• Nenhum resultado encontrado

Representações do estrangeiro na obra Mil palavras em português para

4 ANÁLISE DO CORPUS

4.3 Década de 1960

4.3.2 Representações do estrangeiro na obra Mil palavras em português para

estrangeiros

A obra representativa da década de 1960, Mil palavras em português para estrangeiros, é de autoria de Eli Behar e foi publicada pela editora Hemus, localizada em São Paulo, no ano de 197015.

Datada de 1970, a publicação representa um acúmulo linguístico, social, cultural e editorial da década anterior. Essa é uma das razões pelas quais a escolhemos para retratar o nosso estudo referente aos anos 1960.

O manual de Behar não contém uma apresentação, tampouco um prefácio. Dessa forma, não há, no livro, qualquer registro direto do autor sobre os objetivos da obra ou o público a que se destina. Não obstante, podemos estabelecer uma hipótese a partir do título do manual, que indica que se trata de um material para ensino de língua portuguesa para estrangeiros, com ênfase no ensino do vocabulário da língua- alvo.

Conforme explicação introdutória no livro, sob o título de “Gramática”, observamos que o autor organizou sua obra baseando-se na divisão da Gramática proposta pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), seguindo a recomendação da portaria nº 36, de 28 de janeiro de 1959, do Ministério da Educação e Cultura para

15 A referida obra de Eli Behar foi analisada por Carvalho sob a ótica das representações do trabalho

em tese de doutorado, defendida em 2015 na UFF. Carvalho, A.M.M.G.L.de. Representações do trabalho em textos de materiais didáticos de português para estrangeiros publicados no Brasil do século XX. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2015.

o ensino da língua portuguesa. Segundo a NGB, a Gramática pode ser dividida em três partes: Fonética, Morfologia e Sintaxe. Assim sendo, o manual de Behar encontra- se partido nessas três grandes seções.

Cada uma dessas três partes encontra-se subdividida em alguns pontos gramaticais pertinentes a sua abrangência. Explicações teóricas são expostas em cada um desses itens gramaticais. Após cada intervenção teórico-explicativa, um reduzido número de exercícios de fixação é oferecido. Posteriormente, curtos textos são disponibilizados, seguidos de vocabulário relacionado traduzido para os idiomas inglês, francês, italiano e alemão. No total, são 44 lições (não numeradas) que, em sua maioria, seguem o padrão explicação teórica do ponto gramatical – exercícios de fixação – texto seguido de vocabulário.

Além das 44 lições, antes do início da separação das três partes da Gramática, o livro fornece dois outros textos com vocabulário: o hino nacional brasileiro e um trecho narrativo-descritivo sobre o descobrimento do Brasil.

O didático contabiliza 77 textos verbais seguidos de vocabulário e 92 textos não verbais. Dos 92, 18 estão acompanhados de um diálogo e não se referem a nenhum dos 77 textos acima referidos.

Os textos escolhidos pelo autor para trabalhar o vocabulário da língua portuguesa foram de diversas naturezas: listas (de perguntas e respostas, de cumprimentos, de expressões relacionadas a hora, de cores, de expressões de cortesia etc.), descrições (dos dias da semana, dos membros da família, das unidades de medida usadas no Brasil etc.), expressões dialogais em situações específicas (no hotel, na sapataria, no restaurante, na relojoaria, nos correios, no dentista etc.), passagens sobre a história do Brasil, poesia e fragmentos de textos da prosa literária brasileira.

Para os objetivos desta pesquisa, analisamos os 77 textos verbais e os 92 textos não verbais. Os textos verbais são em grande parte criados pelo próprio autor para as propostas de ensino da lição, ou seja, são do gênero didático. Há ainda, entre os verbais, textos do gênero poesia, textos literários em prosa (integrais ou segmentados) e biografia. Entre os textos não verbais, registram-se apenas desenhos ilustrativos, muitos com intenção humorística.

Com relação ao estrangeiro no material didático de Eli Behar, segue o que encontramos:

Na capa e contracapa, ao lado de paisagens (urbanas e rurais) e tipos brasileiros de diversas regiões, podem ser observados desenhos ilustrativos que remetem a representações de francês (elegante, de boina, degustando um café), americano (gravata borboleta, pose de estátua da Liberdade, só que empunhando um isqueiro no lugar de uma tocha). Além disso, podemos observar uma figura híbrida de português e gaúcho (bigodes fartos, bomba de chimarrão e laço). São personagens que contemplam um cunho simbólico16 acerca de suas origens. (ANEXOS E, F)

Na página 14, há um texto, cujo título é “Descobrimento do Brasil”, atribuído a Pero Vaz de Caminha. No texto, não há qualquer menção ao estrangeiro. Relacionada a esse texto, está uma ilustração que faz referência ao primeiro contato visual do navegante com a nova terra, descrito no texto de Caminha. Não sendo o nauta um nativo da terra descoberta, podemos inferir que a ilustração faz referência aos descobridores oficiais do Brasil, os portugueses. Parece-nos, segundo a ilustração, que o português navegante, caracterizado com indumentária da época, está feliz com o descobrimento de uma nova terra.

Na página 50, em uma ilustração relacionada ao texto “Na Alfândega”, aparece um indivíduo com vestimentas que aludem a um não brasileiro (Árabe? Indiano?). Esse estrangeiro, que está carregando um número muito grande de malas, está sendo observado por um oficial, que lhe aplica um olhar desconfiado.

Na página 118, há um desenho humorístico em que figuram três personagens: duas moças e um senhor. Eles parecem estar em uma galeria de arte. O senhor, com bolsos cheios de dinheiro e portando um chapéu do tipo cartola, observa as telas em exposição. Uma das moças comenta com a outra: “Não entendo nada de arte, mas aquele turista me agradou”.

Na página 133, deparamo-nos com o texto “Descoberta e Primeiros Habitantes”, semelhante a outro presente na obra de Töpker (1948) aqui estudada. Nesse texto, fala-se no “almirante português Pedro Álvares Cabral”. D. Manuel, rei de Portugal à época do descobrimento do Brasil, é somente citado, sem ter sua origem declarada.

16 Criamos a categoria “personagem simbólico” para classificar a representação do estrangeiro que se

configura por meio de um ou mais símbolos que remetem ao contexto de origem do personagem. Essa classificação está baseada na concepção de cultura como sistema de símbolos, referida no capítulo relativo ao referencial teórico deste estudo.

Na página 138, novamente encontramos um texto similar a outro utilizado por Töpker (1948). Trata-se do excerto sobre Diogo Álvares Correia (Caramuru) e João Ramalho, dois navegadores portugueses que conseguiram se salvar de seus respectivos naufrágios no litoral brasileiro e que se casaram com índias da nova terra. No texto, não há referência direta à origem dos dois. No entanto, como é mencionado que o navio do primeiro era português, infere-se que o marinheiro também era português. Quanto a João Ramalho, não há alusão à origem no navio, mas se informa no final do texto que ele ajudou os portugueses a colonizar o Brasil. Podemos supor, portanto, que João Ramalho também era português.

Na página 143, figura o texto “Brasil – o primeiro galicismo”, atribuído a João Ribeiro, jornalista e crítico literário que faleceu na década de 1930. O fragmento versa sobre os primeiros usos da palavra ‘brasil’. No texto, são mencionados os italianos e os franceses. Segundo Ribeiro, os primeiros seriam os responsáveis pela transmissão da palavra ao Ocidente, e os últimos, os divulgadores do nome ‘brasil’.

Na página 161, no texto “Os Bandeirantes” faz-se menção ao português Bartolomeu Bueno da Silva, embora no texto não haja registro de seu contexto de origem. O mesmo ocorre com D. João V, rei de Portugal no período relatado.

Nas páginas 199-200, no texto “A Fronteira”, de Olavo Bilac e Coelho Neto, encontramos a seguinte passagem: “[...] contentes por terem defendido a fronteira, da qual eram os guardas fieis, contra as mãos rapaces do estrangeiro”. (ANEXO G)

Na página 227, no fragmento do texto “A Seca”, de Euclides da Cunha, localizamos: “Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra. Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra”.

Na página 279, no texto sobre Santos Dumont, verificamos: “Filho do engenheiro Henrique Dumont, descendente de franceses que para o Brasil se transferiram e aqui se vincularam [...]”.

Com base no que encontramos na obra de Behar, verificamos que, para fazer referência ao estrangeiro, o autor lançou mão de linguagem verbal e não verbal, esta última sendo utilizada em três ocasiões.

Com relação à utilização da linguagem verbal:

Verificamos que ao autor selecionou uma passagem de texto literário em que há menção ao estrangeiro por meio do emprego do próprio termo ‘estrangeiro’. No texto atribuído a Olavo Bilac e Coelho Neto, a representação do estrangeiro surge de

forma negativa, como dono de “mãos rapaces”, mãos que roubam. É importante ter em conta que o excerto literário de “A Fronteira” data do final do século XIX (ou início do século XX) e está inserido em uma coletânea de contos infanto-juvenis chamada Contos Pátrios17, uma parceria literária de Olavo Bilac e Coelho Neto, sendo o último, de fato, o autor de “A Fronteira”. Assim, para compreendermos melhor a representação do estrangeiro nesse conto, devemos levar em consideração: o título do conto, em que o tema remete à linha divisória entre países; a antologia a que pertence, que reúne textos pátrios, no sentido de pátria e de pai e mãe; e a época em que foi publicado, período em que algumas disputas territoriais ainda ocorriam na principiante república brasileira. De todo modo, como não há datas referentes ao conto nem a seus autores no manual de Behar, a representação que fica assinalada no texto literário escolhido para figurar no manual é a do estrangeiro larápio, daquele que carrega consigo um perigo para a nação. Embora o Brasil, à época da publicação do conto, ainda recebesse levas de imigrantes que para cá se destinavam com o objetivo de trabalhar e, consequentemente, contribuir para com o crescimento do país, a visão sobre o estrangeiro ainda se cercava de mistério e ameaça.

A respeito dos textos que versam sobre a história do Brasil, há majoritariamente a presença de personagens portugueses. O contexto de origem português, entretanto, não está necessariamente mencionado de forma direta, como é o caso dos reis de Portugal D. Manuel e D. João V, dos náufragos Caramuru e João Ramalho e do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva. Sabemos que são portugueses - e, portanto, estrangeiros - porque conhecemos a história do Brasil. O único caso de texto sobre a história do Brasil em que aparece apontada diretamente a origem do personagem é o caso do “almirante português Pedro Álvares Cabral”. Nesses casos dos personagens portugueses, o estrangeiro está representado no papel do navegante explorador e do colonizador, que interagiu com os nativos da nova terra e ajudou a desenvolvê-la, e na figura de personagens históricos (D. Manuel, D. João V).

Ainda sobre os textos que se ligam à história do Brasil, observamos a aparição dos italianos e franceses relacionados à origem do nome do país. Esses estrangeiros são representados como os verdadeiros “nomeadores” do Brasil, uma vez que o papel dos italianos foi o de trazer para o Ocidente o termo ‘brasil’, e o dos franceses o de difundi-lo aqui na nova terra, já que estes por aqui andavam mesmo antes da

17 Em levantamento para esta pesquisa, não foi encontrada a data da 1ª edição. Sabemos apenas que

colonização. Ademais, para dar lastro a essa tese, o autor do texto “Brasil – o primeiro galicismo” esclarece que não há registros documentais sobre a existência da forma ‘brasil’ entre os portugueses. Nesse caso dos italianos e franceses, o estrangeiro está representado no papel de navegador/explorador/colonizador.

Em relação aos outros estrangeiros mencionados diretamente por meio de suas origens em textos verbais, encontramos ocorrências de alusão aos peruanos e aos franceses. No caso dos peruanos, estão relacionados de forma ampla em texto de Euclides da Cunha, sendo utilizados como exemplo da humanidade que, diferentemente do nosso sertanejo, nunca se conforma com os desastres da natureza que cercam os humanos. Os estrangeiros peruanos representam o Outro semelhante a todos os outros humanos. O nosso sertanejo é que é configurado como diferente. Já os franceses, mencionados no texto sobre Santos Dumont, são representados na figura do imigrante que se estabeleceu no Brasil.

No que diz respeito às expressões não verbais, levantamos a ocorrência em referência ao estrangeiro em três ocasiões. Vejamos:

No primeiro caso, a ilustração está relacionada ao texto de Pero Vaz Caminha, que recebe o título de “Descobrimento do Brasil”. Ao fazermos a correspondência entre imagem e texto, que é de autoria de uma figura de origem portuguesa, pudemos supor que o personagem do desenho é um navegante português (provavelmente a alusão é a Pedro Álvares Cabral), que vê a nova terra (Brasil) pela primeira vez. Adicionalmente, a julgar pelas vestimentas típicas do nauta, pudemos inferir que se trata de um navegante explorador do período das grandes navegações. A mensagem da conjugação texto-figura é a de um navegador/explorador estrangeiro extremamente feliz com a visão da terra descoberta e, provavelmente, com as potencialidades do recém descoberto solo. Assim, entendemos que o estrangeiro está aqui representado no papel do navegante explorador português.

No segundo caso, identificamos um personagem que porta turbante, argolas, leva bigode, barbicha e um par de calçados que nos permitem associá-lo aos personagens do conto “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, de origem árabe. Nós não sabemos definir o contexto de origem do personagem. No entanto, baseando-nos nos símbolos de sua indumentária, pensamos que se pode tratar de um árabe ou indiano, um paquistanês ou um bangladechiano. O estrangeiro parece estar em um aeroporto, tendo em vista que carrega malas e está sendo observado por um senhor que parece ser um oficial alfandegário. Este lhe está lançando um olhar que combina

desconfiança e ironia. Não sabemos afirmar onde se origina o olhar do oficial: no preconceito com relação à maneira de vestir do estrangeiro? No regozijo de ver o outro em dificuldade ao carregar tantas malas? Na desconfiança sobre a quantidade de bagagem? Na suspeita acerca do conteúdo das malas? O que nos é possível admitir, contudo, é que o personagem estrangeiro é, de fato, representado como uma figura esquisita, como um estranho.

Na terceira ocorrência, localizamos uma alusão ao estrangeiro em um desenho humorístico, onde existem três personagens em uma galeria de arte: duas moças e um senhor. Reconhecemos que o senhor é estrangeiro porque as moças referem-se a ele como ‘turista’ e pelo fato de o ‘turista’ carregar consigo grande quantidade de dinheiro de maneira explícita em seus bolsos. Para engrossar a representação de turista/“gringo cheio do dinheiro”, soma-se a circunstância de os personagens estarem, aparentemente, em uma galeria de arte, local onde não se costuma encontrar objetos de baixo valor. Além dessas observações, cabe também chamar atenção para os trajes formais do estrangeiro, acrescidos de uma bengala e uma cartola. Sua indumentária nos leva a duas possibilidades de contexto de origem: um lorde inglês, pelo traje em si, ou um americano, pela cartola que nos remete a um dos símbolos dos Estados Unidos da América, o Tio Sam.

Também, na contracapa da obra, temos a remissão ao americano, conforme descrito no início dessa seção – uma versão da Estátua da Liberdade, com vestes modernas, gravata borboleta e isqueiro aceso em lugar da tocha.

Concluímos que, na obra de Behar, o estrangeiro é representado de mais de uma maneira: nos personagens simbólicos da capa e contracapa; na figura de personagens históricos (D. Manuel e D. João V); de forma ampla e levando em conta o fator humano, no papel do Outro semelhante, aquele que, em contraste com o nosso sertanejo que não se apavora frente à calamidade da seca que o rodeia, teme os fenômenos da natureza, como os peruanos que se atemorizam com os terremotos que os atingem frequentemente; no papel do navegador, explorador, colonizador português; na figura do imigrante, com os franceses; na figura do turista/“gringo cheio da nota”, como o americano na galeria de arte; e, igualmente de forma ampla, no papel do Outro ameaçador, como o estrangeiro “rapaz”, e o Outro estranho, como o “árabe esquisito”.

Grande parte das representações do estrangeiro na obra de Behar não remete ao contexto temporal em que esta se inscreve. A maioria das representações do

estrangeiro ou aponta para o passado ou remete à sua condição primeira de humano: teme as catástrofes da natureza; aflige-se com a ameaça do desconhecido; incomoda- se com o diferente.