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Ciência e desvelamento : a Física no pensamento de Martin Heidegger (1925-1929)

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(1)

LUCIANO CAMPOS DOS SANTOS

CIÊNCIA E DESVELAMENTO: A FÍSICA NO PENSAMENTO DE

MARTIN HEIDEGGER (1925-1929)

CAMPINAS

2017

(2)
(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Santos, Luciano Campos dos,

Sa59c

San

Ciência e desvelamento : a Física no pensamento de Martin Heidegger

(1925-1929) / Luciano Campos dos Santos. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

San

Orientador: Zeljko Loparic.

San

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

San

1. Heidegger, Martin, 1889-1976. 2. Fenomenologia. 3. Ontologia. 4.

Ciência. 5. Física. 6. Filosofia e ciência. I. Loparic, Zeljko,1939-. II.

Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Science and unconcealment : Physics in Martin Heidegger's

thought (1925-1929)

Palavras-chave em inglês:

Phenomenology

Ontology

Science

Physics

Philosophy and science

Área de concentração: Filosofia

Titulação: Doutor em Filosofia

Banca examinadora:

Zeljko Loparic [Orientador]

Alexandre de Oliveira Ferreira

Antônio Augusto Passos Videira

Daniel Omar Perez

Róbson Ramos dos Reis

Data de defesa: 29-03-2017

Programa de Pós-Graduação: Filosofia

(4)

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa da Tese de Doutorado, composta

pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29

de março de 2017, considerou o candidato Luciano Campos dos Santos aprovado.

Prof. Dr. Zeljko Loparic

Prof. Dr. Alexandre de Oliveira Ferreira

Prof. Dr. Antônio Augusto Passos Videira

Prof. Dr. Daniel Omar Perez

Prof. Dr. Robson Ramos dos Reis

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

Aos meus pais,

Maria de Lourdes

e Domingos (in memoriam).

(6)

Aos professores José Oscar de Almeida Marques e Oswaldo Giacoia Junior, cujas amizade

e gentiliza tornaram possível o meu ingresso no Doutorado e a obtenção da bolsa FAPESP.

Ao prof. Zeljko Loparic, pelo convite de retorno à continuidade do trabalho de orientação

iniciado no mestrado, pelo estímulo à realização do estágio doutoral na Alemanha e,

principalmente, pela paciência com relação aos contratempos que vivenciei durante o

doutorado.

À minha família, especialmente à minha mãe e à minha irmã Luciene, pelo incentivo

constante aos meus projetos pessoais e pelo apoio no último e mais difícil período do

doutorado.

Aos amigos João Santos Andrade Filho, Washington Santos Carneiro e Ana Cristina de

Sousa, pelo apoio e generosidade, sem os quais muito provavelmente não teria conseguido

concluir esta Tese.

A Fernando Rodrigues, por ter me ensinado o “caminho das pedras” para a realização do

doutorado-sanduíche na Uni-Freiburg. A Lucas dos Reis Martins, pelo auxílio inestimável

que me deu nos meus primeiros dias na Alemanha. Aos amigos que, com carinho,

encorajamento, companhia e companheirismo, nas situações mais diversas e às vezes

adversas, tornaram mais suave a minha estadia na Alemanha: Viviane Magalhães Pereira,

Juliana Oliveira Missagia, Águida Foerster, Lisa Schum, Bettina Boehler, Charis Lieberum (e

família), Alessandro Baccaglini, Esther Zarco Pernia, Eduardo Riesco, Mona Heiland,

Sophie, Julia Thumm e Annika Korte.

Ao prof. Günter Figal, por muito simpaticamente ter me recebido como Gastdoktorand na

Albert-Ludwigs-Universität Freiburg.

Ao prof. Pablo Rubén Mariconda, por ter me permitido acompanhar as suas aulas de

Filosofia da Ciência, na USP, no segundo semestre de 2012.

À profa. Andréa Luisa Bucchile Faggion e ao prof. Alexandre Ferreira de Oliveira, pela

disposição generosa em participar da minha Qualificação de doutorado.

Aos colegas da Unicamp, Rodrigo Rosa, Fabiano Queiroz, Ricardo Machado e Fábio

Nolasco, pela amizade, pela companhia e pelas conversas filosóficas e triviais.

A Sandra Abreu, Florisbete de Jesus, Flávia, Raimundo, Zezilda e a todos os amigos que de

um modo ou de outro me incentivaram ou apoiaram durante o período do doutorado.

Aos membros da Banca Examinadora, os Professores Doutores Alexandre de Oliveira

Ferreira, Antônio Augusto Passos Videira, Daniel Omar Perez, Robson Ramos dos Reis

(Titulares) e Caroline Vasconcelos Ribeiro, Eder Soares Santos, Oswaldo Giacoia Junior

(Suplentes), pela disposição em colaborar criticamente com o meu trabalho, aceitando

prontamente o convite para participação na Banca. .

Ao Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), pelo financiamento dos seis meses

de curso intensivo de Alemão, no Goethe-Institut de Göttingen.

Ao CNPq, pela bolsa no período de junho a agosto de 2011.

À CAPES, pelo financiamento do doutorado-sanduíche no período de abril de 2014 a março

de 2105.

À FAPESP (Processo no. 2011/09379-7), pelos trinta e três meses de financiamento do

doutorado, nos períodos de setembro de 2011 a agosto de 2013 e de abril a novembro de

2015.

(7)

Ao invés de uma discussão ampla sobre a

essência da filosofia, é apenas apontada

uma coisa que pertence ao filosofar: que o

filósofo exige-se a possibilidade do erro.

Esta coragem para o erro não significa

apenas coragem para suportá-lo, mas muito

mais: coragem para admiti-lo, isto quer dizer

que esta coragem é a coragem para

liberação interior do próprio Si-mesmo no

poder-aprender e poder-ouvir, a coragem

para a discussão positiva. (HEIDEDEGER,

Logik: Die Frage nach der Wahrheit, p. 18).

(8)

Este trabalho tem por tema geral a assim chamada filosofia da ciência de Heidegger.

Visa-se, particularmente, a uma interpretação da abordagem heideggeriana da

Física matemática, no quadro da sua concepção existencial de ciência, desenvolvida

no contexto do seu projeto de Ontologia Fundamental, especialmente em Ser e

Tempo, mas também em textos do seu entorno. Em um primeiro momento,

examina-se a proposta heideggeriana de fundamentação das ciências factuais por meio da

elaboração de ontologias regionais e discute-se o caráter fundacionalista desta

proposta. Em seguida, avalia-se a alusão, feita em Ser e Tempo, à Analítica

Transcendental, de Kant, como uma ontologia regional da natureza, com base em

uma reconstrução da compreensão heideggeriana das relações entre a filosofia

teórica kantiana e a fundamentação da Física, exposta mais detidamente no curso

Logik: Die Frage nach der Wahrheit e, indiretamente, no seu Kantbuch. A partir do

conceito existencial de ciência, no parágrafo 69b, de Ser e Tempo: discute-se a

interpretação de Gethmann acerca da origem do comportamento científico e das

relações entre gênese ontológica da ciência e modificação da compreensão de ser;

define-se o papel desempenhado pela Física na exposição do conceito existencial

de ciência; busca-se reabilitar (contra as teses de Gordon, Rouse e Ginev) a

importância e a pertinência da noção de desmundanização do mundo, esclarecendo

o significado, o alcance e o lugar dessa noção na concepção existencial de ciência e

defendendo a sua exclusiva e inelidível vinculação ao projeto matemático da

natureza, isto é, à tematização físico-matemática; elucidam-se, ainda, os momentos

básicos da tematização operada pela Física, a saber: “a articulação da compreensão

de ser”, “a delimitação do domínio temático” e o “delineamento da conceitualidade

adequada”. Por fim, apresenta-se e problematiza-se a interpretação heideggeriana

das Leis de Newton como enunciações que tornam acessível o ente “nele mesmo”;

contrastam-se as concepções heideggeriana e kuhniana de crise e revolução nas

ciências, ao se levantar uma hipótese sobre como Heidegger compreende as

relações entre a Física de Newton e a Teoria da Relatividade de Einstein,

tomando-se em consideração as breves menções feitas a ambas as Físicas nas obras

analisadas neste trabalho; patenteia-se o realismo científico subjacente à

abordagem heideggeriana tanto das Leis de Newton quanto da Física de Einstein e

aponta-se para o problema da compatibilidade entre o realismo científico robusto

assumido por Heidegger e o caráter transcendental de sua filosofia

ontológico-existencial.

(9)

This thesis’s general theme is Heidegger’s so called philosophy of Science. In

particular, one aims to interpret Heidegger’s approach to mathematical Physics within

the frame of his Fundamental Ontology Project, especially worked out in Being and

Time, but also in texts orbiting around it. In a first moment, one examines

Heidegger’s proposition concerning the grounding of factual sciences by means of

the elaboration of regional ontologies, and one discusses the foundationalist

character of such proposition. Thereupon, one evaluates Being and Time’s allusion to

Kant’s Transcendental Analytic as regional ontology of nature, departing from a

reconstruction of Heidegger’s comprehension of the relations between Kant’s

theoretical philosophy and the grounding of Physics, exposed to greater extent in the

lecture course on Logik: Die Frage nach der Wahrheit, and, indirectly, in his

Kantbuch. Departing from the existential concept of Science found in Being and

Time’s paragraph 69b: one discusses Gethmann’s interpretation concerning to the

origin of scientific behavior and to the relationship between ontological genesis of

science and modification of the understanding of being; one defines the role played

by Physics in the exposure of the existential concept of Science; one searches to

restore (against the thesis of Gordon, Rouse and Ginev) the importance and

pertinence of the notion of deworlding of the world, clarifying the meaning, the extent,

and the place of such a notion within the existential conception of science and

defending its exclusive und insuppressible binding to the mathematical project of

nature, that is, to the physical-mathematical thematization; furthermore, one

elucidates therewith the basic moments of the thematization operated by Physics,

namely: “the articulation of the understanding of being”, “the delimitation of an area of

subject-matter”, and “the sketching-out of the appropriate way of conceiving”. Lastly,

one presents and problematizes Heidegger’s interpretation of Newton’s Laws as

assertions which make entity accessible „in itself“; one contrasts Heidegger’s and

Kuhn’s conceptions concerning scientific crisis and revolution, by raising an

hypothesis relating to how Heidegger comprehends the relations between Newton’s

Physics and Einstein’s Theory of Relativity, departing therein from the brief mentions

to both physical projects found in the works analyzed within this thesis’s scope;

Heidegger’s scientific realism, subjacent to his approach of both Newton’s and

Einstein’s Physics, is laid out and the compatibility problem between the robust

scientific realism assumed by Heidegger and the transcendental character of his

ontological-existential philosophy is thus indicated.

(10)

INTRODUÇÃO

11

1. ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA COMO FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: A

ELABORAÇÃO E CLARIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

24

2. HEIDEGGER SOBRE KANT E A FUNDAMENTAÇÃO DA “CIÊNCIA DA

NATUREZA”

58

2.1 Analítica Transcendental como exposição dos conceitos e princípios

fundamentais da Física

59

2.2 Fundamentação da Metafísica e Fundamentação da Física

68

3. O CONCEITO EXISTENCIAL DE CIÊNCIA E A FÍSICA

93

3.1 O problema da origem do comportamento científico

95

3.2 Ciência e modificação: o caso da Física

109

3.3 Física e desmundanização do mundo

117

3.4 Física e tematização

153

3.4.1 A tematização física da presentidade

154

3.4.2 O domínio temático da Física

171

3.4.3 A Estrutura da conceitualidade

182

4. HEIDEGGER E AS LEIS DE NEWTON: INDICAÇÃO DE UMA

PROBLEMÁTICA

200

CONCLUSÃO

246

(11)

INTRODUÇÃO

Em uma época de renascimento da ontologia, após a crise do idealismo

hegeliano

1

, Heidegger publica, em 1927, a sua obra-mestra, Sein und Zeit, a qual

objetiva recolocar a “questão do sentido do ser” ou, dita de forma curta, a “questão

do ser”, e elaborá-la com base em “uma interpretação do tempo como de um

possível horizonte de toda compreensão de ser”, segundo ele mesmo se expressa,

na página de abertura do seu tratado. A fascinação de Heidegger pela questão do

ser, que estimulou e conformou a sua experiência de pensamento desde a sua

primeira leitura da Dissertação de Franz Brentano Sobre a múltipla significação do

ente segundo Aristóteles

2

, ganhou vívida expressão em sua obra de 1927,

intensificou-se a partir de sua Kehre, e terminou por lhe render a “imagem de um

apositivismo conservador”, caracterizado por um “distanciamento eminente diante da

ciência” e inaptidão para “interpretar os resultados das ciências”. Essa imagem,

difundida e criticada por representantes da Escola de Frankfurt, notadamente por

Adorno e Habermas

3

, é, no entanto, falsa, pois já em seu ensaio Der Zeitbegriff in

der Geschichtswissenschaft, lido em Freiburg em 1915, Heidegger exibe

conhecimentos da Física de sua época, cita textualmente Max Planck, Galileu e

Einstein, e, partindo de uma descrição precisa do método experimental, esforça-se

por esclarecer o conceito de tempo com o qual opera a Física (utilizando, inclusive,

equações), tendo em vista uma contraposição com conceito de tempo próprio das

Ciências Históricas.

Na verdade, a inclinação de Heidegger para as ciências manifestou-se

ainda cedo, e de tal modo que, no início do ano de 1911, ele encontrava-se indeciso

diante de três caminhos possíveis a seguir: a) o estudo das matemáticas; b) o

estudo da filosofia; c) a continuação dos estudos de teologia (cf. OTT, 1992, p. 77),

tendo-se até decidido, provisoriamente, no semestre de inverno de 1911-1912, por

estudar matemática, em Freiburg (cf. OTT, 1992, p. 79), onde também frequentou os

1 Cf. SCHNÄDELBACH, 1991, pp. 15ss, 233.

2 “Die erste philosophische Schrift, die ich seit I907 immer wieder durcharbeitete, Franz Brentanos

Dissertation war: ‘Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden bei Aristoteles’ (1862)” (HEIDEGGER in RICHARDSON, 2003, p. XI). O título original é “Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles”.

3 Cf. a esse respeito o tópico “A crítica de Heidegger”, do livro A Escola de Frankfurt: a história,

desenvolvimento teórico, significação política, de Rolf Wiggershaus, de onde foram extraídas as expressões aspeadas no parágrafo acima.

(12)

cursos de ciências da natureza (física e química) (cf. OTT, 1992, p. 84). Podemos

dizer que os conhecimentos de Heidegger no campo das ciências naturais não

eram, de modo algum, medíocres, se dermos crédito ao testemunho de um

professor da Faculdade de Teologia de Freiburg, Engelbert Krebs: Heidegger

“domina perfeitamente toda a alta matemática (cálculo infinitesimal e integral, teoria

dos grupos) e outras coisas similares” – anotou Krebs, em seu diário, na época em

que Heidegger ainda era estudante (cf. OTT, 1992, p. 91). Carl von Weizsäcker

também notou “que o conhecimento de Heidegger das ciências naturais era

excepcional e que ele era capaz de manter conversações de alto nível sobre

questões científicas com os principais cientistas de seu tempo (Werner Heisenberg,

Viktor von Weizsäcker, et al)” (KOCKELMANS, 1984, p. 209). Assim, apesar da

imagem negativa que se construiu a seu respeito, relativamente às suas posições

sobre a ciência, para a qual certamente também contribui a sua tão famosa quanto

mal interpretada declaração de que “a ciência não pensa”, Heidegger nunca foi, de

fato, avesso às ciências.

Também não foi a pressuposição de uma inabilidade de Heidegger para

tratar de temas científicos, nem propriamente a constatação de que o sentido ou a

verdade do ser foi a questão primordial que moveu o seu pensamento e obra ao

longo de sua trajetória filosófica, que levaram o Pe. William Richardson, em 1968, a

afirmar, logo nas primeiras linhas do seu artigo intitulado Heidegger’s critique of

science, que nem “no mais longo dia que ele viveu, Heidegger nunca poderia ser

chamado um filósofo da ciência”. Embora o Pe. Richardson considerasse que a

questão do ser de fato “foi a sua primeira questão filosófica, e sua última”

(RICHARDSON, 2012, p. 35), ele – enquanto um eminente conhecedor da obra de

Heidegger e autor de uma das mais extensas reconstruções e interpretações do

percurso filosófico do pensador da Floresta Negra

4

– era consciente de que

reflexões sobre a ciência traspassam a obra do filósofo, de ponta a ponta, e de que

“Heidegger toma a meditação sobre esta fundação da ciência [na alétheia,

não-velamento] como sua própria tarefa durante toda sua vida” (RICHARDSON, 2012, p.

41).

4 Referimo-nos ao monumental, mas datado, Heidegger: Through Phenomenology to Thought,

(13)

Com o seu artigo – no qual examina principalmente o texto Die Zeit des

Weltbildes (originalmente uma conferência proferida diante de cientistas, médicos e

historiadores da arte, em 1938, em Freiburg), mas também as conferências Was ist

Metaphysic? (1929) e Wissenschaft und Besinnung (1953) –, Richardson certamente

contribuiu para desfazer a imagem negativa que se atrelou a Heidegger em

decorrência de suas críticas à ciência, ao esclarecer que: “é contra o

empobrecimento da ciência (e do próprio cientista) que Heidegger protesta, não

contra sua inquestionável riqueza” (RICHARDSON, 2012, p. 37), e enfatizar ser “um

erro tomar o tom negativo com o qual Heidegger às vezes critica o esquecimento do

ser que caracteriza nossa cultura cientificamente orientada como um repúdio à

ciência mesma” (RICHARDSON, 2012, p. 42). Não obstante, as conclusões às quais

Richardson chega não são muito favoráveis à ideia de uma filosofia heideggeriana

da ciência, pois ele acredita que Heidegger, tendo distinguido o fenômeno da

verdade nos níveis enunciativo, ôntico e ontológico, devotou-se longamente a

pensar o sentido da verdade ontológica, descurando de explorar o fenômeno da

verdade ôntica, que seria de particular interesse para os cientistas e de potencial

contributividade para o campo da filosofia da ciência. Assim, para Richardson, no

que pese a inquestionável importância de Heidegger como um filósofo, ele

“simplesmente não é um filósofo da ciência” (RICHARDSON, 2012, p. 43, grifo do

autor), e o que ele oferece em suas reflexões e análises sobre a ciência, em Die Zeit

des Weltbildes – a sua “mais explícita análise da natureza da ciência” (p. 27) – e nos

dois outros textos examinados, “não é uma filosofia da ciência, mas um humanismo

para uma época científica” (RICHARDSON, 2012, p. 42)

5

. Na sua avaliação, as

reflexões de Heidegger sobre a ciência, baseadas na descrição de seus métodos e

modus operandi, poderiam ter ultrapassado o limiar de uma advertência quanto ao

esquecimento da verdade do ser – o qual a postura científica reforça, enquanto

epifenômeno da metafísica da subjetividade e da técnica entendida como

desvelamento do ser na época moderna – e ter avançado em uma exploração da

verdade ôntica, fornecendo, por exemplo, uma melhor explicação da relação entre a

matemática e os objetos das ciências exatas, do significado da experimentação e de

seus resultados nas investigações científicas, e das relações entre a estrutura

abstrata dos conceitos científicos e o Ser enquanto desvelamento. Além disso,

5 Humanismo no sentido heideggeriano, segundo o qual a dignidade do homem enquanto ex-sistência

(14)

Richardson acusa a incipiente filosofia da ciência de Heidegger de não estar à altura

da ciência de seu tempo, apesar das referências explícitas e implícitas à Mecânica

Quântica, pois, ao interpretar a ciência contemporânea como também alicerçada

(igualmente à moderna) no modelo cartesiano da dualidade sujeito-objeto,

compreendida quase no sentido espacial de partes extra partes, Heidegger não

percebe que a ciência contemporânea não repõe, de um modo novo, aquela

dualidade e oposição, mas a derroga ao postular, na teoria e na prática, a

“interdependência entre sujeito e objeto, portanto a unidade com distinção”

(RICHARDSON, 2102, p. 43), cuja expressão mais clara é o princípio da

indeterminação, de Heisenberg. No final do seu artigo, o Pe. Richardson admite que,

apesar de ter feito notar “a pobreza do pensamento de Heidegger como um filósofo

da ciência, a exploração destas questões que tornariam possível uma filosofia da

ciência, poderia ser feita em um enquadramento heideggeriano” (RICHARDSON,

2001, p. 43), e que Heidegger mesmo “seria capaz de fazê-lo”, mas não o fez,

provavelmente por acreditar que essa não era a sua tarefa, e que, por isso mesmo,

deveria ser deixada a outros – o seu projeto filosófico não incluiria uma tal

exploração (cf. RICHARDSON, 2001, p. 43s)

6

.

As conclusões do artigo do Pe. Richardson – então já conhecido pelo seu

livro Heidegger: Through Phenomenology to Thought – certamente ecoaram a um só

tempo como repto e estímulo para os estudiosos do pensamento de Heidegger, e

fizeram proliferar pesquisas e publicações sobre o tema da ciência em Heidegger, a

partir dos anos 70

7

. Vinte e cinco anos após a publicação do artigo de Richardson, o

também padre jesuíta e físico Patrick Heelan (amigo e colega do Pe. Richardson, na

Universidade de Fordham, trabalhou com Schrödinger, em Dublin, e manteve

contato com Heisenberg por muitos anos) escreve uma espécie de resenha do artigo

Heidegger’s critique of Science (na verdade, uma contribuição para um Festschrift

em homenagem a Richardson), mostrando como uma fenomenologia hermenêutica

6 Não é verdade, portanto, que a razão que leva Richardson a atribuir a Heidegger um fracasso na

elaboração de sua filosofia da ciência seria que “he was not well versed in science”, como afirma Patrick Heelan (1995, p. 579).

7 A bibliografia apresentada por Crupi (2002, p. 216s) dá uma boa noção deste fato. Os estudos de

Kisiel e Kockelmans, por exemplo, sobre a ciência no pensamento de Heidegger, aparentemente iniciam-se em 1970. As publicações de Patrick Heelan sobre hermenêutica e fenomenologia das ciências naturais surgem a partir de 1972. A propósito, para Heelan, o artigo de Richardson tornou-se, com efeito, paradigmático para as pesquisas sobre a ciência em Heidegger, porque “became the model for virtually all subsequent papers on the topic of Heidegger’s philosophy of science”, no que diz respeito ao Corpus a ser interpretado, bem como ao tipo e ao estilo da interpretação (cf. HEELAN, 1995, p. 579)

(15)

das ciências naturais, tomada em sentido amplo, que abarca e articula as filosofias

de Heidegger e de Husserl

8

, poderia, se bem explorada, oferecer respostas para os

questionamentos levantados pelo Pe. Richardson, nas conclusões de seu artigo.

Heelan concorda com Richardson pelo menos em dois pontos: i) que a

compreensão heideggeriana da ciência, “apesar de informada pelo diálogo com

importantes cientistas não-clássicos tais como W. Heisenberg, N. Bohr e F. v.

Weizsäcker, permaneceu persistentemente inclinada para a mecânica clássica”

(HEELAN, 1995, p. 586); ii) que “mesmo no seu mais longo dia, Heidegger não foi

um filósofo da ciência” (HEELAN, 1995, p. 586). Ainda assim, Heelan acredita que a

ontologia hermenêutica de Heidegger, ao trazer à tona o “caráter alethéico da

verdade científica e a revelação do horizonte ‘ontológico’ subjacente às afirmações

‘ônticas’ da ciência” (HELLAN, 1995, p. 586), tem algo a oferecer à filosofia da

ciência e à própria ciência, provendo-lhe “uma perspectiva crítica que é então capaz

de, alcançando a própria ciência, torná-la consciente de seu método histórico e

hermenêutico” (HELLAN, 1995, p. 586).

Patrick Heelan, não apenas em sua resenha, mas também em seus

trabalhos, recupera, então, a importância das ideias de Heidegger para a filosofia da

ciência (em sentido amplo), para além da exortação e reivindicação de um

“humanismo para a época científica”

9

. Mas talvez a resposta mais direta, sistemática

e antitética às conclusões do Pe. Richardson seja o trabalho de Glazebrook, cuja

introdução inicia-se justamente com a citação da frase de abertura do referido artigo

de Richardson, e cujo título Heidegger’s Philosophy of Science (2000) já diz

precisamente a que veio. Glazebrook não somente defende que Heidegger pode,

seguramente, ser considerado um filósofo da ciência

10

, mas também que a “questão

da ciência natural é um constante e contínuo apoio desde o qual se desenvolve e

8 A proposta de Heelan para tratar da questão da ciência em Heidegger é: “extend the relevant corpus

of texts beyond Heidegger’s own writings so as to include other texts, to start with, philosophical and scientific text that Heidegger responded to in his own writing. Notably among these are the writings of his former colleague Husserl” (HEELAN, 1995, p. 582).

9 Não apenas ele, mas também outros, que Heelan mesmo nomeia, tais como Kockelmans, Kesiel,

Seigfried, Rouse, Babich, Crease (cf. Heelan, 1995, p. 586), cuja contribuição não nos cabe aqui examinar, não apenas porque, nesta Introdução, apenas queremos apontar alguns momentos da história da abordagem da “filosofia da ciência de Heidegger”, sem maiores pretensões, mas também porque tal exame exigira um tempo e um espaço para além daqueles que dispusemos e dispomos para tratar do tema específico da nossa tese. A alguns destes estudiosos nos referimos no corpo do nosso trabalho, mas apenas na extensão requerida para o desenvolvimento dos nossos pontos de discussão.

10 “The task of the philosopher of science is, at least in part, to ask what constitutes science.

(16)

cresce o pensamento de Heidegger” (GLAZEBROOK, 2000, p. 4), de modo que tal

questão chega mesmo a conferir uma certa unidade ao seu pensamento (cf.

GLAZEBROOK, 2000, pp. 1, 4, 12). Para Glazebrook, questões pertencentes ao

âmbito próprio da filosofia da ciência strictu sensu podem não apenas ser

encontradas desenvolvidas na obra de Heidegger, como também se pode aproximar

a abordagem heideggeriana dessas questões à tradição analítica da filosofia da

ciência (cf. GLAZEBROOK, 2000, pp. 3, 9,10). Embora controverso e problemático

em alguns pontos – como o referente à sua tese de que a “questão da ciência” é um

traço unificador e central do pensamento de Heidegger

11

–, o trabalho de Glazebrook

certamente serviu para ampliar o debate sobre as potencialidades das reflexões de

Heidegger sobre as ciências

12

.

Vale também mencionar, brevemente, nesta introdução, o desenvolvimento

das ideias de Heidegger na direção de uma filosofia da ciência mais articulada, a

partir de uma apropriação produtiva dessas ideias por alguns estudiosos tanto do

seu pensamento, quanto da Filosofia da Ciência stricto sensu

13

. Até onde sabemos,

os empreendimentos mais robustos nesse sentido são: i) a teoria construtivista da

Escola de Erlangen, que, segundo Gethmann, “é claramente dependente da

reformulação heideggeriana da teoria fenomenológica da ciência” (GETHMANN,

1993, p. 202) e cuja concepção de “pensamento metódico”, elaborada com a

11 “I show that the question of science is foundationally informative of Heidegger's work and is basic to

a novel and coherent, systematic account of his thinking” (GLAZEBROOK, 2000p. 12); “I read Heidegger's thought as a philosophy of science” (GLAZEBROOK, 2000, p. 13). Esse ponto é pertinentemente criticado por Crupi, em sua resenha do livro de Glazebrook, que apresenta uma tese muito mais plausível, ao apontar a diferença ontológica como o “most stable and lasting core of Heidegger’s thought […] the structural absoluteness of Heidegger’s position, which remains unchanged before and after this terminological shift” (CRUPI, 2003, p. 134, grifo do autor).

12 Uma excelente resenha do Heidegger’s philosophy of Science, de Glazebrook, foi feita por Crupi

(Reframing Heidegger and Science, 2003), na qual aponta, com justeza, as virtudes e problemas da abordagem da autora. O livro de Crupi, Pressupore e interpretare (2002), também versando, em sua primeira parte, sobre a filosofia da ciência de Heidegger, embora menos extenso e menos abrangente, preenche, com propriedade, as lacunas apontadas no livro de Glazebrook, aprofunda outros pontos com argúcia, amplia o debate (apresentando, por exemplo, um capítulo todo dedicado à comparação entre Heidegger e Kuhn), e é, sem dúvidas, uma valiosa contribuição para a área.

13 Com a expressão “filosofia da ciência strictu sensu”, nos referimos ao âmbito das questões,

problemas e temas estrita e diretamente referidos às ciências, e cuja abordagem foi feita por aqueles que são tradicional e geralmente considerados filósofos da ciência, tais como Whewell, Popper, Kuhn, Lakatos etc. Marcamos, deste modo, desde já, a nossa posição no debate sobre se há uma filosofia heideggeriana da ciência, compartilhando a posição de Crupi: “Senz’altro la disputa [sobre se Heidegger é ou não um filósofo da ciência, no sentido estrito] è in qualche misura oziosa. È evidente che per poter chiamare Heidegger ‘filosofo dela scienza’ il concetto di filosofia della scienza deve essere sottoposto ad alcuni aggiustamenti e apliamenti rispetto a quello che guida la selezione degli autori classici nei manuali di questa disciplina. Né peraltro ci pare vi siano motivi decisivi per rifiutare tale ampliamento” (CRUPI, 2002, p. 25s). Assim, sempre que nos referirmos à “filosofia da ciência de Heidegger”, tomamos essa expressão lato sensu.

(17)

colaboração do aluno de Heidegger, W. Kamlah, “segue Heidegger na ideia de uma

fundação do saber científico em meio a uma práxis cooperativa e comunicativa já

bem sucedida” (GETHMANN, 1993, p. 202)

14

; ii) a mais arrojada e recente proposta

de Ginev de buscar uma superação da tradicional distinção entre “contexto de

descoberta” e “contexto de justificação”, através da propositura de um “contexto de

constituição”, que se baseia em uma “releitura da obra de Kuhn na perspectiva da

fenomenologia hermenêutica” (GINEV, 2006, p. 2), com vistas ao estabelecimento

de uma “hermenêutica forte da ciência”, que seja capaz de “revelar o ‘horizonte da

cotidianidade’ da pesquisa” (GINEV, 2006, p. 27)

15

.

No que diz respeito ao tema específico da nossa tese, a Física no

pensamento de Heidegger, os trabalhos já são bem mais escassos. De Joseph

Kockelmans, há o Phenomenology and physical science: an introduction to the

philosophy of physical Science, de 1966, que não é propriamente um trabalho sobre

a Física em Heidegger, mas antes, segundo a resenha de Kisiel (1967, p. 138), “uma

tentativa de aplicar o método fenomenológico à Física”, tomando por base as

reflexões sobre a ciência na obra de Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty: os

esforços do autor são dedicados ao delineamento, a partir do pensamento desses

filósofos, de uma teoria fenomenológica da ciência centrada na noção de

intencionalidade, que é aplicada à interpretação da Física, especialmente da Teoria

da Relatividade de Einstein

16

. Há ainda o artigo de Catherine Chevalley, Heidegger

and the physical sciences (1992), e o do físico italiano Enrico Gianetto, Heidegger

and the question of Physics (1999), ambos versando sobre os escritos de Heidegger

a partir dos anos 30

17

, que abarcam o período da filosofia heideggeriana da ciência

denominado por Kisiel de “concepção epocal de ciência” (cf. KISIEL, 1973, p. 231).

14 O ônus e/ou bônus dessa constatação pertencem totalmente a Gehtmann, que não apenas

identifica claramente uma apropriação das ideias de Ser e Tempo pela teoria construtivista da ciência da Escola de Erlangen, como também discorre sobre as semelhanças e diferenças entre ambas (cf. GETHAMANN, 1993, p. 203ss). Uma avaliação a esse respeito está fora do nosso alcance.

15 Posteriormente faremos outras referências ao trabalho de Ginev, mas também apenas na medida

em que toca os nossos próprios pontos de discussão.

16 Por estar esgotado, infelizmente não tivemos acesso ao livro de Kockelmans, para melhor avaliá-lo.

De todo modo, dada a generalidade da abordagem do autor e, a julgar pela resenha de Kisiel - que afirma: “Since this book is intended to be only a series of prolegomena to any future forays into the phenomenology of physics, the author simply poses without answering some of the questions with regard to the ontological status of physical entities” (KISIEL, 1967, p. 139) -, acreditamos que dificilmente poderia ser de decisiva utilidade para o nosso trabalho.

17 Gianetto também escreveu o livro Un Fisico delle Origini: Heidegger la Scienza e il Rapporto con la Natura, ao qual também não tivemos acesso e, por isso, não podemos avaliar, mas que, aparentemente, também foca os escritos de Heidegger a partir dos anos 30.

(18)

Segundo a classificação de Kisiel - que é geralmente aceita e se tornou,

portanto, padrão -, a filosofia da ciência de Heidegger possui três fases que

espelham as suas inclinações filosóficas mais marcantes ao longo de seu Denkweg:

uma fase lógico-epistemológica, seguida pela fase ontológico-existencial e, depois,

pela fase epocal. Essas fases corresponderiam respectivamente aos períodos

aproximados de 1912-1916, 1925-1929 e 1935 em diante (cf. KISIEL, 1973;

GETHMANN, 1993, p. 176). Nosso trabalho situa-se, assim, no período da filosofia

da ciência de Heidegger compreendido entre os anos 1925 e 1929, no qual se dá

elaboração do projeto de uma Ontologia Fundamental, em seus esboços prévios

(Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, Logik: die Frage nach der Wahrheit),

sua exposição principal (Sein und Zeit), e seus desdobramentos mais imediatos,

particularmente no respeitante ao conceito existencial de ciência (Einleitung in die

Philosophie, Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der reinen Vernunft),

indo até a sua transformação em uma Metafísica do Dasein (Kant um das Problem

der Metaphysik)

18

. A delimitação do Corpus foi feita tomando Ser e Tempo como

ponto focal e fonte principal da nossa análise, a partir do qual selecionamos os

textos mais relevantes (para o nosso tema específico - Física), que gravitam no seu

entorno mais próximo

19

, e não tem, por conseguinte, a intenção de abarcar todos os

18 Todas as traduções dos trechos das obras de Heidegger citados no corpo deste trabalho são

nossas, assim como as traduções das demais citações de obras e artigos em língua estrangeira listados na bibliografia. Trechos da obra de Heidegger que considerarmos importantes e/ou de difícil tradução serão também apresentados no original, em notas de rodapé abertas a partir das traduções feitas no corpo do texto. Afora esses casos, não transcreveremos os trechos originais das traduções, tanto para evitar um volume desnecessário ao trabalho, quanto porque acreditamos que a Gesamtausgabe pode ser mais facilmente acessada pelos examinadores e possíveis leitores, para fins de conferência da adequação das traduções, diferentemente dos artigos dos comentadores e das obras de outros autores, cujas citações no corpo do texto, quando apresentadas em destaque e com recuo, serão sempre acompanhadas da transcrição dos originais, em notas de rodapé, para facilitar o cotejamento com as nossas traduções. As referências às obras de Heidegger serão feitas conforme o padrão: SZ, para Sein und Zeit, e GA, seguida do volume referido, para as demais obras. A Crítica da Razão Pura e os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza serão referidos também conforme o usual: KrV e MAN, respectivamente, embora as citações sejam feitas a partir das traduções indicadas nas referências bibliográficas, e apenas cotejadas (e modificadas, quando necessário) com as obras originais.

19 Esse procedimento pressupõe outrossim a tese metodológico-interpretativa de uma unidade

fundamental dos escritos de Heidegger compreendidos entre os anos 1917 e 1928, aventada por Gethmann, à qual subscrevemos: “der Ansatz fruchtbar ist, die Vorlesungen Heideggers von 1917 bis 1928 im Sinne einer Vor- und Zeitgeschichte von Sein und Zeit zu lesen, d. h. als tastende und suchende Vorbereitung, als philosophiehistorische Aus- und Weiterführung sowie als kritische und diskussionsbezogene Einbettung der Philosophie von Sein und Zeit” (GETHMANN, 2002, p. 139). A inclusão de Kant und das Problem der Metaphysic em nossa análise se justifica particularmente por ser a principal obra sobre Kant, no período pré-virada, na qual seria possível investigar os desdobramentos da alusão, em Ser e Tempo, à “Lógica Transcendental” kantiana como uma ontologia regional da natureza, já que o próprio Heidegger considera o seu Kantbuch como um “complemento” da obra de 1927 (cf. GA 3, XVI).

(19)

textos do período supramencionado, ainda que abordem em alguma medida o tema

da ciência.

Este trabalho versa, portanto, sobre um tema pouco explorado – a Física no

pensamento de Heidegger –, com foco em um período ainda menos explorado (ou

talvez mesmo absolutamente inexplorado de forma sistemática, como aqui

tencionamos fazer

20

), e pretende se constituir como uma contribuição para o

esclarecimento de alguns aspectos, e para o debate de certas questões,

concernentes a assim chamada Filosofia da Ciência de Heidegger, visando não uma

mera reconstrução do seu pensamento sobre a Física, no período indicado, mas

antes:

I) Uma inserção em um debate concernente a interpretações sobre as

relações entre: a) origem existencial da ciência e modificação da compreensão de

ser; b) conceito existencial de ciência e desmundanização do mundo; c)

desmundanização do mundo e projeto matemático da natureza; com a defesa das

teses de que 1) a origem existencial da postura científica em geral não se identifica,

e não pode se identificar, com modificação da compreensão de ser (contra a

interpretação de Gethmann); 2) a ideia de desmundanização do mundo não

pertence essencialmente ao conceito existencial de ciência (contra as interpretações

de Ginev, Gordon e Rouse); 3) a desmundanização do mundo é momento inelidível

do projeto matemático da natureza (contra a interpretação de Gordon); 4) a correta

compreensão do papel da Física na exposição heideggeriana do conceito existencial

de ciência é decisiva para uma determinação mais coerente daquelas relações.

II) Uma problematização: a) da compreensão heideggeriana do acesso ao

ente nele mesmo através das leis de Newton; b) de uma determinada noção do ente

“nele mesmo” vinculada às (brevíssimas, mas suficientemente eloquentes)

abordagens às leis de Newton e à Física de Einstein, em Ser e Tempo e nos

Prolegomena; com a defesa das teses de que: 5) a asserção de Heidegger de que,

com as Leis de Newton, o ente se tornou acessível “nele mesmo”, é baseada em um

realismo ingênuo, porque epistemologicamente desinformado; 6) a noção de acesso

ao ente (natureza) “nele mesmo”, tal como ele era antes de ser descoberto pelas

20 Até onde sabemos, nas línguas que nos são acessíveis, o único trabalho mais específico sobre a

Física no pensamento de Heidegger, neste período, é o artigo de Adam Beck, Heidegger and the Relativity Theory: crisis, authenticity and repetition (2005), baseado em Ser e Tempo e na Introdução à Filosofia.

(20)

Leis de Newton e independentemente da relação científica que o Dasein com ele

estabelece, é incompatível com o caráter transcendental da Ontologia Existencial de

Heidegger e compromete justamente os aspectos mais promissores de sua filosofia

da ciência neste período.

Tendo em vista, no entanto, a maior abrangência possível das

ramificações temáticas vinculadas ao pensamento de Heidegger sobre a Física no

período ontológico-existencial, estruturamos o nosso trabalho do seguinte modo:

No primeiro capítulo, pretendemos expor e analisar a proposta

heideggeriana de fundamentação filosófica das ciências mediante a elaboração de

ontologias regionais, no sentido de uma “lógica produtiva”. Mostraremos, en passant,

a semelhança de sua proposta à de William Whewell, e, em seguida,

evidenciaremos as origens husserlianas dos aspectos mais básicos da proposta de

Heidegger, bem como a sua provável divergência de Husserl quanto ao “como” de

sua realização (ontologia-hermenêutica); demonstraremos também que a ideia

heideggeriana de fundação fenomenológica das ciências compartilha com a de

Husserl um caráter fundacionalista “funcional”. Argumentaremos, ainda, que a

proposta heideggeriana (assim como a husserliana) de fundação filosófica das

ciências é anacrônica e representa um dos elementos das suas reflexões sobre as

ciências que não encontra paralelo, e certamente também não encontraria lugar, no

campo atual da Filosofia da Ciência stricto sensu.

No segundo capítulo, procuraremos reconstruir e esclarecer a alusão feita por

Heidegger, em Ser e Tempo, à “Lógica transcendental” kantiana como uma ontologia

regional da natureza - e, por conseguinte, como uma fundação ontológica da Física

matemática -, recorrendo a alguns escritos do período de 1925 a 1929, nos quais

Heidegger dedica-se mais ou menos sistematicamente à filosofia kantiana.

Examinaremos primeiramente o parágrafo 25 do curso Lógica: a pergunta pela

verdade, no qual aparece uma versão mais elaborada da declaração de Ser e

Tempo, mas que ao mesmo tempo reduz a suposta ontologia kantiana da natureza à

parte da Analítica Transcendental que expõe os princípios e conceitos abarcados

pelas analogias da experiência. Abstraindo-se de sua leitura ontológica da Crítica da

Razão Pura - já presente naquele curso, e que não será avaliada enquanto tal -

mostraremos, com base nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da

Natureza, de Kant, que a interpretação heideggeriana, ao identificar as categorias da

(21)

classe das relações e as analogias da experiência como os conceitos e princípios

fundamentais da Física matemática é, no mínimo, reducionista. Em seguida,

avaliaremos como e em que medida a nova interpretação heideggeriana da primeira

crítica de Kant, no Kantbuch, como uma “fundação da metafísica”, não mais da

Física, aponta também para uma fundamentação ontológica da Física.

No terceiro capítulo, abordaremos as relações entre o conceito existencial de

ciência e a Física, primeiramente buscando estabelecer – através da discussão de

algumas teses interpretativas clássicas concernentes à origem e ao conceito

existencial da ciência – o lugar da Física na exposição heideggeriana daquele

conceito e, em seguida, buscando elucidar as indicações de Heidegger dos

momentos básicos da tematização científica com relação à Física. Em vista disso, no

primeiro tópico do capítulo, trataremos da questão da origem do comportamento

científico, em aberta discussão com a interpretação pragmatista de Gethmann (e,

por tabela, com a de Rouse); no segundo tópico, ainda debatendo a interpretação de

Gethmann, defenderemos que a gênese existencial da ciência em geral, a despeito

do que parece sugerir o próprio título do parágrafo 69b de Ser e Tempo, não se

identifica com a modificação da compreensão de ser, e que, naquele parágrafo, a

modificação da compreensão de ser é um elemento posto em jogo em estrita

referência à gênese ontológica da Física matemática; no terceiro tópico,

explicaremos a ideia de desmundanização do mundo em sua estrita vinculação à

tematização físico-matemática, e mostraremos (contra as intepretações de Gordon e

de Ginev) a pertinência e adequação dessa ideia como designação do processo de

constituição do objeto temático da Física moderna e, portanto, como um momento

inelidível do “projeto matemático da natureza”; argumentaremos, ainda, que a ideia

de desmundanização do mundo é a versão fenomenológica de um lugar comum na

Filosofia da Ciência strictu sensu, respeitante à descrição do modus operandi mais

básico da investigação científica no campo da Física Clássica. Por fim, assumiremos

a tarefa de tornar o mais claro quanto possível - levando em conta o fato de

estarmos tratando de “um homem cuja reputação não é baseada na clareza de sua

exposição”, como lembra Richardson (2012, p. 27) – as brevíssimas indicações de

Heidegger sobre os momentos básicos da tematização relativamente à Física, a

saber: a articulação da compreensão de ser, a delimitação da região temática e o

delineamento da conceitualidade adequada.

(22)

No quarto e último capítulo, elucidaremos a menção heideggeriana à Física

de Newton, apresentada no contexto da sua exposição do conceito originário de

verdade, focando especialmente a sua declaração de que, com as leis de Newton, “o

ente nele mesmo tornou-se acessível para o Dasein”. Com base na interpretação

desta passagem a partir dos fenômenos da evidenciação (Ausweisung) e da

comprovação (Bewährung), explicados no primeiro tópico do parágrafo 44 de Ser e

Tempo, problematizaremos aquela declaração de Heidegger, mostrando as enormes

dificuldades inerentes à fundamentação empírica da verdade dos axiomas

newtonianos do movimento, apontadas por físicos e filósofos da ciência como Hertz,

Poincaré e Kuhn, e mencionando a insatisfação do próprio Newton com relação à

sua explicação da gravitação universal, o que nos levará a questionar a base

heideggeriana para afirmação de uma mostração do ente “nele mesmo” por meio

das leis de Newton, e apontar o realismo científico ingênuo de Heidegger a esse

respeito. Ensaiaremos também uma interpretação da forma como Heidegger

entende as relações entre a Física newtoniana e a Teoria da Relatividade de

Einstein, com base nas referências a ambas, em Ser e Tempo e nos Prolegomena.

Para fundamentar a pretendida interpretação, esforçar-nos-emos por esclarecer as

concepções heideggerianas de “crise das ciências” e “revolução”, em comparação

com as concepções kuhnianas, buscando – na contracorrente das interpretações

mainstream concernentes a esse ponto – realçar os contrastes entre ambas as

concepções (sem, no entanto, negar as semelhanças) e mostrar como a noção

heideggeriana de “revolução”, em referência à Teoria da Relatividade de Einstein,

parece ter mais a ver com a concepção de “desenvolvimento por acumulação” que

com a concepção kuhniana de mudança de paradigma. Em seguida, evidenciaremos

o realismo científico “robusto”, asserido por Heidegger em Ser e Tempo e nos

Prolegomena adjuntamente às suas menções às leis de Newton e à Teoria da

Relatividade de Einstein, e defenderemos que este realismo científico robusto

(também identificado por Dreyfus) não se permite ser lido como um tipo de realismo

empírico (como propõe Blattner) e é problemático (o que não é visto por Dreyfus,

mas por Gordon, ao seu modo) porque incompatível com o aspecto transcendental

da fundamentação ontológico-hermenêutica das ciências, tal como Heidegger a

concebe, tanto em Ser e Tempo, quanto em sua Introdução à Filosofia (texto no

qual, a propósito, o realismo científico robusto de Heidegger não mais aparece). Por

fim, sustentaremos que o realismo científico robusto de Heidegger, em Ser e Tempo

(23)

e nos Prolegomena, compromete o aspecto mais promissor da filosofia

transcendental de Heidegger (consoante a avaliação de Tugendhat) e, mais

especificamente, da filosofia da ciência de Heidegger (na avaliação de Heelan), que

é a revelação do horizonte ontológico-hermenêutico-histórico de desvelamento dos

entes, isto é, o caráter alethéico ínsito à sua concepção existencial de ciência.

(24)

1. ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA COMO FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: A

ELABORAÇÃO E CLARIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS.

Já na introdução de Ser e Tempo, no parágrafo 3, Heidegger defende a

possibilidade e a necessidade de se determinar filosoficamente os “conceitos

fundamentais” (Grundbegriffe) das ciências particulares, de modo a transformá-los

em base e guia seguros para as pesquisas factuais. Para Heidegger, expor e

esclarecer os conceitos fundamentais das ciências implica, por sua vez, em

descerrar a constituição de ser dos entes abrangidos por um determinado âmbito do

saber ou “área temática” (Sachgebiet), que se encontra sob o encargo de uma dada

ciência. A execução de tal tarefa só adquire sentido porque Heidegger considera que

“as ciências, como quaisquer outras atividades humanas, devem funcionar a partir

de uma compreensão a priori de ser dos entes com os quais ela lida” (ROUSE,

2005, p. 126). A proposta aventada - que pressupõe a fenomenologia

21

como método

- é, portanto, de uma investigação ontológica

22

de um domínio já previamente dado

de entes, tendo em vista uma “fundação das ciências” (SZ, p. 10), a partir da

clarificação de seus conceitos basilares e exibição da respectiva constituição de ser

a elas subjacentes. Segundo Heidegger,

Conceitos fundamentais são as determinações nas quais a área temática [Sachgebiet], que está na base de todos os objetos temáticos de uma ciência, adquire a compreensão prévia, que guia toda investigação positiva. Esses conceitos recebem, portanto, sua genuína legitimação e “fundamentação” somente em uma correspondente investigação prévia da própria área temática. Mas, na medida em que cada uma dessas áreas é obtida a partir do âmbito do ente mesmo, tal pesquisa prévia que elabora conceitos fundamentais não significa outra coisa senão uma interpretação [Auslegung] desse ente com relação à constituição fundamental de seu ser. Tal pesquisa tem de preceder as ciências positivas; e o pode. O trabalho de Platão e Aristóteles é prova disso. Tal fundação das ciências diferencia-se fundamentalmente da “lógica” retardatária, que investiga o estado ocasional de uma ciência com relação a seu “método”. Ela [a fundação das ciências] é lógica produtiva, no sentido de que ela, por assim dizer, pro-jeta-se [vorspringt] em um determinado domínio de ser, o abre, pela primeira vez, em sua constituição de ser, e torna disponíveis para as ciências positivas as estruturas obtidas, enquanto transparentes indicações do questionar (SZ, p. 10, grifo do autor).

21 “Phänomenologie ist Zugangsart zu dem und die ausweisende Bestimmungsart dessen, was

Thema der Ontologie werden soll. Ontotogie ist nur als Phänomenologie möglich” (SZ, p. 35, grifo do autor). “Sachhaltig genommen ist die Phänomenologie die Wissenschaft vom Sein des Seienden – Ontologie” (SZ, p. 37).

(25)

Note-se que pertence à proposta heideggeriana de uma fundamentação

ontológica das ciências a intenção de, mediante a elaboração filosófica

23

dos seus

conceitos basilares, proporcionar diretrizes teóricas para a pesquisa científica. Com

o conceito de “lógica produtiva”, Heidegger pretende: 1) recuperar para a filosofia o

espaço e a tarefa, que seriam seus de pleno direito, de reflexão sobre as bases

conceituais das ciências, reflexão esta que, em sua época, estava sendo realizada

pelas próprias ciências, no contexto da assim chamada “crise de fundamentos” (cf.

SZ, p. 9; GA 20, p. 3)

24

; 2) ressaltar o caráter prévio

25

da fundação filosófica tanto

das ciências já existentes, “pré-dadas” – mediante a reformulação dos seus

23“Ontologie und Phänomenologie [...] charakterisieren die Philosophie selbst nach Gegenstand und

Behandlungsart. Philosophie ist universale phänomenologische Ontologie, ausgehend von der Hermeneutik des Daseins” (SZ, p. 38, grifo nosso).

24 Rouse assinala que “Heidegger noted with approval (1953: 9–10) the extent to which many of the

contemporary scientific disciplines (specifically mathematics, physics, biology, the historical sciences, and theology) were themselves engaged in renewed reflections upon their conceptual foundations, and he saw such developments as appropriately philosophical turns within those disciplines” (ROUSE, 2005, p. 126).

25 Como se vê, a proposta de Heidegger, em Ser e Tempo, particularmente no trecho supracitado, é,

ipsis verbis, não só de uma “Grundlegung der Wissenchaften”, mas desta como uma “produktive Logik”, que, como tal, “muß den positiven Wissenschaften vorauslaufen; und sie kann es” (SZ, p. 10), o que é dito também nos Prolegomena, de modo que resulta flagrantemente incorreta a interpretação de Glazebrook que, do fato que “In Being and Time Heidegger argued that the sciences cannot and should not wait for philosophy to do its ontological work before they proceed (BT 76/5Z 51)” - o que é correto – conclui que “He argued there that the task of philosophy is not one of grounding, but of recapitulating ontic discovery in greater ontological transparency” (GLAZEBROOK, 2000, p. 34, grifo do autor) – o que é falso. É verdade que a tarefa da fundação das ciências, como será mostrada posteriormente, consiste, em grande medida, em tornar transparentes, mediante investigação ontológica, os conceitos básicos já operantes nas ciências, isso, porém, não significa “recapitulação”, mas fundação, em sentido próprio. Também tocando no ponto da anterioridade das pesquisas ontológicas de fundação das ciências, Joseph Rouse faz o seguinte comentário: “Such interrogation of being inquires into the a priori conditions of the possibility both of sciences that investigate specific types of entities and of the ontologies that ground them, but it would not itself be an a priori inquiry” (ROUSE, 2005, p. 126, grifo nosso), e após citar os filósofos mencionados por Heidegger que, na tradição, realizaram pesquisas deste tipo, a saber: Platão, Aristóteles e Kant, Rouse acrescenta que o trabalho deste último, por exemplo, “was not ‘‘prior’’ to Newton, but a philosophical (ontological) engagement with the project of Newtonian physics” (ROUSE, 2005, p. 127). O comentário de Rouse é completamente pertinente, nos dois trechos citados, desde que a pesquisa dos conceitos fundamentais não seja entendida como “investigação a priori”, como afirma Rouse, no sentido tradicional de apriori que ele mesmo esclarece, em nota de rodapé, como àquele ao qual Heidegger se opõe, isto é, o “sense of the a priori to post-Cartesian conceptions, for which 'the term a priori has been attributed first and foremost to knowing’ such that ‘knowledge is a priori when it is not based upon empirical inductive experience,’ and is thus ‘accessible first and only in the subject as such’”(ROUSE, 2005, p. 139). Porém, que a ontologia kantiana da natureza - conforme Heidegger interpreta a Lógica Transcendental de Kant - não tenha sido “anterior” à Física de Newton, não quer dizer que pesquisas ontológicas deste tipo não possam ser anteriores às investigações científicas e que não seja justamente isso o que Heidegger propõe adjuntamente ao conceito de “lógica produtiva”. Ao contrário. Segundo Heidegger, a pesquisa ontológica de fundação das ciências positivas – repetimos – “muß den positiven Wissenschaften vorauslaufen; und sie kann es” (SZ, p. 10). Ela deve e pode, sem dúvida, ser “investigação a priori”, também no sentido de ser anterior, predecessora das pesquisas científicas. Ao nosso ver, quem melhor compreendeu este ponto e, inclusive, citou convincentes exemplos do que Heidegger poderia ter em mente, ao refererir-se às pesquisas ontológicas prévias de Platão e Aristóteles, foi Crupi (cf. CRUPI, 2002, p. 48 – ver citação no início do segundo capítulo deste trabalho).

(26)

conceitos fundamentais, com base em investigação ontológica originária, que traz

“as coisas elas mesmas, as quais são interrogadas [pelas ciências], a uma

experiência originária, antes de seu cobrimento por meio de uma determinada

interrogação científica” (GA 20, p. 6), de modo a assim poder retroalimentar as

ciências com “transparentes indicações para o questionar”, potencialmente

transformadoras ou, quiçá, revolucionárias

26

– quanto de ciências ainda não

existentes, isto é, da fundação de “ciências possíveis”, a partir da pesquisa da

constituição de ser de “possíveis objetos” (cf. GA 20, p. 2s). Destarte, Heidegger,

sem dúvida, tanto tinha a “ambição de reformar e refundar as ciências de seu tempo”

(CRUPI, 2002, p. 52), quanto a pretensão de abrir novos campos científicos, como

fica claro em seu curso Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (1925):

Porque a realidade – Natureza bem como História – apenas pode ser penetrada, por assim dizer, num saltar sobre a Ciência, este abrir propriamente filosófico, pré-científico, destas realidades, que eu nomeio como Lógica produtiva, é abertura prévia e penetração conceitual de possíveis domínios de objetos para as Ciências, que não vai atrás de determinado Faktum de uma casual, historicamente pré-dada ciência, e a investiga em sua estrutura, como [faz] a teoria tradicional da ciência, mas antes uma Lógica que salta previamente no campo objetivo primário de uma possível ciência e através da abertura da constituição de ser deste campo objetivo coloca primeiramente à disposição a estrutura fundamental do possível objeto desta ciência. Este é o processo da Lógica originária, como ela foi exposta por Platão e Aristóteles – embora apenas em limites muito estreitos. Desde então o conceito de lógica foi soterrado e não mais compreendido. A fenomenologia tem assim a tarefa de tornar compreensível o domínio temático antes da elaboração científica e sobre esta base primeiramente [tornar compreensível] esta própria [elaboração] (GA 20, p. 2s, itálicos do autor, negrito nosso)27.

26 Crupi nota que “Heidegger ha sicuramente coltivato l’ambizione di riformare e rifondare le scienze

del suo tempo, radicalizzando Aristotele e Kant e insieme i faticosi sforzi di Dilthey. Questo ci pare abbastanza evidente nelle prime pagine dei Prolegomeni alla storia del concetto di tempo” (CRUPI, 2002, p. 52). De fato, nos Prolegomena, esta ambição evidencia-se particularmente quando Heidegger, após apresentar “die entscheidende Frage und die Stelle, an der die Krisis zur Beantwortung kommt”, a saber: “die Sachen selbst, nach denen gefragt wird, zu einer ursprünglichen Erfahrung – vor ihrer Verdeckung durch eien bestimmte wissenschaftliche Befragung – zu bringen” (GA 20, p. 6), afirma: “Hier beschränken wir uns auf die beiden Gegenstandsgebiete Geschichte und Natur. Ihre ursprüngliche Seinsart soll herausgestellt werden” (GA 20, p. 6). Mas, na interpretação de Crupi, “questa ambizione è, già in Essere e tempo e sempre più marcatamente in seguito, abbandonata in favore di un atteggiamento teoreticamente più accorto e di uno spirito che potremmo chiamare autenticamente kantiano”(CRUPI, 2002, p. 52). Contudo, entendemos que, através da manutenção, em Ser e Tempo, do conceito de “lógica produtiva” - que é o modo, apresentado nos Prolegomena, como a Filosofia deve responder à crise das ciências - esta “ambição” de Heidegger, talvez não para a si, mas para a filosofia enquanto ontologia fenomenológica, certamente ainda permanece em sua obra-mestra.

27 Por ser um trecho importante e, ao mesmo tempo, de tradução relativamente difícil, transcrevemos

aqui, excepcionalmente, o trecho original: “Weil zur Wirklichkeit – Natur sowohl wie Geschichte – nur vorgedrungen werden kann gewissermaßen im Überspringen der Wissenschaften, wird dieses vorwissenschaftliche, eigentliche philosophische Erschließen dieser Wirklichkeiten zu dem, was ich als produktive Logik bezeichne, vorausgehende Erschließung und begriffliche Durchdringung

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