M436d
15377/BC
DISPERSAO E MEMORIA NO QUOTIDIANO
MARIA AUGUSTA BASTOS DE MATTOS
a a
Orientaqor: Pro f. Dr. ENI P. ORLANDI
Tese apresentada ao Departamento de
güística do Instituto de Estudos da
Lin-guagem da Universidade Estadual de Campi
nas corno requisito parcial para a obten-ção do título de doutor em Ciências.A
Vaniel..
BM:to.õ
deMa..:ttM,
no
dia-a-dia
de no~~amernõnia.
Pana
V~gZniae
Canlab Mattob e
pana
E.
Cavalii,
~econhecidamente.e.m
1985/1986;ao
PJw6. Lu.W de.Io!Vi..a, c.a..te.d!Uitico de.
Pl.lic.ologi..a.. Soc.ia.t da Un.LveM-i-d.ade. "LaSap-ien.za" de.
Roma e.
SUMARIO
Página
INTRODUÇÃO. • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • O 1
CAPÍTULO I - Discurso do Quotidiano: Definição e
Abor-dagens. • • • • • • • • • • • • .. • • • • • • • . • . • • • • • • • • • • • O 4
- o
discurso oral . . . . 04- A
enunc1açao . . . .
.
-
07-Reflexões acerca da noção de tema... 12
-O discurso social...
15
CAPÍTULO II - A Conversa na Sociedade... 19
- Função social... 20
-Situação, conversa, discurso... 26
-História-da-conversa... 36
CAPÍTULO I I I - A Prática S o c i a l . . . 44
CAPÍTULO IV- A Construção do Quotidiano... 56
- Os atos de f a l a . . . 56
-A construção da conversa... 77
-A construção da familiaridade... 86
CONCLUSÃO •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 92
Num estudo centrado na Análise do Discurso e auxilia-do por teorias da enunciação e pela Teoria auxilia-dos Atos de Fala, pro
curamos caracterizar o discurso quotidiano e mostrar sua organi
zacão. Para tanto, redefinímos noções que o
cercam a saber,discurso oral, discurso social, enunciação e tema - e daí
perc~bemos que o discurso produzido pelo Quotidiano age
na
própria
estruturação da sociedade.
Existiria um jogo estabelecido entre a situação
so-cial - a margem de qualquer instituição - e o discurso quotidi~
no que nela se dá: a situação constitui o elemento mais signifi
cativo da relação do discurso com o social.
Propomos o cone e i to de conversa dentro de uma Teoria
do Discurso como parte integrante dessa relação, base do conver sar quotidiano; proveniente da função social de uma situação quo-tidiana, ela
é
11m.oto" dos discursos. Como ato social, suas re-gras provêm de formas de conversa que as situações sociaisins-titucionalizam - efeito de sentido entre interlocutores.
Cum-prindo uma função social e definindo-se discursivamente,
tere-mos as práticas sociais, lugar de observação lingüística das mar cas que o Quotidiano imprime a Conversa.
Outra noção básica foi a de História da Conversa: o
sentido
já
constituído, ao qual se recorre para que se dê o pr~sente da conversa do quotidiano. Mais que torhar presente o que e dado de memória, a conversa vai transformar o que
é
repetido: o Quotidiano tem a força da transformação tirada da repetição.v
ABSTRACT
In a study centered in the Discourse Analysis (French
trend) assisted by enunciation and speech act theories, we
in-tended to characterize everyday discourse and point out its
or-ganization. To do so, we have redefined notions that surround it,
narnely oral discourse, social discourse, enunciation and therne.
It has been noticed that the discourse produced by Quotid.ian acts
upon the structuring of society itself.
There should be an interplay between the social situa
tion - alongside of any situation - and everyday discourse thatoccurs in
it:the situation is the most significant element in
the relation between discourse and social dimension.We propose the concept of talk, within a
Discourse Theory, as an integral part of that relation, basis of everyday talke Corning from the social function of a quotidian situation, the concept is the mo tu o f discourses. As social act i ts rules come from talk forms that social situations institutionalize sense effect (11effect de sens") between subjects. Carrying outa social function and defining itself discoursively we have so-cial practices, the place. of linguistic observation
that the Quotidian impress to Talk.
o f marks
Another basic notion was the one o f History o f Talk: the already constituted sense, which is resorted to so that the present of quotidian talk h~ppens. More than turning present what is given by memory, talk will transform what is repeated:
the Quotidian has the force of transformation taken from repe-tition. Thus, Talk redimensions Quotidian.
Com a análise do discurso do quotidiano em diversas
situações de uso, pretendemos determinar suas características e
o modo pelo qual se dá sua organização. Partimos da concepção
empírica de discurso do quotidiano como aquele que não se enqu~
dra em nenhuma situação institucionalizada de ordem ou de
ensi-no e em nenhuma situação de tema relativo a profissão. A partir
daí, procuramos obter um material para análise que abarcasse vá
rios tipos de situações 11
quotidianas": situações de trânsito
{em ruas, paradas de ônibus, interior de coletivos, etc.), si-tuações de compra (em lojas, feiras-livres, bancas de jornal, etc.}, de prestação de serviço (em bancos, postos de gasolina, costureiras, cabeleireiros, imobiliárias, etc.), situações so-ciais (em bares, restaurantes, parques, reuniões informais, in-tervalos de serviço, etc.), situações caseiras e situações de aglomeração urbana (em torno a acidentes, em jogos, comícios, solenidades, etc.).
Em nossa pesquisa, a Análise do Discurso - cuja preo-cupação·- e a de compreender a produção de sentidos por sujeitos em condições sócio-históricas determinadas - dará um lugar sig-nificativo à Teoria da Enunciação, de que destacamos o interes-se na situação de comunicação estabelecida pela linguagem, e que observaremos enquanto formulação quotidiana.
Não desconhecemos que a busca da relação entre o enun ciado e a enunciação, desenvolvida por algumas teorias da Enun-ciação, distingue-se da metodologia pela qual a Análise do
Dis-02
curso lida com a exterioridade que envolve a linguagem. Podemos
observar esta divergência no fato de que a Análise do Discurso
considera que a relação entre o lingüístico e o social
é
irnanen
te, ou seja, que as condições de produção são constitutivas do
discurso, enquanto as teorias da Enunciação enfatizam
predomi-nantemente as relações intersubjetivas, não considerando
aspec-tos sócio-históricos e ideológicos mais gerais. Assim,
pode-se
dizer que, para as teorias da Enunciação, o foco é o que
chama-ríamos de micro-contexto das relações intersubjetivas, enquanto
que, para a Análise do Discurso,
o
ângulo de
abrangência e
maior, pois ela não trata apenas da apropriação individual da
linguagem mas também da forma social dessa apropriação, levando em conta, portanto, o macro-contexto.
Há, porém, uma contribuição específica e fundamental das teorias da Enunciação para a Análise do Discurso no que se refere
à
observação da relação entre o formal e o funcional, em situações de fala determinadas - e e esta a visão que procurare mos incorpJrar em nossa análise. Aqui vale ressalta r que nao se trata de mera aplicação dessa teoria mas de se entender que há um lugar para ela no próprio quadro epistemológico da Análisede Discurso, segundo a concepção que nos
é
apresentada porMi-chel Pêcheux e .Catherine Fuchs1• Três regiões do conhecimento científico, atravessadas por uma teoria da subjetividade, se ar ticulariam: a teoria das formações sociais e de suas transforma
(1) P~CHEUX, M. e FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e per~ pectivas. In: GADET, F, e HAK, I. (org.) Por uma análise automática do discurso. Campi-nas, Editora da UNIQL~P, 1990. pp.l63-246.
çoes (incluindo-se aí a teoria das ideologias) , uma teoria dos
mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação (a
Lingüís-tica) e uma teoria da determinação histórica dos processos de
significação (a Teoria do Discurso). Concebemos, a partir de Pê cheux, que a Teoria da Enunciação faz parte de um trabalho cri-tico de análise que propõe a enunciação não corno um simples sis
tema de operaçoes mas como o reflexo da ilusão do sujeito
enun-ciador de ser a fonte portadora de escolha, intenções edeci-soes.
Além das teorias da Enunciação, também contribui para nosso estudo a Teoria dos Atos de Fala,
já
que uma presençaca-racterística desses atos na organização do discurso quotidiano vai ser um dos elementos que podem nos encaminhar para compre-ender o discurso como atividade social.
04
CAPÍTULO
I
DISCURSO DO QUOTIDIANO: DEFINIÇAO E ABORDAGENS
Neste primeiro capítulo, gostaríamos de apresentar
con-ceitos que giram em torno do discurso do quotidiano na
perspec-tiva da Análise do Discurso e em outras teorias, tais como:
Pra~mática, Teoria da Conversação, Semântica Argumentativa, Etnogr~ fia da Fala, etc.
Para tanto, procuraremos mostrar como as noçoes de
discurso oral, enunciação, terna e discurso social - noçoes que
elegemos básicas para se compreender o discurso do quotidiano
-têm sido abordadas nas disciplinas lingüísticas voltadas para a
relação entre o lingtiístico e o social e, especialmente, como vem sendo tratadas pela Análise do Discurso. Por fim, procurar~
mos mostrar como iremos utilizar ou redefinir tais conceitos em nosso estudo particular sobre o discurso oral quotidiano.
o Discurso Oral
o discurso oral dialogado tem sido objeto de mui tos estudos, com enfoque especial na progressão do assunto em pau-ta, no processamento da informação no interior de uma unidade discursiva.
oral aspectos relativos
à
organização da informação e
à
aprese~tação formal da unidade discursiva. Quanto à organização comuni
cativa, o fluxo informacional pode ser contínuo ou descontínuo
(produzindo, neste último caso, ou um ritmo mais lento da fluência ou mesmo uma ruptura da progressão) .. Toma-se a descontinuidade como um dos traços que caracterizam sobretudo o discurso oral
dialogado, mais ainda que outros tipos de discurso oral.
O diálogo seria, então, uma produção bem pouco ou mes
mo nada planejada; além do mais, tenderia a explicitar os prece
dimentos envolvidos em sua formação a fim de facilitar a
com-preensão e garantir a interação comunicativa,
constituindo-se,
assim, em um discurso descontínuo. Os sujeitos falantes manifes tariam igualmente, durante o diálogo, a 11rnonitoração" de suas estratégias discursivas.
Duranti e Ochs, levando em consideração o dado situa-cional e a maior ou menor necessidade de monitoração contínua do discurso, apontam urna tendência da oralidade para o discurso não-planejado (sem reflexões prévias e sem preparação
orga;iza-tiva antecedendo sua enunciação), e uma tendência da escrita p~
ra o discurso planejado (pensado e preparado antes de sua
enun-. - )2
c1açao •
A fragmentaridade do discurso oral resultaria, nessa
perspectiva, da simultaneidade quase perfeita entre a manifes-tação verbal e a construção do discurso. Alia-se a isso o fato de que a desarticulação sintática e díscursí,va do diálogo se de
(2) DURANTI, A. & OCHS, E. Left-Dislocation Italian Conversation. In: Syntax and Semantics. v. 12. Nova Iorque, Academic Press, 1979.
06
ve também ao resultado do uso de estratégias facilitadoras da
comunicação. A partir dos postulados conversacionais de Grice,
firmam-se regras de uso sobre interrupção voluntária,
mudançade planejamento, inserção de uma explicação, correção, etc., que
garantiriam ao falante "ser claro", "ser original", "ser
verda-deiro", ou seja, procedimentos que lhe garantiriam seguir as
'1máximas da conversação11• Conforme Koch et ali i, a
desarticula-ção de construdesarticula-ção pode ser explicada por uma compensadesarticula-ção
pragm~tica em direção ao sucesso da comunicação
3
.
O fundamento dos estudos da conversação como estes ci
tados está na crença de que o sujeito falante domina sua expre~são lingüística e tem consciência da eficácia de sua enuncia-ção.
Nas páginas que se seguem, gostaríamos de criticar e~
sa posição ao relativizarmos os conceitos de domínio e de ciência comunicativa por parte do sujeito falante. Também cons-titui uma mudança significativa de ponto de vista a idéia de que
"
a linguagem não está mais fortemente ligada
à
informação. A lin guagem e entendida pela Análise do Discurso corno lugar de cons-tituição de identidade, como argumentação, mediação, ação trans formadora, ou seja,, a interlocução não é mais considerada troca de informações e sim marcada pelo funcionamento discursivo en-quanto atividade estruturante que se dá em condições de produ-ção determinadas.'
' "
(3) KOCR, I.G.V. et alii. Aspectos do processamento do fluxo de informaçao no discurso oral dialogado. In: CASTILHO, A.T. (org,) Gramática do Portugu€s falado. v. I. Campinas,
Essa nossa perspectiva não nos impede de acreditar
-bem ao contrário, ela mesma nos impulsiona a essa crença - que
o discurso oral seja, se não planejável (já que isso foge de
nossos pressupostos teóricos), ao menos sistemático. Com essa posição, opomo-nos a Duranti e Ochs que, no mesmo trabalho, su~
tentam que a conversa espontânea
é, por definição, não
planejá-vel mas administrada pouco a pouco, na medida em que o assunto,
o modo de dizer e os interlocutores seriam elementos só previs!vis para seqfiências bem limitadas. Através de nossa análise dos
dados de situações quotidianas de diálogo, veremos que a
previ-sibilidade das conversas se dá num âmbito diverso; em outras pa
lavras, não se trata de uma administração paulatina da conversa por parte do sujeito dependentemente de dados situacionais, mas da inserção dos sujeitos num processo dinâmico que se dá entre o ato de conversar e a situação - conforme definiremos ao longo deste estudo~A Enunciação
Numa teoria do discurso na qual gostaríamos de incluir nosso trabalho, a significação não se encontra no nível de um sujeito psicológica ou socialmente marcado; tampouco o discurso
é
visto como manifestação de intenções. Uma teoria do discurso prescinde de qualquer psico-sociologismo, como também prescinde di.) positivismo {pelo qual o discurso é estudado em sua distri-buição sintagmática) e de todo realismo ingênuo (pelo qual o discursoé
tido como espelho do mundo}.08
Desse modo,
é
oportuno lembrar o que diz Parret sobre discurso e enunciação. Uma Teoria do Discurso deve ser, segun-do ele, uma teoria da instância de enunciação (queé
tambémefeito de enunciado). Entretanto, como nem toda enunciação
é
enun-ciada, um efeí to de enunciado deve ser reconstruído por um
es-forço de interpretação
já
que ele não está sempre presente noenunciado sob forma de marcadores ou indicadores
rnorfo-sintáti-cos ou semântico-sintátirnorfo-sintáti-cos.
A
reconstrução - a descoberta dainstância de enunciação - se dá pela transposição de sentidos 4
Parret nos apresenta, nesse seu trabalho, outros
as-pectos que nos são úteis para a demarcação de nosso percurso de
análise do material lingüístico, e que continuamos a apresentar abaixo.
A enunciação nao está empiricarnente presente em
mar-cas convencionais, nos diz Parret, criticando Austin por ter r~
duzido a Pragmática ao nível da enunciação: para este, toda enun ciação estaria na perforrnatividade e toda performatividade
se-.
ria expressa por fórmulas ou por convenções performativas, o que significaria, para toda enunciação, estar na empiria do enuncia
do. ~ verdade que há marcas convencionais inventariadas pela
gramática, pela teoria dos atos de fala, pela análise conversa-cional, .mas elas seriam apenas a ponta do "iceberg11 enunciativo.
Segundo Parret, o interesse pela enunciação deve se
localizar em sua dimensão discursiva; portanto, na instância enun
ciação/efeito de enunciado. A enunciação, para ele, deixa de ~
(4) PARRET, H. L'énoncíation en tant que déíctisation et modalísation. In: Langages, 70.
meta-discurso ou meta-enunciado (o que se poderia deduzir da
afirmação de Greimas de que a enunciação
é
"logicamentepressu-posta
11pelo enunciado) para ser péri(ou para)-discurso ..
Contra-riamente às idéias de Austin, a enunciação não está no
enuncia-do (assim como a causa não está na conseqüência) , mas o
enunci~do e a enunciação seriam como o "corpo" e seu suplemento5 .
Interessa-nos igualmente a segunda questão importante
debatida por Parret ao lado dessa sobre a convencionalidade da
enunciação: trata-se da relação entre a enunciação e a
signifi-cação. Houve uma longa tradição lingüística que pregou aauto-nornia da Semântica, a sua pureza (Carnap,
Greimas e outros). Com a abertura da Semântica para o mundo, afirma Parret, deu-se um passo que, no entanto, manteve marginalizada a enunciação.t
o caso dos estudos de Frege de sentido, referência e força:
aí,
a força {ou tensão de produção} só se associa ao sentido e a referência que respondem, estes sim, pela significação completa e acabada de uma expressão. Também Searle sustenta a autonomia total do conteúdo proposicional quando prega que as condições de conteúdo proposicional de um ato de fala são determinadas por outros tipos de condições. Com raras exceções, as teorias lin-güísticas e filosóficas do discurso vão sempre apresentar a enun ciação como um excedente (11
surplus") da significação.
Numa 11Pragmática integrada" -
é
o que propoe Parret-,(5) Parret emprega o termo supplément distinguindo-o de surplus: enquanto este Último represe!! ta aquilo que excede, o que vem por acréscimo, o que é acidental ou arbitrário, supplê-ment seria o que se ajunta para constituir um todo, uma unidade. Parret baseia-se na "lÓ
-
gica do suplemento ou da diferença" de Derrida, para quem "o suplemento ê uma adição, um -significante disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso" [GLOSSÁRIO DE DERRIDA, pp.88-9l].10
a enunciação está em toda parte onde há significação. No
entan-to, e isso já foi dientan-to, ela não se encontra aí sob forma de uma
presença empírica, observável e determinável por roetodologias
semânticas tradicionais. Ela está aí como condição de possibili
dade, portanto, como resultado de uma transposição. Para P~t,
a Semântica autônoma é urna ilusão pois pretende estudar os
dis-cursos abstraindo suas condições enunciativas de produção en~
to que a enunciação deveria ser vista, ao contrário, como um su
plemento básico da significação.
Para dar conta do sentido, então, surgiram outras dis
ciplinas que passaram a levar em conta aspectos até então consi derados como externos a significação. São justamente os estudos
da linguagem mais voltados para o aspecto social (Sociologia da
Linguagem, Sociolingfiística e outros) que vão ter a produção so
cial
do sentido como seu objeto de interesse. Nesse âmbito,en-tram questões relacionadas
à
utilização dos discursos pelosin-terlocutores e a sua circulação na sociedade. :E nesse momento
da história dos estudos da linguagem que se entende que fatos
de língua e discursos são indissociáveis e que se caminha para as gramáticas e teorias textuais: nelas se estudam conceitosgra maticais relacionados ao discurso (ambigüidade, ··paráfrase, eli,E se, seqftencialidade); nelas se abordam discursivamente fatos de língua (anafóricos, determinantes, conectivos em geral).
Quanto
à
Análise de Discurso, ela vai se interessarnão pelos enunciados mas pelo 11
cotexto11
e pelo ,. intratexto11 :
por cotexto, Guilhaumou e Maldidier entendem não b contexto his tórico nem o contexto lingüístico mas os enunciados dispersos
num .,arquivo" determinado 6; intratexto
é
definido como sendo
arelação entre as seqüências de enunciados e entre as seqüências
e o fio do discurso, tanto no eixo da situação de enunciação
quanto no eixo da organização da narrativa 7 .
~por
levar em conta a materialidade lingüística que a Análise do Discurso vai
abrir caminho para a realização de análise de enunciados disse-minados que não se referem estritamente ao corpus do trabalho. Trabalhando assim, a Análise do Discurso, longe de se preocupar em mostrar o que o texto esconde, quer justamente revelar sua
opacidade. Pela Análise do Discurso se percebe que o sentidonão
é
internoà
língua (daí sua ruptura com abordagens semânticastradicionais) e que o texto não deve ser estudado com o intuito de se recuperar o referente, sem se levar em conta sua materia-lidade lingüística (e daí sua ruptura com leituras puramente re ferenciais).
Se o sentido não
é
internoã
língua e se as leituras nao devem ser estritamente referenciais, deve haverregularida-.
des (discursivas) de organização das produções lingüísticas, as quais compete ã Análise de Discurso formular e demonstrar.
Afi-nal, segundo Pêcheux, o saber teórico que preside a escolha dos dados
é
o mesmo que permite sua interpretação: o que a Análise de Discurso vai fazeré
reconstruir os passos do proces.sodis-cursivo, compreender o seu modo de funcionamento. A tarefa da
(6) Arquivo, segundo J. M. Marandin, é o 11conjunto de regiÕes heterogêneas de enunciados pro-duzidos por práticas discursivas irredj'ut!veis". Apud: MAINGUENEAU, D. Nouvelles
tendan-~ ( ••• ) p.85.
(7) GUILHAUMOU, J. & MALDIDIER, D. Coordination et discours 1'Du pain et X" à l'époque de la
Révolution Française. Apud: ROBIN, R. Le discours social et ses usages. CAHIERS DE RE-CHERCHE SOCIOLOGIQUE, v,Z. n.l. Quebec, Universidade de Quebec, abril 1984.
12
Análise de Discurso nao e a de atribuir um sentido mas a de
ex-por o leitor à opacidade do texto
1segundo Pêcheux. Este
prece~so, ou seja, a possibilidade de produção de sentido, opõe-se
à
interpretação, processo que consiste na decisão sobre um
senti-do, tal como
é
vista pela Hermenêutica.
Em nosso caso particular, compreender o funcionamento
do processo discursivo da oralidade quotidiana implicará em foE
mular as regularidades em seus três aspectos: enunciativo,
lin-güístico e discursivo.
Reflexões Acerca da Noção de Tema
A
noçãode tema que nos vem através de estudos lingftís
ticos textuais ganha, com a perspectiva discursiva de J.M. Ma-randin, uma nova dimensão. Este autor apresenta-nos, num estudo acerca da narrativa, noções que necessariamente estãoimplica-.
das na definição de terna discursivo já que o terna, segundo ele, nao se define por si 8 . Seriam estas as noções que ele aponta:
a) a primitiva, de ser a propósito de algo;
b) a idéia de que urna informação é comunicada a pro-pósito de algo;
c) a idéia de coerência, de seqfiencialidade;
d) a idéia de importância, de relevância de um objeto ou de um sujeito na consciência de um locutor ou i em seu discurso;
(8) MARANDIN, J.M. A propos de la notion de th8me de discours. ~léments d'analyse dans le re-cit. In: Langue Française 78. Paris, Larousse, maio l988. pp.67-87.
e) a idéia de ponto-de-vista a respeito de algo;
f) a idéia de limitação de um domínio de discurso
e
de pertinência a ele.Suas reflexões contribuem para alargar a visão de
te-ma que nos
é
dada pelas teorias textuais. Marandin afirma que acompreensão temática
é
um processo de reorganização do mundo,um rearranjo dos objetos. Não se trata de acrescentar algo
às
es~turas lingüísticas dos enunciados mas de fazer uma projeção
in-terpretativa a partir de um ponto. A tematização, para ele,
se-ria o estabelecimento de um estado do mundo narrado. Sendo o
sen-tido do texto provavelmente inesgotável e certamente plural, sua
compreensão se marca pelo corte que fazemos nele a fim de
cons-tituí-lo como um mundo textual. O tema, por conseguinte,
é
pro-duzido no próprio processo que ele supostamente controla, não es tando já inscrito materialmente nos enunciados que o canp5em. As-sim1 a questão "De que X está falando?" comporta-se diferentemen-te para um enunciado ou para um diferentemen-texto: o diferentemen-tema discursivo, para ser conceituado, deve deixar de ser uma mera projeção da ooçãoi!l:
tuitiva de tema e se destacar do nível do enunciado. Uma conceituação de tema discursivo exigirá o desmembramento das
descri-ções lingüística, pragmática e textual.
Para nosso estudo, não
é
suficiente o tipo de aborda-gem realizado pela Análise Conversacional, pois seu foco não ul trapassa o indivíduo em seu processo de apropriação da lingua-gem, não leva em conta que isso se dá socialmente. Mesmo análi-ses de discurso como a anglo-saxã são análianáli-ses de tipo conversa cional que constituem uma reflexão sobre a conversação e em fun ção dela, a partir de três domínios: a questão dos atos da fala14
e do implícito lingüístico; a questão da argumentação na
lín-gua; a Análise do Discurso no sentido funcional 9•
No
primeiro
domínio, interessam os procedimentos de irnplicitação e de orien
tação do discurso; no segundo, as estratégias que visam a
per-suasão; no terceiro domínio, o da análise, importa que a teoria
da argumentação seja de fenômenos provenientes de discursos "a~tênticos 11
, ou melhor, de uma argumentação ''adquirida
conversa-cionalmente". Daí que a Análise Pragmática da Conversação seja
levada a efeito sob dois ângulos:
a) estático: visão que produz uma análise estrutural e funcional, isto
é,
que dá do discurso uma forma caracterizada por relações lineares ouhierárqui-cas entre constituintes e uma interpretação desses constituintes em termos de funções ilocutórias e interativas;
b) dinâmico: visão que examina as relações entre con~
tituintes em termos de sua capacidade de fechar ou de prosseguir a interação.
Podemos observar que mesmo trabalhos como o de Moes-chler e os dos demais membros do grupo de Genebra inscrevem-se numa 11Pragmática do Discurso" correspondente a um certo tipo de
Análise Conversacional que busca as relações entre fatos argu-mentativos inscritos na língua e fatos conversacionais.
A linha da Análise de Discurso na qual se insere
nos-{9) MOESCHLER, J. Argumentation et conversation: êlê:ments pour une analyse pragmatique du discours. Paris, Hatier, 1985.
so trabalho, a linha francesa, busca o entremeio, a contramão,
procurando trabalhar sobre o que, não dito, revela (e
signifi-ca) e, principalmente, sobre o que, dito, não revela {mas signi
fica}. Conseqüentemente, para nós, o que interessa não é o tema
mas o saber, no sentido que nos
é
dado por Michel Foucault:"aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva"; "o
c~ po de coordenação e subordinação dos enunciados em que os con-ceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam"; e tam bérn: 110 espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar
dos objetos de que se ocupa em seu discurso"
10 •
Para nós, não seria um corte temático que iria
defi-nir o tema discursivo mas sim o domínio de um saber, no caso, o Saber sobre o Quotidiano. Diz ainda o próprio Foucaul t: 11
Há saberes que são independentes das ciências (que não são nem seu esboço histórico, nem o avesso vivido). Mas não há um saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode
11 definir-se pelo saber que ela forroa11
•
O Discurso Social
Urna questão já tratada pela Análise de Discurso e a de haver ou não, numa sociedade, regularidades discursivas que organizariam as produções de discursos.
i (10) FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 2§ ed~ Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986.
pp.206-207. (ll) Id. lbid., p.207.
16
Angenot, apoiando-se em Bourdier, cre que a hegemonia
discursiva seria uma dominação discursiva sob a forma de ideolo
gia dominante e sob a forma dos gêneros
e das retóricas
legíti-mas, mas uma "forma doce" de dominação: haveria um discurso
so-cial que, por assim dizer, "sublimaria" as contradições
hierár-. d . d d 12
s
dqu1cas a nossa soc1e a e
•
egun o o autor, o discurso social
é '•tudo o que se diz, tudo o que se escreve num dado estado da sociedade••; seria "o narrável e o argumentável numa dada
sacie-dade". Nessa sua primeira conceptualização de discurso social,
Angenot aponta para a proximidade com o conceito gramsciano de
"mundo cultural existente" ou mesmo com um dos sentidos de ideo
logia, a saber, 11Conjunto da matéria ideológica própria a uma
dada sociedade em um dado momento de seu desenvolvimento" ..
Afinando melhor o conceito, Angenot afirma que o dis curso social não se refere apenas a fatos da coletividade mas também
à
produção social da individualidade, da opinião ditape~soal, da criatividade dita individual; o discurso social englo-baria lugares-comuns e opiniões distintas, doutrinas comuns e dissidências regradas, a "doxa" e os paradoxos que ela traz em si. Para tanto, o discurso social se constituiria por "regras discursivas e tópicas que organizariam tudo isso [o variável e
o argumentável] sem jamais se enunciar a si mesmas"; seria .-"o
conjunto - não necessariamente sistêrnico nem funcional - do di-zível, dos discursos instituídos e dos temas munidos de aceita-bilidade e de capacidade de migração em um dado momento históri
(12) ANGENOT, M. Le discours social: problématique d'ensemble. In: ROBIN, R. op. cit. p. 19 a
co de uma sociedade".
f
desse modo que Angenot chega a afirmar que "não são
os escritores que 'fazem o discurso' mas os discursos que os fazem11 •
Com nosso trabalho, gostaríamos de observar de
manei-ra particular o modo pelo qual se produz quotidianamente o
dis-curso oral coloquial em nossa sociedade: gostaríamos de
obser-var como ele
é
produzido pelo quotidiano. E, afinal,
queremos
chegar a afirmar algo sobre a estruturação da sociedade por cau sa do modo especifico que ela tem de significar.
Vistos, então, alguns aspectos envolvidos na
delimi-tação do discurso quotidiano conforme tratados nos campos espe-cíficos, procuramos mostrar corno serão pensados neste estudo:
a) o discurso oral: sua definição será revista, com o intuito de exibirmos, por um lado, sua previsíbílí dade e de relativizarmos, por outro, o domínio e a consciência que o sujeito falante teria dele;
b) a enunciação: sua abordagem s~rá feita
discursiva-mente, ou seja, buscaremos seu sentido ao recons-truirmos os passos do processo discursivo;
c) o tema: perderá, na verdade, seu lugar para o con-ceito de saber (dado por Foucault);
!
l-18
d) o discurso social: no discurso oral de que
trata-mos, ele
é
produzido pelo Quotidiano e age na
pró-pria estruturação da sociedade.
O próximo capítulo iniciará abordando este último
item
já levando em consideração as relativizações e observações
fei-tas a respeito dos demais.
-CAP!TULO II
A CONVERSA NA SOCIEDADE
Para que existe a conversa quotidiana na
Que objetivos ela tem?
sociedade?
Para iniciarmos nosso estudo, partimos da hipótese de
que a conversa na sociedade, a conversa quotidiana, existe paramanter em funcionamento as relações interpessoais, isto
é,ela
nao se
dá"em vão
11,
mas para estabelecer, conservar e
transfor-mar relações entre amigos, parentes, fregueses, conhecidos, des
conhecidos. Não sendo a conversa quotidiana sustentada por uma
instituição formal, ela manifestará marcas do relacionamento
que, por sua vez, traz em si um pouco das instituições sociais em que os interlocutores se representam como povo, estudante, pai, filho, padre, pastor, comerciante, etc. A conversa, a fim de manter as relações entre os interlocutores, exibirá índices de poder, didatismo, demagogia, superstição, misticismo, camara dagem, etc.
~ na relação social que se centra a conversa quotidia na e, dessa forma, uma larga dimensão do social que vai se constituindo às margens das instituições sociais se instala co-rno base de uma situação que não se enquadra inteiramente em ne-nhuma instituição social formalizada, ou sejaf e fundamentada numa situação marginalizada que se dá a conversa quotidiana.
20
formas institucionais de discurso: o discurso jurídico, o esco-lar, o religioso, o político, etc. Por não pertencer exclusiva-mente a nenhuma das instituiçÕes sociais que a sustentam, a co~
versa no quotidiano da sociedade pode ocorrer sem que haja um objetivo imediato e prático "normatizado".
Algumas das questões que nos colocamos: Como
é
que aconversa recolhe seus dados e suas estruturas do social? Como
é
que a conversa acolhe, sem que isso seja inadequado, discursos
mais confidenciais ocorrendo em situações de contacto
passagei-ro e discursos mais utilitários em situações de contacto mais duradouro entre as pessoas?Função Social
Se a conversa quotidiana nao se revela corno
imediata-mente utilitária, onde ela encontra suas "regras" de funciona-mento? Se nao e o fim que a define, como ela se estrutura?Talvez a conversa quotidiana seja lúdica13 na medida em que, nela, não há interesse em direcionar o objeto do discur so para fins imediatos (e nisso se opõe
à
polissemia contida do discurso autoritário); talvez igualmente s_eja lúdica na medida em que, nela, não importa, no limite, a relação com a referên-cia {e nisso se opõeà
disputa pela referência própria dodis-( 13) Estamos aqui usando a tipologia proposta por Eni Orlandi (A linguagem e seu funcionamen~
to, pp.9, 22, 74 e 142) que torna como base a relação dos interlocutores entre si e com o objeto do discurso.
curso polêmico).
Sabemos que todo discurso mantém uma relação constitu
tiva com a sua exterioridade, já que, na materialidade do
dis-curso,
há
a explicitação do modo àe existência - existência histórico-social - da linguagem. Ora, no discurso quotidiano, e a situação {situação imaginária, quer a r:enserros em sua determinação social,
histórica ou ínteracional) o elemento das condições de produção que, perante os demais {referente, interlocutores), constitui a mais
significativa relação do discurso com o social.
Poderia se concluir levianamente que, no caso do dis-curso quotidiano, haveria referência imediata e necessária à si
tuação na qual ele se dá. Devemos observar, entretanto, que,
nessa forma de discurso, a situação atua de um rrodo especial: nao pelo espaço físico em que se dá (casa, rreio de transporte, canércio, trânsi to, aglorreração urbana) mas pelo que, nela, se realiza scx:ialrrente, seja oo espaço de urra casa, cem amigos, seja num ônibus, cem desconhecidos.
É importante observar aqui que o social de que
trata-.
mos na Análise do Discurso
é
o social discursivo e não o físico nem tampouco o sociológico; não estamos aqui nos referindo ao social enquanto característica de uma comunidade ou de um estra to da sociedade. A nossa referência é àquele limite do discurso enquanto forma lingüística e prática social.Podemos relacionar essa noção de social discursivo a de dêixis discursiva proposta por MaJ.ngueneau . 14
(li;) MAINGUh:..TAU, D. Nouvelles tendances en analvse du discours. Parl.s, Huchette, 1987. pp.
22
Para o autor, a dêixis discursiva dá as coordenadas
espaço-temporais implicadas num ato de enunciação. A dêixis dis
cursiva, por sua enunciação, constrói no nível do universo do
sentido uma formação discursiva. Seria o trinômio eu-aqui-agora
discursivo; seria o social projeto imaginariamente no
curso.
dis-Desse modo, mesclando
à
nossa a terminologia de Main-gueneau, poderíamos dizer que a situação social dosinterlocu-tores de um discurso quotidiano
é
instaurada pela dêixis discu~siva e não por aspectos sociais tais como os concebe a Sociolo-gia.
Agindo, pois, a situação de um modo todo peculiar no discurso quotidiano, esse tipo de discurso, mais do que os
ou-tros, não deve ser analisado através de atos de linguagem, mas sim através de atos sociais {não sociológica mas discursivamen-te definidos como acima}.
Pela nossa perspectiva, numa conversa quotidiana lizam-se atos sociais e não atos de linguagem, tanto que a rea-lização de um diálogo quotidiano nao implicaria em questões acerca de i~ formações dadas, de promessas feitas, de decisões torna.das(questões deste gênero: AlguÉm obteve uma infonna.ção? Alguém convenceu um outro? Foi
feita alguma promessa?). A realização de um diálogo quotidiano
provocaria questões tais como: Alguém brigou? Alguém brincou? O
tempo passou? - e é a isso que denominamos atos sociais. Cabe
lembrar aqui que Maingueneau, dentro do quadro teórico àa Análise do Di§. curso, vai trabalhar com práticas discursivas, deixando de lado o que seria um estudo do discurso separado das instituições que
t ornam posslve • 1 sua pro uçao d - 15 Em sua exposição, o autor
tema-tiza um percurso que começa na noção de discurso dentro de um
espaço institucional neutro (na medida em que não teria inter-vençao alguma na discursividade) e estável (enquant.o invariável de um discurso a outro); passa pela constatação de que a
passa-gem de um discurso a outro não se dá sem mudanças na estrutura
e no funcionamento dos grupos produtores desses discursos, o
que faz o autor chegar à articulação do discurso com a institui
ção e
à
percepçao de que, numa enunciação, funcionariam
simult~neamente o texto, a instituição que o sustenta, e o mundo; e
fi
nalmente, através dos conceitos de "intertexto
11,
"vocação
enun-ciativa" e 11
cornpetência discursiva", Maingueneau chega a propor a intrincação semântica necessária entre aspectos textuais e nao textuais, já que não haveria nada exterior ao discurso na sua enunciação.
Essas suas considerações levam-no ao conceito de prá-tica discursiva emprestado de M. Foucault, que o define como o sistema das relações que estão no limite do discurso isto e, nao estão nem na sua exterioridade, que seria situacional, nem na sua interioridade, que seria textual), determinando a rede de relações que o discurso deve efetuar para caracterizá-lo ex~·
tamente como prática16. Maingueneau vai justamente usar esse conceito para que a análise não corra o risco de "dissociar os
( 15) ~lAINGUEN'"EAU, D. Genêses du discours. Bruxelas, P. Mardaga, 1984. Cap. 5.
(16) FOllCAULT, }1. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universítária, 1986. Cap. "A forrnaçâç> dr.;s objetos".
componentes de uma inscrição social e semântica :polim:Srfica, des-tinada a estruturar a complexidade de uma relação com o mundo
. 17
por uma coletividade, real ou v:trtual"
Devemos considerar exemplar o que Foucault nos ensina
acerca da especificidade do material de análise: são objetos re
lacionados ao conjunto de regras que os formam enquanto objeto
de. um
discurso.
Assim, o objetivoé
"fazer a histOria dosobje-tos discursivos { ••. ) que desenvolva o nexo das regularidades
d . - 1118
que regem sua lSpersao •
Se devemos analisar "práticas discursivas" temos de considerar suas duas vertentes: a social e a textual - e o que
propõe Maingueneau ao retornar esse tema em Nouvelles tendances
en analyse du discours. ~ isso o que faremos neste trabalho p~
ra darmos conta daquilo que, em oposição a atos de linguagem,
batizamos de atos sociais. Devemos nos perguntar especificamen-te como se dá, na conversa, essa prática discursiva que
é
o pró prio ato social de conversar; devemos nos perguntar comoé
cons truída essa prática, esse ato social; e, por fim, comoé
consti tuído o quotidiano pela prática discursiva da conversa.Já afirmamos que o fato de tomarmos como objeto de
análise os atos sociais e não os de linguage:ro se explica por
nao ser necessário ao discurso quotidiano ter um objetivo
irne-diato e palpável no nível textual. Isto significa que não impor ta medir a conversa por seus atos de linguagem ao menos caro sao
(17) MAINGUENTAD, D, G€nêses ( ... ) p,l54. U8) FOUCAULI, M. A arqueologia do saber. p.55.
25
tratados convencionalmente pelas teorias de atos de fala. Prova
velmente, na vida quotidiana, aquilo que se busca das conversas
é
que elas cumpram uma "função socialn19, ou seja, estabeleçam urrarel~
ção necessária entre os dois lados que constituem toda prática discursiva: o do texto e o do grup:o social que se institui com ela.A função social constitui-se na situação e, com ela,
e que se constitui o sentido. Ela faz parte da situação; nao e algo anterior, a delimitar de fora o tipo de conversa; na o e,
-portanto, apriorística.
Se a função social e aquilo que se espera que a conversa
quotidiana cumpra, então nós a encontraremos ao se criar um lia
me entre pessoas desconhecidas, ao se m:mter a amizade, ao se fazer com
que o tempo passe, ao se exibir um confronto entre pessoas, etc.
Mas como
é
que se produz no interior da situação a~ çao social? Se ela não é exterior nem anterior a situação, on-de e quando ela se formula? Situações semelhantes resultariam sempre em funções sociais semelhantes?Vejamos uma situação hipotética de conversa que pode-ra guiar um pouco nossa reflexão sobre a elabopode-ração da função social: o caso em que1 numa situação de espera, uma conversa de
entretenimento entre dois sujeitos inicialmente desconhecidos entre si passasse a ser uma conversa mais envolvente, mais ínti ma. Poder-se-ia dizer que teria havido um desvio inadequado no rumo da conversa, mas se poderia também ver nesse caso e
é
(19) Usamos aqui o termo "função social" de um<i maneira particular-, provenient>2 de nosso trab.§l_ lho enJ Análise do Discurso: tratamos aqui daquilo que, sendo social, constitui o dis-cursivo.
essa interpretação que
nos
1nteressa
aqui o deque a situação e que teria se transformado no decorrer da conversa, transformando, ao mesmo tempo, sua função social: ao conversar, os interlocutores criaram uma ligação entre si e,
a partir daí, a conversa terá servido para manter e reforçar es
sa ligação recém-criada.
Queremos mostrar com isso que a situação não
deterrni-na "de fora" mas faz parte da conversa, e tem uma dinâmica tal
a ponto de se modificar no interior da própria conversa;
nesse
processo dinâmico, ela traz modificaçõesà
função social ou, m~lhor, ela inaugurará nova função social à conversa. Há,
assim,uma ligação necessária entre situação e função social:
com ainstituição de uma situação imaginária,
é
instituída necessaria
mente uma função social da qual dará conta um determinado tipo de conversa.SITUAÇAO, CONVERSA E DISCURSO
Trabalhamos, para fins de análise, com a seguinte elas-sificação das situações: contacto social, contacto familiar, co~
tacto profissional, contacto comercial, espera, serviço e des-contração. No entanto, ao gravar o material a ser analisado, a classificação proposta era a das seguintes situações concretas imediatas: trânsito, aglomeração urbana, comércio, prestação de serviço, família e sociedade. A alteração que propusemos, de urra tipologia para outra, ocorreu justamente pela observação de gue
27
a situação imaginária e nao a física
é
constitutiva do sentidodo quotidiano~ Gostaríamos de acrescentar que, embora os dados tenham sido sempre classificados por estereotipia de situações (e não por temas ou pelos sujeitos), a alteração foi importante por abandonarmos as situações físicas para estudarmos as
situa-çoes imaginárias de representação dos sujeitos.
Cada situação (agora: situação de espera, de
contac-to social, de contaccontac-to comercial, etc.) solicita um tipo
deversa específico: conversa para entreter, para reafirmar o
con-tacto social, para criar um liame pessoal, etc. - e aqui o
ter-mo conversa ganha novo estatuto, agora dentro de uma teoria dodiscurso.
Pela análise pudemos observar que há tipos de conver-sa que servem para entreter, tipos que servem para se criar uma relação pessoal, outros para se reafirmar a relação
já
existen-te, e assim por diante.O tipo de conversa proviria da disposição, produzida pela função social daquela situação específica em que estão llrer sos os sujeitos. Por sua vez, a conversa seria o "moto11
dos dis cursos, aquilo que está entre a disposição para cumprir determi nada função social e o pretexto de realizar isso em discursos. O movimento da relação social que
é
a base da conver-sa quotidiana poderia ser assim sistematizado, levando em consi deração os termos propostos:possibilita se
dá
em S I T U A Ç Ã O - - - C O N V E R S A - - - DISCURSO produz função social necessidade disposição cumpre ato socialmoto
pretexto realiza prática social textoTodo o movimento de um sujeito em direção ao outro, esse movimento para se relacionar, começando pela necessidade,
passando pelo moto e chegando ao texto
é
regido, em primeiro lu gar, pela função social.Assim, os discursos teriam sua realização determinada
em primeira instância pela função social instalada por uma si-tuação. Afinal, se consideramos que a situação estereotipada si_E va para reclassificar os dados
é
porque nossa hipótese é de que é ela (e nao os sujeitos ou os temas) que determina o tipo de discurso. Assim, estes seriam classificados dependendo das
situa-çoes1 aproximadamente desta maneira:
- casos pessoais (ocorrem em situação X e em situação
y) ;
-29
tuação Z) ;
- casos relativos à profissão (ocorrem em situação W}; - considerações acerca do tempo (ocorrem em situação X e em situação K}.
A função social e que vai at.uar na escolha de discur-sos que preencham a necessidade de sentido de uma dada
situa-çao -
jáafirmamos acima. Não se pode dizer que, numa
situação
determinada, valha qualquer discurso para preenchê-la. Na reali
dade, é fundamental aí o papel da função social:
é
ela que vai mostrar que naquela determinada situação faz-se a exigência de um certo tipo de conversa. A realização do cruzamento destesdois elementos (função social e definição discursiva) se dará
através de discursos específicos. Os discursos, então, relliz~
-se em textos {práticas sociais} cumprindo uma função social (imaginária) e um ato social discursivamente definido.
Numa situação social de espera, por exemplo, a dispo-sição do sujeito
é
de se entreter (esseé
o seu compromisso com a função social da situação); seu pretexto para a realização da conversaé
falar, por exemplo, do tempo. Entre uma coisa e ou-tra, entre a vontade e a realização, entre ter a disposição e acionar o pretexto, ele encontrará "modelos" de conversa.A conversa
é,
assim, regulada, aliás, auto-rf.::igulada: e o próprio ato de conversar que vai provocar um certo tipo de conversa. Podemos até dizer que a conversaé
estruturante, poisé
ela própria que vai ditar suas regras. No entanto, convém sem pre lembrar que se a conversaé
definida discursivamente, sua estruturação não se dá sem o cumprimento de funções sociais. Daíque sua estruturação provenha dos modelos de conversa que as si tuações sociais institucionalizam.
Hodelos de conversa são, então, formas nao institucio nais mas institucionalizadas de conversas. A fim de melhor con-ceituá-los, remeteremos novamente a Angenot, para quem haveria uma relação do discurso social com a semantização das práticas
e dos usos {isto
é,
as práticas só significam porque sua identi
dade resulta de uma classificação socialmente válida e
diferen-cial e, daí, a multiplicidade das práticas e de 11mentalidades")
. . - d h b. 20
-e com a const~tulçao e a ltus • Este termo e tomado de
em-préstimo a Bourdier, para quem significa um "sistema de disposi ções duráveis, transponíveis, que integra todas as experiências passadas e que funciona a cada momento como uma matriz de per-cepçoes, apreciações e de ações e que torna possível a
realiza-- f . f' . d'f . d 1121
çao de tare as ~n ~nltarnente ~ erenc~a as Habitus, concei-to entendido então como um "esquema gerador de práticas distin-tas e distintivas", funciona como uma matriz inconsciente de um código e a inscrição de uma semântica identificante.
t também nessa perspectiva que concebemos o modelo de conversa: uma matriz dos discursos coloquiais, efeito de senti-do entre interlocutores 1 social e historicamente marcada pelo
quotidiano.
Vimos então que o tipo de disposição resulta da
fun-( 20) ANGENOT, M. Le discours social: problématique d'ensemble. ln: ROBIN, R. Le discours so-e ia] et ses usages. pp.l9 a 44.
( 21) BOURDIER. Esguísse d'une théoríe de la pratique. Apud: At'GENOI, M. Le discou:rs soeial: protllêmatique d'ensemble. In: ROBU\, R. op. d t . pp.22-23.
31
çao social; o tipo de conversa, do modelo de conversa. E os di-versos tipos de discurso, de onde vêm eles? E como se dá sua produção?
f: a situação, com a função social que traz consigo,
que vai, em princípio, delimitar o discurso. Uma restrição se
impõe aí necessariamente: nao
é
através de qualquer dis~so quese realiza a função social.
Mas convém assinalar que a delimitação imposta pela
situação ao discurso nao e a que ordinariamente se
é
levado asupor que seja: não ocorre que, no discurso quotidiano, se fale
muito do tempo, da dor que se sente no momento, do aniversário do filho que se realizará em uma semana, das eleições
aproximam.
Asituação age de fato, mas de uma maneira
que se
diversa: menos determinante pois não
é
ela necessariamente o assunto da-quele discurso; mas, por outro lado, de uma maneira mais ativase pensarmos que ela impõe limites ao tipo de conversa e, como conseqfiência necessária, a prática social, espaço das regulari-dades enunciativas.
Afinal, a atualização do discurso ultrapassa a dêixis
imediata instituída por um enunciador contingente, para se pre~
supor uma dêixis discursiva. Deixemos bem esclarecido que com
dêixis discursiva referimo-nos, como Maíngueneau, não a atuali-zação de uma forma discursiva a partir de um sujeito, de um
es-paço e de uma conjuntura histórica definidos objetivamente do
exterior; a dêixis discursiva de fato pressupoe e ao mesmo tem po produz, por sua eriunciação uma cenografia, a que denominamos
"situação social".
Ao contrário do que se afirma na Análise da Conversa-çao, pode-se notar que a situação atua na realização das conver sas não pela presença de dêiticos ou pela referência expressa a elementos situacionais. A 11presença" da situação
1 nas conversas
quotidianas, deve ser medida pela natureza da relação daquele discurso com aquela situação, ou seja, não se nota a situação
através de marcas formais mas através da representação, pelo
di~curso, do papel que ela imprime
à conversa. Dito de outra
for-ma, a situação está presente ao estabelecer a necessidade da
11
função social", ao se representar efetivamente na conversa, p~
lo discurso.
Assim, nao convém ao analista da linguagem usar
méto-dos tradicionais para avaliar a presença ou ausência da situa-ção em uma conversa pois, afinal, não são elementos empiricamen te perceptíveis que proporcionarão essa medida. Um analista, sem se preocupar em ter categorias fixas mas observando o movi-menta e tendo corno fundamovi-mental a relação entre os locutores, sa berá - aí sim - avaliar, tanto quanto os próprios locutores, se um discurso 11soa bem" ou nao em uma situação determinada. O quevai legitimar uma conversa - e aí baseamo-nos novamente no que Maingueneau constrói para sua noção de "cena enunciativa" - e a sua efetivação em certos elementos da situação, os ditos
dêiti-c os dlSCUYSlVOS ' . 22 •
Uma breve ilustração do que acabamos de expor seria
(2;Ó Como exemplo da no.;;ao de cteixis discursiva, podemos ob.::ervar a conversa transcrita a par-tir da página 60: "Esse é que tintw gxa11de lá, n(;, !\?" e "Não, eles nuguele tempo não tí.nharn dinheiro" - coordenadas espaço-temporais que vão compondo a "cen0 enunci<lt.iva''.
33
dada por uma suposlçao de uma situação qualquer de espera: não sera necessário, nela, que se deva conversar sobre quão aborre-cido e se esperar, sobre como
é
demorado o doutor a at,ender, etc. Não ocorre que se exija uma conversa com esses temas nesse tipo de situação. O que ocorre e que, numa situação de espera, a con versa deva entreter e que a realização disso sedê
através de dis cursos cuja matriz os falantes conhecem: el_es têm um modelo do que seja "conversa-para-entreter11•
Há,
no entanto, em diferentes situações de espera,
a~plitudes diferentes de modelos de "conversa-para-entreter".
Po-demos notar que a conversa para entreter se dá de diferentes ma
neíras, isto e, se realiza em diferentes tipos de discurso:é
o que acontece se compararmos discursos realizados na espera em um salão de cabeleireiro e em uma imobiliária.Observamos que a situação age mas somente até o ponto de determinar o tipo de conversa a ser seguido. Daí por diante, ooncor-rem as demais condições de produção (interlocutores, lugar, etc.).
Então, há, de um lado, a relação esr:;ecífica empírica dos discursos com a situação e, de outro, a restrição {nunca a detennina-çao absoluta) dos assuntos sobre os quais versarão tais discursos.
Se quisermos observar um caso extremo de influência quase nula da situação para a realização dos discursos, tornemos a ocasião de encontro de uma criança de três anos de idade com um adulto desconhecido dela, dentro do Ônibus parado por causa de um congestionamento de trânsito. Neste caso, a situação (es-pera) e o local (interior de um ônibus) de pouco valem pois a limitação
já é
dada pela diferença de idade entre os interlocu-tores.Em resumo, podemos dizer que a situação age definindo--se discursivamente, sob a forma de atos sociais. Para a forrou-lação das práticas sociais (textos) , concorrem uma e outra ins-tância - a função e o ato - pois os discursos sao o espaço de regularidades enunciativas, ou seja, o espaço no qual tomam foE
ma a disposição, o "moto" e o pretexto do sujeito falante.
A
conseqüência mais imediata desse jogo entre função,
ato e discurso é que os discursos que em situações semelhantes
instanciam conversas de mesmo modelo podem ser muito
semelhan-tes ou muito diferenciados entre si do ponto de vista doassun-to; esses discursos, porem, serão sempre formalmente
semelhan-tes no que se refere a suas marcas lingüísticas e isso se deve a homogeneidade das conversas23Teremos, assim, marcas lingftísticas idênticas em dis-cursos diferenciados quanto a assuntos, porém iguais quanto ao modelo de conversa. Temos, por exemplo, uma mesma marca formal {discurso direto próprio, isto é, discurso direto no qual o su-jeito reproduz suas próprias palavras: 11
AÍ eu falei pra ele: 'Vai chover 1 11 ou "Eu perguntei: 'Vamos comigo?' 11
) exibida seja
por discursos sobre condições meteorológicas, seja por discur-sos sobre a vida familiar. Se discursos totalmente diferentes quanto a assunto apresentam marcas formais idênticas,
é
JX)rque estas não constituem sinF~l de uma fo:rma específica de discurso mas, sim, ín-dice de um tipo de conversa (conversa-para-entreter, nesteca-(2.3) Eni Orlandi em seu artigo "Sobre tipologia de discurso" distingue as marcas das propried~
des do discurso, as m:?scas referindo-se ã organização discursiva (esquema granwtical) e as propriedades ii totalidade do discurso e a sua relação com a exterioridade. (In: A Linguagem e sru funcionamento. São Paulo, Brasiliense, 1983. pp. 210-211).
35
so) assim, o Quotidiano deixa suas marcas no Lingüístico.
Afirmamos que os discursos exibem marcas lingüísticas
que os caracterizam como realizadores de um ato social, ou se-Ja, que os caracterizam como prática social. Sendo prática
so-cial - lugar em que se cumpre a função soso-cial e se dá a defini-ção discursiva - os discursos mostram, em sua materialidade lin
güística, aquilo que lhes
é
requisitado pela função social e queos coloca como cumpridores de determinados atos sociais, deter-minadas conversas.
Podemos então dizer que as práticas sociais sao
tex-tos que, simultaneamente, cumprem uma função social; são textex-tos,
portanto, classificáveis enquanto atos sociais. Assim
é
que, emnosso trabalho, as marcas lingüísticas são analisadas como ca-racterizadoras de conversas e não de discursos, o que para nós
significa vincular essas marcas a atos (as conversas) e nao a
práticas (os discursos).
Este novo enfoque vai também nos revelar que a conver
sa, como qualquer fato de linguagem, possui materialidade
lin-güística e que é essa sua qualidade que lhe vai permitir ser urna entidade estruturada e estruturante, segundo uma nossa afirma-çao anterior.
Enfim1 o que nos interessa é que, através das
práti-cas sociais discursivas, cheguemos a perceber as marpráti-cas que o