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Representações do estrangeiro na obra Terra Brasil: curso de língua e

4 ANÁLISE DO CORPUS

4.7 Década de 2000

4.7.2 Representações do estrangeiro na obra Terra Brasil: curso de língua e

cultura

Terra Brasil: curso de língua e cultura foi selecionado para representar a década de 2000. Tem como autoras Regina Lúcia Péret Dell’Isola e Maria José Apparecida de Almeida. Foi publicado em 2008 pela editora UFMG, de Belo Horizonte. O didático ora examinado conta com quase 300 páginas, distribuídas em 12 unidades, que compreendem diálogos, uso comunicativo, tarefas, textos para leitura,

atividades de escrita e de produção de texto, compreensão auditiva, fonética, aspecto cultural e sistematização gramatical. As unidades estão subdivididas nas seguintes seções: Diálogo introdutório, “Na ponta da língua”, “Guarde bem”, “Bate-papo”, “Sistematizar é preciso...”, “Leio, logo entendo”, “Ouça bem!”, “Sons da terra”, “Desafio: tarefa comunicativa” e “Almanaque Brasil”.

Os textos distribuídos pelas diversas unidades e seções são de variados gêneros. Entre os verbais, além dos didáticos (dialogados ou não) criados pelas autoras, registram-se textos de gêneros como matéria de periódico, lenda, conto, lista, biografia, cupom. No que se refere aos não verbais, observam-se além dos desenhos ilustrativos, outros gêneros como fotografias, mapas, plantas. Associando o componente verbal com o não verbal, temos textos dos gêneros publicidade e quadrinhos, entre outros.

O livro apresenta três anexos. Estes abarcam tópicos de fonética, gramática e os textos completos das atividades de compreensão auditiva.

A obra se destina a estudantes de qualquer nacionalidade. As primeiras quatro unidades são direcionadas aos alunos iniciantes no estudo da variante brasileira do português. As unidades restantes estão reservadas para aprendizes que conhecem a língua em nível básico e querem se aprimorar.

Na apresentação, as autoras informam que buscaram priorizar o aspecto mais formal da Língua Portuguesa, privilegiando a norma padrão da língua. Adicionalmente, fornecem a explicação sobre os objetivos e funcionamento de cada atividade proposta nas unidades. Segundo Dell’Isola e Almeida, o propósito geral do Terra Brasil é servir como um apoio capaz de viabilizar a aquisição das habilidades de ouvir, falar, ler e escrever em português do Brasil.

Os textos verbais e não verbais examinados na obra Terra Brasil são os do diálogo introdutório de cada unidade e os que constam das seções “Diálogo”, “Leio, logo entendo” e “Almanaque Brasil”. Essas seções foram selecionadas para exame porque nelas se apresentam os textos verbais e não verbais que atendem aos objetivos e critérios desta pesquisa.

No que diz respeito ao estrangeiro nesse material representativo dos anos 2000, listamos as seguintes ocorrências:

Já na capa do livro, encontramos uma ilustração inusitada. Sobre um fundo tropical, quatro figuras humanas nos remetem às quatro etnias: o branco, o negro, o amarelo (asiático) e o pardo (indígena). O que nos surpreende é o fato de a

representação das figuras dos quatro personagens, que remetem às raízes do povo brasileiro (europeu, africano, índios, orientais), não estar de acordo com o esperado, segundo o nosso conhecimento em relação à representação dos contextos de origem das vestimentas de cada etnia. Vejamos: um homem branco, alto, louro, de olhos claros, sem camisa, com cocar e vestes de indígenas (sobre uma bermuda); uma mulher afrodescendente portando um quimono, como uma asiática; um homem asiático vestido com roupa de tirolês; e uma indígena enroupada com o vestuário comumente usado por africanos. Podemos ver aí uma representação de nosso povo como um amálgama das populações indígenas nativas com os estrangeiros que, ao longo do tempo, a eles se juntaram. Essa mescla de etnias na composição do povo brasileiro é reforçada pelo diálogo da página 11.

Na unidade 5, página 105, no diálogo “No restaurante”, surge a personagem Jennifer, norte-americana, acompanhada de Renato, brasileiro. Os dois estão em um restaurante de comida mineira, e Jennifer vai deixar a dieta de lado para experimentar a comida típica e seguir o dito brasileiro “barriga cheia, coração contente”. No texto, não há qualquer pista sobre a nacionalidade de Jennifer. O que nos permite inferir que ela é estrangeira/americana é o seu nome (embora esse nome já seja muito utilizado no Brasil), a menção que a moça faz ao dito brasileiro e o fato de, na atividade de interpretação relacionada ao diálogo, surgir a pergunta: “Em geral, norte-americano gosta de comida latino-americana?”. Para contribuir com essa suposição advinda da parte verbal, há uma ilustração que remete aos dois personagens no restaurante. Nesse desenho, Jennifer está retratada com cabelos louros e olhos claros, o que nos possibilita admitir sua ascendência americana.

Na unidade 5, página 128, no diálogo “Convite para dançar”, o personagem Quico convida Nara para uma noite de dança. Esta declina do convite porque já tem compromisso com o Steve Clark (pelo nome, supõe-se que é americano ou inglês), a quem Quico descreve como “gringo branquelo, sem graça, desengonçado e bobão”. Nara, por sua vez, retrata o estrangeiro como uma pessoa “superinteressante”, que conhece muita gente e que sabe muito sobre o Brasil, incluindo todos os estados do país. Na ilustração relacionada ao diálogo, não existe nada que nos autorize a reconhecer Steve como um estrangeiro.

Na unidade 7, página 178, no “Almanaque Brasil”, encontramos a menção ao médico alemão Christian Samuel Hahnemann (1755-1843), que aos 34 anos de idade desistiu da Medicina por não suportar ver tanta gente morrer em consequência de

tratamentos alopáticos. Após largar a Medicina, Hahnemann decidiu se dedicar à tradução, já que falava sete línguas.

Na unidade 9, página 226, no “Almanaque Brasil”, no texto sobre Santos Dumont há menções aos franceses e ao rei de Portugal D. João V.

Na unidade 11, página 256, no diálogo “Mãe careta”, a mãe, ao conversar com a filha (que namora um estrangeiro - como se chama Giacomo, presumimos que o estrangeiro seja italiano - e vai estudar no exterior), faz alusão aos italianos: “Piano, piano se va lontano, dizem os italianos”.

Na unidade 11, página 260, em “Leio, logo entendo”, há cinco poemas de Olavo Bilac. Três deles são dedicados ao estrangeiro. Um deles, ao povo fenício (“Os fenícios”), que são descritos como “ávida gente, ousada e moça”; outro, aos bárbaros (“Os bárbaros”), retratados como “um bando de lobos”, “torvos, brutais, cabeludos e feios”; e o terceiro faz alusão ao povo de Israel, “raça” foragida que “corre os desastres da vida, insultada na pátria e odiada no estrangeiro [...] a errar de porto em porto, entre as imprecações e os ultrajes do mundo”.

Na unidade 11, página 264, no “Almanaque Brasil”, no texto “Vera Cruz, Santa Cruz, Brasil”, ilustrado com reprodução do quadro de Victor Meirelles sobre a primeira missa em nossa terra, observamos referência a estrangeiros: “Pedro Álvares Cabral”, “Cristóvão Colombo”, “Américo Vespúcio”, “Papa Alexandre VI”, “os portugueses”, “franceses”, “espanhóis” e “alemães”. (ANEXO P)

Na unidade 12, página 267, no diálogo “Terra Brasil”, Jean-Paul é personagem fictício. É um ex-aspirante a padre que se encanta pela terra Brasil e por Rosa, uma brasileira, com quem terá um filho.

Com base nos dados colhidos nos textos analisados na obra de Dell’Isola e Almeida, quase todos de sua autoria, podemos afirmar que o livro acompanha a realidade da época em que está inserido: o novo milênio. Exibe, já na capa, uma tendência ao apagamento de fronteiras e impossibilidades, sugerindo uma maior integração entre as etnias, a despeito de todo preconceito que ainda existe, e demonstrando uma disposição de amenizar diferenças culturais e identitárias.

Notamos que no didático ora examinado as autoras não fazem qualquer referência direta aos imigrantes alemães, italianos, portugueses, espanhóis, japoneses ou outros que aqui chegaram no século XIX e início do XX. No entanto, em dois textos presentes no livro de Dell’Isola e Almeida, há duas alusões relativas à

presença desses imigrantes feitas de forma indireta: uma no diálogo da primeira lição (p. 11-12), chamado “Primeiro encontro”, e outra em um exercício (p. 101).

O diálogo pretende exibir o contato entre alunos e professor em um primeiro dia de aula. A respectiva professora entra na sala de aula onde diversos alunos já a esperam, apresenta-se como professora de Português, e inicia o processo de apresentação dos estudantes. Todos os alunos que ganham voz no diálogo revelam, por meio de seus sobrenomes, origem de contexto não brasileiro, o que leva a professora a pensar que os aprendizes são estrangeiros. Entretanto, ao tentar confirmar as origens dos estudantes, a professora percebe que são todos nascidos no Brasil, falantes da língua portuguesa e, portanto, não estrangeiros. Após algumas suposições não confirmadas sobre o país de nascimento dos aprendizes baseadas nos respectivos sobrenomes, a professora, que de fato leciona Português para Estrangeiros, deduz que entrou na sala errada, pois nesta há somente brasileiros. O que fica claro nesse diálogo criado pelas autoras, em consonância com a mescla de etnias sugerida na capa, é a presença do imigrante em nosso território e sua interação com o brasileiro, uma vez que os estudantes são, a julgar pelos sobrenomes mencionados, descendentes de alemão, italiano, japonês.

Com relação ao exercício que faz referência indireta aos imigrantes, especificamente aos italianos, aparece na página 101 do didático da seguinte maneira: “A imigração italiana no Rio Grande do Sul tem início no século XIX”.

Tendo em vista que a remissão aos imigrantes na obra representativa da década de 2000 aparece apenas das duas formas descritas nos dois parágrafos anteriores, podemos asseverar que a representação do estrangeiro em Terra Brasil não se revela no papel do imigrante do século XIX e início do século XX.

Os estrangeiros que estão referidos na obra estão distribuídos entre personagens fictícios, criado pelas autoras, e agentes da história brasileira e mundial. Percebemos que, no didático em tela, dos três personagens fictícios (Jennifer, Steve Clark e Jean-Paul), dois têm a oportunidade de falar em primeira pessoa: Jennifer e Jean-Paul. A primeira chega a manifestar um certo conhecimento sobre a cultura brasileira, ao citar um dito popular. O segundo revela um amor pelo Brasil e pela brasileira que o fez desistir da batina. Steve Clark, por sua vez, apesar de não ter fala no diálogo, é caracterizado como um estrangeiro (Americano? Inglês?), “branquelo e sem graça”, que tem um bom conhecimento do Brasil. Os casos desses três estrangeiros fictícios refletem uma representação do estrangeiro de uma nova era:

indivíduos de contexto de origem diferentes do nosso que apresentam bom conhecimento do país, que têm amigos brasileiros e que decidem viver no Brasil por razões outras que não o trabalho.

Quanto a Pedro Álvares Cabral, Américo Vespúcio, Papa Alexandre VI, D. João V, Dr. Hahnemann, os portugueses, os franceses, os espanhóis, os alemães, os italianos, os fenícios, os bárbaros, o povo de Israel, todos representam, mais uma vez, os agentes da História que, de alguma forma, penetraram em algum momento na história do Brasil ou figuraram na história do mundo.

Verificamos, então, que no didático representativo da década de 2000, o estrangeiro é representado na figura de personagens simbólicos, de amigos, de médico, de personagens históricos, de namorado, de povo/gente e de cônjuge.