constitucional e a este deve observância, a fim de sagrar-se como ferramenta de natureza pública indispensável para a realização de justiça e pacificação social, através da jurisdição (OLIVEIRA, 2003).

O estabelecimento de padrões objetivos para exigir e apurar existência de cooperação

entre as partes processuais e o desenvolvimento de uma atividade calcada no diálogo, envolve

(10)

formas avançadas de encarar o processo, especialmente quanto ao seu escopo social, já que conseguem apaziguar os anseios dos contendores de forma mais eficaz.

Nessa toada, a definição da boa-fé processual objetiva assume grande importância no respeito à condição alheia, aos interesses do outro, às suas esperanças e expectativas, o que remete, em última análise, à chamada tutela da confiança. Nessa perspectiva, busca-se a superação das concepções privatistas do direito processual e a ascensão de sua face publicista, na qual o processo é um ambiente de coparticipação e as decisões são o resultado de uma comunidade dialética de trabalho.

Há que se tomar a atividade judiciária como uma atuação do Estado destinada a compor os conflitos e anseios sociais. Atenta a essas diretrizes, a ciência do processo de há muito está cautelosa na limitação do exercício das posições subjetivas das partes, impondo deveres, obrigações e ônus processuais, através da boa-fé processual objetiva, em face da qual o indivíduo vai pautar seu comportamento, lastreado em honestidade, lealdade e probidade, o que pode decorrer do exercício do direito fundamental ao contraditório, alinhado a um regime de diálogo e cooperação entre os seus participantes.

Com a evolução social e o desenvolvimento de uma sociedade com inédito grau de complexidade, passamos a exigir do legislador mais do que as simples tipificações casuísticas, afastando-o da “Era da Certeza”, na qual o código refletia a existência de um sistema fechado, que englobava a totalidade dos conceitos e regras da ordem jurídica, capazes de responder a toda e qualquer questão que se apresentasse (TEPEDINO, 2001); em via inversa, inicia-se a adoção de um método menos tipificante e casuístico, caracterizado pelo maior uso de normas abertas, conceitos jurídicos abstratos e cláusulas gerais (MARTINS-COSTA, 2000).

Ante o estabelecimento de novos paradigmas, à ciência processual não mais seria possível conformar-se com a precisão formal legislativa que acerca de tudo pretendia tratar particularmente. Com efeito, restou exposta a incapacidade de o direito positivo englobar a totalidade dos fatos, sem atentar para as transformações sociais, econômicas e políticas, ensejadoras de profundas mudanças na maneira de aplicar o direito.

Definir o processo como mero instrumento, cuja aplicação é exigida de forma imediata a

partir do sistema, sem observar a carga axiológica dos conceitos ou princípios doutrinais, valores

positivados ou extrajurídicos, é desconhecer a necessidade de o processo civil submeter-se às

diretrizes constitucionais, de desenvolver-se sob um regime de cooperação, no qual o órgão

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jurisdicional tem o poder-dever de esclarecer, prevenir, consultar e auxiliar as partes, por meio de um diálogo judicial (contraditório) lastreado em parâmetros de confiança e boa-fé.

Este é o quadro no qual se pretende a inserção dos valores que defluem da boa-fé, por ser um instituto hábil a fazer com que o processo seja tomado como fonte de instrumentos cuja aplicação resta conformada com valores constitucionais e éticos.

É preciso trazer a ética para o seio do direito e do processo. É preciso entender que a ética e o direito não funcionam como figuras antagônicas, mas como faces diversas de uma mesma moeda, já que não se concebe a subsistência de um direito ‘não-ético’. Foi esse contexto que nos moveu a apresentar como pertinente este estudo.

Como restará evidenciado, a boa-fé desponta como meio capacitado a fazer a união

dessas faces, a ser realizada a partir da aplicação do direito sob o olhar dos valores

constitucionais, bem como por meio do efetivo exercício de um contraditório e do

desenvolvimento de um processo cooperativo. Não é simples a tarefa de fazer atuar os valores

decorrentes da boa-fé em todas as searas do direito e menos ainda no campo do direito público,

entretanto, faz-se necessária, em vista dos novos paradigmas que influem o direito na atualidade.

(12)

2 O PROCESSO ENQUANTO MECANISMO DE PODER E SUA SUBMISSÃO A ARQUÉTIPOS DE BOA-FÉ, LEALDADE E PRESERVAÇÃO DA CONFIANÇA

Em face do alto grau de sintonia entre o modelo de organização estatal aos vários modos de conformação do aparelho judiciário nele existente, seja em razão da autonomia de seus membros, efetividade de suas decisões e as normas processuais postas, não se pode desconsiderar o poder de modificação que o Estado detém ao atuar de forma mais proativa para garantir um efetivo acesso à jurisdição e à realização de um processo justo, de forma a resgatar ou afirmar sua parcela de poder na definição dos destinos dos membros desta comunidade, em acordo mútuo com os ideais democráticos.

Bem se sabe que, em determinado período de desenvolvimento da sociedade, não faria sentido perquirir-se sobre a utilização do processo civil como tática de poder, haja vista que sequer havia estratégia alguma tendente a construir um modelo processual a ser aplicado.

Todavia, hoje não se olvida que há uma íntima relação entre o processo civil posto e a organização política do Estado no qual ele se insere, quando o mesmo é alçado à condição de ferramenta de poder (SILVA, 2004).

Com o maior desenvolvimento das relações sociais, no seio de uma sociedade complexa, a própria instituição de um Poder Judiciário e a percepção de que o processo civil integra os interesses estatais, consubstanciando-se como uma das estratégias governamentais para o exercício do poder, torna-se necessária a análise desse instrumento de força, que poderá ser definido como um conjunto de regras ocas e desprovidas de valores ou como mecanismo que se estabelece como um meio hábil à realização da jurisdição, respondendo os anseios sociais e promovendo justiça.

Esmiuçando tais questões, enquanto o processo judicial no Estado do “laissez faire”

configurava-se como um duelo entre indivíduos (como os únicos interessados na contenda), no

Estado intervencionista o processo judicial insere-se como parte integrante da estratégia de impor

os valores oficiais nos mais vastos espectros da vida em sociedade. Já o Estado Social de Direito

conjugou os princípios do estado burguês com premissas de direitos sociais, econômicos e

culturais (SILVA, 2004, p. 10-15).

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Em todos, contudo, observamos a força do Estado na definição das feições do processo.

Portanto, para que o mesmo não figure como simples espelho de uma ideologia qualquer, é preciso adequá-lo a padrões mais perenes e vinculados a uma ordem maior, que tenha por base princípios fundamentais, como os dispostos nos arts. 1º, 3º e 5º da Constituição Federal do Brasil, capazes de fazer do processo um instrumento de inclusão social, de realização da justiça e de um regime democrático efetivo

1

.

Por conseguinte, os mecanismos estruturados pelo Estado para a realização da justiça e do regime democrático, concretizadores da igualdade material, não podem ser concebidos de forma a tolerar ações desconexas com a ética.

A premissa posta deve ser aplicada ao processo, que figura como um mecanismo de poder do Estado, munido de substância e disposições que não devem ser tomadas apenas como formalidades, mas como normas conformadas com princípios e garantias, inclusive em sede constitucional, que asseguram o desenvolvimento do processo sob a tutela dos mais elevados valores dispostos na sociedade.

O processo é instrumento posto pelo Estado em favor das partes como um mecanismo de acesso à jurisdição. Por conseguinte, em um Estado Democrático de Direito, o processo deve restar calcado em princípios de igualdade, boa-fé, lealdade e preservação da confiança, já que em seu sentido social é ele um mecanismo de realização da justiça, e nenhum instrumento de justiça pode existir fundado em inverdades (RIBEIRO, 2004).

A presente perspectiva é anunciada na exposição de motivos do nosso Código de Processo Civil brasileiro (Código Buzaid), nas seguintes passagens:

Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever, da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça. Tendo em conta estas razões ético-jurídicas, definiu o projeto como dever das partes: a) expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de

1 Mesmo ciente da dificuldade na configuração e definição daquilo que vem a ser um regime democrático efetivo, especialmente quando muitos Estados totalitários assim estão denominados por disposição própria, é preciso observar que o processo, enquanto mecanismo de poder, pode servir como fonte de estudo para apurar a existência de uma real democracia em determinados Estados.

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fundamento; d) não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (art. 17). E, em seguida, dispôs que“responde por perdas e danos todo aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente” (art. 19). No art. 20, prescreveu: “Reputar-se-á litigante de má-fé aquele que: a) deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer; b) alterar intencionalmente a verdade dos fatos; c) omitir intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa; d) usar do processo com o intuito de conseguir objetivo ilegal; e) opuser resistência injustificada ao andamento do processo; f) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; g) provocar incidentes manifestamente infundados.

Percebe-se, portanto, que o Código de Processo Civil brasileiro adotou de forma irrestrita lealdade e a boa-fé processual não só em relação às partes como também em relação a todos aqueles que, de uma forma direta ou indireta, participam da causa.

No Brasil é inegável a influência da boa-fé, como se vê nas disposições dos arts. 37 e 85, V da Constituição Federal de 1988

2

. No Código de Processo Civil os exemplos são ainda mais generosos: em relação aos participantes do processo: art. 14, II do CPC; em relação ao órgão do Ministério Público: art. 85; em relação ao juiz: art. 133; em relação ao depositário e ao administrador: art. 150 do CPC; em relação ao intérprete: art. 153 etc

3

.

Nessa toada, ciente do poder de modificação que o Estado detém na definição dos destinos dos indivíduos submetidos à sua ordem e de que o processo, enquanto mecanismo de

2 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) V - a probidade na administração;

3 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (Redação dada pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001) (...)

II - proceder com lealdade e boa-fé;

Art. 85. O órgão do Ministério Público será civilmente responsável quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude.

Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:

I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.

Art. 150. O depositário ou o administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte, perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada; mas tem o direito a haver o que legitimamente despendeu no exercício do encargo.

Art. 153. O intérprete, oficial ou não, é obrigado a prestar o seu ofício, aplicando-se-lhe o disposto nos arts. 146 e 147. (Art. 147. O perito que, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas, responderá pelos prejuízos que causar à parte, ficará inabilitado, por 2 (dois) anos, a funcionar em outras perícias e incorrerá na sanção que a lei penal estabelecer).

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poder, é reflexo da organização política do Estado no qual ele se insere, não se pode negar-lhe a condição de instrumento de realização da justiça e do regime democrático.

Alçado a tal patamar torna-se imperiosa a análise desse instrumento de força, que poderá ser definido como um mecanismo em favor dos detentores do poder ou aflorar como indutor de realização de justiça e do regime democrático.

Como o processo judicial não deixará de ser parte integrante da estratégia do Estado para impor os valores oficiais, é preciso vinculá-lo a padrões mínimos, objetivos e perenes, como a boa-fé objetiva, a lealdade e a preservação da confiança. Tal perspectiva enseja uma ciência processual em harmonia com o direito material e, atenta aos valores constitucionais estabelecidos, convalida uma jurisdição legítima, afastando-se da ideia de processo como instrumento de simples manutenção de poder.

Pertinente é a repetição do disposto na exposição de motivos do nosso Código de

Processo Civil, ao afirmar que, ante a índole eminentemente dialética do processo civil, “é

reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever, da verdade, agindo com deslealdade e

empregando artifícios fraudulentos”. Demonstra, portanto, que o Estado cumpriu com o seu

mister, ao menos formalmente, ao impor de forma obrigatória e objetiva o dever de cooperação

entre as partes e o desenvolvimento de uma atuação calcada no diálogo, quando será preciso que

valores constitucionais impregnem a técnica processual, por meio do formalismo-valorativo

(MITIDIERO, 2005).

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3 FACES E DEFINIÇÕES DO INSTITUTO DA BOA-FÉ

Pode-se afirmar, em linhas gerais, que a origem da expressão ‘boa-fé’ remonta aos primórdios dos tempos romanos, quando já se visualizava uma nítida dualidade de conceitos, na caracterização simultânea da bona fides e da fides bona. Se, por um lado, analisava-se a crença de um sujeito para avaliar se este procedia conforme os ditames legais, por outro, todas as relações eram fundadas na confiança e o juiz, dentro do processo formulário, era remetido a critérios de decisão éticos, sociais e de equidade.

Anuncie-se, todavia, que não se objetiva adentrar na difícil seara da construção histórica da boa-fé, nas diversas fases evolutivas do direito romano ou no direito canônico, em vista da longa explanação necessária sobre o tema e dos inúmeros questionamentos que porventura fomentaram as bases do instituto.

É por demais extensa a formação da boa-fé, com diversas formulações e construções ao longo do direito romano, atingindo a idade média com a identificação da boa-fé à ausência de pecado, ante o domínio da igreja católica, até chegar à idade moderna com intenso acento subjetivista, em decorrência da ascensão da burguesia e todos os valores a esta relacionados, quando o princípio da boa-fé foi inteiramente absorvido pelo dogma da autonomia da vontade (PRETEL, 2006).

Apesar do fortalecimento da feição subjetivista dada à boa-fé durante séculos, atente-se para o aspecto duplo de seu conceito, que prevê também o aspecto objetivo, o qual, já nos tempos romanos, traduzia sentidos de honestidade, confiança e sinceridade.

É forte a ressonância na doutrina acerca da dualidade de sentidos dispostos a uma ampla cognição da boa-fé, especificamente tomada em seus aspectos subejtivo e objetivo, compreendidos, respectivamente, como um ‘estado’ e como uma ‘regra’ de conduta. Alerte-se, entretanto, para a existência de posições contrárias a essa dualidade conceitual, o que deflagra a formação de duas correntes a abordar a questão.

A primeira corrente admite ser possível traçar distinções atinentes à função e aos efeitos

assumidos pela boa-fé, mas, em sua base, esta teria um significado unitário, dado que a boa-fé

tem sua aplicação pautada a partir do comportamento ditado pela moral social e também porque,

tanto a boa-fé subjetiva como a objetiva conteriam uma normatividade, embora em graus

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distintos, ou seja, ambas seriam regras. É esta posição defendida por Antônio Henadez Gil (apud SLAWINSKI, 2002).

Conforme expõe Célia Barbosa Abreu Slawinski (2002), a corrente que defende a unidade conceitual, não desconsidera a possibilidade de traçar distinções relativamente à função e aos efeitos assumidos pela boa-fé, entretanto, a unidade conceitual residiria em duas razões: a primeira, no fato de ambas as formas de boa-fé sempre decorrerem de uma pauta de comportamento diatada pela moral social; e a segunda no fato de que, tanto na denominada boa- fé subjetiva quanto na objetiva existe normatividade, embora em graus distintos.

Em face da segunda corrente, Menezes Cordeiro, Judith Martins-Costa, Teresa Negreiros, dentre outros, acolhem a distinção conceitual da boa-fé, ao passo que apontam a boa- fé subjetiva como algo que diz respeito ao interior do sujeito, ao seu aspecto psicológico, quando o mesmo crê que seu obrar está em conformidade com o direito aplicável; já a boa-fé objetiva, ao revés, é algo exterior ao sujeito, quando sua atuação é apurada a partir de um modelo objetivo de conduta social, no standard jurídico exigido de um homem reto, probo e leal (RIBEIRO, 2004).

Embora os sentidos subjetivo e objetivo da boa-fé sejam componentes expressos de disposições legislativas, Teresa Negreiros (1998)

4

não estranha a confusão estabelecida, posto que a mesma decorreria da ausência de precisão semântica que permite o surgimento de dúvidas a respeito da dualidade de sentidos imputáveis à boa-fé.

A autora segue a linha que enxerga a boa-fé no seu aspecto subjetivo como um fato (intelectivo ou volitivo) e, no seu aspecto objetivo, como critério de comportamento, entretanto, observa que os alemães usam termos diferentes, afastando-se da imprecisão terminológica. Nesse sentido, a boa-fé disposta como dever de conduta é estabelecida na expressão alemã Treu und Glauben e configura o núcleo do famoso § 242 do BGB (Bürgerliches Gesetzbch)

5

. Essa, por sua

4 Atente-se que a autora faz referência a diversas obras e doutrinadores contrários aos aspectos distintivos de

‘subjetivo’ e ‘objetivo’ da boa-fé, dentre eles Stefano Rodotà. Noutro ponto, são dispostas as seguintes observações:

“parece questionável, no entanto, o alcance dogmático destas críticas, uma vez que a unificação das vertentes subjetiva e objetiva da boa-fé acaba por elevar ainda mais o nível de abstração dos conceitos em exame, como é o caso do ‘dever de agir corretamente’, referido por Rodotà. Ainda no âmbito da doutrina italiana, cumpre citar Emilio Betti, que se posiciona a este respeito de forma diversa: discorda da duplicação subjetiva-objetiva do conceito de boa-fé, mas reconhece que o tratamento legislativo desta noção deva ser sistematizado a partir de uma clara distinção entre a boa-fé contratual e as demais referências à boa-fé esparsas no Código Civil italiano”. (NEGREIROS, 1998, p.

10-11).4

5Aqui temos o § 242 do BGB, cujo desenvolvimento foi deveras significativo pela doutrina e jurisprudência alemãs, a partir de 1896, em que se lê: O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego.

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vez, não se confunde com o conceito de Guter Glaube, por nós tomada pela situação ou fato psicológico de boa-fé.

3.1 A BOA-FÉ EM SEU ASPECTO SUBJETIVO

Em conjunto com massiva parcela da doutrina e jurisprudência pátria, concordamos com a dualidade de sentidos dispostos a uma ampla cognição da boa-fé, visto que a dualidade permite uma maior concretização do abstrato conceito de boa-fé. Nessa toada, embora o foco primário da nossa pesquisa recaia sobre a boa-fé objetiva, é pertinente o uso de algumas linhas para tratar da boa-fé subjetiva. Em síntese, entende-se que a boa-fé em seu aspecto subjetivo caracteriza-se como um estado, consciência, baseada em elementos psicológicos, internos do sujeito, onde o juiz terá de pronunciar-se sobre o estado de ciência ou de ignorância do sujeito.

A partir das lições de Judith Martins-Costa (2000, p. 411-412), observamos que:

[...] a expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo]

aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

6

Por se entender que a boa-fé subjetiva caracteriza-se como um estado, consciência, baseada em elementos psicológicos, internos do sujeito, como ser possível ao juiz pronunciar-se sobre o estado de ciência ou de ignorância do sujeito? Salvo diante da possibilidade de se

6 Judith Martins-Costa (2000, p. 411-412) ao reforçar sua exposição ratifica que “a boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente etc). Pode denotar, ainda, secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio, ou na adstrição “egoística” à literalidade do pactuado”.

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conhecer de forma direta a má-fé do sujeito, através da confissão, e.g., os indícios existentes apenas permitem constatar que, nas condições por ele representadas, uma pessoa, com perfil do agente, se encontra, numa ótica de generalidade, em situação de ciência ou ignorância (CORDEIRO, 2007).

Adentremos, portanto, na difícil seara da aplicação da boa-fé subjetiva, que será analisada em sequência.

3.1.1 A aplicação da boa-fé em seu aspecto subjetivo

É preciso estabelecer a noção de que o princípio da boa-fé processual também tem aplicação em face de condutas processuais animadas pela má-fé, ou seja, quando se vislumbra a ausência de boa-fé subjetiva. Trata-se da atuação do princípio da boa-fé processual, que é a fonte de deveres diversos, inclusive o de não agir com má-fé (DIDIER JR, 2010).

A boa-fé processual adjetiva como ilícitas as condutas processuais animadas pela má-fé (sem boa-fé subjetiva). Por sua vez, a cláusula geral da boa-fé processual implica, entre outros efeitos, o dever de o sujeito processual não atuar imbuído de má-fé, que passa a ser suporte fático de alguns ilícitos processuais.

É possível, a partir da legislação processual civil, apurar diversas passagens que reprimem as situações processuais dolosamente criadas, como as situações dispostas nos incisos I, II, III e IV do art. 17 do Código de Processo Civil

7

, que configuram má-fé subjetiva e são qualificados como hipóteses de litigância de má-fé.

Na mesma linha está o requerimento doloso da citação por edital, art. 233 do CPC. Bem como a atuação dolosa do magistrado, do membro do ministério público e outros participantes do processo, quando têm sua conduta apurada a partir de uma atuação intencional. É o que podemos extrair, “e.g.”, dos arts. 85; 133, I; 147; 150 e 153 todos do Código de Processo Civil.

7Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980)

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980)

II - alterar a verdade dos fatos; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980)

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980)

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980); (...)”

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A propósito da dificuldade de aplicação da boa-fé subjetiva, perfilhamos o caminho traçado por Menezes Cordeiro (2007), que vislumbra a necessidade de estabelecer distinções no âmbito da boa-fé subjetiva, com o fim claro de promover sua efetiva aplicação pelo direito e não apenas uma utilização fictícia.

De imediato, relembre-se que o autor é partidário da corrente que vislumbra distinções entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva. Nessa toada, alerta que não podemos confundir a presente distinção com a contraposição disposta entre a ‘boa-fé subjetiva psicológica’ e a ‘boa-fé subjetiva ética’, haja vista que ambas restariam insertas no seio da boa-fé subjetiva, correspondendo a primeira a um estado de ignorância, enquanto a segunda também representaria um estado de ignorância, distinta da ‘psicológica’ pelo fato de representar um estado de ignorância valorado pelo direito.

8

Ao tratar da efetiva aplicação da boa fé subjetiva, cabe ressaltar a difícil missão que é imposta ao julgador, no sentido de pronunciar-se sobre o simples estado de ciência ou de ignorância do sujeito. Tal exercício não é cumprido com facilidade pelo direito, visto que ao sistema escapa a possibilidade de controle desta forma de apreciação do caso, quando até fatores não condizentes com a neutralidade do julgador podem vir a influir ou definir o sentido da decisão a ser expedida. Diante da boa-fé subjetiva de base ‘ética’, restamos menos onerados em face da difícil tarefa de empreender uma descoberta do pensamento do sujeito, visto que a mesma tem por base estabelecimento de padrões, tomados por desconhecimento indesculpável (CORDEIRO, 2007).

9

8 Neste sentido, expõe Menezes Cordeiro (2004, p. 514-516) que “Cabe ponderar a repercussão, no próprio conceito de boa fé subjectiva, das funções que lhe são atribuídas. Na boa fé possessória, cujo primado histórico-cultural foi, a seu tempo, justificado, ocorrrem dois entendimentos conceptuais possíveis, conhecidos, por tradição, como psicológico e ético: para o primeiro, a boa fé seria a simples ignorância de certo facto; para o segundo, ela seria uma ignorância desculpável. A desculpabilidade corresponde a um juízo cuja fonte objectiva reside no acatar de bitolas normativas de actuação: há por desconhecimento indesculpável quando o sujeto ignore certo facto, por ter procedido com desrespeito por certos deveres de cuidado”. (...) “Por todas estas razões, o Direito civil português tem, da boa fé subjectiva, uma noção ética, sendo de entender, a essa luz, as definições esparsas compreendidas no Código. A boa fé traduz um estado de ignorância desculpável, no sentido de que, o sujeito, tendo cumprido com os deveres de cuidado impostos pelo caso, ignora determinadas eventualidade.” (...) “Torna-se significativo que, apesar de evoluções conturbadas, os Direitos alemão e italiano tenham acabado por se fixar na boa fé ética, enquanto o Direito francês, vítima da incipiência que o assola, sobretudo no campo da boa fé, se mantém nos entendimentos anteriores.”

9Menezes Cordeiro (2007, p. 514-516) afirma que

Perante uma boa fé puramente fáctica, o juiz, na sua aplicação terá de se pronunciar sobre o estado de ciência ou de ignorância do sujeito. Trata-se de uma necessidade delicada, como todas aquelas que impliquem juízos de culpabilidade e que, como sempre, requer a utilização de indícios externos. (...) Na boa fé psicológica, não há que ajuizar da conduta: trata-se, apenas, de decidir do conhecimento do sujeito. Os indícios externos tornam-se magros.

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Ciente de que ao direito, por vezes, não interessa saber se o sujeito efetvamente ignora determinada situação e que pode ser dispensável a promoção de uma declaração de ciência sobre a mente humana, é preciso estabelecer outro modo para a apreensão dos fatos. Portanto, como exposto por Menezes Cordeiro (2007), a aplicação da boa-fé subjetiva requer uma boa fé ética, cuja fonte reside em adotar bitolas normativas de atuação, apurando-se o desconhecimento indesculpável, quando o sujeto ignore certo fato, por ter procedido com desrespeito por certos deveres de cuidado.

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A par das próprias realidades materiais do caso considerado e pelas situações típicas tidas por normais, efetua-se uma valoração sujeito-indícios. Nesse diapasão, torna-se possível um controle do sistema sobre suas soluções, quando se torna desnecessária uma simples declaração de ciência sobre a mente humana.

Diante da configuração da boa-fé subjetiva sob seu aspecto ético, é possível compreender um possível motivo que leva doutrinadores à defesa da existência de um único conceito de boa-fé, visto que tanto a boa-fé objetiva quanto a subjetiva estariam lastreadas em padrões normativos, cuja diferença defluiria do seu grau de maior ou menor intensidade. Melhor explicando, enquanto a boa-fé subjetiva ‘psicológica’ reside no âmbito da ignorância de certo fato, a boa-fé subjetiva ‘ética’ decorre de desconhecimento desculpável. Essa desculpabilidade

Fora a hipótese de haver um conhecimento direto da má fé do sujeito – maxime por confissão – os indícios existentes apenas permitem constatar que, nas condições por eles representadas, uma pessoa, com perfil do agente, se encontra, numa óptica de generalidade, em situação de ciência ou ignorância.

Mas sendo assim – e é assim – a concepção psicológica da boa fé torna-se, aquando da aplicação, numa aparência. O esquema real é outro: reunidos os indícios, o juiz constata que a pessoa em causa deve encontrar-se nas referidas situações de ciência ou de ignorância porque, das duas uma: ou se encontra, de facto, nelas ou, não se encontrando, devia encontra-se, dados os factores que a rodeiam. Ou sabe, ou deve saber, sendo certo que apenas o último termo é susceptível de apreciação e de controlo.

Querer, como base absoluta, aplicar uma concepção psicológica da boa fé é um logro, a nível de decisão: como em qualquer esquema de aplicação do Direito, arredado o espectro da subsunção, é sempre necessário emitir um juízo, a cargo do intérprete-aplicador. E este, guiando-se pelas situações típicas tidas por normais, efectua uma valoração sujeito-indícios e não uma declaração de ciência sobre a mente humana. Esta escapa ao Direito, sendo desejável que assim continue. Tal valoração implica, na prática, o recurso encapotado à boa fé ética. Mas sendo encapotado, ele possibilita sempre a inclusão, no decidido, de factores afectivos ou, até, a manipulação da boa fé, consoante solução considerada ideal, em termos de equidade, para o litígio compor. Deve, pois, reconhecer-se, como fatal a boa fé ética para, então, se proceder à sua análise e aplicação conscientes”.

10 Menezes Cordeiro (2007, p. 514-516) sinaliza no seguinte no sentido de que um estado de ignorância é desculpável quando o sujeito, “tendo cumprido com os deveres de cuidado impostos pelo caso, ignora determinadas eventualidades”, por sua vez, “há por desconhecimento indesculpável quando o sujeto ignore certo facto, por ter procedido com desrespeito por certos deveres de cuidado”.

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corresponde a um juízo cuja fonte objetiva reside no acatar de bitolas normativas de atuação, o que a aproxima da boa-fé objetiva, que são regras de condutas.

11

Portanto, a distinção proposta entre boa-fé subjetiva ética e psicológica, tem como objetivo principal não tornar inóqua a aplicação da boa-fé em seu sentido subjetivo, na medida em que a mesma passa a ser aferível por meio de situações típicas tidas por normais, através do uso da valoração sujeito-indícios, sem que haja a necessidade de promover uma declaração de ciência sobre a mente humana.

3.2 A BOA-FÉ EM SEU ASPECTO OBJETIVO

Acima versamos acerca da boa-fé subjetiva, em face da qual o intérprete deve considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção, extraindo- a de aspectos externos ou não. Sem negar a sua importância, é deveras interessante o estudo da boa-fé em seu aspecto objetivo, por ser elemento de transformação do direito atual.

Judith Martins-Costa (2000, p. 409)

12

, ao promover a análise do tema no campo do direito obrigacional, afirma que a boa-fé objetiva “subverte” e transforma o direito obrigacional clássico. Surpreende-se a autora com a emergência ou ressurgência desta noção, há tempos confinada a aplicações marginais pelo direito civil, para figurar como regra de interpretação, como fonte de deveres acessórios e, especialmente, como limite ao exercício de direitos subjetivos, que são diretrizes capazes de promover uma transformação em diversos campos do direito e não apenas na seara do direito obrigacional clássico.

A boa-fé em sua faceta objetiva é um dever das partes dentro de uma relação jurídica, onde os indivíduos comportam-se tomando por fundamento a confiança que deve permear essa

11 Ao nosso sentir, a presente configuração acaba por permitir o surgimento da dicontomia inicialmente abordada (dualidade ou unicidade conceitual da boa-fé), mas que não é suficiente para afastar a necessidade de segregação dos aspectos diversos da boa-fé, o que enseja a explanação acerca da boa-fé em seu aspecto objetivo.

12 Judith Martins-Costa (2000, p. 409) assim expõe: “(...) convivendo no direito há dois mil anos, como poderia a boa-fé ‘subverter’, agora, o direito obrigacional? (...) No seu trato não se poupam os exclamativos, até os superlativos: um tema que mais se assemelha a ‘une mer sans rivage’, na opinião de Simone David-Constant, uma concepção que origina um importante ‘revirement doctrinal’ no direito obrigacional, nas palavras de Ludo Cornélius, que constitui, enfim, a legítima expressão da pós-modernidade do direito, na leitura que lhe é feita por Marcel Storme. É preciso ver, portanto, no que consiste este ‘espantoso fenômeno’, esta ‘subversão’ que é atribuída a uma das vertentes da boa-fé, a objetiva, o seu caráter de signo da pós-modernidade, expressão tão usada quanto contestada [...]”

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relação, atuando de maneira correta e leal (MARTINS, 2000). Diversamente do que ocorre no campo da boa-fé subjetiva, aqui não há que se falar em má-fé, ou mesmo apurar qualquer ciência que o sujeito detém da realidade.

Operar nos moldes da boa-fé objetiva é agir ‘de acordo’ com a boa-fé. Esta boa-fé remonta origem na fides bona de Roma, cujo destaque é o elemento confiança (NEGREIROS, 1998). Conforme lições de Rui Stoco (2002), a boa-fé constitui atributo natural do ser humano e o agir em sua desconformidade seria o resultado de um desvio de personalidade. Entretanto, como não é possível esperar de todos os indivíduos de uma sociedade ou de todos os participantes de uma relação jurídica o agir com retidão, guiado por valores éticos e morais, é preciso estabelecer arquétipos de boa-fé objetiva, lastreado em padrões de conduta leal e confiável.

Temos na análise da boa-fé a disposição de uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão e na lealdade, a expor um dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, que não frustrem a confiança legítima da outra parte. É, principalmente, atinar e considerar os interesses do “alter”, que deve ser tomado como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado (MARTINS-COSTA, 2000).

Enquanto a ausência de boa-fé subjetiva enseja a ocorrência de má-fé, na antítese da boa-fé objetiva encontramos “a ausência de boa-fé, que ocorrerá quando não se proceder em conformidade com os deveres de conduta, qualquer que seja o motivo da desconformidade”

(MARTINS, 2000, p. 75)

13

. Temos no agir em observância à boa-fé objetiva uma regra de conduta, consistente num fazer, numa atuação ativa, a fim de atender as expectativas alheias, ou mesmo um não fazer, quando a ação implicar lesão à esfera jurídica de outrem. A mesma recai, sempre, na preservação da confiança pelas expectativas legitimamente geradas nos demais membros da comunidade (MARTINS-COSTA, 2000, p. 412).

A boa-fé objetiva é, portanto, a disposição de uma regra conduta, apresentada a partir de um padrão de comportamento comum, em face de um caso concreto, tradutor do estabelecimento de padrões de comportamento ético no caso em apreço. “Trata-se de regra ética, um dever de guardar fidelidade à palavra dada ou ao comportamento praticado, na ideia de não fraudar ou

13 Para Carlos Alberto Molinaro e Mariângela Guerreiro Milhoranza (2008) “o dolo é a antítese da boa-fé objetiva, assim como o contrário da boa-fé subjetiva é a má-fé”. Mais claro é o entendimento posto por Flávio Alves Martins (2000, p. 75), ao expor que “na objetiva, a boa-fé não se contrapõe à má-fé ou o dolo, mas a ausência de boa-fé, que ocorrerá quando não se proceder em conformidade com os deveres de conduta, qualquer que seja o motivo da desconformidade”.

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abusar da confiança alheia” (PRETEL, 2006, p. 22). Por tal se tem que “a boa-fé objetiva é lastreada no interesse coletivo das pessoas pautarem seu agir na cooperação, garantindo a promoção do valor constitucional do solidarismo” (PRETEL, 2006, p. 23).

Conforme Judith Martins-Costa (2000, p. 412):

[...] por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da Common Law – modelo de conduta social, arquétipo ou

standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a

esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.

Neste sentido, Clovis do Couto e Silva (1976) expõe que o princípio da boa-fé endereça- se sobre tudo ao juiz que, diante dos fatos postos, cria o direito do caso em apreciação. Por fim, existirá boa-fé objetiva quando o atuar do indivíduo enquadrar-se no modelo objetivo de conduta social, no standard jurídico exigido de um homem reto, probo, leal (RIBEIRO, 2004).

3.2.1 Embasamento teórico da boa-fé objetiva

É preciso observar, inicialmente, que a boa-fé, a segurança jurídica e a proteção à confiança são princípios que decorrem de uma mesma fonte de ideias, cuja aplicação passa a ser observada no processo.

Sob a perspectiva do princípio da boa-fé objetiva e do princípio da cooperação, há uma

expectativa à proteção da confiança e à instituição de uma conduta mais interativa e dialógica

entre as partes na seara do processo, bem como a superação da vertente individualista do direito

processual em favor de uma visão comprometida com valores constitucionais, que sinalizam no

sentido de ser o processo um instrumento do qual se utiliza o Estado para a consecução das

finalidades públicas e de que este não é apenas uma ferramenta livremente deixada ao ímpeto e às

(25)

vontades dos litigantes, que agora devem pautar suas ações sob os ditames da boa-fé objetiva e da proteção da confiança processual.

De imediato, observa-se que a boa fé aqui mencionada não é simplesmente aquela descrita pelo Código Civil brasileiro de 1916, e várias outras codificações, que conhecia apenas a chamada boa fé subjetiva ou boa fé possessória, tratada a partir de um estado psicológico de ignorância acerca de vícios que maculam um direito real. Aqui estamos no plano da concepção objetiva da boa fé, como standard de conduta leal e confiável (Treu und Glauben), independente de considerações subjetivistas.

14

Como expõe Anderson Schreiber (2005, p.78), “foi apenas a partir da Primeira Guerra Mundial que a boa-fé objetiva veio realizar plenamente a sua vocação de cláusula geral apta a impor parâmetros de conduta para as relações sociais”, sobretudo por meio da criação de direitos e obrigações anexas, voltadas a alcançar a mútua e leal cooperação entre as partes.

Do ponto de vista jurídico, a valorização contemporânea da confiança abre uma brecha nas bases voluntaristas e individualistas do direito. Passamos à quebra de valores consagrados com a modernidade. Para tanto, o processo civil não desponta como simples mecanismo, porém

“como um verdadeiro instrumento ético, sem que se deixe de reconhecer, no entanto, a sua estruturação igualmente técnica” (MITIDIERO, 2005, p. 19-20).

Entender a boa fé objetiva a partir do princípio geral de cooperação e lealdade recíproca entre as partes decorre, também, do fato de que ela representa expressão da solidariedade social, a atuar tanto no campo das relações privadas quanto públicas, visto ser um mandamento constitucional, destinado a conter o exercício desenfreado da autonomia privada, especialmente em face do formalismo exacerbado e desprovido de conteúdo, muitas vezes utilizado como manobra da parte para obtenção de interesses escusos através do processo.

Por conseguinte, observe-se que, do ponto de vista dogmático, a doutrina aponta uma tríplice função à boa-fé objetiva no sistema jurídico (SCHREIBER , 2005).

Em um primeiro plano, a boa-fé objetiva desenvolve uma função de cânone interpretativo dos negócios jurídicos. Trata-se da atuação da boa-fé como critério hermenêutico, indutora de uma interpretação do direito que privilegie sempre o sentido mais conforme à

14 Trata-se da boa fé objetiva, também chamada de boa fé contratual, na sua forma desenvolvida pela doutrina e jurisprudência alemãs, a partir de 1896, com base no § 242 do BGB, em que se lê: “O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”.

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lealdade e à honestidade entre as partes, afastando-se daquelas cujo sentido vise prejudicar a contraparte, que seja maliciosa.

Em um segundo plano, a boa-fé objetiva desenvolve uma função criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal. Apesar de a mesma restar bem delineada no campo do direito obrigacional, a presente função tem aplicabilidade mais ampla, visto que os deveres de informação, de segurança, de colaboração etc. variam de acordo com cada relação jurídica concreta da qual decorram, o que chega a inviabilizar uma precisa identificação do seu conteúdo em abstrato

15

. Assim, temos uma variabilidade do conteúdo dos deveres criados pela boa-fé que, segundo Clóvis do Couto e Silva (1976), de modo geral consiste no dever de afastar danos, da guarda de cooperação e da assistência, aplicados independentes da vontade das partes.

No que tange à terceira função, a boa-fé desempenha um papel restritivo do exercício de direitos. Trata-se da perspectiva de impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança, que visa afastar o chamado ‘exercício inadmissível de direitos’.

Aqui estamos diante da chamada aplicação da boa fé em seu sentido negativo ou proibitivo, quando visa impedir a utilização de direitos em contrariedade à recíproca confiança que deve imperar nas relações públicas e privadas. Seu objetivo é afastar os comportamentos que, embora legalmente assegurados (atos formalmente previstos), não se conformem aos standards impostos pela boa-fé objetiva.

É o que corresponde à proibição do comportamento contraditório, proibição do “venire contra factum proprium”, de larga importância ao processo, visto que trata da proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência promovida pelo participante do processo quando sinaliza que tomará uma conduta em determinado sentido e depois contradiz o comportamento anterior, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência (SCHREIBER, 2009).

Tal prática, conduta incompatível com comportamento anterior, promove ofensa à boa- fé objetiva (lealdade) e ao princípio da cooperação, que restam direcionados à proteção da confiança legítima dos demais sujeitos participantes da relação processual, bem como afronta as expectativas quanto ao curso do processo.

15 Em Menezes Cordeiro (2000) observa a diagramação dos deveres anexos em três aspectos: deveres de proteção, esclarecimento e lealdade.

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Atente-se que a doutrina germânica contemporânea, em concepção que se difundiu por toda parte, situou na cláusula geral de boa-fé objetiva o fundamento normativo da ‘proibição do venire’, fazendo da confiança o fundamento contemporâneo do nemo potest venire contra factum proprium

16

. Por conseguinte, a identificação da boa fé objetiva como fundamento do princípio de proibição do comportamento contraditório é a orientação que se verifica na maior parte dos demais ordenamentos jurídicos, bem como é tomada como a melhor diretriz ao seu enquadramento no direito moderno.

Por fim, observe-se que no mesmo sentido estão dispostos outros institutos cujo fim é proteger a coerência e reprimir condutas incompatíveis, como a Verwirkung alemã, ou suppressio romana, que é o retardamento desleal de um exercício de direito; o tu quoque, literalmente “até tu”, que traduz a ocorrência de uma surpresa e perplexidade em face da contradição de comportamentos.

3.3 EXPERIÊNCIAS DA BOA-FÉ OBJETIVA NOS ORDENAMENTOS FRANCÊS E ALEMÃO EM COTEJO COM A EXPERIÊNCIA NACIONAL

Já restou exposto que não se objetiva promover uma análise histórica da boa-fé, especialmente no sentido da construção do instituto ao longo do período transcorrido entre a sistematização do direito romano e a codificação iniciada no séc. XVIII. Por tal, passamos a uma rápida análise da experiência ocorrida em alguns modelos jurídicos que contribuíram para a consolidação do conteúdo jurídico da boa-fé, embora, o tenham feito por caminhos diversos.

Nesse aspecto tomamos como significativo para o desenvolvimento do presente trabalho as experiências constatadas nos modelos francês e alemão, como forma de melhor compreender o desenvolvimento da questão no nosso ordenamento.

A primeira premissa a ser posta decorre do fato de não sempre os sistemas perfilharem a mesma diagramação quanto ao aspecto positivo. Nos dois sistemas em destaque havia expressa previsão da boa-fé, sob a forma de cláusula geral. Entretanto, o que nos interessa no presente

16 Wieacker (1979) observa que a tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência.

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contexto é a verificação de que nestes ambientes jurídicos, o desenvolvimento do instituto alcançou desdobramentos distintos, em vista da concepção de sistema ser diversa em ambos (SCHREIBER , 2005).

Ao modelo francês, no seu Code de Procedure Civile, diversas são as críticas promovidas, porque o princípio da boa-fé estava sufocado pela forte presença do então dogma da autonomia da vontade, no qual não havia espaço para a formulação de deveres pelo Judiciário, já que “o positivismo exegético, dificilmente se compadecia com a aplicação de um princípio estatuído em forma de cláusula geral, como era o caso da boa-fé prevista no art. 1.134/3”. Tal situação perdura até o final do século XIX, “momento em que a metodologia exegética começa a ser questionada – quando passam a prosperar tentativas de conferir à boa-fé contratual um efeito útil” (NEGREIROS, 1998, p. 44-46).

Embora Menezes Cordeiro (2007) reconheça que atualmente não se possa duvidar da recente importância quantitativa de decisões a invocar o art. 1.134, al. 3, tal situação não livrou o sistema francês de receber suas críticas, haja vista a acanhada dimensão dada à cláusula geral da boa-fé, o que culminou nas conclusões de ser verdadeiro malogro a compreensão da cultura francesa acerca do instituto, visto que sequer procedia à distinção entre as versões objetiva e subjetiva.

Cenário diverso é aquele que desponta do sistema alemão, pelo menos após a Primeira Guerra Mundial (SCHREIBER, 2005; NEGREIROS, 1998). Apesar de figurar inicialmente como um sistema fechado e ‘seguro’, onde o BGB supunha uma atividade interpretativa do tipo subsuntivo, a qual, por si, impedia a aplicação da cláusula geral da boa-fé, não é, contudo, demasiado afirmar que tal quadro não perdurou, já que a atividade jurisprudencial desenvolvida a partir das disposições do § 242 BGB fez com que a mesma viesse a figurar como fundamento convergente para os mais variados juízos de valor.

Nessa toada é que se diz não ser:

[...] exagero afirmar que os contornos atuais da boa-fé objetiva no pensamento jurídico ocidental são resultado da doutrina e, principalmente, da jurisprudência alemãs. É comumente reconhecido que o desenvolvimento da cláusula geral da boa-fé constante do BGB pelo Poder Judiciário daquele país foi o principal responsável pela difusão do princípio em outros sistemas de direito codificado (NEGREIROS, 1998, p. 23).

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A construção jurisprudencial do instituto da boa-fé objetiva permite concluir que a tentativa de estabelecer âmbitos para a sua atuação terá caráter meramente exemplificativo, visto ser impossível prescrever todos os casos passíveis de sua aplicação, dado que sua concepção decorre da criação jurisprudencial de variados casos típicos de especificação do conteúdo do princípio.

A breve menção ao modo de desenvolvimento da boa-fé nos sistemas francês e alemão tem como objetivo promover um paralelo com o modo de desenvolvimento da mesma em nosso ordenamento. Antes, contudo, observe-se que em muitos sistemas a construção da boa-fé desenvolve-se como fruto da legislação pós-codificada ou à margem de qualquer previsão legal, como ocorreu no Brasil, onde havia menção à boa-fé desde a década de 1970 por meio da doutrina e jurisprudência, ainda que a primeira menção positiva tenha ocorrido em 1990, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (SCHREIBER, 2005, p. 49)

Entretanto, advoga-se a tese de que no Direito brasileiro encontramos reminiscências da boa-fé objetiva desde os idos de 1850 (CABRAL, 2005; MARTINS-COSTA, 2000), especificamente no Código Comercial brasileiro, no seu art. 131, 1

17

, a partir do qual passamos a ter uma experiência similar à ocorrida no direito francês, decorrente dos efeitos de um sistema fechado, lastreado apenas nos estritos termos do direito positivo, donde não se via mais que uma aplicação mecânica do texto da lei, que foi corroborada pelo Código Civil brasileiro de 1916, já que no mesmo não a havia mínima indicação do instituto da boa-fé em seu sentido objetivo.

O panorama começa a ser alterado a partir da modificação da forma sobre a qual se estrutura o sistema jurídico, ou seja, ante a mudança de paradigmas. Em um sistema no qual há uma absoluta e incontestável supremacia da lei, sistema fechado, não há espaço para o desenvolvimento da boa-fé objetiva, característica de um sistema aberto, fundado em regras, mas também em princípios, que o tornam mais flexível e adaptável à lei ao caso concreto.

A perspectiva, entre nós, de um sistema aberto, fundado em regras, princípios, e marcado por uma maior criatividade judicial, passa a ser vista com mais clareza a partir da Constituição Federal de 1988, fonte difusora do instituto, como se depreende, de forma mais

17 Código Comercial brasileiro, Art. 131: “Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1. a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e a natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”.

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latente, da análise do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, do Código Civil de 2002 e que dá lastro a uma interpretação constitucional ao art. 14, II do Código de Processo Civil brasileiro.

3.4 CONCEITO DE BOA-FÉ

Apesar da divagação acerca dos diferentes aspectos da boa-fé, até o momento não se apresentou qualquer definição ou conceito da mesma. Entretanto, esta é uma opção proposital, ante a enorme dificuldade de delimitar os diversos sentidos que podem advir do tema. A opção por não apresentar, de imediato, um conceito da boa-fé também seria justificável em vista do fato de que, ao se estabelecer ou tomar por apropriado determinado conceito, tal definição traria limites indesejáveis à sua aplicação.

Nessa toada, ao invés de definir, podemos apurar como ocorre a atuação da boa-fé. Para Menezes Cordeiro (2007, p. 648) “a actuação da boa fé concretiza-se através de deveres de informação e lealdade, de base legal, que podem surgir em situações diferenciadas, onde as pessoas se relacionam de modo específico”.

A presente dificuldade é relatada, dentre outros, por Darci Guimarães Ribeiro (2004, p.

246). Todavia, o autor também menciona o benefício que todo conceito traz ao impor certos limites que devem ser respeitados, sem prejuízo de serem inflexíveis, na medida em que permitam uma elasticidade sempre que se levem em consideração os valores sociais vigentes no momento da sua aplicação.

Assim, por questões didáticas, no estudo da boa-fé ou de qualquer outro instituto jurídico é recomendável a apresentação de um conceito, não obstante o perigo de este engessar a realidade social contida nele.

Nesse sentido, toma-se como apropriada a transcrição do conceito apresentado por Eduardo Couture (1991, apud RIBEIRO, 2004, p. 239), no qual entende ser a boa-fé a “calidad jurídica de la conducta, legalmente exigida, de actuar en el proceso con probidad, en el sincero convencimiento de hallarse asistido de razón”.

Justifica-se a escolha do presente conceito pelo fato de o mesmo parecer abarcar, de

forma simples, as duas realidades postas à boa-fé, visto que a primeira parte é adequada ao que

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estabelecemos por boa-fé em sentido objetivo, enquanto a segunda parte pode guarnecer a boa-fé

em sentido subjetivo.

Referências

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