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Não sou este tipo de garota

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Academic year: 2021

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Texto

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Shiobhan Vivian

Tradução

Marsely de Marco Martins Dantas

Não sou este

tipo de garota

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O

brigada a David Levithan e a todos da Scholastic, Rosemary Stimola, Nick Caruso, Brenna Vivian e a todos do incrível clã da Vivian, Emmy Widener, Lynn Weingarten, Caroline Hickey, Lisa Greenwald, Tara Altebrando, Brenna Heaps, Morgan Matson, Rachel Cohn, e Brian Carr. Obrigada também a Andrea Mondadoro, convidando-me ao lugar certo (sua sala de aula), na hora certa (almoço).

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Prólogo

N

o primeiro dia do meu último ano do ensino médio, passei por acaso em frente ao auditório durante a reunião de orientação aos calouros. Dava para ver o brasão da Academia Ross gravado nos vitrais das duas enormes portas de madeira e uma delas estava aberta. Lá dentro, ha-via apenas o número de alunos necessário para ocupar somente as primei-ras fileiprimei-ras dos assentos duros e desconfortáveis, e o vazio dava ao lugar um ruído oco que com certeza fazia com que os calouros se sentissem ainda menores e mais impressionados.

Foram necessários apenas três minutos para me dar vontade de gritar. A orientação aos calouros é uma perda de tempo colossal. Ou, pelo menos, a maneira como a escola a faz é, forçando os alunos novos a repetir palavra por palavra o Manual de orientação da Academia Ross, todos ao mesmo tempo, sob a orientação do conselheiro mais próximo da morte. Não havia muitos sins no Manual de orientação da Academia Ross. Era praticamente uma repetição de mãos, desde “não usar telefone celular durante o horário escolar” até “não correr em ritmo inadequado pelos corredores”. Mais da metade dos alunos lutava para ficar acordada, enquanto o restante se concentrava em sutilmente, ou não tanto, examinar um ao outro.

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Em primeiro lugar, separaria a orientação dos calouros por gênero. Para os garotos, apenas uma apresentação simples, feita no máximo em dez minutos. Na verdade, seria bem provável que a reunião de apresentação fosse cancelada e eu apenas entregasse um comunicado. Pois havia somente três coisas a fazer para que um garoto vivesse uma experiência de sucesso no ensino médio: fazer a lição de casa, usar camisinha (para o caso de se dar bem) e passar desodorante nos sapatos de couro da escola todas as noites, pois o suor dos pés junto com as meias de poliéster têm um efeito inacreditável no nível de popularidade.

Obviamente, as coisas seriam mais complicadas para as garotas. Faria uma orientação no estilo daquelas palestras sobre dirigir embriagado que assustam logo de cara, em que os policiais estacionam um carro destruído no gramado da escola e um palestrante conta como matou acidentalmente seu melhor amigo ao voltar para casa depois de uma festa. Exceto que, em vez de comentar sobre os perigos de dirigir embriagado, arrumaria um palestrante que falasse francamente sobre o perigo dos garotos do ensino médio.

Conheço uma garota que seria perfeita para isso. Ela estava na minha classe no primeiro ano. Era legal. Amigável até mesmo com os alunos esquisitos. Popular, mas não a ponto de deixar os demais enciumados, e bonita de um jeito que facilmente passaria despercebida. Poucas semanas após começar o ensino médio, pagou o preço da popularidade. Arrumou um namorado.

Chad Rivington tinha quase o dobro da sua altura — um tamanho intimidador até ser visto se enfiando em um fusca azul-bebê enferrujado, caindo aos pedaços que ele amava mesmo assim. Ele era um veterano com notas decentes, bons dentes e ocupava uma posição no time de basquete da escola. Em outras palavras, era um tesouro para qualquer garota, de qualquer ano, especialmente para uma caloura.

Eles se conheceram na enfermaria — ela com enxaqueca, ele alardeando um enorme corte de papel na esperança de fugir da aula de espanhol II. No fim da semana, já eram um casal. No final do mês, eram o casal.

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É claro que tinham intimidade. Mas ela ia com calma, preferindo tro-car beijinhos doces durante caminhadas sobre as pilhas de folhas secas de outono em vez de partidas de luta livre quase sem roupa no apertado banco de trás do carro de Chad.

No aniversário de dois meses de namoro, Chad pediu que ela cabulasse a aula de álgebra para encontrá-lo no vestiário masculino para uma come-moração secreta. A garota jamais havia feito algo do tipo, mas parecia uma ousadia divertida e excitante. Embora nenhum dos dois ainda e tivesse dito “Eu te amo”, ela sentia isso toda vez que Chad entrelaçava seus dedos aos dela. Uma semana antes, depois de tomar suas primeiras três cervejas em uma festa, ela quase deixou escapar. Mas decidiu guardar para uma ocasião especial: o aniversário de dois meses.

Depois de olhar por trás dos ombros, a garota entrou de fininho no vestiário masculino e foi na ponta dos pés até a última fileira de armários. Chad a cumprimentou com um sorriso. Um pouco depois, antes mesmo de dizerem “oi”, já estavam se beijando. Parecia que o uniforme escolar dela tinha sido feito sob medida para um encontro apressado como aquele.

As mãos dele deslizavam por ela toda. Todinha.

E pela primeira vez no relacionamento deles, ela não se preocupou com o local que as mãos percorriam. Era romântico e sexy, e tudo dentro dela estava derretendo. Chad era mais experiente nessas coisas, e ela final-mente permitiu-se curtir o momento.

Eles teriam ido até o fim se estivessem no quarto de Chad, ou até mesmo em seu carro. Mas estavam no vestiário fedorento e o fim da aula de ginástica estava se aproximando. E a cada passo ouvido, assobio ou até mesmo um ruído animado que penetrava no ambiente, o perigo de ser descoberta invadia a névoa de insensatez da garota.

— Não posso — disse subitamente. — Não aqui. Não agora.

Chad tentou convencê-la com palavras, com beijos. Mas agora ela não estava mais se derretendo por dentro, pelo contrário. Afastou-se da boca de

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Chad e disse que era melhor voltar para a aula.

O rapaz ficou muito desapontado — uma postura familiar em seus últimos encontros, só que um pouco mais enfática dessa vez. Ele implorou que ela ficasse. Afinal de contas, ela mal havia tocado nele e ele estava muito excitado. Nada mais justo do que terminar o que haviam começado, certo? Ela insistiu que tinha de voltar à aula de álgebra. Suavemente. Desculpando-se. E quando percebeu como Chad continuava chateado, inclinou-se para beijá-lo. Um beijinho na ponta do nariz, para deixar tudo bem. Ela sentiu três palavras querendo sair de sua boca, prontas para serem ditas.

Mas Chad virou o rosto.

A garota se sentiu mal ao voltar apressada para a aula. Sentiu-se ainda pior depois dela, quando viu alguns rapazes tirando sarro de Chad perto da árvore dos fumantes. Ele foi para o carro sem nem mesmo acenar para ela com a cabeça.

A garota não sabia que a inabilidade de Chad transar com uma caloura tinha se tornado a piada do momento. Uma responsabilidade social. Até mesmo o próprio Chad brincou sobre isso durante semanas, pensando que seus amigos iam dar um tempo se ele participasse da brincadeira. Então, ele reclamava por “ficar na mão” após levá-la de carro para casa, ou imitava estar transando com a porta do armário, zombando da própria frustração depois que a garota o abraçava de manhã ou enquanto estavam no pátio. Coisas assim. Mas a participação de Chad apenas incentivava os comentários dos demais. A provocação ficava cada vez menos engraçada e cada vez mais pessoal.

Foi um dos amigos de Chad que sugeriu a pegação no vestiário. “Use o aniversário”, disse o cara. “Não tem como dar errado”. Para Chad, todo mundo na escola estaria com os olhos grudados no relógio durante a quinta aula. Todos esperavam que ele fosse conseguir. E quando apareceu decepcionado, inventou uma desculpa que o isentava totalmente de culpa.

Quando a garota chegou na escola no dia seguinte, os sussurros a atingiam como flechas envenenadas em suas costas. Garotos que tinham

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sido gentis com ela em festas, veteranas que tinham acabado de aceitá-la no grupo, agora pareciam distantes e reticentes. Até mesmo alguns de seus próprios colegas, aqueles que ela havia ajudado a adentrar no exclusivo mundo escolar superior, de súbito passaram a ignorá-la. Ela não conseguia entender. Pelo menos não até ver Chad, que olhou na outra direção, enfati-zando sua culpa, para que não tivesse de falar com ela.

Em seguida, por onde ela passava, todos começaram a fungar. Sempre que ela ia para qualquer lugar, alguém fungava. Não parou para pensar no assunto. O tempo frio estava no ápice. Mas a ação ficava se repetindo. Funga. Funga. Funga. Onde quer que ela estivesse.

Ela só percebeu o que estava acontecendo na hora do almoço, quando um dos amigos de Chad foi até o quadro branco e escreveu o nome dela ao lado da entrada de iscas de peixe.

“Ela me deu nojo”, imaginava Chad dizendo. “Quase morri de rir, ela fedia tanto.” Tão idiota. Tão impensado. Tão mentiroso. Mas foi a gota d’água. Chega. Era o fim. Para ela era o fim.

A onda inicial de provocação foi diminuindo depois de alguns meses, como qualquer outra frase ou slogan de efeito. Chad nunca se desculpou. Tal-vez tivesse limpado a consciência admitindo para alguém que tinha apenas feito uma piada ridícula, mas ele não disse nada à garota. E outra pessoa pas-sou a ser alvo das fofocas quando uma novata supostamente participou de um

swing[1] no chuveiro da casa de seus pais com dois colegas de classe de Chad.

Mas para a garota aquilo provocou mudanças. Em forma de andar, na frequência com que levantava a mão na classe, no que ousava colocar em seu prato no almoço. Ela nunca mais foi a mesma novamente. Não mesmo.

Era a isca de peixe.

É por isso que confiar em garotos era igual a beber e dirigir. Claro, al-guns correm o risco. O fato de se tomar uma ou duas cervejas nunca parece perigoso no começo.

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Mas, para mim, era óbvio: por que alguém iria querer correr o risco? Então, era isso. A orientação tinha de ser algo desse tipo. Tínhamos de informar coisas úteis em vez das regras de manutenção de armário. Ouvir uma história como essa era tão importante quanto saber seu tipo sanguí-neo, ou se você é alérgico a picadas de insetos. Era o tipo de informação que poderia salvar a vida de uma garota.

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Capítulo 1

E

ra o começo do terceiro ano do ensino médio, e minha amiga Autumn estava se sentindo nostálgica. Ela tirava fotos enquanto pegávamos nossos horários no escritório de orientação pela última vez. Dizia ser intervenção divina o fato de que, embora tivéssemos duas aulas comuns, as demais eram perto o suficiente para que sempre pudéssemos andar juntas. Ficava falando do primeiro ano como se este tivesse ocorrido há décadas.

Até mesmo a minha aparência depois da aula de natação — cabelos molhados como se fossem compridos blocos de gelo marrom, água da piscina derretendo sobre o meu casaco azul-marinho — conseguia deixá-la melancólica.

— Você tá com cheiro de verão — disse, recostando a cabeça em meu ombro. — Queria que ainda fosse verão.

Virei-me e cheirei meu casaco. Apesar de ter mandado lavá-lo a seco um pouco antes do início das aulas, já estava com cheiro de cloro, então eu o tirei e o amarrei na cintura. O técnico Fallon nunca dava tempo suficiente para o banho após a aula. Preferia nos fazer sofrer em mais uma volta de nado borboleta do que nos dar 30 segundos a mais para lavar a cabeça. Autumn tinha muita sorte por ter machucado o ombro há alguns anos e possuir um atestado médico que a mantinha fora da piscina.

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— Hei — disse. — Você pode me fazer uma trança quando chegarmos na sala? — Odiava o jeito que meu cabelo secava depois da aula de natação, formando vários nós idiotas.

O cabelo de Autumn era na altura do ombro e dividido em duas me-tades loiras perfeitamente simétricas. Dava para fazer a risca sem nem mesmo olhar no espelho.

— Vem cá — disse ela, tirando a minha faixa de cabelo de casco de tar-taruga antes de ficar bem atrás de mim —, vou fazer agora.

Foi assim que passamos pelo corredor dos calouros; eu guiando Autumn pelo meu cabelo, como se fôssemos elefantes. Mantive a cabeça baixa, fazendo-lhe perguntas sobre as minhas anotações de filosofia oriental enquanto ela continuava o trabalho. Sentia minha cabeça sendo apertada a cada trançada. Nosso primeiro teste seria em 15 minutos. Tínhamos estudado pelo telefone na noite anterior, então era mais uma revisão, mas Autumn ainda estava errando algumas.

— Não consigo acreditar — disse Autumn parando de andar, só que eu não percebi até minha cabeça ser puxada para trás. Ela suspirou e pergun-tou: — Nós éramos assim tão jovens?

Dava para perceber que Autumn estava tentando absorver toda a alegria e as possibilidades que exalavam dos calouros à nossa volta. Ela estava completamente enfeitiçada pela imbecilidade deles, pela pele ruim e a estranha algazarra. Por fim, abriu um sorriso tão grande que o canto dos olhos ficou enrugado.

Também sorri. Só que não estava relembrando o passado de tal forma que precisava me apegar a cada minuto do terceiro ano. Se as universi dades dos nossos sonhos nos aceitassem, Autumn e eu iríamos viver em lados opostos do país em onze meses. A realista dentro de mim tinha de aceitar que as coisas não seriam mais as mesmas… ou pelo menos não seriam nem de longe tão boas quanto eram agora. Autumn faria novos amigos. E eu tinha fé de que também faria. Mas não era uma perspectiva que me deixava particularmente animada.

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— Nossa! — ela sussurrou. — Natalie, veja!

Autumn apontou em direção a uma garota cujo corpo era cheio de curvas e seus cabelos encaracolados. A moça estava ajoelhada no chão, tentando pegar os livros no meio da bagunça do seu armário. A saia de preguinhas do uniforme caía para trás como se fosse o sino da igreja tocando. Um pequeno triângulo lilás mal protegia seu traseiro de todo o corredor.

Apesar de não estar escrito em nenhum lugar do Manual de orientação

da Academia Ross, ainda parecia que toda garota da escola sabia que era

necessário usar algo não tão revelador por baixo da saia do uniforme. Bermudas, shorts, leggings ou no mínimo uma calcinha moderna. Qualquer um sabia disso, menos essa pobre caloura sem noção.

Fiquei pensando se devia ou não dizer alguma coisa. Mas só por um segundo, pois, se eu tivesse um pedaço de espinafre nos meus dentes, ou se meu zíper estivesse aberto, teria preferido que me contassem a ter feito papel de boba. Momentos constrangedores tinham uma vida útil surpreen-dente na escola. Em um minuto você é uma garota normal, e no outro você será conhecida como “bunda de fora” pelos próximos quatro anos. Intervir era a coisa certa.

Dei meu caderno para Autumn segurar. — Releia minhas anotações sobre o Método Socrático. Eu já volto. — Segui pelo corredor, minha trança se desfazendo a cada passo.

Dois calouros já haviam notado o show gratuito e não paravam de olhar para a bunda da moça. Olhei feio para eles e fiquei bem na frente para bloquear a visão.

— Ei — disse para a garota. — Posso falar com você um segundo? Ela se virou para olhar para mim, seu rosto bronzeado parecia um pouco mais claro ao redor dos olhos, provavelmente por ter tomado sol usando enormes óculos escuros. — Hum. Claro. — Seu tom era amigável e ao mesmo tempo desconfiado.

— Sou Natalie Sterling — disse, achando que era melhor me apresentar primeiro. — Qual é o seu nome?

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Ela piscou os olhos um pouco e depois se levantou. Algo que, para o meu grande alívio, resolveu imediatamente o problema da sua escolha infeliz de calcinha.

— Espera um pouco, você é Natalie Sterling?

— Hum. Sim — disse e então passei a ter um tom desconfiado. Seus olhos castanhos eram grandes e cheios de expectativa, brilhando como a sombra que havia passado. Ela esperou, não muito pacientemente, que eu a reconhecesse. — Você não sabe quem sou eu, sabe? — Seu jeito não parecia bravo. No máximo, animado.

Minha mente passeou pelos rostos do meu curso de verão prepara-tório para o SAT[1]. Mas era óbvio que a garota era caloura, então não fazia

sentido algum. Dei de ombros como que me desculpando. — Tem certeza de que não está me confundindo com alguém?

— Tudo bem — ela disse fechando os olhos e balançando a cabeça para lá e para cá algumas vezes, bem rápido. — Não acredito que vou fazer isso — e então, depois de respirar fundo, começou uma dancinha, bem ali, na frente do armário.

Suas pernas bronzeadas chutavam o ar como se fossem tesouras, e os sapatos batiam com tanta força no piso impermeável que todo mundo começou a prestar atenção. Minha própria deficiência em relação à dança fazia com que eu não percebesse se ela era boa ou apenas muito esforçada. De qualquer forma, ela se agitava tão fervorosamente que seus cachos saltavam como se fossem milhares de pequenas molas. Depois de um giro final, que honestamente não poderia ter sido mais rápido, abriu os braços e exclamou “Riverdance”[2]! Só

que disse isso com um terrível sotaque irlandês, parecendo mais Rivadaaaans! Foi aí que me lembrei.

1. N. do T.: SAT (Scholastic Aptitude Test) — teste de avaliação de conhecimento exigido para entrar em curso superior nos EUA.

2. N. do T.: Riverdance (que em português seria uma aglutinação de “dança do rio”)

é um espetáculo de sapateado irlandês, reconhecido pelo rápido movimento de pernas dos dançarinos e aparente imobilidade da cintura para cima.

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— Spencer Biddle? — A garota de oito anos que eu tomei conta durante um verão inteiro quando eu tinha doze anos? Que não usava o banheiro do andar de cima se não tivesse alguém do lado de fora da porta, que só comia macarrão com queijo se este último fosse laranja, que dava o maior show de sapateado bem no meio da sala de estar?

Seu peito pulsava enquanto ela tentava recuperar o fôlego.

— Honestamente, estou aliviada por você não ter me reconhecido. Faz… o quê? Quase seis anos? É melhor que eu esteja bem diferente mesmo.

— Não se preocupe — disse, olhando bem para a maquiagem dela e imaginando seus cachos se transformando no rosto de uma garotinha de cabelos encaracolados despenteados. — Você está bem diferente.

Spencer tirou meus cabelos molhados do ombro. — Eu mal te reco-nheci também. Quer dizer, olhe como você está grande e linda! — Era um elogio estranho, do tipo que a tia Doreen ou a vovó fariam. Não de alguém três anos mais nova que eu. — Sério, Natalie! — ela continuou —, você foi a melhor babá que eu tive. Lembro-me de uma vez que você ameaçou fazer o Eddie Guavera comer pedra quando ele fez xixi nas flores que havíamos acabado de plantar ao redor da caixa de correio.

Questionei: — Fiz isso mesmo?

Spencer riu da mesma forma que costumava rir, soltando sopros silenciosos de ar que saíam do nariz como fogo rápido. — Todos os garotos da vizinhança tinham medo de você. Era demais!

— A sua família não tinha mudado para St. Louis?

— Mudamos. Quando a minha mãe casou de novo. Mas ela se divor-ciou do meu padrasto, então voltamos este verão — concordei com a cabeça, apesar de achar estranho estar ali falando sobre divórcios com a Spencer. Estava certa que nossa última conversa tinha incluído apenas a minha opi-nião de que a pizzaria Lucky Charms tinha os piores recheios.

— Alugamos um apartamento em frente ao Liberty River. Não é nada mau. Meu quarto tem armários enormes, cheios de espelhos e eu posso praticar a minha dança.

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— Você dança na frente de qualquer coisa! Nas propagandas de tele-visão e também naquelas campainhas de vento que a sua mãe costumava pendurar na frente da varanda. De repente, comecei a lembrar de como era irritante, na verdade, do ponto de vista de uma babá. Eu mal conseguia fa-zer a Spencer ficar sentada.

O sorriso iluminado de Spencer transformou-se em uma ruga. — Espera aí. Se você não me reconheceu, por que veio falar comigo então? Tirei um fiapo de algodão da minha saia e de repente desejei que não soubesse a cor da calcinha da Spencer. Aproximei-me o suficiente para sen-tir o perfume de algodão doce que exalava dela e sussurrei:

— Enquanto você estava agachada, dava para ver tudo. E tinha uns rapazes apreciando a vista.

Ela abriu uma boca tão enorme que dava para ver todas as obtu- rações. — Você tá brincando?

Balancei a cabeça negativamente. Apesar de se sentir constrangida, Spencer conseguiu sorrir. — Sabe de uma coisa? Aqui na Ross também tem calças femininas, mas suas pregas são horríveis e a cor parece de papelão. Na verdade, o melhor a fazer é vestir alguma coisa embaixo da saia — dei a ela um leque de opções, até levantei minha própria saia um pouco para mos-trar meus shorts de lycra azul-marinho que eu sempre usava. Até mesmo por cima da meia-calça no inverno.

Spencer concordou, mas começou a olhar por detrás de mim, tentando entender quais eram os garotos que estavam olhando para ela.

O sinal tocou. Precisei correr para a classe para que pudesse me orga-nizar e me concentrar antes da prova. — Com certeza nos veremos por aí, Spencer. E se tiver alguma dúvida sobre a escola, fale comigo.

— Pode acreditar, definitivamente planejo explorar o fato de ser amiga de uma veterana! Todos os outros calouros vão morrer de inveja.

Sabia que isso não era bem verdade, mas ouvir Spencer dizer fez com que eu me sentisse muito bem e saí apressada pelo corredor para evitar ser atropelada pelo time de futebol inteiro. Connor Hughes, alto e magro, com

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seu cabelo castanho ondulado encostado no colarinho da camisa, liderava o grupo de rapazes. O livro de jogadas estava em suas mãos e seus colegas de equipe orbitavam ao seu redor.

Autumn fechou meu caderno e o devolveu para mim. — Não sei onde você arruma coragem, Natalie. Jamais conseguiria falar uma coisa dessas para uma desconhecida.

Ergui a sobrancelha. — Ela não é desconhecida.

Contei a história para Autumn, e ela olhou para o corredor. — Então, espera aí. Você ficou tão entretida conversando com a Spencer que se es-queceu de falar para ela sobre a calcinha?

Virei-me e vi Spencer agachada novamente, sua bunda estava à mos-tra para quem quisesse ver.

Os olhos dos jogadores de futebol que por ali passavam viraram para a esquerda, como se Spencer tivesse emitido um som agudo, em uma fre-quência que só os garotos conseguissem detectar. Um deles, Mike Domski, tirou a prancheta das mãos de Connor e a abanou com toda força na direção do traseiro de Spencer, tentando fazer um vento forte o suficiente para que a saia dela se levantasse ainda mais. Os demais jogadores se amontoaram uns sobre os outros num ataque de riso.

Uma sensação de amargor fez com meu estômago contraísse. Spencer se virou e recostou no armário. Um olhar de constrangimento fingido, de falsa modéstia surgiu em seu rosto. O mesmo olhar que tinha me convencido há um minuto.

— Parece que a Spencer cresceu e se tornou uma dama.

É claro que era para ser uma piada, acho. Só que nenhuma de nós achou graça.

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