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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS EDITORA PUC MINAS

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Academic year: 2021

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Reitor: Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Vice-Reitora: Patrícia Bernardes

Assessor Especial da Reitoria: José Tarcísio Amorim Chefe de Gabinete do Reitor: Paulo Roberto de Souza

Pró-Reitores: Extensão – Wanderley Chieppe Felippe; Gestão Financeira – Paulo Sérgio Gontijo do Carmo; Graduação – Maria Inês Martins; Logística e Infraestrutura – Rômulo Albertini Rigueira; Pesquisa e de Pós-graduação – Sérgio de Morais Hanriot; Recursos Humanos – Sérgio Silveira Martins; Arcos – Jorge Sundermann; Barreiro – Renato Moreira Hadad; Betim – Eugênio Batista Leite; Contagem – Robson dos Santos Marques; Poços de Caldas – Iran Calixto Abrão; São Gabriel – Miguel Alonso de Gouvêa Valle; Guanhães e Serro – Ronaldo Rajão Santiago

Secretaria de Comunicação: Mozahir Salomão Bruck Secretaria Geral: Ronaldo Rajão Santiago Cultura e Assuntos Comunitários: Maria Beatriz Rocha Cardoso Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Carlos Barreto Ribas

Instituto de Ciências Humanas: Carla Santiago Ferretti (Diretora) Chefe do Departamento de Letras: Jane Quintiliano Guimarães Silva Programa de Pós-graduação em Letras: Márcia Marques de Morais (Coordenadora) Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros: Raquel Beatriz Junqueira Guimarães (Coordenadora)

EDITORA PUC MINAS

Comissão Editorial: Ângela Vaz Leão (PUC Minas); Graça Paulino (UFMG); José Newton Garcia de Araújo (PUC Minas); Maria Zilda Cury (UFMG); Oswaldo Bueno Amorim Filho (PUC Minas) Conselho Editorial: Antônio Cota Marçal (PUC Minas); Benjamin Abdalla

Jr. (USP); Carlos Reis (Univ. de Coimbra); Dídima Olave Farias (Univ. Del Bío-Bío – Chile); Evando Mirra de Paula e Silva (UFMG); Gonçalo Byrne (Lisboa); José Salomão Amorim (UnB); José Viriato Coelho Vargas (UFPR); Kabengele Munanga (USP); Leonardo Barci Castriota (UFMG); Philippe Remy Bernard Devloo (Unicamp); Regina Leite Garcia (UFF); Rita Chaves (USP); Sylvio Bandeira de Mello (UFBA)

Coordenação Editorial: Cláudia Teles de Menezes Teixeira Assistente Editorial: Maria Cristina Araújo Rabelo

Revisão: Gilberto da Silva Xavier; Maria Auxiliadora Catete Blom Revisão de resumos em língua

estrageira: Priscila Campello

Capa e diagramação: Jefferson Ubiratan de A. Medeiros Imagem da capa: Jefferson Ubiratan de A. Medeiross

CESPUC - CENTRO DE ESTUDOS LUSO-AFRO-BRASILEIROS • Av. Dom José Gaspar, 500, Prédio 20, Sala 101 • 30535-901 Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil • Tel.: (31) 3319-4368 • Fax: (31) 3319-4904 • e-mail: cespuc@pucminas.br

EDITORA PUC Minas - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais • Rua Dom Lúcio Antunes, 180, Coração Eucarístico • 30535-630 • Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil • Tel.: (31) 3319-9904 Fax: (31) 3319-9907 • e-mail: editora@pucminas.br

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SCRIPTA

LITERATURA

Revista do Programa de

Pós-graduação em Letras

e do Cespuc

Organizada por

Terezinha Taborda Moreira

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no subtítulo: I – Literatura; II – Linguística e Filologia. Comissão de publicações:

Presidente: Ângela Vaz Leão

Editora geral da revista Scripta: Raquel Beatriz Junqueira Guimarães Editora da revista Scripta de Literatura: Terezinha Taborda Moreira Editora da revista Scripta de Linguística e Filologia: Juliana Alves Assis Secretárias: Ivete Lara Camargos Walty

Maria Nazareth Soares Fonseca Ev’Ângela Batista Rodrigues de Barros Conselho Editorial:

Antoine Auchlin (Université de Genève) Ataliba Teixeira de Castilho (USP) Benjamin Abdala Jr. (USP) Carlos Alberto Faraco (UFSC)

Eneida do Rego Monteiro Bonfim (PUC Rio) Evanildo Bechara (UERJ)

Francisco Noa (U. Eduardo Mondlane – Maputo, Moçambique)

Helena Carvalhão Buescu (U. Lisboa) Ingedore Koch (Unicamp)

Inocência Mata (U. Lisboa)

Jean-Paul Bronckart (Université de Genève) José Luiz Fiorin (USP)

Laura Cavalcante Padilha (UFF)

Luiz Carlos Travaglia (UFU)

Marco Antônio de Oliveira (PUC Minas) Margarida Basílio (UFRJ)

Maria Antonieta Pereira (UFMG) Maria Helena de Moura Neves (Unesp) Maria Luiza Ramos (UFMG) Mary A. Kato (Unicamp) Mia Couto (escritor moçambicano) Regina Zilberman (UFSC) Renata Soares Junqueira (Unesp) Rosa Virgínia de Mattos e Silva (UFBA) Silvana Maria Pessôa de Oliveira (UFMG) Solange Ribeiro de Oliveira (UFMG) Wander Melo Miranda (UFMG)

Indexadores: Latindex, Ulrichs, Clase, MLA, LLBA, Icap

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais S434

Scripta – v. 1, n. 1, 1997 – Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2015. ISSN 1516-4039

Semestral

1. Literaturas de língua portuguesa - Periódicos. 2. Língua portuguesa – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Letras. II. Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros.

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Apresentação

Literatura e oralidades

Terezinha Taborda Moreira ... 9

Dossiê temático: Literatura e oralidades

Contramodelos cavaleirescos na literatura genealógica e cronística medieval ibérica – diálogos com a ética aristotélica

José D’Assumpção Barros ... 23 Formas atuais de bichos muito antigos – a atualização do conto popular em “Como ataca a sucuri”, de Guimarães Rosa

Claudia Lorena Vouto Fonseca ... 37 “Conversa de bois”: uma fábula de João Guimarães Rosa

Alexandre Veloso de Abreu ... 61 Géneros narrativos nas literaturas africanas em português –

entre a tradição africana e o “cânone ocidental”

Inocência Mata ... 79 Literatura moçambicana e oralidade: uma postura crítica

e uma fundamentação teórica

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza ... 95 O narrador performático em Rioseco, de Manuel Rui Monteiro

Karina de Almeida Calado ... 119 Poética da relação em um missosso angolano

Wellington Marçal de Carvalho ... 135 Entre ritmo e poesia: rap e literatura oral urbana

Marcus Rogério Salgado ... 151

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O direito à angústia e à felicidade em Luuanda

Maria Teresa Salgado ... 167 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira

Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski ... 177

Outras vozes

O leitor e o espectador nas malhas da ficção de Ressurreição,

A mão e a luva e Helena

Juracy Assmann Saraiva e Debora Bender... 201 Um romance interdisciplinar revolucionário

Álvaro Cardoso Gomes ... 217 Drummond e o humanismo

Cristiano Perius ... 233 The intertext of modernism in Crônica da casa assassinada,

de Lúcio Cardoso

William Valentine Redmond ... 255

Homenagem a Yeda Prates Bernis

A poesia de Yeda Prates Bernis

Ângela Vaz Leão ... 267

Resenhas

BA KA KHOSA, Ungulani. Entre memórias silenciadas

Fernanda Gallo ... 293 PEPETELA. O tímido e as mulheres. Uma agradável crônica da Luanda atual Donizeth Aparecido dos Santos ... 297 BRANDÃO, Luís Alberto. Teorias do espaço literário

Fabrício César de Aguiar ... 301

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Literatura e oralidades

Terezinha Taborda Moreira1*

Pensar a relação entre literatura e oralidades implica refletir sobre a relação entre as manifestações da arte verbal nos gêneros da oralidade e a escrita. Essa, por sua vez, tangencia outras, como as de mediação, tradição, esquecimento.

A oralidade é tratada por Paul Zumthor no âmbito da poesia oral e de sua transmissão pela voz. Para o estudioso, a poesia oral é a fonte primeira de toda forma de comunicação. Depois de criada, a escrita, gradativamente, assume primazia sobre a oralidade. Porém, a oralidade não sai de cena com a escrita. Ao contrário, ela se anuncia, por vezes, na escrita mesma, por insistência da voz, “verbo encarnado na escritura” (ZUMTHOR, 1993, p. 113). Daí que a passagem do vocal para o escrito seja repleta de confrontações, tensões, oposições, conflitos, contradições.

Eric A. Havelock registra, em seus estudos sobre a comunicação na Grécia antiga, o impacto da invenção do alfabeto sobre as mais diversas formas de expressão cultural. A despeito das polêmicas que seu discurso desperta, em razão de suas posturas por vezes etnocêntricas, Havelock pensa a escrita alfabética como uma nova mídia. Para ele, o alfabeto é “uma peça de tecnologia explosiva, revolucionária por seus efeitos na cultura humana, de uma maneira que nada tem de exatamente comum com qualquer outra invenção.” (HAVELOCK, 1996, p. 14). A escrita seria, nessa perspectiva, mediação. O classicista britânico pensa a poesia como a principal forma de expressão na Grécia pré e pós-letrada, pelo fato de ela divertir e, ao mesmo tempo, transmitir conhecimento. Organizando a matéria a ser tratada em imagens e sons recorrentes, a poesia favoreceria a sua memorização. Havelock tratava a epopeia homérica, por exemplo, como uma espécie de enciclopédia, cujo papel seria o de reunir um grande conjunto de informações de cunho ético e técnico, mas sem didatismo.

Para Jacyntho Lins Brandão, Havelock é um dos herdeiros das pesquisas de Milman Parry, que demonstrou as marcas de oralidade guardadas pelos poemas homéricos e, com isso, “a possibilidade de existência de formas orais de literatura” (BRANDÃO, 1997, p. 223 – destaques do autor). Diferentemente de Havelock, Brandão considera natural que “o texto literário – escrito ou oral – fale daquilo queé importante para a cultura em que se inscreve e à qual se destina.” (BRANDÃO, 1997, p. 228). Sem negar a função de preservação da memória cultural dos *1Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Pesquisadora CNPq - Nível 2. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 9-20, 2º sem. 2015

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poemas homéricos, mas também sem reduzir seus recursos poéticos a um requisito subserviente da função mnemônica, Brandão lembra que “na literatura, como em qualquer outra arte, a função comunicativa e os efeitos propriamente estéticos não se separam, mas é no estético que se encontra o que há nela de próprio diante de outras modalidades de discurso”. (BRANDÃO, 1997, p. 229). A partir dessa premissa, que destaca o critério estético como característica essencial da arte em geral e do texto literário em particular, oral ou escrito, Brandão defende que aquilo que encontramos, nos primeiros textos gregos, não é a transcrição de uma tradição oral, mas genuínos processos de criação. Para ele

Existe já, portanto, quando surge o alfabeto, todo um complexo sistema de literatura oral na Grécia que, a partir do processo de composição escrita, passaria necessariamente por uma nova e revolucionária fase de elaboração em que as marcas da escrita só podem ser relevantes, ainda que não tenhamos os meios de averiguar o quanto introduzem de diferença em face da tradição pré-alfabética, por não termos absolutamente nenhum registro desta. (BRANDÃO, 1997, p. 230 – destaques do autor).

Brandão defende o reconhecimento, mesmo numa cultura pré-alfabética, da especificidade do discurso literário, cuja marca, para ele, estaria numa sorte de deslocamento da função utilitária da linguagem, visando a realçar sua função estética. A partir desse deslocamento, todas as combinações seriam possíveis, desde aquelas destinadas a divertir ou a ensinar até a arte pela arte. Isso porque, para Brandão,

Reduzir o conceito de literatura à forma escrita ou a algumas de suas concepções modernas (ou ocidentais) seria perder de vista a universalidade de um fenômeno que, como a linguagem, parece ser próprio do homem e, como tudo que é universalmente humano, apresenta-se marcado de diferenças capazes de garantir a identidade cultural dos grupos que o produzem e consomem. (BRANDÃO, 1997, p. 230).

O debate entre Havelock e Brandão nos interessa por duas razões. Primeiramente, ele nos lembra que todo avanço tecnológico afeta as formas de expressão cultural da humanidade, dentre elas incluindo-se, naturalmente, a literatura – e vale lembrar que também hoje vivemos essa experiência, que a História já registra há séculos, devido às consequências das mediações tecnológicas sobre a linguagem, inclusive a literária. Além disso, o debate permite-nos perceber a importância que tem a problemática gerada pela relação entre a oralidade e a escrita para os estudos de

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literatura, que não podem circunscrever a abordagem das formas da textualidade oral aos gêneros da oralidade, apenas, dissociando-as dos gêneros da escrita.

Tal dissociação levaria Walter Benjamin a afirmar, em perspectiva nostálgica, a incomunicabilidade entre a tradição oral, cuja matriz é a experiência, e o romance, que, para ele, estaria centrado na informação (BENJAMIN, 1985, p. 197-221). Benjamin identifica a modernidade como o tempo da decadência crescente da habilidade de recuperar as correspondências mágicas e as analogias entre as palavras e as coisas, que eram familiares aos povos antigos (BENJAMIN, 2011, p. 49-73). A modernidade, para Benjamin, seria o tempo da escrita individual e do isolamento do leitor. Ela apontaria para a dissociação, para ele irrecuperável, entre a experiência, a dicção e a escrita.

Menos convencido dessa dissociação do que Benjamin, Paul Zumthor põe em dúvida a capacidade do romance de romper com a tradição oral. Zumthor assim se manifesta sobre o romance, desde sua origem medieval, por volta de 1160-70, marcada pela junção da oralidade e da escritura: “num mundo da voz, o romance parece pretender abafá-la. E será que abafa realmente? Sem dúvida, não.” (ZUMTHOR, 1993, p. 265).

Zumthor conduz sua reflexão sobre o romance de modo a sustentar a argumentação de que

De certa maneira, é verdade, a literalização de uma obra começa com sua colocação por escrito. Mas isso é apenas aparência. No “romance”, e ainda mais fortemente em outros gêneros poéticos, o que subsiste, no coração do texto, de uma presença vocal basta para frear, ou bloquear, a mutação. (ZUMTHOR, 1993, p. 282 – destaque do autor).

O medievalista apresenta várias ocorrências que, ao longo dos tempos, ilustram a presença da voz e da oralidade no romance: (i) os romances em prosa do século XII mostram-se como projeção de um conto, com um narrador impessoal que é, ao mesmo tempo, fonte do relato; (ii) “estruturam-se por meio de frases-refrão cuja ocorrência escande e organiza a narrativa, desenhando o espaço enunciativo em que se atualiza, à leitura pública, uma relação performancial caracterizada pelo apagar-se qualquer traço de um narrador externo” (ZUMTHOR, 1993, p. 269); (iii) assumem, por meio do surgimento de um “eu” no texto poético, um tom confessional típico do verso, que instala na narrativa os elementos de uma presença física e de seu ambiente sensível; (iv) apresentam intervenções frequentes do “romancista” em seu texto, por meio de apelos ao “dedicatário” e aos ouvintes, os quais prolongam uma tradição formada sob um regime de livre oralidade; SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 9-20, 2º sem. 2015

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(v) empregam, de maneira notável na narração, o presente do indicativo, traço que Zumthor explica menos como figura de um presente histórico do que como presença vocal; (vi) constroem-se a partir de uma abundância de discursos diretos, monólogos e diálogos que favorecem a leitura dos efeitos da voz e da mímica; (vii) oferecem traços estruturais que evocam as técnicas de teatralização do texto; (viii) revelam uma tensão em que o significante tende a transbordar o que está escrito na página, a expandir-se na matéria teatral não como tal registrada, mas presente no texto sob o aspecto de uma vontade de “dicção” típica da retórica da voz e de uma gramática dos movimentos do corpo etc.

A partir de ocorrências como essas, Zumthor observa que, até o século XV, e mais tarde ainda em vários meios nos quais o romance depende de sua recepção por um auditório, “esses deslizamentos sucessivos, a longo prazo essas reviravoltas, não bastam para reduzir a nada a operação vocal na difusão da obra nem para apagar do texto todas as marcas de sua profunda oralidade.” (ZUMTHOR, 1993, p. 271).

Para Zumthor, o termo “literatura” constitui um “monumento” de linguagem e reflexividade que se refere menos à especificidade “literária” do que àquilo que possui de radical o fato poético. O estudioso adverte contra o fechamento elitizante e etnocêntrico que o discurso literário pode assumir, ainda que contra o desejo dos sujeitos que o proferem, ao visar a uma totalidade. Adverte também contra a possibilidade de essa totalidade ser recuperada e identificada a uma Ordem. Com essas advertências, chama a atenção para o fato de que, por ser colocado por escrito, e transmitido apenas pela leitura, o romance “recusa a oralidade das tradições antigas, que terminarão, a partir do século XV, marginalizando-se em ‘cultura popular’” (ZUMTHOR, 1993, p. 266 – destaques do autor). No entanto, argumenta que essa recusa da oralidade não impede que a lógica discursiva que constituiu a “literatura” se depare, nos últimos três séculos, com aquilo que chama de “uma nostalgia da voz viva” (ZUMTHOR, 1993, p. 285).

Para além da literatura, e depois de séculos de suposta dominação da escrita, a nostalgia da voz viva também é identificada por Zumthor naquilo que ele define como uma oralidade mecanicamente mediatizada, ou midiatizada, logo, diferenciada no tempo e/ou no espaço. Entendendo a poesia como “esta pulsão do ser na linguagem, que aspira a fazer brotar séries de palavras que escapam misteriosamente, tanto ao desgaste do tempo, como à dispersão no espaço” (ZUMTHOR, 2005, p. 69), Zumthor explica que toda palavra poética aspira a dizer-se, a ser ouvida, a passar pelas vias corporais que são as mesmas pelas quais elas são absorvidas. Assim, para ele a palavra pronunciada é tátil. Aquilo que

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a midiatização retira da palavra é essa tatibilidade. Por isso, para Zumthor, as máquinas utilizadas na comunicação – rádio, CD, televisão etc. – representam “um esforço da humanidade (depois de séculos em que toda cultura foi transmitida por formas de escrita) para reencontrar a autoridade da voz viva” (ZUMTHOR, 2005, p. 70).

Essa insistência da voz e da oralidade é atestada em diversos momentos na escrita literária em língua portuguesa, como se pode perceber pelos diversos artigos que compõem este número da revista Scripta.

Nos livros de linhagem, por exemplo, os famosos nobiliários medievais portugueses compilados entre os séculos XIII e XIV, as listas das famílias nobres portuguesas aparecem ao lado de relatos de episódios históricos e narrativas fantásticas relacionadas às origens dessas famílias, traduzindo a incorporação do Ideal Cavaleiresco pela sociedade medieval. Se nos lembrarmos de que os nobiliários eram composições narrativas destinadas a conter um registro multifamiliar, mas que também se apresentavam como produções passíveis de serem lidas para um auditório, compreenderemos porque sua compilação nos coloca em contato com narrativas híbridas, que, mesclando crônica e genealogia, dão forma a um tipo de discurso que recria, em escrita, toda uma produção oral característica do espaço trovadoresco que gerou várias das versões das próprias narrativas que neles figuram. Assim, mais do que um registro de famílias, os livros de linhagem incorporam, por meio do registro de lendas e situações fictícias, facetas pedagógicas e estético-literárias que recriam memórias e identidades das famílias portuguesas. Daí que seu conteúdo integre, além de uma memória e uma identidade familiar, modelos fabulísticos e moralizantes cujo fundamento cruza o imaginário mítico da Idade Média com a ética artistotélica.

Nesse ponto, os livros de linhagem confluem com o surgimento do romance, que, para Zumthor, resulta de uma matéria constituída por um fundo legendário ou folclórico, difundido inicialmente por recitadores ou contadores itinerantes e caracterizado por um mundo feérico, maravilhoso, que migra para a escrita e faz com que para nós, até à atualidade, a palavra romance evoque a ideia de “uma ficção mais ou menos onírica, alguma coisa que está além de uma realidade vivida” (ZUMTHOR, 2005, p. 110). Na passagem de uma civilização da voz para uma civilização da escrita, deparamos a sacralização da escrita e do estatuto de quem escreve. Sacralização que perdura até, pelo menos, princípios do século XIX, quando uma nova virada política e cultural redireciona as produções estéticas rumo a uma valorização da língua falada pelo povo, da organização discursiva elaborada pela oralidade, que passa a ser reconhecida como objeto estético passível de ser SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 9-20, 2º sem. 2015

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encenado na literatura.

Na literatura brasileira, esse redirecionamento da escrita ganha visibilidade na obra de Guimarães Rosa, por exemplo. Na escrita roseana encontramos um processo de elaboração que, dizendo como Dino Pretti, leva ao leitor a “ilusão de uma realidade falada” (PRETTI, 1997; 2012). A escrita permite ao leitor reconhecer no texto uma realidade linguística que ele identifica por meio do apelo auditivo que ela contém. Ao mesmo tempo, a identificação dessa realidade linguística cria, no leitor, uma certa expectativa em relação ao tipo de linguagem que ele espera que o falante do texto – narrador ou personagem – pratique. Essa expectativa inclui tanto o modo de dizer quanto aquilo que se diz. Assim é que vamos reencontrar, na escrita roseana, os modelos fabulísticos que compõem a tradição oral ocidental, relidos e recontados a partir de uma estratégia de narração ficcional que elabora cuidadosamente o texto, a fim de alcançar um efeito de realidade que coloca, na cena literária, tantos sujeitos e situações narrativas quanto os loci de enunciação que os identifica. Falando com Jacques Rancière, a escuta roseana realiza a abertura social da escrita “para uma nova sensibilidade, menos aristocrática e mais democrática” (RANCIÈRE, 2010, p. 75).

Essa abertura social vai ser reivindicada, também, pelos escritores e pelos críticos, em todo o processo de formação da escrita literária dos países africanos de língua portuguesa. A esse respeito, em seus estudos sobre a formação do romance angolano, Rita Chaves (1999) mostra-nos os desdobramentos da travessia da palavra no processo de constituição do sistema literário de Angola, chamando a atenção para as condições que motivaram o aparecimento de um gênero inequivocamente associado ao império da escrita numa sociedade modulada pela tradição oral. Por meio da leitura de dez romances escritos entre 1930 e 1968, a pesquisadora mostra como a história do romance angolano se constrói a partir de um jogo de contrapontos que oscila entre o caráter informativo e o lastro da experiência. Para a estudiosa, no contexto de emergência e maturação do romance angolano, “escrever se afigura, em certos momentos, um ato de quase traição às origens – ato que se faz necessário em nome da defesa dessas mesmas origens, ameaçadas ainda e sempre da destruição total” (CHAVES, 1999, p. 85). Evocar a tradição oral significava, então, para os escritores envolvidos com a proposição de uma estética literária que traduzisse a identidade angolana, apegar-se ao mito de um passado irrecuperável, para lidar com as incertezas que marcavam – e, ainda, marcam – o futuro e, assim, manter a crença em algum modo de reparar a fragmentação imposta pelo colonialismo.

Embora as noções de “tradição oral africana” e “oralidade africana” , como propõem Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza,

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necessitem ser rediscutidas, para os estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa, a partir da segunda metade do século XX a tradição oral foi repensada pelos escritores como mecanismo de afirmação da identidade. Naquele momento, o projeto estético dos escritores estabeleceu, entre a oralidade e a escrita, uma relação que buscava situar o texto ficcional naquilo que Laura Padilha define como uma outra margem, “construída como um lugar outro, interseccional e liminar, situado entre voz e letra” (PADILHA, 2007, p. 26).

Padilha rastreia momentos da produção ficcional angolana em que a problematização e a resistência cultural afirmaram a diferença da angolanidade num cenário marcado pela marginalização imposta pelos aparatos ideológicos do sistema colonial, dentre os quais se destaca a escrita. A estudiosa parte de um ponto-origem que se constitui de textos da tradição oral, recolhidos e publicados por Óscar Ribas e Héli Chatelain, a fim de demonstrar como, para as ancestrais culturas africanas, o ato de narrar era prazeroso e fonte e conhecimentos e saberes transmitidos pelos anciãos às gerações mais novas. Desse ponto-origem, Padilha segue para outro tempo em que a voz se funde com a letra, registrando os vários momentos em que os fios das estórias são reinventados pela escrita dos escritores angolanos na construção da sua diferença. Nesse percurso, essa estudiosa demarca três momentos. O primeiro refere-se ao início do sistema ficcional angolano, no qual a literatura começa a expressar o imaginário cultural entrelaçando com a letra europeia vozes genuinamente locais. O segundo refere-se a um corte significativo em relação à literatura colonial, marcado pela denúncia do colonialismo. O terceiro é o da proposição de uma estética da diferença angolana, do qual se depreendem três importantes vertentes: a do engajamento político ideológico dos autores em prol da independência nacional; a da reinvenção da tradição e a do trabalho estético com a linguagem literária recriada a partir de um olhar autenticamente africano. É como uma estética da diferença angolana, baseada numa recriação da linguagem literária a partir de um olhar autenticamente africano que autores como Luandino Vieira, Manuel Rui Monteiro e Boaventura Cardoso, dentre outros, desenvolvem sua escrita.

Nos estudos de Padilha, percebemos que a voz constitui o suporte por excelência da produção literária angolana quando de suas primeiras manifestações. A voz conferir-lhe-ia materialidade até o momento do encontro com a escrita, quando, especialmente a partir da produção ficcional pós-1950, com essa se intersecciona para entretecer estórias. A partir daí, segundo Padilha, a fala angolana continua a iluminar as histórias contadas já agora “pela letra que tudo eterniza” e pelo corpo do livro “que se lhe oferece como espaço de iniciação” (PADILHA, 2007, p. 236). SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 9-20, 2º sem. 2015

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No corpo do livro, conforme nos mostra Inocência Mata, a escrita literária vai assumir, como estratégia para recuperar as formas da cultura local reprimida, uma “oralidade fingida” que se evidenciará, gradativamente, como particularidade da dicção literária africana de língua portuguesa.

Todos esses momentos das literaturas de língua portuguesa assinalados até aqui são aprofundados nas análises críticas propostas pelos articulistas que participam deste número da revista Scripta. Em todos esses eles, subjacente ao debate sobre a relação entre a palavra falada, as formas da textualidade oral e a escrita encontra-se um outro debate, referente ao encontra-sentido político que encontra-se dá, no universo da escrita, à tradição.

A palavra tradição tem origem latina: traditio. Ela deriva da forma verbal traditum, do verbo tradere, composto de trans e dare, cujo significado é dar, passar ou fazer passar a alguém, transmitir. A ideia de transmissão empresta à palavra sua conotação de intensa e contínua atividade: pela tradição transmitem-se conhecimentos, saberes, memórias. Por estransmitem-se motivo, Ria Lamaire, discutindo o sentido de tradição, chama a atenção para o termo, que denota originalmente uma atividade incessante, uma procura, invenção e reinvenção contínuas, tornar-se, “no mundo moderno, e sobretudo no discurso dos intelectuais, o equivalente a atraso, imobilismo e conservadorismo sob a forma do substantivo tradição” (LAMAIRE, 2010, p. 17 – destaque da autora).

Ria Lamaire mostra, em suas reflexões, que o sentido negativo do termo tradição é recente e coincide com um momento e um contexto políticos bem definidos: o da lenta e progressiva ascensão política da alta burguesia europeia. A estudiosa explica que após conquistar o poder a partir de uma aliança com o povo, feita no momento da Revolução Francesa, em 1789, a burguesia criará, progressivamente, no decorrer do século XIX, a Europa Moderna, distanciando-se cada vez mais do povo. Nesse processo, o status da velha Europa das pequenas nações se modificará, passando ela a constituir-se dos grandes Estados-Nações, cuja organização política terá, no progresso, na democracia e na universalidade, as bases da ideologia nacionalista. Nesse novo cenário, “as milhares de pequenas ‘nações’ serão consideradas conservadoras, atrasadas e fadadas à morte por serem, na visão da burguesia, economicamente inviáveis” (LAMAIRE, 2010, p. 18 – destaque da autora). Por volta de 1880, porém, a burguesia constata a resistência das pequenas nações/regiões. Para Lamaire, “a burguesia se dá conta de que aqueles povos não subordinarão tão facilmente a sua língua, a sua cultura, o seu amor da terra e os laços afetivos tradicionais em que ele se baseia a um amor superior, novo, exigente e mais ou menos abstrato: o da pátria” (LAMAIRE, 2010, p. 18).

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Ela toma consciência da necessidade de controlar, formar e educar esses povos que considera, agora, atrasados, impondo-lhes, “um imaginário e uma sensibilidade modernos, voltados para o amor da pátria, a nova comunidade a ser imaginada por todos como fonte de identidade individual, baseada na sua expressão na língua nacional” (LAMAIRE, 2010, p. 18). E o faz por meio da imposição, no ensino primário e secundário, do ensino obrigatório da história nacional e da criação, nas faculdades de Letras das universidades, dos departamentos de língua e de literatura nacionais. Para Ria Lamaire,

o que as elites políticas querem que aconteça – a saber, que morram as línguas e culturas regionais por serem os suportes principais dos milhares de pequenos “nacionalismos” tradicionais – transforma-se em base da organização e em teoria científica do ensino superior: as culturas regionais serão marginalizadas e desprezadas ou até completamente ignoradas; os estudantes aprenderão que elas são inferiores e estão fadadas à morte perante a superioridade da cultura nacional. (LAMAIRE, 2010, p. 19 – destaques da autora).

Em função disso, o ensino de Letras vai orientar-se, durante boa parte do século XX, pela negação das línguas, das artes e das culturas populares, pensadas sob o sentido negativo da tradição, que, como prática vinculada às civilizações da oralidade, as passaria de boca em boca, de geração a geração. Ao adotar essa perspectiva para o trato com a tradição, esse ensino nega aquele sentido teórico de mouvance/movência que lhe atribui Zumthor (1983), pelo qual o refazer contínuo, o recriar permanente da tradição não impedem que ela permaneça sempre a mesma, embora sempre diferente, pois permitem-lhe adequar-se, inclusive, às tecnologias que se lhe opõem, pelo menos em princípio – como a escrita, por exemplo –, para interagir com elas e sobreviver ao longo do tempo. Nessa perspectiva, e contrariando o pensamento que orienta o ensino de Letras, Zumthor chama nossa atenção para o fato de que tanto a oralidade quanto a escrita são condições sine qua non para a existência da tradição.

No Brasil, esse discurso teórico predomina até, pelo menos, o Modernismo, quando os escritores teriam procurado aproveitar a linguagem oral em suas escritas, com o objetivo de aproximar-se do povo – aspecto criticado por Mário de Andrade em sua revisão do papel dos modernistas na integração com o povo. E podemos afirmar que ele ainda prevalece no ensino e na crítica literária, especialmente no que se refere às textualidades cuja matriz remete às oralidades indígenas e africanas, dentre outras, a despeito dos dispositivos legais instituídos no país para inserir as culturas que as originam no currículo da educação básica – refiro-me SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 9-20, 2º sem. 2015

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às leis nºs 10.639/03 e 11.655/08, que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, respectivamente, a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e do estudo da história e cultura dos povos indígenas. Em função disso, o próprio estudo das literaturas africanas de língua portuguesa, no Brasil, tem difusão e reconhecimento distinto das literaturas brasileira e portuguesa, sendo resultado de um movimento das últimas três décadas. A esse respeito, Padilha comenta que tal movimento

Representava, e até hoje representa, uma busca de trazer, à cena contemporânea, as tradições que sempre foram apagadas e/ou se apresentavam como incompreensivelmente exóticas ou diferentes, no olhar dos agentes do vetor considerado alto da cultura brasileira. (PADILHA, 2010, p. 7).

Observa-se que, sobre as expressões das textualidades advindas dessas matrizes culturais pesa, ainda, um silêncio constrangedor. Esse silêncio, resultado do esquecimento a que foram relegadas historicamente, somente é perturbado pelas ações esparsas de uma crítica que, num gesto de enfrentamento e desobediência, descentra os modelos canônicos para rebelar-se contra as posições neocolonialistas que ainda se fazem presentes na literatura e retirá-las do esquecimento. Nesse esforço de desocultamento ganham visibilidade expressões artístico-culturais como o Rap, por exemplo, cuja raiz cruza as práticas ancestrais dos contadores de histórias com práticas orais mais recentes, advindas das comunidades negras afro-diaspóricas e traduzidas em gêneros que bem podem ser tratados como “poesia de rua” (CONTADOR; FERREIRA, 1997, p. 16).

Acreditando que o espaço da literatura e o da crítica devam ser o da prática da democracia, no sentido proposto por Jacques Rancière (1995), a revista Scripta deseja, neste número, por meio dos artigos que disponibiliza para os leitores para a discussão do tema “Literatura e oralidades”, propor uma ruptura com a separação dos saberes e a hierarquia dos gêneros, contribuindo para a “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005) com a qual acredita que a literatura possa constituir seu próprio discurso. Espera, com isso, ampliar as possibilidades de abordagem das relações entre a escrita e as oralidades e contribuir para a sedimentação das pesquisas nessa área de estudos.

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Referências

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CHAVES, Rita. A formação do romance angolano. São Paulo: FFLCH-USP, 1999. p. 85.

CONTADOR, A. C.; FERREIRA, E. L. Ritmo & poesia. Os caminhos do Rap. Lisboa: Assírio &Alvim, 1997.

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-Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 35, p. 17-30, jan.-jun. de 2010.

Disponível em: http://www.gelbc.com.br/pdf_revista/3501.pdf. Acesso em: 20 de nov. de 2015.

PADILHA, Laura. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. 2. ed. Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007. p. 26. PADILHA, Laura. O ensino e a crítica das literaturas africanas no Brasil: um caso de neocolonialidade e enfrentamento. In: Revista Magistro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas – UNIGRANRIO. v. 1, n. 1, 2010. Disponível em: http://publicacoes.unigranrio.com.br/index.php/magistro/ article/viewFile/1063/625. Acesso em: 12 de nov. de 2015.

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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2005. RANCIÈRE, Jacques. O efeito de realidade e a política da ficção. Tradução de Carolina Santos. In: Novos Estudos - CEBRAP, nº. 86, São Paulo. Mar. de 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0101-33002010000100004. Acesso em: 27 de nov. de 2015.

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ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. São Paulo: Ateliê Editorial. 2005. ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec; EDUC, 1997.

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ZUMTHOR, Paul. Babel ou o inacabamento. Reflexão sobre o mito de Babel. Tradução de Gemeniano Caseais Franco. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998.

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genealógica e cronística medieval ibérica –

diálogos com a ética aristotélica

José D’Assumpção Barros*1

RESUMO

Neste artigo, preocupado em examinar a intertextualidade da literatura medieval com o pensamento aristotélico, são examinadas algumas narrativas medievais da Idade Média portuguesa que aparecem nos livros de linhagens do século XIII, com vistas à identificação dos principais traços de um Imaginário Cavaleiresco, que foi essencial para a formação da identidade nobiliárquica do mesmo período. Investiga-se, assim, a influência da ética aristotélica no padrão cavaleiresco que é definido preponderantemente nas narrativas linhagísticas.

Palavras-chave: Ética aristotélica. Narrativas medievais. Idade Média Ibérica.

* Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Considerações iniciais

É bastante conhecido o diálogo de textos medievais de origens diversas com as obras de Aristóteles. O campo da Escolástica, naturalmente, nos oferece as referências mais óbvias e notórias. Contudo, fontes as menos previsíveis, como as crônicas e outras fontes narrativas do período, podem também nos mostrar, em menor ou maior intensidade, a intertextualidade aristotélica. O presente artigo pretende investigar a relação entre a intertextualidade medieval-aristotélica e certas fontes narrativas que fazem parte da literatura cronística e que giram em torno da temática do Ideal Cavaleiresco, tão caro à nobreza medieval. Nossas fontes centrais serão os livros de linhagens – genealogias que, na Idade Média portuguesa, entremeavam listas de antepassados nobiliárquicos com narrativas de diversos teores sobre os mesmos. São essas narrativas que nos interessarão mais especificamente, no sentido de que frequentemente transparece, através dos exemplares que elas encaminham, todo um modelo ético que pode ser sistematicamente examinado.

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Influência de Aristóteles na Idade Média

Aristóteles teve uma enorme influência na Idade Média.1 À parte as obras

de Lógica e Retórica, as quais haviam sido conservadas por linha mais direta da herança greco-romana, uma grande parte dos textos aristotélicos direcionados a uma grande gama de assuntos somente chega até os homens medievais de cultura a partir dos árabes.2 Os comentários de Averróis (1126-1198), filósofo islâmico

nascido em Córdova, são imprescindíveis nesta direção.3 De Averróis, a influência

de Aristóteles chegaria a nomes como os de John de Salisbury (1115-1180), Alberto Magno (1193 -1280 d. C.), Roger Bacon (1214 -1294 d. C.), Santo Tomás de Aquino (1225 -1274 d. C.), Siger de Brabant (1235 -1284 d. C.) e Marsílio de Pádua (1275 -1342 d. C.).4 A presença de tantos nomes da segunda metade do século

XII e do século XIII entre os que recebem a obra aristotélica através dos árabes não é casual. A Universidade de Paris, a mais notória das grandes universidades medievais, destaca-se em especial neste século, e é lá que podem ser notadas, pela primeira vez, as traduções aristotélicas e os textos dos comentadores árabes.5

Trata-se de um ambiente efervescente, que logo inspiraria os meios universitários e eruditos de outros países da Europa.

A obra máxima de Averróis, para além de sua enorme importância na própria cultura islâmica, contribuirá diretamente para transmitir o aristotelismo aos cristãos medievais. Referimo-nos aos Comentários ao corpus aristotelicum. Este grande conjunto compreende três grandes divisões: os comentários menores (Yawami), médios (Taljisat) e menores (Tafasir). Desses, é importante desde já ressaltarmos a importância dos “Comentários médios” para a temática de que tratamos – a qual abordará a influência, nos livros de linhagens, da Ética a Nicômaco – isto porque é precisamente nesta divisão que se acham, mais propriamente, os comentários à Ética de Nicômaco, entre outros voltados para outras obras aristotélicas. O comentário médio sobre a Ética de Nicômaco de Aristóteles teria sido elaborado por Averróis em 1171.6

1 Para uma análise de maior profundidade sobre a trajetória e obra de Aristóteles, ver HÖFFE, Otfried. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008.

2 BONI, Luis A. de. Apresentação. In: São Tomás de Aquino. Suma teológica. Porto Alegre: UFRS, 1980. p. I-XII.

3 Para um estudo sobre a trajetória intelectual de Averrois, ver URVOY. Dominique. Averroès: Les ambitions d'un intellectuel musulman. Paris: Flammarion, 1998.

4 CHEVALIER, Jacques. Histoire de la pensée. II, Paris, Racine, 1956, p. 272.

5 GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 477.

6 MATOS, Manuel Cadafaz de. Contributo para o estudo da recepção dos textos de Averróis (1126-1198) na península ibérica entre os séculos XIII e XV numa perspectiva da História do Livro. Humanitas, 1998, v. L, p. 444.

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Entre os ibéricos, aspecto que será importante para o nosso tema em estudo, houve igualmente uma recepção significativa das obras de Averróis (e, consequentemente, do extrato aristotélico que foi trazido por elas), tal como podemos ver de maneira mais sistemática em um estudo de Manuel Cadafaz de Matos (1998). Tal se verifica sobretudo nos séculos XIII e XIV, o que coincide com o nosso período em estudo e, desse modo, agrega-se como mais um indício sobre a penetração das intertextualidades aristotélicas na época dos chamados livros de linhagens.

A referência a Aristóteles no prólogo do livro de linhagens

Começaremos por fazer notar que existe um modelo de ideal cavaleiresco, e consequentemente um contramodelo anticavaleiresco correspondente, que acaba por tomar forma de maneira bastante enfática em diversas narrativas contidas nos três grandes livros de linhagens que conhecemos do reino de Portugal nos séculos XIII e XIV. O nosso objetivo inicial será examinar esses modelos e contramodelos, verificando também como se dá mais concretamente a intertextualidade do Livro

de linhagens do Conde Dom Pedro, o mais famoso dos nobiliários medievais

portugueses, com a ética aristotélica, citada no prólogo do mesmo livro.

Em pesquisa anterior7, os resultados a que chegamos a partir do rastreamento

dos modelos e contramodelos presentes nas narrativas linhagísticas e da utilização de quadrados semióticos para a compreensão de seus significados, vieram a mostrar que, por de trás do código cavaleiresco proposto pelos livros de linhagens portugueses, há um sistema ético envolvido. A busca da identificação de uma dimensão aristotélica presente nesse sistema ético será o que nos interessará neste momento. Por hipótese, partiremos de algumas constatações preliminares. Existe no sistema ético que parece emergir das narrativas cavaleirescas dos livros de linhagens algo que se coloca como “justo” na sua relação com o “não-justo” e com o “injusto”, e elementos que medeiam esta relação (a qualidade do ato como “voluntário” e “consciente”, a necessidade de retribuir a justiça ou a injustiça com um ato que instaure ou restabeleça a “reciprocidade”’, a “hierarquização” de tipo geométrico entre “males menores” e “mal maior”, e assim por diante). Esses elementos coincidem com a “ética aristotélica”, e é extremamente significativo o fato de Aristóteles ser o único autor que aparece nominalmente citado no prólogo do Livro de linhagens do Conde Dom Pedro. Naquela oportunidade, registrada 7 BARROS, José. As três imagens do rei – o imaginário régio nos livros de linhagens e nas cantigas trovadorescas portuguesas (séculos XIII-XIV), Tese (Doutorado). Niterói: UFF,1999.

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logo ao princípio do “Prólogo”, o Conde apropria-se à sua maneira de um certo dito de Aristóteles: Esto diz Aristotiles: que se homees houvessem antre si amizade verdadeira, nom haveriam mester reis nem justiças. (Livro de linhagens

do Conde Dom Pedro, 1980).

Existe uma boa possibilidade de que o trecho a que se refere o Conde D. Pedro nestas páginas iniciais de seu nobiliário seja uma passagem da própria Ética a Nicômaco, na qual o filósofo grego diz que “quando os homens são amigos não necessitam de justiça” (ARISTÓTELES, 1973, p. 379). No mesmo parágrafo, aliás, Aristóteles acrescenta ainda que “considera-se que a mais genuína forma de justiça é uma espécie de amizade” (ARISTÓTELES, 1973, p. 379), o que parece produzir ressonâncias na expressão “amizade verdadeira” utilizada pelo Conde na passagem acima. De resto, o próprio Livro VIII da Ética a Nicômaco refere-se, na sua totalidade, à questão da “amizade”, abordando em especial as suas relações com a justiça e as formas políticas. Tudo isto leva-nos a crer que é a própria Ética a Nicômaco que está na base do comentário do Conde, e que portanto teria sido uma obra conhecida do compilador do Livro de linhagens do Conde Dom Pedro a ponto de influenciá-lo seja na seleção das narrativas, seja na construção de um discurso que parece pontuar determinados aspectos da ética aristotélica. Veremos que esta suspeita parece se confirmar com a confrontação dos próprios casos linhagísticos com certas passagens da obra do filósofo grego.8

O modelo ético da Ética a Nicômaco

De fato, o circuito de narrativas que tivemos oportunidade de examinar parece estar mergulhado significativamente em um sistema ético nos moldes aristotélicos – onde a questão da necessidade de o “ato justo” ser acompanhado de “vontade” concretiza, nos exempla linhagísticos, o que em teoria se acha registrado na Ética a Nicômaco:

Sendo os atos justos e injustos tais como os descrevemos, um homem age de maneira justa ou injusta sempre que pratica tais atos voluntariamente. Quando os pratica involuntariamente, seus atos não são justos nem injustos, salvo por acidente, isto é, porque ele fez coisas que redundam em justiças ou injustiças. É o caráter

voluntário ou involuntário do ato que determina se ele é justo ou injusto, pois, quando é voluntário, é censurado, e pela mesma razão

se torna um ato de injustiça; de forma que existem coisas que são 8 Para estudos mais específicos sobre a Ética Aristotélica, ver GAUTHIER, René-Antoine. La morale d’Aristote. Paris: Presses Universitaires de France, 1958 e NODARI, Paulo Cesar. A Ética Aristotélica. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, UFMG, vol.24, n. 79, 1997, p. 383-410.

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injustas, sem que no entanto sejam atos de injustiça, se não estiver presente também a voluntariedade. (ARISTÓTELES, 1973, p. 332 – destaques meus).

Antes de mais nada, podemos perceber que o filósofo grego reconhece a existência de atos que “não são justos nem injustos” – e que, portanto, seriam antes classificáveis como atos “não justos” ou “não injustos”, prenunciando aqui um quadrado semiótico perfeitamente elaborado. Por outro lado, após estabelecer uma relação necessária entre a classificação do ato como justo ou injusto e a sua “voluntariedade”, Aristóteles deixa claro a seguir que entende por voluntariedade a “consciência” do ato e o fato de que ele não seja praticado por coação ou imposição:

Por voluntário entendo, como já disse antes, tudo aquilo que um homem tem o poder de fazer e que faz com conhecimento de causa, isto é, sem ignorar nem a pessoa atingida pelo ato, nem o instrumento usado, nem o fim que há de alcançar (por exemplo, em quem bate, com o que e com que fim); além disso, cada um desses atos não deve ser acidental nem forçado (se, por exemplo, A toma a mão de B e com ela bate em C, B não agiu voluntariamente, pois o ato não dependia dele). (ARISTÓTELES, 1973, p. 332).

A presença do modelo nas narrativas dos livros de linhagens

Alguns dos exempla presentes nas narrativas dos livros de linhagens adequam-se perfeitamente à ética acima exposta. O personagem Pedro Alvelo da narrativa “O Tenreiro” (LL 36E9), por exemplo, era um nobre honrado que havia sido enganado pelo primo e que, embora sabendo “em quem e com que batia”, não sabia “com que fim” (ou imaginava que o seu ato se sustentava em uma resposta a um desafio, na verdade inexistente). Em suma, nesse enredo narrativo, o bom nobre é induzido maldosamente por um outro a cometer um crime, acreditando que, na verdade, estava defendendo a sua honra. Por isto, na sequência, ele é liberado pelo rei de qualquer acusação de ter praticado um ato injusto.

Já na narrativa sobre “O alcaide de Celorico” (LL55Q6), temos o caso de um nobre que se tornou um verdadeiro modelo de comportamento dentro do âmbito cavaleiresco, esforçando-se obstinadamente o protagonista nobre por resolver, dentro dos ditames habitualmente aceitos pelo ideal cavaleiresco, as pendências intervassálicas das quais precisava se livrar. Nesse caso o nobre, que busca a todo o custo liberar-se corretamente de um vínculo de vassalidade com relação a um suserano que se esquiva de encontrá-lo, não havia cometido rigorosamente um ato injusto (“não agiu voluntariamente, pois o ato não dependia dele”).

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A narrativa sobre “Fernão Rodrigues” (LL 11C7) – trazendo à tona o caso de um nobre honrado que é levado a crer que estava sendo traído pela mulher e que, por isso, a assassina brutalmente, embora ela, na verdade, fosse inocente – mostra bem o caso do infrator involuntário que, acreditando agir de acordo com o princípio da “reciprocidade”, ignora, na verdade, “a pessoa atingida pelo ato”.9 As

manipulações que envolvem Pedro Alvelo e Fernão Rodrigues, aliás, enquadram-se perfeitamente no que Aristóteles classifica, logo a enquadram-seguir, como “enganos”: “Os que são infligidos por ignorância são enganos quando a pessoa atingida pelo ato, o instrumento ou o fim a ser alcançado são diferentes do que o agente supõe”. (ARISTÓTELES, 1973, p. 332).

Também a narrativa “O rapto da Ribeirinha” (LL 36BN9) nos mostra um caso bastante elucidativo. Uma Dama da alta nobreza portuguesa é raptada e forçada a viver maritalmente com o seu raptor, que a leva para um país estrangeiro, de modo a escapar de possíveis vinganças da família da vítima. A personagem, então, manipula o seu raptor, convencendo-o a comparecer perante o rei de Portugal para regular a sua situação conjugal. Tratava-se, contudo, de mero artifício, pois no momento em que estão diante da mediação régia, a personagem acusa o seu raptor e faz com que ele seja condenado. Aqui, portanto, a personagem, que é obrigada a escolher entre o “mal menor” (a mentira e o fingimento de sujeição ao seu raptor) e o “mal maior” (a desonra não reparada), acha-se adequada a um outro passo da

Ética a Nicômaco,

pois o menor mal é considerado um bem em comparação com o mal maior, visto que o primeiro é escolhido de preferência ao segundo, e o que é digno de escolha é bom, e de duas coisas a mais digna de escolha é um bem maior. (ARISTÓTELES, 1973, p. 325-326).

Ou, de maneira ainda mais clara, registra-se no Livro III a seguinte passagem: “Por ações desta espécie os homens são até louvados algumas vezes, quando suportam alguma coisa vil ou dolorosa em troca de grandes e nobres objetivos alcançados.” (ARISTÓTELES, 1973, p. 281).

9 “Fernão Rodrigues” é um nobre que, imaginando-se vítima de um adultério, assassina sua esposa inocente em função de um mal entendido perpetrado pelas circunstâncias e agravado por uma personagem maldosa (LL 11C7). Tornado consciente da injustiça de seu crime, o nobre chega a entregar a própria vida ao sogro, que é nada mais, nada menos, que o imperador da Espanha. A passagem da não-justiça (-S1) à injustiça (S2) deve ser associada à tomada de consciência de que a esposa era inocente, e a correção da injustiça (-S2) à proposta do nobre de que o pai da vítima disponha de sua própria vida. A “justiça plena” (S1) corresponde à decisão magnânima do imperador, que decide não puni-lo em vista de compreender que o infrator teria agido cavalheirescamente, tanto para o mal como para o bem (já que não tinha consciência de que a esposa, efetivamente, não praticara adultério).

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É bem verdade que o filósofo grego faz distinções entre os vários casos de escolha entre o “mal menor” e o “mal maior”, devendo alguns serem merecedores de louvor e outros de perdão:

Algumas ações, em verdade, não merecem louvor, mas perdão, quando alguém faz o que não deve sem sofrer uma pressão superior às forças humanas e que homem algum poderia suportar. (ARISTÓTELES, 1973, p. 281).

Essas nuances também estão presentes no material linhagístico de valoração cavaleiresca. A dama que se submete ao raptor para realizar o seu projeto de vingança em “O rapto da Ribeirinha” (LL 36BN9) tende mais a ser perdoada do que louvada, e o nobre que luta desesperadamente para sanar uma infração cavaleiresca que não dependeu dele tende a ser louvado e a se transformar, até mesmo, em um paradigma vassálico em “O alcaide de Celorico”. (LL 55Q6).

O constrangimento da passagem do cavaleiresco ao não-cavaleiresco

As correlações entre o código cavaleiresco proposto e a ética aristotélica não param por aí. A vingança da honra, que ocupa um papel tão importante no circuito de relatos presentes no nobiliário, adequa-se, por exemplo, ao princípio da “reciprocidade” proposto noutro passo da Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1973, p. 328). Mas existe ainda um outro ponto que denuncia, de forma ainda mais enfática, a apropriação linhagística da ética aristotélica. Referimo-nos ao fato de que não se mostra possível para um “bom nobre” passar do cavaleiresco ao não-cavaleiresco sem um “constrangimento”. Se ele ignora, em um primeiro momento, esta passagem, o constrangimento ou a necessidade de remissão não surge senão quando ele toma conhecimento do ato. É o caso, por exemplo, do nobre enganado em “O Tenreiro” (LL 36E9) ou da narrativa sobre Fernão Rodrigues, fidalgo que mata involuntariamente a própria esposa em “O assassinato de Dona Estevainha”. (LL 11C7). Essa tomada de consciência acompanhada da dor ou do arrependimento está na base de uma distinção que Aristóteles faz entre o “não-voluntário” e o “involuntário”:

Tudo o que se faz por ignorância é não-voluntário, e só o que produz dor e arrependimento é involuntário. Com efeito, o homem que fez alguma coisa devido à ignorância e não se aflige em absoluto com o seu ato não agiu voluntariamente, visto que não sabia o que fazia; mas tampouco agiu involuntariamente, já que isso não lhe causa dor alguma. (ARISTÓTELES, 1973, p. 282).

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Distingue-se, portanto, o ato injusto “voluntário” – que é próprio do “homem mau”, a não ser no já mencionado caso da escolha de um “mal menor” em detrimento do “mal maior” – dos atos injustos que são “não-voluntários” ou “involuntários”, sendo que este último implica, necessariamente, uma tomada de consciência em algum momento, e consequentemente no contraponto do “constrangimento”. No caso dos relatos linhagísticos, esse constrangimento costuma expressar-se em “vergonha”, “arrependimento”, ou pelo menos em uma imperiosa necessidade de “remissão” e de recuperação da imagem cavaleiresca idealizada perante os pares. Dessa forma, a passagem do “não-voluntário” ao “involuntário”, ou do plano da inconsciência ao plano da consciência, vem acompanhada, obrigatoriamente, de um “constrangimento” sempre que o agente for essencialmente “bom”. Aristóteles é bem explícito com relação a esta questão: “Além disso, a prática de um ato considerado involuntário em virtude de uma ignorância desta espécie deve causar dor e trazer arrependimento.” (ARISTÓTELES, 1973, p. 283).

Um mostruário de situações éticas

Um grande número de aspectos incluídos na Ética a Nicômaco, conforme se depreende dos exemplos expostos, parece encontrar uma ressonância efetiva no material linhagístico que serve de exemplum para a correta inserção do “bom nobre” dentro do âmbito cavaleiresco. As distinções entre o “justo”, o “não-justo” e o “in“não-justo”; entre o “voluntário”, o “não-voluntário” e o “involuntário”; a identificação do “constrangimento” (dor ou arrependimento) que decorre do fato de um “homem justo” tomar consciência de ter praticado um ato injusto; a legitimidade de escolher o “mal menor” para evitar o “mal maior”; a “reciprocidade” em que se fundamenta a reparação do mal ou da justiça infligida, no caso cavaleiresco implicando a vingança justificada ou a reparação da honra, e, por fim, a “virtude” encarada como um meio termo entre um excesso e uma carência, são os elementos de uma ética aristotélica que parecem informar, em alguns de seus níveis, o código cavaleiresco proposto pelo autor do Livro de linhagens do Conde Dom Pedro.

É assim que, nessa perspectiva, o nobiliário apresenta-se como um mostruário de situações práticas e concretas, prontas a oferecer ao cavaleiro-leitor um repertório de possibilidades éticas. Dito de outra forma, o nobiliário incorpora uma dimensão didática que pretende orientar o cavaleiro no seu agir em relação aos seus semelhantes. Um último elemento desta ética a ser considerado consiste na noção de que, se a felicidade de uma vida cavaleiresca e virtuosa é um fim em si mesmo a ser atingido, essa felicidade cavaleiresca é uma “atividade” que só pode

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ser assegurada mediante o esforço. E mais uma vez encontramos uma ideia da ética aristotélica profundamente entranhada nos exemplos narrativos do nobiliário do Conde D. Pedro: a de que “a vida virtuosa exige esforço” (ARISTÓTELES, 1973, p. 428). Nessa passagem encontra-se tanto a definição da “felicidade” como uma “atividade”, como a noção de que “a vida feliz é virtuosa” e exige esforço.

De fato, uma vez carregado para o âmbito não-cavaleiresco que ameaça o estatuto da virtude cavaleiresca e a felicidade verdadeira, o cavaleiro deve lutar arduamente para recobrar o equilíbrio original. Tenha sido deslocado do âmbito cavaleiresco por uma fatalidade (LL 11C7), por razões involuntárias (LL 95Q6), pela má fé ou manipulação de um outro (LL 36E9), pela violência do rapto (LL 36BN9) ou da captura (LL 65A1), somente o esforço consciente poderá trazer o bom nobre de volta ao seu âmbito natural. Os que fracassam na realização desse esforço ficam aprisionados definitivamente no âmbito não-cavaleiresco e perdem a “boa nobreza”, se um dia a tiveram (LL 41I5)10. O “esforço” completa, portanto,

o conjunto de noções constitutivas de uma ética que se encontra implícita no nobiliário examinado.

Denunciada pelo pormenor registrado logo ao início do “Prólogo” do Livro de

linhagens do Conde Dom Pedro, uma leitura de Aristóteles parece estar, dessa

forma, presente nos fundamentos éticos das narrativas linhagísticas e ser confirmada pelos próprios conteúdos e noções envolvidos nos seus relatos sobre transgressão e reparação cavaleiresca. De um modo ou de outro, a intencionalidade de dar uma coerência ao código cavaleiresco através das narrativas linhagísticas mostra-se compatível com a ética aristotélica. Prossigamos, portanto, no rastreamento de situações de transgressão e valoração cavaleiresca apreensíveis em nossas fontes. Já registrados os casos que se referem aos “bons nobres”, cabe agora investigar a figura do “mau nobre”, este que pratica o ato injusto voluntariamente e com consciência da sua injustiça.

Os traidores

Encontram-se registradas diversas narrativas sobre traidores ou infratores cavaleirescos nos livros de linhagens. Não raro, essas narrativas aparecem associadas a objetivos conscientes de depreciar determinado indivíduo ou linhagem. Mas um de seus mais significativos papéis é reforçar, por contraposição, e de diversas maneiras, os valores cavaleirescos, o que pode atender tanto à nobreza 10 Respectivamente as já mencionadas narrativas “Fernão Rodrigues de Castro”, “O alcaide de Celorico”, “O Tenreiro”, “O rapto da Ribeirinha”, “Pero Novais”, “Gonçalo Pires Ribeiro”.

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como ao projeto centralizador régio. As famosas traições de “Raimundo Viegas de Portocarreiro” e de “Mem Cravo” constituem dois dos mais significativos exemplos (LL 43F5 e LL 47C4). Ambas referem-se ao rompimento injustificado de vínculos vassálicos. A infração à ética cavaleiresca propriamente dita, mais do que a infração aos valores feudo-vassálicos, também se aproxima desse tipo de narrativas. É o caso da sequência sobre a covardia de Mem Soares na narrativa sobre “Echega Guiçoi de Souza” (LL 22A5), que cegou seis condes enquanto dormiam e termina justiçado. A mesma narrativa é referida em registro de intertextualidade pela narrativa sobre “Gonçalo de Souza” (LL 22A5), que contrapõe descendentes das personagens envolvidas na primeira narrativa.

Em um extrato ainda mais profundo de significações, este tipo de narrativas permite que se entrevejam verdadeiras disputas de sentidos no interior dos valores cavaleirescos. A noção de “fidelidade”, por exemplo, é definida e redefinida de diversas maneiras, dando voz a múltiplas visões de mundo. Registre-se ainda que, embora sejam comuns as narrativas de traições premeditadas de ordens diversas, a transgressão pode se dar por incompetência cavaleiresca. É o caso da narrativa “Gonçalo Pires Ribeiro” (LL 41L5-6). Encarregado por contrato vassálico de defender e administrar dois castelos, o nobre os entrega a dois vilões – portanto personagens situados fora do âmbito cavaleiresco. A perda dos castelos por esses personagens torna-se culpa do próprio nobre, que lhes delegara, indevidamente, essa função, que normalmente deveria caber, por competência e direito, a cavaleiros nobres. A narrativa é taxativa ao registrar a estagnação de Gonçalo Pires Ribeiro no âmbito não-cavaleiresco: “E assi ficou Gonçalo Pirez Ribeiro en tal pena e tal desventura qual ouvides” (Livro de linhagens do Conde Dom Pedro, 1980). Acrescentando logo em seguida que o nobre não deixou descendência, o genealogista acrescenta que “nom houverom semel, e julgou-lhe Deus bem” (Livro

de linhagens do Conde Dom Pedro, 1980).

As narrativas sobre traidores correspondem aos que, como dissemos, partem de um equilíbrio inicial no campo cavaleiresco e, fazendo o seu trajeto coincidir com o percurso da transgressão, lá permanecem. Frequentemente, essas narrativas costumam registrar a estagnação das personagens no campo não-cavaleiresco, encerrando-se com frases do tipo: “e ficou por traidor”. Em termos da forma como se dá a trajetória da transgressão pelo traidor, a passagem (de “a” para “b”) pode ser consciente (calculada) ou inconsciente (a princípio imprevista pelo seu praticante). No primeiro caso – o da transgressão consciente – há uma clara diferença do traidor em relação ao “bom nobre” que transgride os valores cavaleirescos, também conscientemente, mas com vistas a uma finalidade maior. A motivação do traidor

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é sempre a satisfação de um interesse pessoal, uma ambição, uma covardia. É um recurso recorrente disforizar a figura do traidor ou a sua trajetória acrescentando-lhes outros índices de transgressão cavaleiresca, que não o tema principal da narrativa. Assim, além da traição maior que constitui a sequência principal, é comum aqui o registro de uma série de pequenos atos não-cavaleirescos que compõem o “perfil traidor” do personagem depreciado11.

Pode se dar, enfim, que o traidor seja levado, inconscientemente ou contra a sua vontade, ao âmbito da transgressão cavaleiresca, mas lá permaneça, sem força ou qualidades morais que o permitam iniciar o trajeto de volta. Nos relatos sobre “O rei Ramiro em Gaia”, o percurso de uma personagem feminina é exatamente deste tipo. Raptada por um mouro, a rainha Aldora, esposa do rei Ramiro, acaba apreciando mais a nova vida que a anterior, o que equivale a uma dupla traição, ao mesmo tempo voltada contra os preceitos cavaleirescos e contra a inclusão na cristandade. A narrativa também pode ser abordada, por outro lado, em termos de transgressão cristã12. Ao final da narrativa, a rainha é trazida à força de volta ao

âmbito da normalidade, mas recusando este caminho de volta acaba condenada à morte, o que sela a sua estagnação no âmbito não-cavaleiresco. Essa situação corresponde à metade do circuito completo que vimos para o caso da narrativa sobre Pedro Alvelo. A diferença é, precisamente, a ausência do retorno pelo percurso de volta, obrigatório para o caso do bom nobre que não tenha perdido a sua essência.

Os resgates narrativos do herói

Um episódio de transgressão cavaleiresca pode ainda ser enxertado, às vezes em forma de sequência interpolada, no enredo mais amplo da narrativa, produzindo, com isso, ambiguidades com relação à atuação honrada do personagem cavaleiresco no decorrer da aventura. O herói, que no plano geral da narrativa tem um saldo cavaleiresco positivo, pode, em alguns casos, carregar um pequeno insucesso anticavaleiresco que é devidamente punido pelo destino, deixando-lhe sequelas que servirão de exemplo moral. É o exemplo do famoso relato sobre a luta de Afonso Henriques contra sua mãe, em que este a prende a ferros e é por isso amaldiçoado, vindo a sofrer, mais tarde, uma punição que se expressa 11 As narrativas das traições de “Portocarreiro” (LL 43F5) e “Mem Cravo” (LL 47C4) são ricas nestes aspectos. Ambas contêm referências a raptos. A primeira acrescenta ainda o desrespeito injustificado pelas insígnias régias e o expediente sorrateiro de invadir a casa do rei durante a noite para lhe roubar a mulher.

12 [Trajeto proposto: (S1) “Justiça” (a rainha é esposa do rei) → (-S1) “Não-justiça” (a esposa é levada pelo mouro contra a sua vontade) → (S2) “Injustiça” (a vítima adere ao seu raptor)].

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através da perna quebrada (LL 7B1-10). O enxerto se presta, naturalmente, a mostrar que mesmo o rei está sujeito a um código mais amplo que não pode ser transgredido. Heroico e cavaleiresco no plano superior da narrativa, o rei fracassa em um pequeno detalhe e recebe, por isso, uma punição correspondente, que não chega a comprometer, em todo o caso, a sua história de vida, conforme a leitura do nobiliário. De maneira similar, na narrativa “O rei Ramiro em Gaia” (LL 21A1) o filho do rei amaldiçoa a mãe e sofre, por isso, uma punição correspondente: “E por este pecado que disse o infante dom Ordonho contra sa madre, disserom despois as gentes que por esso fora deserdado dos poboos de Castela ...” (Livro de linhagens

do Conde Dom Pedro, 1980).13

Registram-se também, nos livros de linhagens, as narrativas que se resolvem no próprio âmbito cavalheiresco, confrontando, por exemplo, dois nobres honrados, mas que são opositores por algum motivo14. Nos antípodas do tipo de narrativa, que

se resolve toda no próprio âmbito cavaleiresco, estão naturalmente as narrativas que se resolvem integralmente no âmbito não-cavaleiresco. Um exemplo significativo, e carregado de ambiguidades, é a narrativa sobre “Soeiro Pais Mouro e Urraca Mendes de Bragança”. Uma mulher da família dos Braganções pratica, desde o princípio da narrativa, o adultério com um nobre que tem o agravante de possuir uma ascendência materna moura (pode ser identificado a um filho bastardo de Soeiro Mendes da Maia). Enquanto isso, o marido participa honrosamente de uma campanha de Afonso Henriques contra os mouros, vindo, a certa altura, a morrer no campo de batalha. Informada da morte do marido, a mulher “nom leixou porem de casar com dom Soeiro Mouro” (Livro de linhagens do Conde Dom Pedro, 1980). O jogo entre legitimação e ilegitimação é particularmente ambíguo nesta narrativa que envolve depreciações várias aos diversos personagens envolvidos. Tudo permanece, naturalmente, no âmbito não-cavaleiresco – e a menção à atuação honrosa e cavaleiresca do marido na guerra apenas contribui para realçar a transgressão da esposa adúltera, da mesma forma que se insinua que a legitimação trazida pelo novo casamento apenas oficializa uma relação adúltera na sua origem (já a LV 6G5 apresenta uma versão não-agressiva desta união).

E há ainda as que começam de maneira invertida, fazendo a passagem do não-cavaleiresco ao não-cavaleiresco. A narrativa sobre “A Independência de Biscaia” (LL 9A1) mostra-nos uma sociedade oprimida por um cavaleiro injusto e cruel. A 13 [Trajeto proposto: (S1) “Normalidade cavaleiresca” → (-S1) “Não normalidade cavaleiresca” → (S2) “infração não-cavaleiresca”→ (-S2)“punição da infração não cavaleiresca” → (S1) restabelecimento de uma nova normalidade cavalheiresca].  

14 Entre as deste tipo, a narrativa sobre o “Conde Froia Bermudes” concilia um nobre honrado e cortês com o rei, que também permanece o tempo todo no âmbito cavalheiresco. (LL 7A5-7).

Referências

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