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Representações do estrangeiro em textos de livros didáticos de português para estrangeiros publicados no Brasil

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL

TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO

Niterói 2017

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TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO

REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de concentração: Linguística.

Orientadora: Profª. Drª. Norimar Pasini Mesquita Júdice (UFF)

Niterói 2017

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F478 Filardo, Teresa Palazzo Schmitt.

Representações do estrangeiro em textos de livros didáticos de português para estrangeiros publicados no Brasil / Teresa Palazzo Schmitt Filardo. – 2017.

161f. ; il.

Orientadora: Norimar Pasini Mesquita Júdice.

Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2017.

Bibliografia: f. 137-140.

1. Ensino da língua portuguesa. 2. Estrangeiro. 3. Material didático. 4. Representações sociais. I. Júdice, Norimar Pasini Mesquita. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título

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TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO

REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de concentração: Linguística.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Norimar Pasini Mesquita Júdice (Orientadora)

Universidade Federal Fluminense – UFF

______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Patrícia Maria Campos de Almeida

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lygia Maria Gonçalves Trouche

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Dedico este estudo à memória do meu pai, Nicola Filardo - o estrangeiro mais importante da minha vida.

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Sou grata ao Universo, que não poderia ter me provido melhor com tanta saúde e possibilidades nesta vida.

Sou grata à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Norimar Júdice, por seu profissionalismo, paciência, disposição e sabedoria com que me conduziu.

Sou grata à Prof.ª Dr.ª Lygia Trouche e à Prof.ª Patrícia Almeida pelo carinho com que acolheram meu projeto de pesquisa.

Sou grata à equipe da Secretaria da Pós-graduação do Instituto de Letras da UFF pela incansável disposição para atender minhas solicitações.

Sou grata ao Arquivo Nacional por me conceder o tempo necessário para concluir meu curso de mestrado.

Sou grata ao atual Coordenador-geral de Acesso e Difusão Documental do Arquivo Nacional, Diego Barbosa da Silva, por seu empenho em viabilizar meu afastamento, para que eu pudesse finalizar este estudo.

Sou grata à minha ex-chefe Helena Miranda por sua generosidade e compreensão.

Sou grata aos meus pais, Sylvia e Nicola, por me trazerem a este mundo e tão carinhosamente cuidarem de mim, sempre acreditando e investindo nas minhas virtudes. Sem eles, eu não teria chegado até aqui.

Sou grata aos meus irmãos, Daniela e Paulo, e aos meus sobrinhos, Ricardo e Enzo, por terem compreendido minhas ausências.

Sou grata às minhas amigas Luciana da Hora e Blanca Velasco por acreditarem em mim sempre.

Sou grata ao meu amigo Cláudio Braga por me ajudar, com suas palavras de incentivo, a vencer mais esse desafio na vida.

Por fim, sou muito grata ao meu Príncipe, José Luiz Portela Gómez, amor e companheiro de todas as horas. Sou grata por seu empenho em me dar o melhor nesta jornada de estudos e sempre. Sou grata por compreender minhas ausências, minha montanha de livros e minha tagarelice sem fim, e por me mostrar os benefícios do agir.

Sou grata, muito grata.

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Seu cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro.

Cartaz nas ruas de Berlim (1994). Extraído de Identidade, de Z. Bauman (Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 33)

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RESUMO

Este estudo enfoca as representações do estrangeiro em textos de oito livros didáticos de Português para Estrangeiros editados no Brasil nos anos 40,50, 60, 70, 80, 90, 2000 e 2010. Considerando o contexto político e social dessas décadas e recorrendo à Teoria das Representações Sociais, com base em Moscovici e Jodelet, pesquisamos, em textos verbais e não verbais elaborados ou selecionados pelos autores dos materiais em foco, a existência de representações do estrangeiro e a maneira como este é configurado pela palavra e pela imagem. Buscando as representações do estrangeiro, constatamos sua presença em todas as obras examinadas, sendo representado de várias formas e associado a vários contextos de origem. Verificamos que a representação do estrangeiro como imigrante foi a que ocorreu com mais frequência, sendo encontrada em todos os didáticos desde a década de 1960. Também apuramos uma incidência crescente da presença dos estrangeiros nos textos dos materiais didáticos ao longo do tempo, com uma ampliação do número de representações e dos contextos de origem associados a eles. Este estudo mostrou que os didáticos refletiram a posição do estrangeiro na dinâmica das relações sociais de cada época e deixou evidente a impossibilidade de se descolar a produção desses materiais da conjuntura histórica de seu tempo.

Palavras-chave: Português para Estrangeiros; Materiais Didáticos de Português para Estrangeiros; Representações do Estrangeiro.

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ABSTRACT

This study focuses on representations of foreign individuals in texts comprised in eight textbooks of Portuguese for Foreigners published in Brazil in the years 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1990, 2000 and 2010. Taking into account the political and social context related to each decade and applying the Social Representation Theory based on Moscovici and Jodelet, we searched for the representations of foreigners in the verbal and nonverbal texts selected or produced by the authors of the textbooks chosen for this research. We examined the way the foreign individuals were portrayed by word or image. As a result of our investigation, we found out that there were such representations in all the textbooks studied, being the foreigner represented in many ways and associated to various origins. We verified that the foreign individual was mostly represented by the figure of the immigrant, which was detected in all the referred textbooks from 1960 on. We also perceived that the presence of foreign individuals increased in the investigated textbooks over time, with an increment in the number of representations and origins associated to the foreigners. This study showed that the textbooks reflected the position of the foreign individual in the dynamics of the social relations of each decade. It also made evident the impossibility of detaching the production of such textbooks from its historical context.

Keywords: Portuguese for Foreigners; Textbooks of Portuguese for Foreigners; Representations of Foreigners.

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – Representações em A língua portuguesa para estrangeiros...121 QUADRO 2 – Representações em Português para estrangeiros – 1º livro...122 QUADRO 3 – Representações em Mil palavras em português para estrangeiros..123 QUADRO 4 – Representações em Português do Brasil para estrangeiros I:

conversação, cultura e criatividade...124 QUADRO 5 – Representações em Falando...lendo...escrevendo: português: um curso para estrangeiros...125 QUADRO 6 – Representações em Interagindo em português: textos e visões do Brasil – vol. I...126 QUADRO 7 – Representações em Terra Brasil: curso de língua e cultura...128 QUADRO 8 – Representações em Viva!: língua portuguesa para estrangeiros...129

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...11

2 REFERENCIAL TEÓRICO...17

2.1 As representações sociais...17

2.2 Materiais didáticos para ensino de línguas estrangeiras...22

2.3 Os livros didáticos e os gêneros textuais...27

2.4 O estrangeiro ...30

2.4.1 Identidade, diferença e cultura...30

2.4.2 A condição de estrangeiro ...37

2.4.2.1 O exilado...39

2.4.2.2 O imigrante ...40

2.4.2.3 O expatriado ...42

2.4.3 O estrangeiro imigrante no Brasil ...43

3 METODOLOGIA...49

4 ANÁLISE DO CORPUS...56

4.1 Década de 1940...56

4.1.1 Contexto histórico...56

4.1.2 Representações do estrangeiro na obra A língua portuguesa para estrangeiros...60

4.2 Década de 1950...63

4.2.1 Contexto histórico...63

4.2.2 Representações do estrangeiro na obra Português para estrangeiros – 1º livro...66

4.3 Década de 1960...70

4.3.1 Contexto histórico...70

4.3.2 Representações do estrangeiro na obra Mil palavras em português para estrangeiros...72

4.4 Década de 1970...79

4.4.1 Contexto histórico...79

4.4.2 Representações do estrangeiro na obra Português do Brasil para estrangeiros 1: conversação, cultura e criatividade...82

4.5 Década de 1980...86

4.5.1 Contexto histórico...86

4.5.2 Representações do estrangeiro na obra Falando...lendo...escrevendo: português: um curso para estrangeiros...88

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4.6 Década de 1990...93

4.6.1 Contexto histórico...93

4.6.2 Representações do estrangeiro na obra Interagindo em português: textos e visões do Brasil – volume I...96

4.7 Década de 2000...101

4.7.1 Contexto histórico...101

4.7.2 Representações do estrangeiro na obra Terra Brasil: curso de língua e cultura...103

4.8 Década de 2010...108

4.8.1 Contexto histórico...108

4.8.2 Representações do estrangeiro na obra Viva!: língua portuguesa para estrangeiros – volumes 1, 2 e 3...112

5 RESULTADOS...121

6 CONCLUSÕES...134

REFERÊNCIAS...137

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1 INTRODUÇÃO

Meu interesse pela presente pesquisa surgiu, inicialmente, a partir de minha curiosidade acerca da relação entre identidade, língua e cultura. Por passar um tempo imersa em estudos sobre a política externa brasileira, inquietei-me com as mudanças na trajetória das posições diplomáticas do Brasil ao longo de sua vida como nação politicamente independente. Comecei a questionar os conceitos, as visões, os valores, as razões escolhidas por uma nação para traçar sua existência, seu rumo social, político, econômico e cultural. Vinha-me sempre à mente a vontade de comparar a unidade - um indivíduo com o todo - um país, por exemplo. Se um ser humano constrói sua história de tantas maneiras, seria possível conceber uma nação como um ser que se forja, se molda, muda, renasce? Considerando isso possível, como seria feito? No discurso? Seria a tão falada ‘identidade nacional’? Essa identidade seria fixa ou flutuante? Seria imutável com o passar dos anos?

Adicionalmente, uma angústia resultante da complexa tarefa de ensinar línguas estrangeiras aguçou em mim um interesse maior por minha língua materna. Ao longo de meus vinte e um anos de experiência como professora de língua inglesa e de meus quatro anos como professora de língua espanhola, demorei a perceber que, no ensino de uma língua estrangeira, sendo professor e alunos falantes da mesma língua materna, estão todos no mesmo ponto de partida em relação à língua ensinada: esta é estrangeira para todos. Nessa estrutura de ensino de língua estrangeira, em que professor e alunos são patrícios, as representações do estrangeiro muito provavelmente são compartilhadas entre professor e aprendizes, ocupando o professor uma posição estratégica no sistema de ensino, pois é ele, conforme nos ensina Zarate (1995, p.11), que constrói o espaço de interseção entre as semelhanças e as diferenças, entre o interior e o exterior, o longe e o perto. Ao me dar conta disso, questionei-me sobre a possibilidade de inverter meu caminho no ensino de língua: como professora de língua estrangeira para brasileiros, estava partilhando o mesmo ponto de partida com os aprendizes; como seria, então, ensinar minha língua materna como língua estrangeira? Como seria apresentar minha língua mãe e a cultura na qual eu estava inserida para quem não partilhava comigo o mesmo ponto de partida? Como seria ser estrangeira de mim mesma?

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Somado à minha curiosidade e angústia, está o fato de ter convivido, desde que nasci, com a figura de um não patrício, meu pai. Meu genitor nasceu na Itália e veio para o Brasil aos 20 anos de idade, em 1958. Transferiu-se para esta terra para “fazer a América”. Nos nossos 36 anos de convivência, sempre tive presente a sua essência de estrangeiro, tendo em vista que, embora tenha vivido no Brasil por 52 anos, meu pai nunca conseguiu se afastar de seu sotaque de falante não nativo da língua portuguesa falada no Brasil. No entanto, aos meus olhos, meu pai não era um “de fora”. Era um diferente que estava dentro. A presença marcante desse “estrangeiro” em minha vida facilitou minha compreensão e aceitação da diversidade, do outro, e estimulou meu interesse pela vida daquele que sai do colo de sua mãe – corpo, terra, língua – para nascer de novo em outro lugar. Como seria ser estrangeiro?

Meus questionamentos sobre como ser um professor que ensina sua língua materna para estrangeiros não são os primeiros no meio acadêmico. Esse tema já foi razoavelmente explorado. Tampouco o tema/objeto “estrangeiro” é novidade em muitas pesquisas. No entanto, no âmbito de português brasileiro para estrangeiros, ainda há muitas lacunas a serem preenchidas. Com a crescente participação internacional do Brasil em diversos campos nos últimos quinze anos, o interesse pela cultura e língua brasileiras vem se ampliando, sendo evidenciado pelo aumento do número de estudantes estrangeiros nas universidades do país. Consequentemente, também vem se alargando a necessidade de que materiais didáticos para o ensino do português do Brasil sejam disponibilizados, analisados, reanalisados e gradualmente aperfeiçoados.

Em alguns trabalhos acadêmicos existentes na seara do português do Brasil para estrangeiros, estudam-se as representações do Brasil nos materiais didáticos que se destinam ao ensino da língua e da cultura do Brasil. Nesses estudos, o objetivo maior é se debruçar sobre textos, verbais e/ou não verbais, que traduzam o Brasil e os brasileiros de alguma forma. Embora as representações do brasileiro e do Brasil em textos de materiais didáticos de português para estrangeiros já venham sendo estudadas em pesquisas de pós-doutoramento1 e doutoramento2 desenvolvidas no

1 Júdice, N. Representações do Brasil e dos brasileiros em material didático de português para estrangeiros dos anos 40. Pós-doutorado. São Paulo: PUC, 2007.

2 Lima, R. Representações do Brasil em textos do exame Celpe-Bras. Tese (Doutorado). Niterói: UFF, 2008. / Sanson, C. Representações do Brasil em materiais didáticos de PLE editados na França. Tese (Doutorado). Niterói: UFF, 2011. / Carvalho, A.M.M.G.L.de. Representações do trabalho em textos de materiais didáticos de português para estrangeiros publicados no Brasil do século XX. Tese (Doutorado). Niterói: UFF, 2015.

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país, e divulgadas em publicações, as representações do estrangeiro, em obras dessa natureza, ainda estão merecendo estudo. Tendo isso em conta, as seguintes dúvidas podem ser levantadas: esses materiais didáticos apenas configuram personagens brasileiros e representações do Brasil? A figura do estrangeiro está presente de algum modo nesses materiais? Se essa figura aparece, como é representada? Essas representações permanecem as mesmas ao longo do tempo?

O desconhecido, não familiar, de extra ‘fora’, o extraneus sempre causou, ao longo da História, um desconforto nos diversos papeis que desempenhou nas sociedades. Em muitos momentos, o estranho caracterizou-se como um incômodo, gerando desconfiança, disputas e guerras, mas também foi o ponto de partida para que homens e mulheres percebessem seu estatuto de igualdade como seres humanos e sua capacidade de adaptação. Em determinadas épocas da história da humanidade, o estrangeiro serviu para atender a demandas nacionais, desempenhando o papel de solução para a falta de mão de obra ou para atender a propostas baseadas em ideias eugenistas, como foi o caso do Brasil quando, por meio de ações governamentais oficiais, buscou implementar uma política de branqueamento da população. A presença do estrangeiro em uma sociedade implicou - e continua a implicar nos dias atuais - a necessidade de se desenvolver a aceitação das diferenças em múltiplos aspectos, o apaziguamento com a própria identidade e, em última instância, a benquerença para com o outro.

Pelas motivações expostas e pela escassez de estudos acerca do estrangeiro nos materiais didáticos para ensino do português e da cultura brasileiros para estrangeiros publicados no Brasil, posicionamos, nesta pesquisa, o estrangeiro como objeto central de nossa observação. Neste estudo, portanto, o objetivo geral é pesquisar as representações do estrangeiro nos textos verbais e não verbais3 contidos em materiais didáticos de Português do Brasil para Estrangeiros publicados no Brasil entre a década de 1940 e a década atual. Mais especificamente, tencionamos verificar a presença ou a ausência dessas representações nos didáticos selecionados; quando encontradas, analisar o modo como são representados os estrangeiros; identificar que contextos de origem dos estrangeiros estão associados à sua representação, e, por

3 Para fazer referência a textos cuja organização pode ser composta apenas por imagem (ex.: cartum,

desenho ilustrativo, foto etc.) ou por imagem associada a texto verbal e/ou a outros símbolos gráficos, em qualquer forma de articulação (ex.: cartum, charge, história em quadrinhos etc.), usamos a expressão “texto não verbal”.

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fim, fornecer um quadro comparativo entre as representações, levando em conta cada década estudada e sua respectiva conjuntura sócio-histórica.

Para a realização deste estudo, tivemos como base teórica os pensamentos e reflexões que envolvem o entendimento de representações sociais desenvolvidos por Denise Jodelet e Serge Moscovici. O domínio das representações sociais favorece a abordagem dos aspectos socioculturais existentes nos textos examinados, pois tem presente os aspectos que envolvem a interpretação do mundo e a relação desta com o(s) sujeito(s) de linguagem. Ademais, a Teoria das Representações Sociais auxiliou nossa análise porque não se afasta da ciência de que o ser humano sente necessidade de buscar sentido em sua realidade, de organizar seu entorno de forma a transformá-lo em um lugar conhecido e confortável.

Em se tratando de materiais didáticos, para o desenvolvimento desta pesquisa não pudemos prescindir de algumas das questões que envolvem a produção desse tipo de material para ensino de línguas. De acordo com a ideia do universo consensual salientado na Teoria das Representações Sociais, não se pode afirmar que um material didático escapa ao tempo e ao entorno sociocultural de seu autor e dos demais envolvidos em sua produção. Assim, buscamos orientação nos estudos de Geneviève Zarate para nos ajudar na análise das representações do estrangeiro nos materiais eleitos, principalmente no que se refere ao que subjaz na construção de manuais para ensinar línguas estrangeiras.

Tampouco pudemos abrir mão de um aparato que nos orientasse no sentido de ampliar nossa compreensão no que se refere à complexidade que envolve a ideia de “estrangeiro”. A multiplicidade de fatores implicados na composição do “estranho”, do de fora, do não nacional, em suas mais variadas nuances, gerou a necessidade de um entendimento mínimo e indispensável sobre conceitos como diferença, identidade e cultura. Essa imposição intelectual levou-nos a buscar apoio nas ideias e discussões desenvolvidas por estudiosos que têm tratado dessas questões nos últimos anos. Ainda, como uma complementação a essa apreensão da figura do estrangeiro, preocupamo-nos em verificar, de maneira não aprofundada, a condição jurídica do estrangeiro no Brasil, entendendo que esse exame nos ajudaria a interpretar melhor as representações do estrangeiro presentes nos materiais didáticos.

Para esta pesquisa, também consideramos relevante nos ampararmos nas ideias desenvolvidas acerca do assunto “gêneros textuais”, tendo em vista que as representações identificadas se localizam dentro de um suporte para variados

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gêneros textuais – o livro didático para ensino de língua estrangeira. Os manuais para ensino de línguas representam um amplo repositório/suporte para se trabalhar os mais variados aspectos existentes em uma comunidade linguística e cultural. Por essa razão, os livros didáticos podem fazer uso de variados gêneros para conduzir o aprendiz a um alcance maior de ação e interação na língua-alvo. À vista disso, a nossa preocupação em trazer a noção de gêneros textuais para este trabalho está no fato de que, ao buscarmos representações do estrangeiro em materiais didáticos para ensino de língua estrangeira, no caso a língua falada no Brasil, estamos examinando representações circunscritas em gêneros textuais, que, por sua vez, estão inseridos em manuais de ensino, cuja função é fornecer subsídios para ensinar/aprender um ou mais traços de uma língua e/ou uma cultura. De forma bem ampla, é esse caráter acolhedor de gêneros, e sua consequente natureza funcional específica, que nos autoriza relacionar os materiais didáticos e as representações a gêneros textuais. Assim sendo, para nosso amparo teórico relacionado a gêneros textuais, contamos com os estudos de Luiz Antonio Marcuschi.

O corpus selecionado para esta pesquisa é composto por livros didáticos publicados no Brasil que contemplam, em uma ou mais de suas unidades, textos verbais e/ou não verbais que apresentam qualquer alusão ao estrangeiro. O recorte temporal abrange o período que se inicia na década de 1940 e termina na década de 2010, perfazendo, assim, onze livros didáticos analisados (a obra de 2010 apresenta três volumes). Para cada década do recorte temporal, foi escolhido um livro didático representativo, com ampla circulação e mais de uma edição.

A primeira parte deste estudo é esta introdução, onde expomos nossas considerações preliminares e as características gerais do estudo.

A segunda parte abrange o referencial teórico que nos serviu de suporte para traçarmos as análises dos textos. Nesse capítulo estão em tela as noções de representações sociais e gêneros textuais, além das questões sobre materiais didáticos para ensino de língua estrangeira e das ideias sobre identidade, diferença e cultura relacionadas ao estrangeiro.

Como terceira seção, temos a metodologia empregada no desenvolvimento desta obra, onde são explicitados os conceitos básicos, as diretrizes, as etapas e os procedimentos gerais e específicos que nortearam a seleção e a análise dos materiais didáticos destacados para este estudo.

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Na quarta parte, está a análise dos textos verbais e não verbais dos livros didáticos que compõem o corpus. Para analisar cada livro, partimos de uma breve descrição do momento sócio-histórico da década em que foi publicado o material. Em seguida, procedemos a uma caracterização geral da obra, observando a Apresentação e o Sumário. Por fim, chegamos ao exame detalhado de cada unidade em busca de representações do estrangeiro.

A quinta parte contém a recapitulação dos resultados obtidos em nossa análise. Nessa seção, estabelecemos uma análise comparativa entre os achados na investigação de cada livro, traçando um quadro tanto com os traços comuns encontrados nas análises quanto com as dessemelhanças.

Na sexta parte, referente às conclusões, procuramos responder às questões levantadas inicialmente em referência à presença/representação do estrangeiro nos materiais didáticos de Português para Estrangeiros publicados no Brasil.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

Neste capítulo, vamos abordar os pressupostos teóricos que deram suporte às nossas análises: as ideias relacionadas à Teoria das Representações Sociais, as considerações que envolvem a geração de materiais didáticos para ensino de línguas estrangeiras, as implicações dos gêneros textuais nos livros didáticos e as reflexões acerca do conceito de ‘estrangeiro’.

2.1 As representações sociais

Conforme nos ensina Pinto (2002), as práticas sociais servem como elementos essenciais na criação, manutenção e mudança das representações, identidades e relações sociais. As interações sociais que ocorrem dentro de um determinado grupo de indivíduos, desde os episódios mais simples do dia a dia até as realizações mais complexas, estão inseridas, inevitavelmente, nesse conjunto de sistemas simbólicos e acabam por gerar um conjunto de concepções, crenças e ideias que nos possibilitam a rememoração de eventos, pessoas, objetos etc. Além disso, como nos explica Moscovici, “[...] existe uma necessidade contínua de re-constituir o ‘senso comum’ ou a forma de compreensão que cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual nenhuma coletividade pode operar” (2011, p.48).

A Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici ganha destaque em 1961 com a publicação da obra A Psicanálise, sua imagem e seu público. Sua teoria se distingue por sugerir a existência de um pensamento social resultante das experiências, das crenças e das trocas de informações presentes na vida cotidiana. Sua análise se desenvolveu a partir da confiança em que a sociedade necessitaria de outro conceito, menos genérico que as representações coletivas oriundas do pensamento do sociólogo Durkheim (final do século XIX), para acompanhar, explicar e compreender como ocorre a formação do pensamento e do conhecimento social.

Enquanto a sociologia de Durkheim se esforça em dar enfoque àquilo que mantém as sociedades coesas, às forças e estruturas que as conservam contra qualquer fragmentação ou desintegração, a psicologia social de Moscovici orienta-se para questões sobre como as coisas mudam na sociedade. Ao contrário do caráter

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estático das formulações de representações coletivas de Durkheim, Moscovici se interessa pela dinamicidade das ideias coletivas nas sociedades modernas.

A dinâmica das ideias coletivas sobre as quais Moscovici se debruça está relacionada aos pontos de tensão que existem em qualquer cultura e donde resultam novas ideias coletivas. É a esse processo de ressignificação, de familiarizar o não familiar, que as representações sociais se referem. Moscovici defende que os indivíduos ou grupos não são receptores passivos, mas participantes importantes de uma sociedade pensante, que elabora um pensamento social e (re)avalia constantemente seus problemas e suas soluções.

Segundo Moscovici (2011, p.31), “[...] nossas reações aos acontecimentos, nossas respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada definição, comum a todos os membros de uma comunidade à qual nós pertencemos”. Como “[...] o mundo em que vivemos é totalmente social” (MOSCOVICI, 2011, p.33), não há como desvincular nossos sistemas perceptivos das representações sociais. Nas palavras de Moscovici (2011, p.35), “nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura”. As representações são partilhadas por nós, penetram e exercem influência sobre cada um de nós. Elas são, enfim, um sistema de valores, ideias e práticas com a dupla função de prescrever e convencionalizar o mundo.

As representações sociais servem para nos deixar confortáveis diante do mundo. Frente aos mais diversos acontecimentos, objetos, pessoas, ideias e elementos com os quais deparamos em nossas vidas, sentimos a necessidade de dominar o significado de toda essa gama de estímulos. Cotidianamente, somos expostos a oportunidades de nomear e interpretar os fatos, os atos, os comportamentos. É por essa razão que Jodelet (2001, p.21) afirma que “as representações sociais são fenômenos complexos sempre ativados e em ação na vida social”.

A representação social também é considerada como um saber prático, pois é uma forma de conhecimento que nos ajuda a agir sobre o mundo e o outro (JODELET, 2001, p.27-28), fazendo com que a engrenagem social continue em movimento. Tanto é assim que seu papel é fundamental para a criação de um universo consensual. A importância das representações sociais decorre do fato de que

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[...] pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e da cooperação. [...] Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações morrem (MOSCOVICI, 2011, p. 41).

Ainda que qualificadas como um saber prático, designado para agir e se relacionar com o mundo, as representações configuram-se como manifestações profundas e multifacetadas, como modos de conhecer provindos das sociedades modernas, que têm a necessidade de processar em pouco tempo uma grande quantidade de informações. É por meio das representações que diversos grupos sociais se expressam de forma também diversa ante o mesmo objeto. Essa variedade de expressões, nas quais podemos reconhecer elementos informativos, cognitivos, ideológicos, valores, opiniões, crenças etc., permeia a vida social e se constitui como um conhecimento do senso comum. Assim, as representações são resultado da percepção dos indivíduos em seu esforço para entender e agir em uma realidade em incessante transformação.

Tendo em vista que a representação social é uma forma de conhecimento, necessariamente o sujeito que investiga e o objeto investigado relacionam-se no processo de representar. Todavia, esse fenômeno cognitivo caracteriza-se por não desprender o sujeito de seu atributo de agente social e cultural, já que, sendo um conhecimento prático, a representação é voltada para fabricar efeitos sociais. Ao mesmo tempo, a representação é produto e processo de uma construção mental. Na qualidade de produto, estrutura-se como um discurso da realidade, enquanto que como processo reflete a dinâmica empreendida pelo sujeito para apreender um objeto novo, desconhecido, não familiar, que se situa fora de seu arcabouço conceitual.

Como nos ensina Moscovici (2011), o processamento que se dá para tornar aquilo que é desconhecido e estranho em algo familiar desenvolve-se por intermédio de um duplo mecanismo, de natureza psicológica e social: objetivação e ancoragem. Esse mecanismo tem por fim realçar uma figura, dotá-la de um sentido e inscrevê-la no universo.

Conforme nos orienta Moscovici,

nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através de uma linguagem, nós organizamos nossos pensamentos de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. (2011, p. 35)

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Desse modo, a objetivação caracteriza-se por transformar o abstrato em concreto, cristalizando as ideias e tornando-as objetivas, ao que Moscovici chama de “face figurativa”. Tal processo possibilita transportar aquilo que até então inexiste para o universo do conhecido. O mecanismo de objetivação ocorre em três fases: a) seleção e contextualização: os indivíduos se apropriam do conhecimento por conta de critérios culturais; a partir de experiências e conhecimentos que esse grupo de indivíduos já dispõe ocorre uma construção seletiva da realidade; b) formação de um núcleo figurativo: o indivíduo recorre a informações de dados que já possui para compreender aquilo que é novo; c) naturalização dos elementos do núcleo figurativo: nesse momento o abstrato torna-se concreto. É na objetivação que o conceito se cristaliza e passa a ser considerado como elemento da própria realidade.

Também nos explica Moscovici que é

pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo. De fato, representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de categorias e nomes. (2011, p. 62)

A ancoragem, então, refere-se ao processo pelo qual a ideia é trazida para o contexto do familiar, traduzindo-se na categoria de “imagem comum”. Sua função é realizar a integração cognitiva do objeto representado em um sistema de pensamento preexistente. Por meio da ancoragem, os novos elementos de conhecimento são colocados numa rede de categorias mais familiares. É na ancoragem que se dá a assimilação das imagens dadas pela objetivação, com a sedimentação de um registro simbólico.

É importante ressaltar que a objetivação e a ancoragem não transcorrem em momentos distintos. Os dois mecanismos desenvolvem-se concomitantemente, relacionando-se para criar sentido. Mais uma vez, nas palavras do mestre Moscovici,

ancoragem e objetivação são, pois, maneiras de lidar com a memória. A primeira mantém a memória em movimento e a memória é dirigida para dentro; está sempre colocando e tirando objetos, pessoas e acontecimentos que ela classifica de acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo mais ou menos direcionada para fora (para os outros), tira daí conceitos e imagens para juntá-los no mundo exterior, para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido. (2011, p. 78)

Em resumo, a Teoria das Representações Sociais nos instrumentaliza para trabalhar com o pensamento social em sua dinâmica e em sua diversidade. Ela

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respalda-se no princípio de que existem diferentes formas de conhecer e de se comunicar, norteadas por finalidades diferentes. Adicionalmente, essa teoria pauta-se na ideia de que as interações sociais vão criando “universos consensuais”, no âmbito dos quais as novas representações vão sendo produzidas e comunicadas, tornando-se parte do universo não mais como opiniões, mas como verdadeiras “teorias” do senso comum, construções esquemáticas que têm por objetivo dar conta da complexidade do objeto, facilitar a comunicação e orientar condutas. Essas “teorias” ajudam a construir a identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo.

Fazendo uma analogia entre as dicotomias “essência/aparência” e “realidade/imaginário”, aparenta ser razoável associar ‘essência’ e ‘realidade’, e ‘aparência’ e ‘imaginário’. Com efeito, a partir do momento em que as primeiras são tomadas como ‘o que é’, ‘aparência’ e ‘imaginário’ tornam-se o que ‘parece ser’. Há que se lembrar, no entanto, que aquilo que é ou parece ser o é não para um sujeito que está isolado no universo, mas, sim, para um homem “dominado por um mundo que se impõe a ele [...] e pelos sistemas de representações [...] que o próprio homem constrói e que dependem ao mesmo tempo de sua vivência” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 190-191).

O que de fato existe entre o real e o potencial de percepção que um indivíduo tem dele é um processo de interpretação por meio do qual esse indivíduo constrói a realidade. Esse processo se dá em função da posição desse indivíduo e das condições de produção que emanam do contexto social em que ele se encontra. Nas palavras de Charaudeau (2006a, p. 203-204),

o imaginário é efetivamente uma imagem da realidade, mas imagem que interpreta a realidade, que a faz entrar em um universo de significações. Ao descrever o mecanismo das representações sociais, aventamos com outros a hipótese de que a realidade não pode ser aprendida enquanto tal, por ela própria: a realidade nela mesma existe, mas não significa. A significação da realidade procede de uma dupla relação: a relação que o homem mantém com a realidade por meio de sua experiência, e a que estabelece com os outros para alcançar o consenso de significação. A realidade tem, portanto, necessidade de ser percebida pelo homem para significar, e é essa atividade de percepção que produz os imaginários, os quais em contrapartida dão sentido à realidade.

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2.2 Materiais didáticos para ensino de línguas estrangeiras

De acordo com o que nos ensina Almeida Filho (2013, p. 16), os materiais didáticos são “uma forma de codificação de ação futura nas salas ou em outros lugares de aprender nas extensões”. Eles oferecem atividades que poderão se configurar em experiências de ensino-aprendizagem vivenciadas por aprendiz e professor em algum momento. Essas atividades compõem-se de conteúdos, procedimentos, instruções que carregam propósitos didático-pedagógicos, mas que estão prenhes de inúmeros aspectos socioculturais em seu substrato.

Como a questão central desta pesquisa não é analisar os livros didáticos escolhidos em relação a conteúdos linguísticos, abordagens e metodologia e, sim, as possíveis representações do estrangeiro contidas em seus textos, não podemos perder de vista a ideia de que os manuais didáticos fazem brotar experiências linguísticas e culturais a partir da perspectiva de seus autores e editores. Nesse sentido, é nosso dever levar em conta alguns dos aspectos que envolvem a produção dos didáticos.

Como afirma Almeida Filho (2013, p.13), “produzir um material de ensino equivale metaforicamente a escrever uma partitura para ser interpretada em execuções na materialidade da aula e suas extensões”. Na elaboração dessa partitura, estão presentes irremediavelmente as marcas do tempo em que foi produzida: crenças, valores, opiniões e percepções próprias do autor do material que, como qualquer indivíduo, não escapa da contextualização histórica, social e cultural de sua época. Igualmente, se a partitura será interpretada, aquele que a recebe também está imbuído de crenças, valores, opiniões e percepções próprias que desempenharão o papel de filtro na recepção do que está registrado nos materiais de ensino. Assim, existe um espaço para a negociação entre o que já se tem como representação (do estrangeiro, como é o caso desta pesquisa) e o que está representado nos livros didáticos.

Se não há possibilidade de descolamento entre o material produzido e a composição social, histórica e cultural de seu autor, tampouco é recomendável que se pretenda aproximar de um material didático para ensino de língua estrangeira, com a intenção de verificar, em seu interior, qualquer aspecto que seja, sem atentar para os elementos geopolíticos que envolvem sua produção. Além de sua circunscrição aos

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contextos inerentes ao local/nação de produção, os materiais didáticos para ensino de língua estrangeira, como nos esclarece Zarate (1995, p.25), também são sensíveis às flutuações das relações geopolíticas. Os didáticos atuam como verdadeiros objetos da história, pois refletem as condições de socialização de uma geração em determinado país e o estado das relações entre as partes do mundo. Consequentemente, esses materiais refletem as relações de poder do tabuleiro internacional.

Não obstante o relevante papel do autor - professores, linguistas - na elaboração dos manuais para ensino de línguas estrangeiras, Zarate (1995, p. 45) nos alerta para as responsabilidades da composição dos livros didáticos. Os autores dos manuais não são totalmente responsáveis pelo produto final. Além dos vestígios deixados nos materiais didáticos pela inescapável condição de ser social de seus autores, os manuais tampouco conseguem se esquivar dos interesses comerciais que permeiam sua produção, pois estratégias de difusão e de venda também fazem parte do jogo da concepção dos materiais. No processo de fabricação dos didáticos, muitos atores entram em cena: editores, designers gráficos, artistas de layout, pesquisadores de iconografia. O autor não tem a coordenação de todas as intervenções concebidas para figurar no trabalho. Em consequência, o autor não deve ser considerado o único responsável pelo conteúdo dos materiais didáticos.

Não se pode, ainda, deixar de apontar alguns outros aspectos importantes a serem considerados acerca dos materiais didáticos: suas funções econômica e político-pedagógica, sua incontestável inserção na política educacional e seu papel nas políticas editorial e pública. Ademais, os livros didáticos carregam consigo uma legitimidade no meio educacional, uma vez que sempre sustentaram a atribuição de intermediadores entre os saberes e os alunos. Considerando a força da escrita nas sociedades ocidentais, essa legitimidade confere um grande poder de formação e informação aos didáticos, tendo em vista que transmitem e partilham “verdades sacramentadas”. No contexto filosófico, os didáticos desempenham uma função importante de legitimação do saber, pois constituem uma fonte autorizada de propagação dos saberes acumulados na sociedade. Na prática, reproduzem as relações de poder.

Com relação aos manuais de Português Língua Estrangeira (PLE), informa-nos Pacheco (2006, p. 69) que, no início de sua produção, os próprios imigrantes, principalmente os alemães, elaboravam e publicavam seus livros didáticos, com o

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objetivo de tornar possível o estudo da língua portuguesa. Também segundo Pacheco (2006), grande parte desses materiais se perdeu em razão da pressão proibitiva imposta pela legislação brasileira e em função da própria dispersão constitutiva do processo de geração dos materiais didáticos, os quais eram concebidos por professores em escolas geograficamente distantes que não tinham entre si qualquer tipo de troca.

Entretanto, Almeida e Júdice (2016, p. 270) revelam que referências desses materiais podem ser encontradas em estudo realizado por Almeida (2011), no qual buscou reescrever a cronologia dos materiais didáticos para ensino de Português do Brasil para Estrangeiros (PBE) publicados no Brasil. As obras referenciadas no estudo de Almeida (2011) foram publicadas no período de 1883 a 1922 e apresentaram-se escritas majoritariamente em alemão, revelando a intenção de se direcionarem, evidentemente, aos aprendizes falantes de alemão.

Para esclarecer a questão da produção de materiais didáticos para ensino de português do Brasil para estrangeiros, Almeida e Júdice (2016) propõem uma divisão acerca desse ensino, que confirma a influência da configuração histórica da respectiva época sobre a geração dos didáticos. Segundo as autoras, a elaboração desses manuais está diretamente ligada a três períodos do ensino de PBE: o ensino para adaptação, relativo ao lapso de tempo em que o Brasil recebeu milhões de imigrantes; o ensino como imposição, quando a política de nacionalização instituída na Era Vargas provocou mudanças no sistema educacional e no ensino brasileiros, e, consequentemente, implicações na elaboração, edição e publicação de materiais; e o ensino de PBE como adição, referente ao período em que houve um novo fluxo de estrangeiros para o Brasil.

No que diz respeito ao ensino para adaptação, cabe lembrar que os variados grupos de imigrantes que chegaram ao Brasil não poupavam esforços para prover qualidade na educação de seus filhos, estimulando a produção de material didático e viabilizando uma estrutura de apoio para o processo escolar. Com a obrigatoriedade de escolaridade mínima de cinco anos a partir de 1920, organizaram-se associações e cursos para professores, e um amplo incentivo foi dado para a produção de materiais didáticos. Mas cada grupo de imigrantes – alemães, poloneses, italianos, japoneses – administrava suas ‘escolas’ de acordo com o legado acadêmico que portava de sua origem. Os alemães, como vimos anteriormente, ganharam destaque ao produzir e publicar obras no Brasil entre os decênios finais do século XIX e as primeiras décadas

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do século XX (Cf. ALMEIDA, 2011). Essas obras não estavam submetidas à política de nacionalização, que se instaurou em momento posterior.

O ensino como imposição se verifica a partir da década de 1930, quando o Estado passou a exigir, por meio de decreto, que o português para os estrangeiros fosse tratado como língua nacional, devendo ser ensinado com estratégias de língua materna. A institucionalização do ensino de português ganhava mais força com a nacionalização compulsória do ensino primário e do ensino privado, conforme o Decreto 58 de 28 de janeiro de 1931, expedido pelo Interventor Federal no Estado de Santa Catarina. Além dessa imposição governamental, escolas públicas foram abertas nas proximidades das escolas de imigrantes, o que inviabilizou, na prática, o funcionamento dessas últimas, tendo em conta o apelo à gratuidade das públicas e seu “superior” ensino de português, língua social com que os estrangeiros e seus descendentes tinham de se comunicar.

O Decreto 58 de 1931 e, posteriormente, o Decreto-lei nº 406 de 1938, no qual se tratou com mais detalhes a entrada de estrangeiros no território nacional, causaram grande impacto no sistema de ensino em terras brasileiras. Gráficas pertencentes aos imigrantes foram fechadas; menores de 14 anos passaram a estar proibidos de aprender qualquer língua estrangeira; os diretores das escolas e o corpo docente das escolas tinham a obrigação de dominar a língua portuguesa; as disciplinas História e Geografia do Brasil tornaram-se obrigatórias nos currículos escolares; livros, textos, jornais ou revistas em língua estrangeira tiveram sua circulação desautorizada.

Até a década de 1950, o ensino da língua portuguesa falada no Brasil para estrangeiros encontrou muitos obstáculos. O maior deles estava exatamente na disponibilidade de materiais didáticos, tendo em vista que a quase totalidade dos pouquíssimos cursos de português do Brasil para estrangeiros oferecidos no país dependiam de textos escritos no exterior. Foi a partir dos anos 1950 que as discussões sobre a criação de materiais didáticos para ensino de PLE começaram a se engendrar no meio acadêmico brasileiro.

De acordo com Pacheco (2006), foi somente na década de 1960 que a Linguística Aplicada ao Ensino de Português como Língua Estrangeira começou a ganhar força. Uma equipe binacional (norte-americana e brasileira) formou-se para preparar um manuscrito para uma edição experimental de Modern Portuguese, um projeto financiado pela Modern Language Association of America. Algumas questões fundamentais foram levantadas por esse grupo de trabalho: “que estruturas frasais

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selecionar e por quê? Que amostra do léxico do português oral informal incluir e por quê? Que usos do português descrever? Com base em que descrições? Na ausência destas, como proceder?”.

Nessa mesma época de 1960, a educação bilíngue e o ensino de PLE sofreram uma guinada modificadora: em decorrência da abertura da economia nacional ao mercado externo e da explosão da nossa indústria automobilística, o Brasil passou a figurar na comunidade internacional como nação com desenvolvimento em potencial. Consequentemente, muitos executivos passaram a vir do exterior para assumir cargos nas empresas multinacionais que aqui começaram a se instalar. Além disso, alguns grandes projetos da época, como a construção da usina de Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, dentro do contexto de convênios firmados com outros países, ocasionaram a vinda de técnicos especializados estrangeiros, que imigravam com suas famílias e matriculavam seus filhos em escolas internacionais. A demanda pelo ensino do português brasileiro nas escolas em terras brasileiras sofreu grande aumento, o que gerou a necessidade de se providenciar material para o ensino do português brasileiro.

O ensino de PBE como adição inicia-se nos anos 1990, quando a estabilidade econômica do Brasil possibilitou uma maior visibilidade do país no cenário internacional. Em decorrência dessa nova posição no quadro mundial que o país vem experimentando e com a expansão da Internet e das tecnologias digitais, foram-se criando novos contornos em relação à língua e cultura brasileiras. Dessa forma, o ensino de PBE vem encontrando um ambiente propício para expansão, com novos estudos e produções.

Além disso, não obstante a piora da situação econômica do Brasil nos últimos dois anos, há outros elementos que têm contribuído para favorecer o interesse pelo país: a crise econômica da Europa e os conflitos armados que têm sucedido em algumas partes do mundo. Esses elementos têm favorecido um novo fluxo de imigração para o Brasil. Conforme Almeida e Júdice (2016) nos ensinam, essa movimentação de pessoas em direção ao Brasil não pode ser desprezada no que diz respeito à área de Português Língua Estrangeira, pois a presença, temporária ou permanente, de não falantes da língua portuguesa no país acaba acarretando uma ampliação da demanda por cursos de português, por materiais didáticos e por professores qualificados.

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Nesse contexto de valorização da língua e da cultura do Brasil experimentado nos últimos quinze anos, o ensino de PLE vem se recolocando em outros patamares. Várias frentes de trabalho têm sido abertas e alguns centros de referência em universidades do país têm atuado nas pesquisas relacionadas ao ensino de português do Brasil para estrangeiros. Além disso, a iniciativa do governo federal brasileiro de criar a Comissão Nacional para a Elaboração do Exame de Português para Estrangeiros – o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPEBras), que é aplicado desde 1998 – é uma clara demonstração da escalada da necessidade de maior aprofundamento nos estudos, na elaboração e na disponibilização de materiais didáticos para o ensino de português do Brasil para estrangeiros.

2.3 Os livros didáticos e os gêneros textuais

A justificativa para se registrar nesta pesquisa considerações teóricas sobre os gêneros textuais reside no fato de estarmos buscando identificar representações do estrangeiro em textos de materiais didáticos para ensino de língua estrangeira, que se configuram em diversificados gêneros para alcançar seus objetivos de ensino/aprendizagem. A existência das representações no conteúdo dos gêneros textuais apresentados nos livros didáticos não nos deixa afastar, portanto, da ideia de que as representações estão entre os elementos que contribuem para que os materiais didáticos para ensino de língua estrangeira exerçam sua função na sociedade, qual seja a de oferecer informações e meios para ensinar/aprender um ou mais aspectos de uma língua e/ou uma cultura – no caso a língua e a cultura brasileiras.

Cumpre-nos esclarecer, entretanto, que nosso objetivo não é estudar a particularidade dos gêneros onde porventura se localizam as representações. Tampouco está no escopo deste trabalho analisar os gêneros textuais com os quais os autores dos materiais decidiram trabalhar. O aspecto relacionado a gêneros textuais que nos interessa neste trabalho é expressamente este: considerar o livro didático em sua totalidade como suporte de gêneros e sua funcionalidade exercida por meio dos gêneros textuais que apresenta. Desse modo, é necessário entendermos o funcionamento dos gêneros textuais nos materiais didáticos.

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Segundo Marcuschi (2008, p.155),

os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração das forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. [...] são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas.

Além disso, os gêneros textuais possuem ações de ordem comunicativa e estratégias convencionais para atingir determinados objetivos. Todos os gêneros têm uma forma e uma função, bem como um estilo e um conteúdo, mas sua determinação se dá principalmente pela função e não pela forma. Hoje, muitos estudiosos consideram os gêneros textuais como formas de ação, como maneira de agir sobre o mundo na relação com o outro dentro de uma cultura e uma sociedade. Sendo assim, os gêneros tornam-se subsídios de compreensão de como interagimos pela linguagem, construindo relações sociais, de como (re)construímos nossa identidade e de como buscamos alcançar nossos objetivos sociais.

Marcuschi (2010, p. 20) afirma que os gêneros textuais “são de difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sociopragmáticos caracterizados como práticas sociodiscursivas”. Está claro, portanto, que, em se tratando de gêneros textuais, estamos lidando com ações materializadas em textos escritos ou orais em nossa vida diária. Embora Marcuschi declare que definir os gêneros textuais é uma tarefa difícil, ele assume que “é impossível não se comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossível não se comunicar verbalmente por algum texto. Isso porque toda manifestação verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero” (2008, p. 154).

O professor nos alerta, contudo, para não confundir gênero textual com tipo textual. Este é descrito como “[...] uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) ” (MARCUSCHI, 2010, p.23), enquanto os gêneros textuais são textos que “[...] apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (MARCUSCHI, 2010, p. 23). Os tipos textuais possuem número limitado de exemplos (comumente conhecidos como: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção), ao passo que os gêneros são inúmeros em diversidade de formas e podem

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desaparecer, tendo em vista seu caráter social e histórico. Alguns exemplos de gêneros seriam: carta pessoal, carta comercial, bilhete, reportagem jornalística, receita culinária, receita médica, conferência, telefonema, piada, reunião de condomínio, bula de remédio, horóscopo, sermão, resenha, outdoor etc.

Na contemporaneidade, estudos sobre letramento e práticas socioculturais de linguagem, tanto em língua materna quanto em língua estrangeira, têm enfatizado a importância da exploração dos gêneros textuais e sua funcionalidade em salas de aula e em livros didáticos. Cientes de que o livro didático ocupa, muitas vezes, uma posição de protagonista dentro do contexto de aprendizagem formal, entendemos que o ensino de uma língua estrangeira, principalmente dentro de propostas que visam desenvolver competências comunicativas, faz-se mais significativo quando explora categorias textuais distintas.

Por meio das atividades de linguagem, o ser humano se constitui sujeito e é também através dessas atividades que o homem reflete sobre si mesmo, fala de si mesmo e do mundo que o rodeia. Sendo um gênero parte de um repertório de formas disponíveis no movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade, é muito importante que ele seja explorado nos materiais didáticos utilizados para o ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Os gêneros textuais estão intrinsecamente ligados ao cotidiano e às interações sociais, e sua presença nos livros didáticos – que são uma das principais fontes de acesso ao saber institucionalizado – pode proporcionar uma visão das formas de ação de uma sociedade concretizadas em linguagem.

As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão formas ao texto. Em se tratando de ensino de línguas, o contato com diferentes gêneros textuais e a apreensão destes ajudam o aluno a ocupar, com maior consciência, os diferentes lugares a partir dos quais existe a possibilidade de se comunicar, falando ou escrevendo, levando-o a agir com a linguagem de forma mais eficaz. É por meio do conhecimento dos gêneros que as práticas de linguagem se incorporam nas atividades comunicativas dos alunos.

Conforme nos ensina Nunes (2002, p.68),

os textos não são determinados simplesmente por seus elementos imanentes. Vão além e atingem fatores contextuais que, na verdade, os condicionam, os determinam e lhes conferem propriedade e relevância. Ou seja, é preciso chegar ao nível das práticas sociais e ao nível das práticas

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discursivas, onde, de fato, se definem as convenções do uso adequado e relevante da língua.

Aprender uma língua estrangeira, portanto, não é somente um exercício intelectual; é, também, uma oportunidade de experimentar outra possibilidade de vida. O conhecimento de uma língua não materna amplia as chances de se agir discursivamente no mundo. Por isso a relevância da utilidade de diferentes gêneros nos livros didáticos, pois os gêneros trazem para o aprendiz situações concretas que viabilizam a instauração de eventos comunicativos na língua-alvo, fazendo-o vivenciar essa outra possibilidade de interação com o mundo.

2.4 O estrangeiro

Nesta seção, vamos enfocar os conceitos que estão envolvidos na construção da ideia de “estrangeiro”. Para complementar o entendimento dessa ideia, abordaremos a condição de ser estrangeiro. E, por fim, trataremos do caso específico da imigração no Brasil.

2.4.1 Identidade, diferença e cultura

Lidar com o assunto “estrangeiro” é deparar com a ideia de sujeito, pois estamos aludindo a um ser inevitavelmente inscrito em uma sociedade de tantos outros sujeitos. Consequentemente, falar do estrangeiro também requer versar sobre identidade, uma vez que, entre tantos outros sujeitos, entre tantos ‘tus’/outros, é necessário o processo de identificação do ‘eu’.

Como numa folha de papel, em que a existência do verso é consequência do anverso e vice-versa, não há como falar de um ‘eu’ sem falar do ‘tu’/outro. Se tecer considerações sobre o sujeito ‘eu’ importa reconhecer o outro para construir a própria identidade, não há como escapar, então, de pensar em diferença. E, numa sequência de elos inseparáveis, diferenciar um ser humano de outros resulta em nomeá-los, caracterizá-los, interpretá-los de formas diversas por meio da língua e da cultura.

Identificar um sujeito como estrangeiro se converte, assim, em entendê-lo em termos de diferença. Destarte, quais são as implicações envolvidas na conceituação de ‘estrangeiro’?

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Stuart Hall (2002) sugere três formulações de identidade ligadas a categorias de sujeito, relacionando-as a distintas fases da história recente: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

A concepção do sujeito do Iluminismo apresenta um sujeito racional, pensante e consciente, como o “sujeito cartesiano”. Era este o sujeito da modernidade: o sujeito da razão, do conhecimento e da prática, que sofria as consequências dessas práticas, que estava submetido a elas (HALL, 2002). O cerne fundamental do ‘eu’ era a identidade de uma pessoa, no sentido de uma visão muito individualista do sujeito e de sua identidade.

À medida que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas passaram a se comportar de uma forma mais coletiva e social. As teorias clássicas liberais de governo, baseadas nos direitos e consentimento individuais, foram obrigadas a dar conta das estruturas do Estado-nação e das grandes massas de composição da democracia moderna. Emergiu, então, uma concepção mais social do sujeito, o que possibilitou classificá-lo como um sujeito sociológico. Na noção de sujeito sociológico, passa a haver uma consciência de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas formado na relação com outras pessoas, que mediavam os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava (Cf. HALL, 2002).

Já na segunda metade do século XX, o período da modernidade tardia, operaram-se grandes avanços na teoria social e nas Ciências Humanas. Uma das mudanças mais impactantes desses avanços foi o descentramento final do sujeito cartesiano e uma forçosa revisão do sujeito sociológico. Contemporaneamente, os processos de globalização se intensificaram de forma acelerada, e as identidades, que compunham as paisagens bem mais estanques de outrora, estão entrando em colapso. Devido a mudanças estruturais e institucionais, o próprio processo de identificação, pelo qual nos projetamos em nossas identidades culturais, sofreu considerável ampliação em seu caráter provisório e variável, tornando-se mais complexo.

Com a multiplicação dos conteúdos e sistemas de representação cultural, temos sido confrontados por um número exponencialmente crescente de identidades possíveis e, ao mesmo tempo, bastante cambiantes, com as quais, ainda que de modo temporário, poderíamos nos identificar. É a partir desse contexto que se pode conceber o delineamento de um novo sujeito, um sujeito pós-moderno.

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Conforme nos orienta Hall (2002, p. 41), tudo que dizemos tem um “antes” e um “depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento - a identidade, mas ele é constantemente perturbado pela diferença. Por essa razão, Hall (2002) propõe que, em vez de falar da identidade como algo acabado, deveríamos falar de identificação.

Se tomamos a ideia de Lévi-Strauss4 (apud CUCHE, 2002, p. 95) de que toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos [...] e que todos esses sistemas buscam exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social, e mais ainda, as relações que estes dois tipos de realidade estabelecem entre si e que os próprios sistemas simbólicos estabelecem uns com os outros,

podemos vislumbrar a relação incontestável existente entre língua, cultura e identidade. Segundo Strauss5 (apud CUCHE, 2002, p. 94), podemos pensar a língua como uma condição da cultura, já que é por meio da língua que o indivíduo adquire a cultura de seu grupo. A língua, que também é um sistema simbólico, é um fenômeno social que contribui em grande escala para a construção dos sistemas simbólicos que compõem a cultura, visto que se elogia, critica-se, instrui-se, informa-se por meio das palavras. Como afirma Cuche (2002, p. 94), “língua e cultura estão em uma relação estreita de interdependência: a língua tem a função, entre outras, de transmitir a cultura, mas é, ela mesma, marcada pela cultura”. Dessa forma, a língua, sendo um fenômeno social e de interação, tampouco escapa da abrangência cultural. A língua faz parte da cultura e a cultura está presente na língua, pois “[...] a atividade linguística é uma atividade simbólica, o que significa que as palavras criam conceitos e esses conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo” (FIORIN, 2005, p. 56). Ainda, se pensarmos a cultura no contexto de determinada sociedade – e fazer parte de determinada sociedade é diferenciar-se culturalmente – estaremos pensando novamente em categorização, porque “[...] nenhum ser do mundo pertence a uma determinada categoria; os homens é que criam as categorias e põem nelas os seres” (FIORIN, 2005, p. 57).

Nesse contexto de interdependência entre língua e cultura, surge a construção da identidade, ou como prefere Hall (2002), o processo de identificação. A língua se realiza em um contexto social, a cultura se realiza em um contexto social e não há

4 Lévi-Strauss, C. Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologie et

Anthropologie. Paris: PUF, 1950.

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como ser diferente com a identidade. Além disso, a identidade reveste-se da língua e da cultura para ser composta. É no estabelecimento da identificação que verificamos a existência essencial da língua e a presença inevitável da cultura. A identidade se revela nas nomeações categorizadas (“os brasileiros”, “os espanhóis”, “os africanos”, “os nordestinos”, “os cariocas”, eu, tu, ele etc.) por meio da língua e na modalidade de categorização através da distinção ‘nós/eles’ baseada na diferença cultural (Cf. CUCHE, 2002). As definições “brasileiros”, “espanhóis”, “cariocas”, por exemplo, são apenas metafóricas, “[...] pois essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes” (HALL, 2002, p. 47); são construções culturais feitas por meio da língua. Portanto, construir uma identidade é um trabalho que se desenvolve dentro de contextos sociais, os quais definem o posicionamento dos agentes e, consequentemente, norteiam suas representações e escolhas.

“O conceito de identidade é difícil de definir”. Essas são as palavras iniciais do verbete ‘identidade’ no Dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2006b, p. 266). Com efeito, para explicar ‘identidade’, outros conceitos tão ou mais complexos – como o de sujeito e cultura, por exemplo – são necessários para dar conta da profundidade de sua significação. Assim, estabelecer uma demarcação para o termo torna-se uma tarefa dificultosa, considerando a vastidão e a porosidade das ciências humanas e sociais.

Segundo Charaudeau e Maingueneau, convém acrescentar ao conceito de identidade a noção de alteridade, pois essa noção “[...] permite postular que não há consciência de si sem consciência da existência do outro, que é na diferença entre ‘si’ e ‘o outro’ que se constitui o sujeito” (2006b, p. 266). Essa concepção aproxima-se do que Hall (2002, p. 11) define como sujeito sociológico, em que “[...] a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade”. Ainda segundo Hall (2002, p. 11-12), nessa concepção sociológica,

[...] a identidade [...] preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.

Referências

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