• Nenhum resultado encontrado

Agda-conto, Agda-cena, Agda-Casa do Sol = uma leitura dos trânsitos entre literatura e cena a partir do conto de Hilda Hilst = Agda-tale, Agda-scene, Agda-Casa do Sol: a reading of the transits between literature and scene from the tale of Hilda Hilst

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Agda-conto, Agda-cena, Agda-Casa do Sol = uma leitura dos trânsitos entre literatura e cena a partir do conto de Hilda Hilst = Agda-tale, Agda-scene, Agda-Casa do Sol: a reading of the transits between literature and scene from the tale of Hilda Hilst"

Copied!
103
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

PÂMELA RAIZIA DUTRA RODRIGUES

AGDA-CONTO, AGDA-CENA, AGDA-CASA DO SOL: UMA LEITURA DOS TRÂNSITOS ENTRE LITERATURA E CENA A PARTIR DO CONTO DE HILDA

HILST

AGDA-TALE, AGDA-SCENE, AGDA-CASA DO SOL: A READING OF THE PASSAGES FROM LITERATURE TO STAGING, FROM HILDA HILST'S TALE

CAMPINAS 2017

(2)

PÂMELA RAIZIA DUTRA RODRIGUES

AGDA-CONTO, AGDA-CENA, AGDA-CASA DO SOL: UMA LEITURA DOS TRÂNSITOS ENTRE LITERATURA E CENA A PARTIR DO CONTO DE HILDA

HILST

AGDA-TALE, AGDA-SCENE, AGDA-CASA DO SOL: A READING OF THE PASSAGES FROM LITERATURE TO STAGING, FROM HILDA HILST'S TALE

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADORA: VERÔNICA FABRINI MACHADO DE ALMEIDA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNAPÂMELA RAIZIA DUTRA RODRIGUES,

E ORIENTADA PELA PROFª. DRª. VERÔNICA FABRINI MACHADO DE ALMEIDA.

CAMPINAS 2017

(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Rodrigues, Pâmela Raizia Dutra,

R618a RodAgda-conto, Agda-cena, Agda-Casa do Sol : uma leitura dos trânsitos entre literatura e cena a partir do conto de Hilda Hilst / Pâmela Raizia Dutra

Rodrigues. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

RodOrientador: Verônica Fabrini Machado de Almeida.

RodDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Rod1. Hilst, Hilda, 1930-2004. 2. Alquimia na arte. I. Almeida, Verônica Fabini Machado de,1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Agda-tale, Agda-scene, Agda-Casa do Sol Palavras-chave em inglês:

Hilst, Hilda, 1930-2004 Alchemy in art

Área de concentração: Teatro, Dança e Performance Titulação: Mestra em Artes da Cena

Banca examinadora:

Verônica Fabrini Machado de Almeida [Orientador] Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra

Odilon José Roble

Data de defesa: 20-02-2017

Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

(4)
(5)

Às crianças que colorem a minha alma, elevabm meu espírito

e dão corpo à minha vontade, com amor e gratidão.

(6)

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Valéria e Rossimar, por nutrirem a crença em mim de que o melhor caminho quem dita é meu coração.

À minha irmã Karol, minha brabuleta azul. Pessoa mais importante da minha vida. Ao Rafael, por ter possibilitado minha vinda a Campinas pelo caminho do amor e do respeito.

Aos amigos e encontros, que nessa estadia campineira, tornaram-se sementes preciosas em meu jardim. E dessas sementes, agradeço especialmente à Letícia, que me acolheu em sua casa e em seu coração, onde o encontro fez-se amizade, amor e respeito.

Aos amigos de toda a vida, que estão comigo independente da distância, do tempo… que são incessantemente presentes, em seu mais amplo sentido, em minha biografia. À minha orientadora Verônica Fabrini, por perseverar comigo nessas sendas alquímicas que pulsam em nossas almas.

À Alice Possani, Melissa Lopes, Verônica e Moacir Ferraz, corpos poetas, atrizes e diretor do Agda, pela colaboração em entrevistas, fotos e materiais que alimentaram com suas vozes essa pesquisa.

À Olga Bilenky, que me recebeu na Casa do Sol com o mais colorido compartilhar de experiências e histórias, com acolhimento, carinho e verdade.

À Alcir Pécora, por sua voz, que fez diferença qualitativa para a realização deste trabalho.

Aos mestres da minha vida: Masaharu Tanigushi, Rudolf Steiner, Maria Júlia Pascali, Antonin Artaud, Carl G. Jung, Gaston Bachelard e Hilda Hilst por serem âncoras de ouro em meu pensar, sentir e querer.

Aos desafios, que fizeram crescer Marte em mim, e jus a fala da minha mãe de que “essa menina cabeça dura quando quer algo não desiste mesmo!”

Às hierarquias espirituais, que via social me ajudam a devanear pela busca do amor e liberdade.

Ao meu coelho Silva, sim, pois nos momentos mais difíceis ele sempre me encheu de lambeijos!

(7)

RESUMO

AGDA-CONTO, AGDA-CENA, AGDA-CASA DO SOL: UMA LEITURA DOS TRÂNSITOS ENTRE LITERATURA E CENA A PARTIR DO CONTO DE HILDA HILST

A pesquisa investiga o trânsito dos elementos da natureza – terra, ar, água e fogo – enquanto forças arquetípicas, entre materialidades poéticas. Este trabalho se realiza a partir da leitura do conto Agda, de Hilda Hilst, e seus desdobramentos: adaptação do texto literário para a cena e residência artística na Casa do Sol. A adaptação para a cena foi realizada pela parceria entre as companhias campineiras Boa Companhia e Matula Teatro, em 2011. Como ferramenta de análise, a pesquisa se apoia na poética de Gaston Bachelard, tecendo uma analogia entre o poeta literário e o corpo poeta, no que concerne ao exercício alquímico de poetizar imagens e encarnar palavras.

(8)

ABSTRACT

AGDA-TALE, AGDA-SCENE, AGDA-CASA DO SOL: A READING OF THE PASSAGES FROM LITERATURE TO STAGING, FROM HILDA HILST'S TALE This research investigates the transit of natural elements - earth, air, water and fire - as archetypal forces, between the poetic materialities. This paper is carried out from the reading of the tale 'Agda', of Hilda Hilst and its unfoldings: adaptation of the literary text to staging and residency in the Casa do Sol. The adaptation to staging was carried out by the partnership of two theatre Campinas’ companies: Boa Companhia and Matula Teatro, in 2011. As an analysis tool, the research is based on the poetics of Gaston Bachelard, weaving an analogy between the literary poet and the poet’s embodiment, as regards the alchemical exercise to poetize images and embodied words.

(9)

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Gosto de espelho d’água Figura 2:Pétala por pétala

Figura 3: O bailado do deus morto

Figura 4: Fragmentos de um discurso amoroso Figura 5: Janelas

Figura 6: Exposição: H.H...uma vida de palavras IEL/Unicamp Figura 7: Pintura de Paula Rego: Mulher Cão (1994)

Figura 8: Cena do espetáculo Agda Figura 9: AGDA (Foto: Claudia Echenique) Figura 10: Cavalo-três (Foto: Maycon Soldan) Figura 11:Agda: aldeões

Figura 12:Vários nomes de Deus (Foto: Olga Bilenky)

Figura 13:Agda: aldeões na Casa do Sol (Foto: Nenê Jeolás) Figura 14:Portal Casa do Sol

Figura 15:As três Agdas: Casa do Sol (Foto: Nenê Jeolás) Figura 16:Costurando figurino: Casa do Sol (Foto: Nenê Jeolás) Figura 17:Agda e seu cão: Casa do Sol (Foto: Nenê Jeolás) Figura 18:Avencas: Casa do Sol (Foto: Pâmela Raizia) Figura 19: Olga Bilenky e Pâmela Raizia: Casa do Sol Figura 20: Agda terra: argila

Figura 21: Portais internos Casa do Sol

Figura 22: Agdas e o balanço: Casa do Sol (Foto: Nenê Jeolás) Figura 23: Agda ar: móbile de lã

Figura 24: Agda água: aquarela I Figura 25: Agda água: aquarela II

Figura 26: Cadela: Casa do Sol (Foto: Nenê Jeolás) Figura 27: Hilda Hilst e os cães

Figura 28: Agda água: aquarela III Figura 29: Agda água: aquarela IV

Figura 30: Égua fantasmagórica sorvendo a lua n´água Figura 31:Agda fogo: carvão

(10)

SUMÁRIO

Preparando o Terreno ...11

1. A(r)gda encarnada: liter(r)atura fluidamente ígnea   ... 28

2. As moradas do corpo poeta ... 63

À Guisa de devaneios remanescentes ... 87

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 90

APÊNDICE ... 96

APÊNDICE I - Entrevistas ... 96

Entrevista com Alice Possani – 26/julho/2015 ... 96

Entrevista com Olga Bilenky – 10/ outubro/2016 ... 101

Entrevista com Melissa – Dezembro/2016 ... 102

APÊNDICE II – Devaneios ... 103

(11)

Preparando o Terreno

Na aridez sou areia branca

Argila que teima em esperar

Viro barro e sou forma

Teia anca

Margem

Nudez preta

Amarela

Vermelha

Viro pó

Branco, esqueleto

1

O meu corpo poeta veio de um lugar, tem motivos para querer falar, para rasgar frestas na academia por onde um olhar sedento por alquimia possa ser luz. Meu corpo poeta é corpo goiano. Corpo que arrepia de desejos com cheiro de pequi. Que tem memórias de milho roubado para fazer pamonha. Que conhece gabirobas e pitangas que dão em arbustos do cerrado. Que se lambuzou de manga colhida no pé e sabe (ansiosamente) esperar a época certa da colheita. Meu corpo poeta… água de cachoeira, fria, intensa, insistente em esculpir formas sobre o que encontrar; fogo, que nos tachos de cobre viravam doces, requeijão e nas velas acesas sonha em oração; ar, nos incensos

1 Todas as poesias escritas por mim ao longo do processo do mestrado, fruto da relação afetiva

(12)

que candeia os pulmões, que saem como verbos doces, proféticos, profanos… em cantorias; terra, que me dá raízes profundas, mas também ciganas, em que o repouso é somente uma pausa pela imensa vontade que esse corpo poeta tem de ouvir, criar, transformar… ser.

A literatura sempre foi presente em minha vida, desde a tenra infância, quando o desejo pelas letras e a magia que surgia no som de quando estas se juntavam e formavam palavras, me enchia de vontade de adentrar na intimidade da linguagem.

Lembro-me com carinho do meu primeiro livro literário, lido sozinha. Uma fábula chamada Fiz o que pude, escrita por Lucília Junqueira de Almeida Prado, que me iniciou divertidamente a esse universo de leitora, que diante das palavras escritas iniciava o exercício de fechar o livro e respirar as imagens de maneira devaneante.

O devaneio poético abre as portas e janelas para a imaginação criadora saltar. Primeiro parece um ato perigoso, e não deixa de ser, mas nesse perigo vemo-nos ligados ao mundo ao qual pertencemos. Neste, somos um eu que ama e liberta, pois temos autonomia de simplesmente ser ou não ser.

O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é um devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo, para mundos belos. Dá ao eu um não-eu que é o bem do eu: o não-eu meu. É nesse não-eu meu que encanta o eu do sonhador e que os poetas sabem fazer-nos partilhar. Para o meu eu sonhador, é esse não-eu

meu que me permite viver minha confiança de estar no mundo.

(BACHELARD, 2006, p.13)

Minha família sempre se fez presente nas contações de estórias folclóricas, relatos sobre suas próprias vivências no meio do mato, nas fazendas do interior de Goiás. Era uma delícia escutar cada uma delas! Às vezes me causava medo, outrora gargalhadas. Hoje quando me recordo disso, percebo um trânsito inerente à oralidade, de conteúdos que quando lidos tem uma porta de entrada e que ao ser compartilhados na relação humana adentra-nos por outras vias.

Entre o que lia nos livros, que eram devorados incessantemente das bibliotecas escolares e o que escutava nos encontros familiares, em que o momento das estórias tinha uma veia dramática valiosa, comecei a escrever. Desde pequena usava o papel para bater asas... Poesias, contos, pensamentos,

(13)

era um ato de amor, de calor, afeto, imaginação. “[...] um devaneio, diferentemente do sonho, não se conta. Para comunica-lo é preciso escrevê-lo, escrevê-lo com emoção, com gosto, revivendo-o melhor ao transcrevê-lo. Tocamos aqui no domínio do amor escrito.” (BACHELARD, 2006, p.7)

Esse contexto lhes é apresentado para dizer-lhes que o amor pelas palavras, pela força das imagens literárias foi a primeira a chegar em minha vida.

Na transição para a vida adulta decidi cursar teatro. Tive algumas experiências amadoras na adolescência em Rio Verde - GO, minha cidade natal, mas nunca tinha ido a um teatro “tradicional”, desses com palco italiano. Experiência que tive somente após ter passado no vestibular em Goiânia.

Em 2009, portanto, ingressei no curso de Licenciatura em Artes Cênicas na Universidade Federal de Goiás. Durante o curso o que mais me instigava era transitar imagens, partir de imagens literárias/fotografias/mitos e levá-las à cena. Nesse sentido, em meio ao espetáculo Gosto de espelhos d’água, que fazia parte da disciplina Oficinas de Encenação I e II, dirigida pelos professores Natássia Garcia e Kleber Damaso, tive autonomia de experimentar esse caminho da imagem à cena.

(14)

Ainda de maneira bem mais intuitiva que consciente, parti das imagens do meu avô Francisco, que era alcoólatra e, às vezes, passava temporadas perambulando pelas ruas e também de Estamira2, na época catadora de lixos do

maior aterro da América Latina até 2012. O trabalho consistia em utilizar de microdramaturgias, não em um processo de mimeses, mas sim do que essas imagens faziam emergir no meu corpo, das minhas memórias e afetos.

Minha experiência acadêmica e teatral ampliou-se por meio do intercâmbio realizado em Coimbra – PT, através do Programa Licenciaturas Internacionais – PLI/CAPES entre 2010-2012. No período de intercâmbio, as experiências teatrais foram de cunho bem autoral, ocorridas na disciplina Oficina de encenação, orientada pela professora Cristina Bizarro. Foram exercícios que de maneira recorrente partiam de imagens arquetípicas que resultavam em cena. Foi assim que investigar os meios de levar a potência arquetípica para a cena, passou a despertar cada vez mais o meu interesse pelo fazer teatral e também em minhas pesquisas pessoais e acadêmicas. Nessa linha atuei como atriz criadora do monólogo Pétala por pétala, dirigida por Andressa Silva, no qual a imagem que nos guiava era da menina-mulher-anciã; no espetáculo O bailado do deus morto, dirigido por Leonardo Palma, em que nos guiamos pela imagem que surgiu da seguinte pergunta que deus gostaríamos de matar?. Nesta experiência fui atriz criadora, juntamente com outros colegas brasileiros e portugueses.

Exercitando a direção, propus a construção de Fragmentos de um discurso amoroso, no qual Andressa Silva, Ju Bernando e Leonardo Palma foram atores-criadores. Partimos da imagem amor em diferentes faces. Partimos do livro homônimo, organizado por Roland Barthes e memórias dos atores extraídas por meio sinestésico (sabores, cheiros e tato) e fotografias.

2 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jSZv8jO9SAU>. Acesso em: 15 set.

(15)

Figura 2

(16)

Figura 4

Ao retornar ao Brasil, a fim de concluir a graduação desenvolvi o Trabalho de Conclusão de Curso e para tanto uni as paixões teóricas que me alimentaram durante todo esse tempo – Antonin Artaud, Gaston Bachelard e Carl G. Jung, ao exercício cênico - Fragmentos de um discurso amoroso - realizado no intercâmbio.

Assim, no TCC investiguei a criação teatral a partir dessa experiência, relacionando-a ao trabalho realizado pelos alquimistas e suas conceituações, utilizando da tríade de autores acima citados. Nesse exercício procuramos refletir sobre os potenciais cênicos que brotam das singularidades dos atores em suas criações: memórias, sonhos e vivências cotidianas carregadas de materiais simbólicos, que revelam histórias e experiências recorrentes em diferentes seres humanos, espaços e tempos.

Ainda no TCC, refleti sobre o corpo enquanto um laboratório ativo, que potencialmente pode criar duplos daquilo que o compõe intimamente – sonhos, experiências, singularidades. Via mergulho na profundidade das potencialidades, o ator pode acessar materiais preciosos para a criação. Além do duplo cênico, a vivência criativa não se encerra no ato de criar, mas pode se ramificar, como em uma teia, na possibilidade de fazer novas complementaridades, reconciliar novas forças e realizar continuamente o devir da (auto)criação.

(17)

Simultaneamente, para conclusão prática, juntamente com os professores doutores Guilherme Francisco e Rosi Campos, atuei no monólogo Janelas, que partiu do aprofundamento da palavra janela em suas diversas nuances e também de um livro, de cunho essencialmente político, com título homônimo escrito por Fábio André e Isabella Gonçalves.

Figura 5

A vida cigana teve sua continuidade e meu novo itinerário veio a ser Campinas-SP. Minhas ânsias advindas da pesquisa iniciada na graduação não haviam se findado. Sendo assim, percebi que as minhas inquietações também faziam morada no meu olhar sobre os corpos poetas que fazem cena. Percebi também que a tríade Artaud-Jung-Bachelard ainda ressoavam em minhas reflexões e era preciso dar-lhes voz, corpo.

Foi assim que nasceu meu interesse por este exercício de pesquisa Agda-conto, Agda-cena, Agda-Casa do Sol: uma leitura dos trânsitos entre literatura e cena a partir do conto de Hilda Hilst, que se esforça principalmente em investigar o trânsito dos elementos da natureza, enquanto forças arquetípicas, entre a materialidade poética do texto literário e a materialidade cênica no trabalho de criação do ator. Para tanto, o estudo materializa-se pela análise do espetáculo Agda3, encenação realizada numa parceria da Boa Companhia e

3 Farei uso da grafia Agda em negrito quando me referir ao conto a ser analisado. Para o

(18)

Matula Teatro do conto homônimo de Hilda Hilst, escrito em 1973, editado junto a outros contos na coletânea Qadós4. O espetáculo estreou em 2011 e é parte

do repertório das companhias campineiras desde então5.

Boa Companhia consiste em um grupo de artistas pesquisadores, que desde 1992 desenvolvem espetáculos que partem da pesquisa da linguagem cênica a partir do trabalho do ator, e vem contribuindo com a cena cultural paulista. Grupo Matula Teatro, desde 2001, leva seu coletivo de artistas a realizar trabalhos teatrais dentro e fora da cena, que tem como enfoque às inúmeras possibilidades de experiência cênica dos atores em seu labor, assim como as experiências de não-atores, com o teatro.

A escolha por este conto e também pelo espetáculo surgiu ao assistir Agda no teatro. Já há algum tempo havia iniciado minhas reflexões sobre a leitura dos elementos da natureza na cena, contaminada por esse exímio exercício de olhar alquímico do pensador Gaston Bachelard. Como espectadora da cena, parecia não precisar me esforçar para enxergar um caldeirão onde água, ar, terra e fogo borbulhavam.

Minhas reflexões ganharam força na aproximação com a obra de Hilda Hilst (1930-2004), que passou a fazer parte da minha vida não somente por Agda, mas também pela riqueza e complexidade dessa pessoa que foi Hilda. Escritora, poeta, mulher, interiorana de nascença, cosmopolita de vivência.

comum. Quando faço menção ao primeiro conto homônimo que compõe o livro Kadosh, utilizo a grafia sublinhada – Agda.

4 A grafia também pode ser encontrada como Kadosh, adotada pela edição das obras de Hilda

Hilst pela Globo Livros em 2003. A palavra Kadosh origina-se no hebraico, significando de modo geral “sagrado”.

[...]Um iniciado que não fala muito para não confundir as pessoas. Eu aportuguesei esse nome; pus um Q em vez do K, mas, na verdade o nome Kadoz é quase o de uma pessoa alcançando a santidade, é um iniciado... O texto muda completamente se você sabe a origem dos nomes, como em Qádos. [...] É uma fala para a pessoa ir descobrindo o caminho daquele homem que fica numa busca interminável e, no final, até desiste dela e pede que Deus o deixe em paz para ele poder viver a sua aventura amorosa. (HILDA apud DINIZ (org.), 2013,p.120)

5 “O espetáculo AGDA é mais um fruto da sólida e produtiva parceria entre o Grupo Matula Teatro

e a Boa Companhia. Agda é uma adaptação do conto homônimo da escritora Hilda Hilst e traz à cena questões sobre o feminino intrínsecas à obra da autora. Para isso serve-se de elementos de teatro e dança, transitando entre a prosa e a poesia, em um delicado jogo de construção e desconstrução de imagens e personagens.” Disponível em <http://www.boacompanhia.art.br/espetaculos/agda/>.Acesso em 05 jan. 2016.

(19)

Nascida em Jaú (SP), vivenciou desde cedo a convivência com a loucura. Seu pai era poeta, esquizofrênico, uma figura que marcou a história de Hilda, assim como sua literatura.

Meu pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst, era poeta e ensaísta. Assinava com o pseudônimo de Luiz Bruma e foi uma das primeiras pessoas a falar em cooperativismo no Brasil. [...] Nos escritos que minha mãe guardou dele e me deu para ler, se interrogou sobre o que aconteceria à alma na loucura. Tragicamente, mais tarde, submergiu na loucura. Escrever é então para mim sentir meu pai dentro de mim, em meu coração, me ensinando a pensar com o coração como ele fazia, ou a ter emoções com lucidez. (HILDA apud DINIZ (org.), 2013, p.53)

Um capítulo singular em sua vida foi a construção e refúgio na Casa do Sol, uma fazenda em Campinas-SP, onde viveu por quase 40 anos, até o fim de sua vida. Lugar movimentado por artistas e fundamental para a constituição de sua obra.

Uma das primeiras provocações da obra e pessoa Hilda em minha vida foi durante uma viagem a passeio à Campinas, momento em que havia uma exposição sobre ela pelos corredores do IEL (Instituto de Estudos e Linguagem) na Unicamp (2011). Nessa ocasião me senti inquieta por aqueles escritos os quais registrei em fotografias.

(20)

Para situar o conto que originou o espetáculo, este está presente na coletânea Kadosh, composta por quatro contos: Agda, Kadosh, Agda e O oco. Numa entrevista em 2004, Hilda fala que considera Kadosh, lançado em 1973, a sua mais importante obra6.

O primeiro conto Agda revela o confronto da personagem homônima com seu envelhecimento e todos os questionamentos que essa fase levanta em sua ida ao consultório médico. A velhice aparece como algo do corpo, causadora de agonia. Esse estado de Agda aparece em suas interlocuções com a mãe, o pai, o médico, a criada Ana, o vizinho e o jovem amante, pelo qual ela espera.

O Oco revela uma relação entre um velho e um menino que o ajuda nos cuidados de suas feridas. Esse ancião e suas memórias de guerra tem a capacidade de literalmente levitar. Um conto que traz reflexão sobre o vazio.

Já Kadosh é a experiência da abdicação da vivência com outras pessoas pela busca de um sagrado via um caminho iniciático, em prol do Grande Obscuro.

Kadosh penetra no hebraico, que é a língua das delícias. O Kadosh

seria o santo [...] o homem, como o Kadosh, quer ficar com a ponta da corda ligada naquilo que você chama de o Inominável, alguma coisa que você ainda não conhece. Você quer percorrer esse caminho, quer percorrer esse trânsito, mas sabe que é dificílimo. É preciso cada vez mais sentir e cada vez definir menos.” HILDA apud DINIZ(org.), 2013,p.65)

Agda, nosso objeto de interesse, relata a história de uma mulher sedenta pela vivência da carne, desfrutando o prazer de seu cavalo três: Orto, Kalau e Celônio:

Orto, Kalau, Celônio, os três para me abraçar, os três de relincho gordo[...] Orto, Kalau, Celônio, o cavalo-três de Agda-lacraia é apenas três homens, em quase tudo iguais, três com três credos, os dois peitos de Agda e o do meio das pernas. (HILST, 2002, p.105-106)

Agda anseia também pela presença do transcendente. É o sacrifício de si para alcançar o de dentro, a plenitude.

6 Hilda Hilst - Entrevista 2002 - Inspiração, Campinas, Kadosh, Santa, Marlon Brando, Mulas

e Lhamas. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=yBkBiRazarI>. Acesso em: 10 mai. 2016.

(21)

O ritmo, em Agda, corresponde a um processo de desnudamento. Quando você começa esse tipo de esforço, de processo regressivo, e leva essa regressão até o extremo de seus próprios limites, e quando você se entrega assim, completamente, só pode esperar por uma resposta na sua frente, uma resposta do outro. Eu não consigo me desvincular a esse ponto, deixar de ter laços com meus semelhantes. Isso não pode acontecer. E sou acusada de obscurantismo ao mesmo tempo que dirijo um convite ao outro... (DINIZ (org.), 2013,p.43)

Para além dos títulos, há outros pontos de encontro entre os dois contos homônimos. Apesar de trazerem duas mulheres diferentes, compartilham de posturas transgressoras em relação aos ambientes que habitam e não parecem tão mais separadas, quando no segundo Agda, os habitantes da aldeia nos revelam

Que nessa mesma casa, outra viveu de nome Agda, sua vida era fantasia e labareda, durante muitos anos aves e fantasmas rodearam a casa e Ana desta aldeia pode atestar a verdade das falas porque dessa primeira Agda foi obediente e dócil e desde sempre criada. [...] essa primeira Agda teve morte afundada, e que sonhou com ouro, rosais de rosas negras, coisas como touro, não sabemos ao certo, só sabemos que amou de modo impróprio, sem luz e desapego. [...] e que Agda primeira desejou ambiciosa a um tempo só juventude e noviciado, e Agda-lacraia tem muito dessa outra e se fez feiticeira. (HILST, 2002, p.118-119)

Assim, esta pesquisa não pretende aprofundar na relação entre esses dois contos, apesar de reconhecê-la. Para maior aprofundamento na relação entre estes escritos homônimos, há um estudo interessante realizado pela doutora Luciana Borges, intitulado Girassóis para a mulher-menina: corpo e gênero em “Agda” de Hilda Hilst7, em que ela aborda os aspectos em comum

entre ambos.

Para realização deste exercício de pesquisa, que busca o trânsito dos elementos da natureza, entre as materialidades poéticas – da literatura à cena e seu desdobramento na residência artística na Casa do Sol, sobre qual falarei adiante –, que emergem tanto do conto quanto da cena, me utilizo de possibilidades investigativas, no campo das pesquisas qualitativas, pertinentes às pesquisas em artes, do estudo de caso, que “reúne o maior número de informações detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pesquisa, com o

7 Artigo presente na bibliografia do trabalho. Disponível em:

<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/viewFile/2846/1660>. Acesso em 18 abr. 2016.

(22)

objetivo de apreender a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso concreto.” (GOLDENBERG, 199, p.33-34)

Nos processos metodológicos, utilizo o exercício de escuta e reflexão, que compreendeu em dar voz aos bastidores da escrita literária hilstiana e aos criadores do espetáculo homônimo. No acesso às tramas que sustentam a escrita de Agda, fiz uso de uma bibliografia que abarca entrevistas realizadas por diversos jornalistas com a autora Hilda Hilst, que compõem o livro Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst (2013), além de leituras de sua obra feita por outros estudiosos, como veremos a seguir. Porém, vale sublinhar que a voz da autora, tanto em entrevistas quanto em outros contos, crônicas e poemas, foi nosso primeiro material.

Ainda nesse processo dialógico, a pesquisa contou com uma entrevista, feita por mim, com Alcir Pécora, professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, que tem um estudo proeminente sobre a obra de Hilda Hilst, sendo sua voz de grande importância para este estudo.

Assim como na análise do conto, a voz da autora sobre sua obra foi o principal objeto de estudo, em relação ao espetáculo perspectivei a voz do atores-criadores, por meio de entrevistas e escutas. Dessa forma, abri minhas percepções e afetos para os caminhos condutores e conduzidos de/por imagens do conto, que foram sendo torneadas para o teatro nesse trânsito entre as materialidades poéticas, da literatura à cena.

Caminhando nesse sentido, o roteiro de entrevistas foi norteado por perguntas elaboradas previamente, semiestruturadas, o que permitiu que os entrevistados pudessem ir além e devanear sobre suas percepções e motivações poéticas.

Para embasamento metodológico, faço uso da reflexão proposta por Michel Maffesoli, na obra Elogio da razão sensível (1998) sobre os modos de relação fenomenológica, na qual o fenômeno criação concretiza uma dinâmica ativa de imaginação e imagem, que no caso dessa pesquisa concerne no exercício poético de transitar materialidades simbólicas. Na abordagem feita por Maffesoli encontro qualidades, tais quais, descrição, intuição, metáfora e experiência com devida notoriedade nos processos humanos e criativos,

(23)

interessando mais os caminhos traçados em suas vivências, do que os “porquês”.

[…]o “como” repousa, antes de mais nada, sobre um vínculo amoroso que existe entre o homem e o mundo, o microcosmo e o macrocosmo. Por conseguinte, o “como” implica uma submissão à coisa, contenta-se em contenta-ser o vicário desta. Foi assim que o artista pôde conceber contenta-seu trabalho. (MAFFESOLI, 1998, p.121-122)

Em Michel Maffesoli, a pesquisa se fortalece em suas crenças metodológicas por uma fenomenologia dinâmica, que valoriza o que é descrito, intuído, metaforizado. Segundo seu pensamento, é importante usarmos de ferramentas que acompanhem a vitalidade presente nos fenômenos orgânicos, ou seja, que trazem em si maneiras dinâmicas, passíveis de crescimento e desenvolvimento. A poesia literária, a cena e a Casa do Sol são vivas, portanto, merecem forjas que dinamizem suas preciosidades.

Ainda é parte da metodologia de pesquisa, a residência na Casa do Sol por quatro dias, que compõe este mosaico, considerando a casa como uma extensão da obra de Hilda Hilst. A partir de um exercício de fenomenologia goetheanística8, me propus escutar os arquétipos dos elementos da natureza

neste lugar, lugar eu de Hilda, deixando-me expressar artisticamente em materiais ligados aos elementos.

Por meio da intuição é possível exprimir um saber incorporado. A partir de um substrato assimilado, de uma sensibilidade intelectual, de modo que o ser intuitivo e o objeto intuído sejam cúmplices, “pode apresentar a intuição como expressão de um conhecimento orgânico.” (Idem, p.135), consciente do valor subjetivo dessa relação.

Portanto, assim como a intuição é um bom meio de apreender o retorno da experiência cotidiana, é possível que a metáfora seja a mais capacitada para perceber o aspecto matizado de um mundo marginal cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis. (Idem, p.147)

A descrição se fez relevante para esta pesquisa enquanto ouvinte dos artistas-criadores, aqui denominados corpos-poetas, que contam seus

8 A fenomenologia de Goethe é neste trabalho estudada a partir de um resgate desta

metodologia feita por Rudolf Steiner. O princípio básico é aproximar o ser humano da Natureza, a partir do olhar profundo, com interesse pelo outro.

(24)

processos de criação – da literatura à cena. Assim descrever teve um peso tão relevante quanto refletir sobre o descrito.

Como acabei de lembrar, o fato de descrever, enquanto tal, aquilo que é, não é de modo algum uma abdicação do intelecto, mas uma simples mudança de perspectiva: trata-se de buscar a significação de um fenômeno em vez de estar focalizado sobre a descoberta das explicações causais. (Idem, p.120).

A fim de descrever a obra hilstiana enquanto um fato, a voz foi dada à própria portadora da experiência da escrita, Hilda, através de suas entrevistas, relatos, mas principalmente por meio de sua obra literária.

Acredito no importante papel revelador, na grande possibilidade de aproximação, na descoberta e possível verdade que é uma entrevista. É quase como uma confissão. Agora, no caso específico de um escritor, a entrevista se complica porque tudo o que um escritor tem a dizer, tudo o que ele imagina verbalizar, o seu mais fundo, a sua mais intensa verticalidade, está dito no seu trabalho, e já da sua melhor forma que ele acredita ser possível traduzir. Não acredito que escritor algum consiga verbalizar com mais verdade que no seu próprio trabalho (HILDA apud DINIZ (org.), 2013,p.11)

Já apresentada a metodologia de pesquisa, abrirei as cortinas de cada capítulo dessa dissertação, para contextualizar sobre o percurso poético reflexivo aqui proposto. O primeiro capítulo, A(r)gda encarnada: liter(r)atura fluidamente ígnea, apresenta em seu próprio título os quatro elementos da natureza, que enquanto imagem é um caminho de leitura possível nesse conto hilstiano. Dessa maneira, apresenta-se literalmente as imagens do conto e seus desdobramentos para a cena, a partir de uma ótica bachelardiana, atrelada ao teatro alquímico de Antonin Artaud, que se propõe a devanear sobre as imagens para além da forma primeira pela qual se apresentam, dando às imagens a possiblidade de desdobramentos substanciais (2006c).

A ideia substancial da imagem, proposta por Bachelard, não reforça o pensamento da imagem poética vindoura de uma relação causal, seja ela com um arquétipo inconsciente, como se dependesse de algo passado, anterior para existir. Para ele “é antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos...” (PESSANHA, J.A.M, 1991, p.XXVI9)

(25)

A fim de que o conto do qual parte a encenação, material de origem no estudo do trânsito entre linguagens, seja explorado com densidade, este primeiro capítulo é completado pelo registro de outras análises dos contos de Hilst, tais como os estudos realizados por Alcir Pécora e Leandro Silva, além das mencionadas entrevistas que compõem o livro Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst (2013), e impressões de outros pesquisadores.

De maneira híbrida, deixei neste capítulo escoar as águas anímicas dos envolvidos no processo de criação literária e cênica de Agda, contemplando o feminino (anima) da personagem, que transmuta-se constantemente em corpo desejo, corpo profano, corpo sagrado, até vir a ser cena, transbordar o papel e nosso imaginário.

Agda é lacraia, daninha, doninha, menina, dentre outras tantas que desperta amores, paixões e ódio. Em sua adaptação para a cena, Boa Companhia e Grupo Matula Teatro focam nas questões humanas e na relação feminino (anima) e masculino (animus) presentes em todos os corpos, independente de gênero, e como cada um demonstra sua força.

Como aponta Gaston Bachelard, “comunicamo-nos com o escritor porque nos comunicamos com as imagens guardadas no fundo de nós mesmos.” (BACHELARD, 2006, p.187). Ou seja, ao ler o conto, assistir ao espetáculo e realizar as entrevistas, deixamo-nos afetar e afetamos também as nossas próprias imagens, podendo ativá-las, sonhá-las.

O pensamento bachelardiano sustenta a reflexão sobre o trânsito da literatura para a cena, assim como uma família teórica que com ele se relaciona: Gilbert Durand, Carl G. Jung, Maffesoli e James Hillman. Além disso, fez-se necessário perceber outros olhares contemporâneos sobre a cena e a literatura, que também buscam aparatos na filosofia bachelardiana, intrigados em pensar a criação poética. Dentre esses olhares, destaco Marcelo de Carvalho, Alexandre Silva Nunes, Verônica Fabrini e Luciana Lyra.

No que concerne à percepção dos quatro elementos que são levantados ao longo da dissertação, além de Bachelard, são relevantes neste capítulo os estudos de Antonin Artaud, Rudolf Steiner (1861-1925) sobre elementos e

(26)

éteres, tal como de Michael Chekhov (1891-1955), que incorporou fundamentos da antroposofia10 à prática teatral.

No segundo capítulo, As moradas do corpo poeta dou abertura aos afetos sobre minha residência artística na Casa do Sol, na qual embasada pela fenomenologia goetheanística, me permiti imergir no universo onde Agda nasce, onde Hilda faz-se duplo, corpo casa. Dou voz a meu corpo poeta refletindo sobre o trânsito dos elementos da natureza em sua imanência e sua imagem primordial (arquétipo), analisando suas semelhanças e diferenças no trabalho do poeta literário e do corpo poeta (na cena).

Além disso, fez-se importante dar-me voz enquanto leitora/espectadora de Agda, nesse sentido poder compartilhar as nuances pelas quais esse verbo de tal potência afetou-me e foi por mim afetado nas linhas desta pesquisa. Pretendo que este trabalho seja relevante no que concerne ao pensar e fazer teatral, de modo que tenho aqui descrito ponderações sobre um percurso feito a partir de um conto até seu duplo, realizado na cena, por via de corpos poetas dispostos a encarar a materialidade a fim de transformá-la.

Tal qual o alquimista que transmuta a matéria numa dinâmica de imaginação ativa, que ganha corpo via seu esforço, “o poeta dá ao objeto real o seu duplo imaginário, o seu duplo idealizado. Esse duplo idealizado é imediatamente idealizante, e é assim que um universo nasce de uma imagem em expansão”. (BACHELARD, 2006, p.168).

Portanto, desenvolvo um pensamento a partir de uma pergunta hipotética: por que as imagens força se potencializam no trânsito da literatura para a cena? Logo, arrisco-me tentar reconhecer o fogo, o ar, a terra e a água na poética da cena, assim como Gaston Bachelard generosamente os reconheceu na literatura, deixando-as livres para encontrar-se em seus respectivos éteres e potencializar-se em suas forças etéricas que moram no limiar das estrelas.

A hipótese perseguida é que a contribuição da filosofia de Gaston Bachelard para a leitura da cena amplie o campo de conhecimento sobre/para o trabalho do ator. Pois, os artistas criadores enquanto corpos

10 Estudo do ser humano desenvolvido pelo austríaco Rudolf Steiner no início do século XX,

que propõe metodologias de conhecimento da natureza, do ser humano e suas relações práticas a partir de um caminho denominado ciência espiritual. Para mais informações, disponível em: <http://www.sab.org.br/antrop/>. Acesso em 20 abr. 2016.

(27)

poetas, possuidores de atributos análogos ao poeta literário bachelardiano, abrem-se novas perspectivas, por aproximações e/ou diferenças passíveis de serem trabalhadas e meditadas pelos atores em suas criações.

(28)

1.

A(r)gda encarnada: liter(r)atura fluidamente ígnea

  

Unilateral

Enrijecido na cabeça,

pela garganta sou reflexo

numa imensa vigília

Isso não basta!

Agora no peito...

Onde mora o coração

Sonho que brilha

Num repouso tão instável

Maleável corda bamba

Isso não basta!

Escorrego pelo desejo do ventre

É ação, vontade

Lugar onde acordo...

Mas ainda não basta!

Preciso da descida,

Da subida,

(29)

Preciso ser o encontro

O lugar Eu de luz e som

Onde adentro pelos pés

Me represo na cabeça

Me expresso pelo peito

E com as ancas abertas tenho vontade

Respiro

A imagem literária não veste uma imagem nua, não dá a palavra a uma imagem muda. A imaginação, em nós, fala, os nossos sonhos falam, os nossos pensamentos falam. Toda a actividade humana deseja falar. (DAGOGNET, 1965, p.78)  

  

A potência Agda transborda a literatura e deságua nos oceanos da cena teatral. Tal como Hilda Hilst, que não limita suas palavras a um só gênero literário, Agda é cachoeira que cai sobre pedras, sobre seres, perfurando o ar, transgredindo os limites. Agda – aquela que anima aquilo ou a quem com os quais cruzar, no seu mais amplo sentido.

Estamos em um campo, no qual o desejo de poetizar o fogo aceso em cada palavra levou artistas da cena a desdobrarem as imagens, alimentando as labaredas com suas respectivas imaginações respeitosas e ousadas. Via corpos poetas, na cena, as palavras reatualizam as imagens literárias em outros corpos, densidades, texturas, cheiros e sabores, que saltam do papel. Elas ganham outras dimensões de existência. As palavras têm o pôr vir da imagem (FELICIO,1994).

A escrita da Hilda tem essa confluência muito evidente, prosa rimada. Nesse sentido, a gente pode pensar na água, na coisa da fluidez, os desenhos que ela cria, mas principalmente porque ela lida com a palavra de forma inusitada, surpreendente... Acho que isso é uma matéria muito saborosa para o ator criar

(30)

em cima. [...] E a escrita da Hilda é cheia de imagem, seja ela de que natureza for: olfativa, tátil, gustativa... Está sempre atingindo o corpo, evocando, requisitando alguma coisa sensorial do corpo como um todo, e não simplesmente intelectual. (Trecho da entrevista com Moacir Ferraz)

No trânsito para a cena as imagens se (re)virtualizam, “[…] o poeta, depois o sonhador, por fim o leitor, todos os que imaginam, entregam-se a uma física ingénua e reactualizam as esperanças alquímicas.” (Dagognet, 1965, p.31). A imagem antes literária, que fazia morada nos devaneios do escritor, é dinamizada no imaginário de quem a lê e no trânsito para o teatro concretiza-se em cena, gerando imagens outras, que são compartilhadas no ato teatral. Todo este caminho será capaz de suscitar no espectador possíveis devaneios, que poderão ser recebidos passivamente ou reverberar em novas concretizações a partir do dinamismo da imaginação.

Existe a lida com uma matéria que não é tão dura quanto o ferro, que precisa pelo ferreiro ser lapidado, é a palavra imagem literária com a qual os corpos poetas se dispõem a laborar. Pode ter a dureza, a fluidez, a intimidade, o sonho, o voo e o mergulho, tudo junto e misturado. O ato dinâmico compactua com a palavra das mais diferentes formas. Pois, a imaginação se faz ferramenta viva, que talha, forja, escoa, dorme, devaneia e emerge, através da imagem, da imagem corpo, da imagem cena.

[...]embora as Imagens Criativas sejam independentes e mutáveis em si mesmas, embora sejam repletas de emoções e desejos, o ator, enquanto trabalha em seus papéis, não deve pensar que elas lhe surgirão inteiramente desenvolvidas e realizadas. Não. Para se completarem, para atingirem o grau de expressividade que satisfaça ao ator, elas exigirão sua colaboração ativa. (CHECKOV, 1996, p.27)

Sedentos pelo desejo de teatrar, compartilhar com os espectadores o banquete de linguagens com potencial simbólico, capaz de falar aos sentidos, o corpo poeta pode vivenciar e expressar gestos feitos para durar propostos por Artaud (2006). Afinal, “a linguagem própria ao teatro, por consequência, é aquela que devolve o indivíduo a essa realidade tácita da qual faz parte, tenha-se consciência ou não.” (NUNES, p.141, 2012)

É relevante destacar o que impulsionou os grupos de teatro, Matula Teatro e Boa Companhia, a realizar este exercício teatral. Para tanto, trago a voz de Moacir Ferraz, diretor de Agda, que nos conta um pouco sobre o que o motivou:

(31)

[...] O que me interessa na peça, essencialmente, é a questão da morte do feminino, que eu acho que é uma metáfora do que está acontecendo no mundo. Então, desde a primeira vez que a gente montou, eu sempre me interessei por isso... Porque eu sempre pensei no trabalho, no meu caso o teatro, sempre me interessou o que você vai fazer com ele e não ele em si. Eu não sou um apaixonado pelo teatro em si, me interessa discutir o mundo pelo teatro. No caso do Agda discutir esse mundo tão agressivo que a gente tá, tão bélico, cruel. Pra mim uma das possibilidades é a exacerbação do masculino que passa a ser negativo. Todos nós homens, mulheres, desde criança já estamos pensando em conquistar nosso espaço a sangue, suor e lágrimas. Acho que tem muito a ver com a forma que nós vivemos, o mundo inteiro, essa filosofia capitalista de estar no mundo, de consumir, não tem um termo mais pejorativo para nós do que uma sociedade de consumo. Isso tanto em relação com o restante da natureza, nas relações humanas, acho bastante pernicioso. Interesse, pra montar a peça foi pra discutir isso. Por conta disso que nunca pensei em ter homens no elenco. Seria perigosa uma leitura de que os homens são ruins e as mulheres boas, quando a discussão do feminino e masculino era em outro patamar. (Trecho da entrevista com Moacir Ferraz)

Este lugar de discussão pretendido por Moacir é também um anseio de um imaginário maior que impulsiona ideologias de nossos tempos. A relação anima e animus, presente em Agda e discutida por Bachelard, em suas poéticas dos elementos, impulsiona ações, sentimentos e pensamentos que são pano de fundo em nossa contemporaneidade.

O imaginário é também a aura de uma ideologia, pois, além do racional que a compõe, envolve uma sensibilidade, o sentimento, o afetivo. Em geral, quem adere a uma ideologia imagina fazê-lo por razões necessárias e suficientes, não percebendo o quanto entra na sua adesão outro componente, que chamarei de não racional: o desejo de estar junto, o lúdico, o afetivo, o laço social, etc. O imaginário é, ao mesmo tempo, impalpável e real. (MAFFESOLI, 2001, p.77)

Estamos diante um grande texto literário e também de Hilda Hilst, que se deixa vazar, transbordar pelos seus escritos, tal como a luz solar entre os galhos da Figueira de sua Casa do Sol.

Ela fala da tua própria ferida, fala da tua paixão. [...] A matéria é tudo que a gente tem para ver o espírito. Não tem como sair desse contexto enquanto você está vivo, você tem corpo, você é matéria, você habita no espaço, então é com isso que você tem que lidar. A Hilda colocou essa espiritualidade, esse lirismo, na vida que ela viveu, no cotidiano. Tudo que a Hilda escreveu aconteceu na vida dela, é tudo autobiográfico. E todos os textos dela tiveram uma compreensão no dia de hoje, no que você está vendo. Mesmo durante a ficção, o teatro, ela foi

(32)

poeta. [...] É tudo ela, a Hilda ficou viva no que ela escreveu. (Trecho da entrevista com Olga Bilenky).

Agda, enquanto manifestação arquetípica da anima, da qual não conseguimos escapar, mas tememos nos perder nos recônditos de seus labirintos, se transmuta alquimicamente em cena. Neste instante, já não somos leitores diante a chama da vela, mas nos colocamos ao redor da fogueira, para compartilhar do ritual. Estamos no lugar onde se vê a poiesis dançar.

A operação teatral de fazer ouro, pela imensidão dos conflitos que provoca, pela quantidade prodigiosa de forças que ela lança uma contra a outra e que convulsiona, pelo apelo a uma espécie de remistura essencial transbordante de consequências e sobrecarregada de espiritualidade, evoca enfim ao espírito uma pureza absoluta e abstrata, após a qual nada mais existe e que poderíamos conceber como uma espécie de nota-limite, apanhada em pleno vôo, e que seria como a parte orgânica de uma indescritível vibração. (ARTAUD, 2006, p.53)

Como se dá o laboratório alquímico da criação, para os corpos poetas diante a materialidade poética literária? Pois, “nossa cotidianidade nos apresenta um mundo de substâncias materiais, as mesmas com as quais se depara o projeto do artista, que vence, com as mãos, a resistência da materialidade no embate frequente com o mundo das coisas concretas.”(CARVALHO, 2013, p.108).

A partir da escuta do processo criativo do espetáculo em questão, pretendo que outros corpos poetas possam ter acesso à diferentes caminhos de lidar com a materialidade à fim da criação teatral. O exercício cênico a partir da palavra literária é tanto problemático, quanto revelador. Nesta dissertação objetivo observar e refletir sobre a maneira como cada criador opera o trânsito palavra-corpo enquanto possibilidade criativa.

Por meio de uma atividade ativa dos artistas da cena, aqui denominados corpos poetas, acontece a dinâmica (re)materialização do imaginário.

Se a imaginação só remete a um existente, à sua maneira, a imaginação enquanto criadora atinge tal autonomia que constitui um universo totalmente estranho à percepção, de modo que a imagem, em vez de não aparecer senão como uma reduplicação do real percebido, aparece como multiplicadora do real. (FELICIO, 1994, p.82)

(33)

A potência material presente na literatura de Hilda e na cena homônima, que é neste trabalho intuída, descrita, refletida e poetizada, é a inerente aos elementos da natureza, enquanto forças arquetípicas. Gaston Bachelard nos apresenta um profundo estudo sobre a fenomenologia dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo) aplicada sobre a leitura das imagens literárias. Esta pesquisa prontificou-se a este intento, mas também estendeu este exercício de maneira análoga à leitura da cena. Pois, estamos lidando com um objeto poético, que transitou da literatura à cena. A ferramenta para este exercício, diante a obra de arte, literária ou cênica, é a imaginação material.

Portanto, não estamos em erro, acreditamos, ao caracterizar os quatro elementos como os hormônios da imaginação. Eles põem em ação grupos de imagem. Ajudam a assimilação íntima do real disperso em suas formas. Por eles se efetuam as grandes sínteses que dão características um pouco regulares ao imaginário. (BACHELARD, 2001, p.12)

  

O exercício da imaginação é um modo de dialogar com as imagens dadas e com aquilo que queremos criar, que a princípio é algo desconhecido em sua completude, mas possuidor de valor simbólico e afetivo. No ator criador, imaginar é uma ação impulsionadora que em cada trabalho tem suas peculiaridades, possibilidades e potencialidades.

[...] no caso desse conto, ele passeia por metáforas muito sensíveis, por exemplo: quando ela (Agda) fica pensando, a suculência do vermelho (isso mistura os sentidos da visão e do paladar) descreve o passeio... Todas as imagens são muito sensoriais. Então, o trabalho com a imaginação vem muito apoiado nas palavras da Hilda. A gente só tinha que captar o fluxo, só precisávamos abrir para as imagens da autora e habitar. Ela sempre joga nesse contraste entre coisas muito concretas. A escrita da Hilda é tão anímica no sentido de abrir imagens. [...] A sensação que dá quando a gente ouve as palavras é de degustar essa imagem. Foi um trabalho da imaginação entrando e modificando o corpo. (Trecho da entrevista com Veronica Fabrini).

Na presença de uma proposta literária tão exímia quanto a do conto Agda, a criação dos grupos teatrais, deixa viva a palavra tal como é no texto literário, mantendo-se fiel à escrita hilstiana. Além do texto do conto, são também usados poemas que compõe sua obra.11

11 Por exemplo, este fragmento usado como abertura da cena, dito quando tudo ainda está

(34)

Apaixonado pela palavra, Moacir deixar-se afetar por sua potencialidade e faz questão de que o texto na cena seja falado “ao pé da letra. Ele está muito bem escrito. Para você colocar alguma coisa no lugar você tem que ser muito genial!” (Trecho da entrevista com Moacir Ferraz).

Segundo Moacir o ator trabalha com coisas concretas, não com abstrações. A concretude do texto da Hilda é quase que um facilitador desse trânsito para a cena. No caso do Agda, a musicalidade e as imagens dadas pelo texto são de um grande potencial, as quais são um prato cheio para que a imaginação se deixe transitar para o corpo gestos que dancem junto com a palavra, dando ao corpo poeta a possibilidade de materializar a palavra e o movimento em um corpo uno. A palavra é importante por seus significados, mas também pela sonoridade.

Tem um trovão dentro da palavra trovão, tem um buraco dentro da palavra buraco. Quando as atrizes estão trabalhando o texto peço muito pra elas atentarem a articulação, para não perder pequenos sons no meio das palavras... Dentro de uma caixa, cabem mais coisas do que dentro de um “caxa”, assim como o couro é mais flexível do que “coro”. É que tudo isso, todos esses nomes vieram de uma experiência corporal de contato com a natureza. Quando a gente diz de novo a palavra de uma maneira conveniente, essa palavra recupera em nós a imagem e o sentido da coisa que ela nomeia e pode recuperar também na plateia... Então, toda a movimentação foi pensada a partir do estimulo que a palavra trazia para o corpo. (Trecho da entrevista com Moacir Ferraz)

O objeto imaginado pelo poeta se torna um valor. Porém, não é um valor quantitativo qualquer, mas sim embriagado de substâncias capazes de ascender os movimentos humanos ao nível cósmico. Para tanto, segundo Bachelard, ferramentas de analogia, inversão e contradição nutrem a imagem, dão a ela a possibilidade do dualismo transformar-se em dualidade, capaz de criar no duplo uma terceira instância para a imagem, que não é somente lógica ou ilógica, é algo mais, como imagens força, tal qual ideias-força propostas pelo pensador Michel Maffesoli.  

[...] as ‘idéias-força’ que animam, num momento preciso, uma situação, um fenômeno, uma dada entidade. O próprio dessas ‘idéias-força’ é que elas garantem, em profundidade, o vínculo existente entre o

[...]Entre a verdade e os infernos Dez passos de claridade

(35)

simbólico, a imaginação, e até a vontade ou a intuição antecipada das coisas que estão se realizando. (MAFFESOLI, 1998a, p.57-58)  

  

Quando imaginadas pelo poeta literário as palavras também atuam nos sentidos. Mediante imaginação ativa, a palavra faz-se relevante, esta “torna-se um modo de “relacionar-se”, um instrumento do sentimento.” (2010). James Hillman nos apresenta a imaginação ativa, enquanto a arte da cura, esclarecendo como Jung se relaciona com esse tipo de imaginação e o que nos leva à busca de vivências imaginativas.

A imaginação ativa é uma prática criada para uso terapêutico por Jung em sua psicologia analítica. Tendo a relação com a imaginação embasada dentre outras experiências, no labor alquímico, nos apresenta que a imaginação ativa “se trata de uma concretização de conteúdos do inconsciente que são “extra naturam”; não pertencendo ao nosso lugar empírico, são um a priori de caráter arquetípico. (JUNG, 1990, p.295)”.

Hillman explica que a imaginação ativa é uma arte que visa o autoconhecimento, de modo que o importante não é chegar a um objetivo final, pois considera que nessa metodologia há um caminho infinito a ser percorrido pela psique. “A autocompreensão é necessariamente urobórica12, um volver

interminável em um giro por entre suas cenas, suas visões, suas vozes.” (HILLMAN, 2010, p.126).

A lida com as imagens por esse viés é a partir da abertura para o que surge, não uma vivência a partir de algo dado por um mestre ou terceiro propositalmente, com intenções fantásticas e/ou espirituais. Quando levadas à concepção estética, a imaginação ativa dá às imagens formas de expressão, mas não devem ser reféns dessas formas a fim de atender a um padrão esteticamente limitado.

Nesse sentido, podemos antever que a proposta aqui não é a sobreposição do espiritual sobre a atividade anímica psicológica. Muito pelo contrário, a psique, propulsora da imaginação ativa, ganha notoriedade e é olhada com generosidade, enquanto companheira da caminhada humana em

12 “A serpente que morde a cauda não é um fio enrolado, um simples anel de carne, é a dialética material da vida e da morte, a morte que sai da vida e a vida que sai da morte, não como os

contrários da lógica platônica, mas como uma inversão infindável da matéria de morte e da matéria de vida.” (BACHEARD, 2003, p.215)

(36)

suas relações: consigo, com o outro e com o mundo, banhada por imagens em suas mais diversas instâncias.

A palavra bem escrita ela é imagem, ela é corpo, ela tem ritmo, tem fluidez, abre um campo imagético, não fecha. É uma palavra muito “encarnável” e que tá muito junto, quase pede um corpo, o corpo integra, bem uma amalgama. Corpo e palavra, todos juntos, construindo um espetáculo, um instante da experiência artística da cena, naquele momento. (Trecho da entrevista com Alice Possani)

Este trabalho direciona o olhar sobre a linguagem poética, enquanto aberta à possibilidades de multiplicação de qualidades e potências, quando transita – da literatura à cena - criando caminhos outros de comunicação. A poesia, que faz morada no tempo da leitura se multiplica pelo espaço da cena, movimentando e encantando.

Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo, excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividí-la e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhes o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, poder-se ia dizer alimentares, contra suas origens de animal acuado, é, enfim, considerar a linguagem sob a forma de Encantamento. (ARTAUD, 2006, p.46-47)

As palavras de Hilda, de Agda, trafegam entre imanência e transcendência, céu e terra, profano e sagrado, matéria e espírito. A poiesis deixa a palavra embriagar-se de verdades indemonstráveis, de forças míticas.   

A grande maioria dos livros de Hilda Hilst procura e indaga um Ser silencioso e terrível, imóvel diante das dores e prazeres humanos, cuja presença se nota através de rasgos de horror na cadeia do real. Deus é o interlocutor mudo desses escritos, aquele para quem se escreveu e se revelou e de quem não se obteve resposta alguma. Isto, é claro, se reflete nas personagens, que partilham da mesma busca pelo mistério divino da autora que as criou. (SILVA, 2008, p.70)  

  

O trajeto literário hilstiano é marcado pela imaginação mítica, que segundo Hillman, “esse retorno ao reino do meio da ficção, do mito, leva-nos a uma familiaridade de conversação com o cosmo que habitamos” (HILLMAN,

(37)

2010, p.125). A busca dessa proximidade é, tanto inerente à autora quanto à sua personagem Agda.  “É como se tudo que a Hilda tivesse escrito fosse uma história só.” (Trecho da entrevista com Olga Bilenky)

Não só neste conto, mas também em outras obras da autora, um determinado esquema de escrita nos é apontado por Leandro Silva em seu artigo, que destaca que estruturalmente 

O plano se desenvolve, portanto, em três níveis narrativos: 1) a da personagem-narradora, em primeira pessoa e base de todos os outros; 2) a das demais personagens, também em primeira pessoa, mas não necessariamente articulado sobre o nível anterior; e 3) a de um outro narrador, geralmente em terceira pessoa, comentando a ação ou interferindo no texto como uma coda ou rubrica etc., e que, como no primeiro nível, possui uma autonomia fora do eixo principal (que é, exatamente, o nível 1). (Silva, 2008, p.68)  

  

No conto, Agda é a personagem narradora, que nos conta o desenrolar de alguns fatos, coloca-se na inteireza de seus sentimentos, ou seja, nos apresenta os acontecimentos e como se sente diante deles.  Celônio, Orto e Kalau, o cavalo-três de Agda, estão em primeira pessoa, mantendo diálogos e rememorando fatos passados que se relacionam à Agda. Destaca-se nesses diálogos a incerteza, a dúvida, pois cada um vê e sente Agda de uma maneira. Essa ambiguidade de Agda é assustadora e insuportável e eles planejam sua morte. Há também um terceiro narrador, que é um aglomerado de vozes da aldeia onde todos vivem. São vozes que narram a partir de suas impressões e sentimentos a respeito de Agda.

Sobretudo, são vozes que julgam. Na encenação assumem função do coro. Não há narrações imparciais. “São dados que se desdobram num esquema entre a individualidade e a despersonalização.” (Trecho da entrevista com Alcir Pécora).  São imagens força, ativas, que movimentam o desenvolver da trama que passa a se desenrolar também na imaginação do espectador que é convocado a imaginar Agda, a imaginar com Agda.

Há sempre uma parte de razão, de ideologia, de conteúdo, no processo descrito, mas também uma alquimia um tanto misteriosa que detona, em certas situações, uma interação. Esse momento de vibração comum, essa sensação partilhada, eis o que constitui um imaginário. (MAFFESOLI, 2001, p.77)

(38)

No espetáculo, as personagens são desdobramentos de três atrizes, que na cena, em esquemas corpóreos de movimentações e gestos diferenciados, vão configurando cada um desses grupos. Agda é tríplice nessa cena, pois em cada momento uma das atrizes “se veste”13 Agda, o que acaba por reforçar

algumas ideias importantes, tais como a de que “outras Agdas já viveram ali”, confirmando o comentário de Olga, durante a entrevista, de que para cada um dos homens havia uma Agda, pois cada um a via de um jeito.

Esta é uma característica que já existia na primeira montagem. Eu acho que o Momô foi muito inteligente na escolha dos monólogos porque eu acho que cada um deles revela um pouco de cada uma de nós atrizes. Eu sempre achei que muitos questionamentos feitos pela minha Agda correspondiam à angustias que eu, enquanto mulher, também tinha com relação à vida. O meu texto era o segundo monólogo, um texto mais melodramático ou talvez, eu tenha me permitido, das três Agdas, atuar de uma forma mais melodramática. Por diversas vezes me emocionava nos ensaios enquanto “conversava com Deus”, por vezes me indagava se era a voz da personagem Agda ou se eram os meus questionamentos.

Acredito que meu monólogo abarcava o aspecto feminino: de doar-se, mas ao mesmo tempo não ser apenas subserviente, de poder se encaixar em vários estereótipos de mulheres, mas ainda assim, ser “a semente matriz de inquietas mulherzinhas”. Eu acho que neste monólogo ela questiona o “lugar” que Deus preparou/destinou para a mulher nesse mundo tão machista e desigual.

De um modo geral, o primeiro monólogo questionava a existência de Deus, a origem de tudo, no segundo o papel da mulher, o lugar do sensível no mundo e no terceiro uma questão mais ligada à espiritualidade, a relação com a natureza, com o desconhecido. (Trecho da entrevista com Melissa Lopes)

Agda-cadela. Foi essa a imagem-guia que conduziu a movimentação das atrizes em cena quando personificavam Agda. Cadelas com movimentos espiralados. O espetáculo se inicia, no black-out, com o aforismo de Hilda “Entre a verdade e os infernos, dez passos de claridade, dez passos de escuridão”. Ainda na penumbra, iluminadas por alguns recortes de luz, corpo e som das atrizes nos remetem à cadelas. As espirais propostas por Hilda no texto, em que “Agda, constrói infinitas espirais de metal”, dançam na cena, fazendo o trânsito entre cadela e mulher, espirais que conduzem para cima. Os corpos poetas beberam nas imagens de Paula Rego, pintora portuguesa contemporânea.

13“se veste”, no sentido de assumir a personagem em primeira pessoa, ao passo que as outras

duas, sem deixar a cena, assumem outras figuras cênicas e, portanto, outras funções dramatúrgicas.

(39)

Figura 7

Figura 8

Tem um tema na obra da Hilda, que atravessa a obra dela como um todo, que é essa relação entre o desejo do espírito e a concretude da carne. Ela tem muito essa angústia desse trânsito entre o debaixo e o de cima. Isso a agente tentou trazer para o corpo, numa ideia de verticalidade, de oposições. Desde o cenário, quando colocamos aqueles panos no fundo, panos vermelhos no fundo reforçam a ideia de vertical. A saia que cai, que ajuda a criar linhas. E os nossos corpos também, sempre trabalhando essa ideia de oposição: se eu estou aqui,

(40)

desejando o alto, ou se estou no alto desejando o baixo. . É uma maneira de a gente colocar a literatura da Hilda no corpo. Ela tem uma escrita in fluxo, tem uma ideia de pensamento em espiral, e ela fala muito de espirais, usa imagens de espiral. Então esse também foi um elemento que botamos no corpo. Esse baixo e cima, o trânsito é sempre em espiral. Vai subir é através de espiral. Deslocamentos em que usamos a ideia de espirais. (Trecho da entrevista com Alice Possani)

Em analogia à fenomenologia dos elementos da natureza, diria que Agda brinca de alquimista, derretendo metais, usando fogo para transmutar. Diante uma matéria que apresenta resistência ela trabalha, transforma a forma em substância espiralada e o que era horizontal agora é cume.

Ando tentando fazê-las muito muito bonitas, e quando a lua está limpa, os cordeiros da nuvem no outro extremo, entro nas casas para roubar o ouro e depois derreto tudo no meu forno, mais de cem espirais tão delicadas que até o meu passo de fada faz vibrar, entro na casa o pé acolchoado, não respiro, mesmo assim estremecem. E detendo-me, vejo que o que era base aos meus olhos, fica vértice. (HILST, 2002, p.107)  

Figura 9

Tanto na leitura do conto, quanto na contemplação das personas em cena, entre Agda e o cavalo-três, há um claro trânsito entre anima e animus. Os monólogos de Agda, ou poderíamos chamar de diálogos religiosus, são como que tessituras, em que não se faz relevante o sujeito ou objeto em questão. Mas, é um uníssono, onde sujeito-mundo convive numa trama de qualidades, que

Referências

Documentos relacionados

Diante dos resultados obtidos, pode-se obser- var que a roçagem de plantas de algodoeiro a 10 cm de altura reduz sua capacidade de brotação, retarda a emissão de botões florais

Outro estudo realizado em crianças com seis anos de idade, que visava estabelecer a relação entre a duração da amamentação exclusiva e o desenvolvimento de asma apurou que a

Adriano Messias, Pontifícia Universidade Católica, Brasil Agda Carvalho, Universidade Anhembi Morumbi, Brasil Alessandra Maia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

5.1 A demonstração da posição financeira e a demonstração dos resultados do período de nove meses findo em 30 de setembro de 2020, assim como a evolução dos gastos e

Considerando que as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos superiores de tecnologia não estabelecem como obrigatória a realização das Atividades Complementares, a

1° Designa, como efetivos, Doutor PIETRO NOVELLINO, Professor Titular; Doutor FERNANDO SÉRGIO DE MELO PORTINHO, Professor Titular; Doutor PIETRO ACCETTA, Professor Titular

A Assistência Estudantil se realiza por meio de 08 (oito) importantes Programas com recursos PNAES: Auxílio Alimentação, Auxílio Creche, Auxílio Emergencial, Auxílio

O desejo das instituições e empresas que recorrem à propaganda ambiental parece ser o de associar sua imagem ao esclarecimento e obter uma espécie de apaziguamento de possíveis