NOTA TÉCNICA
Referência: Projeto de lei que altera o art. 60 da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, revoga artigos da Consolidação das Leis do Trabalho e dá outras disposições protetivas dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Ementa de conteúdo: 1. Trabalho infantil artístico e desportivo: limites éticos, à luz das balizas constitucionais, internacionais e do direito comparado. 2. Princípio da proteção integral e poder familiar: impossibilidade jurídica de construção do modelo legal a partir da perspectiva monetária e/ou do proveito econômico. 3. Princípio da absoluta prioridade e progressiva judicialização das políticas públicas de proteção da infância e da adolescência: competência da Justiça do Trabalho (pertinência temática e conveniência legislativa).
1. O projeto de lei em referência tem o escopo de eliminar distorções no
ordenamento jurídico brasileiro, de modo a garantir efetiva proteção a crianças
e adolescentes, no que diz respeito à prestação de trabalho artístico ou
desportivo em prejuízo a sua formação física, intelectual e psicológica. Para
tanto, adapta dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.
8.069/1990 – ECA), aprofundando os níveis de proteção, e revoga outros da
Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei n. 5.452/1943 - CLT), em razão
da sua manifesta incompatibilidade com normas constitucionais de caráter
cogente.
2. A legislação pátria vigente, em constante evolução, notadamente a partir
da promulgação da Constituição Federal de 1988 — que positivou, em seu art.
227, os princípios da proteção integral e da absoluta prioridade —, ainda carece
de modificações que traduzam o reconhecimento da sociedade brasileira quanto
à necessidade de amparar crianças e adolescentes em situações de elevada
especificidade (“in casu”, no trabalho artístico e desportivo), prevenindo os
danos que decorrem do trabalho prestado em idade inadequada.
3. A promulgação da Lei nº 8.069/90 decorreu das doutrinas que passaram a
permear o direito brasileiro no final do século XX, plasmadas nos princípios da
proteção integral e da prioridade absoluta das crianças e adolescentes (art. 227
da CF; art. 4º do ECA). Outrora consentânea com o texto constitucional, a
legislação ordinária dele afastou-se a partir da Emenda Constitucional nº 20/98,
que conferiu nova redação ao art. 7º, XXXIII, e passou a proibir o trabalho
prestado pelos menos de 16 (dezesseis) anos, exceto na condição de menor
aprendiz, a partir dos 14 (catorze) anos. A evolução constitucional, saliente-se,
atendeu ao compromisso do Brasil quanto à observância da Convenção nº 138 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada no Brasil pelo Decreto
nº 4.134/02. E, para mais, o Brasil assumiu o compromisso de erradicar com
prioridade as chamadas “piores formas do trabalho infantil” (Convenção OIT n. 182),
trabalho infantil em atividades ilícitas/criminosas e o trabalho infantil
especialmente prejudicial à saúda psicossomática e/ou à formação da criança e
do adolescente (Lista T.I.P.); nada obstante, conquanto haja nisso sentidas
evoluções, o País ainda está muito distante de sua meta, à mercê de
dificuldades de toda ordem — a que se soma, diga-se, uma cultura retrógrada
de apropriação do tempo de vida da criança e do adolescente para os interesses
econômicos mais imediatos de suas famílias.
4. Daí desde logo se impor, pois, como se propõe no substitutivo do PLS n.
83/2006, adequar o art. 60 da Lei nº 8.069/90 à redação conferida ao art. 7º,
XXXIII, da Constituição Federal, para impedir o trabalho prestado antes dos 16
(dezesseis) anos, exceto na condição de menor aprendiz, a partir dos 14
(catorze) anos. Esses parâmetros mínimos foram estabelecidos pelo constituinte
derivado em atenção à necessidade de conferir à criança e ao adolescente as
melhores condições para a sua formação intelectual, física e psicológica, posto
que a privação do lazer, da educação, do convívio familiar e da saúde, dentre
outras, constituem obstáculos à evolução e ao crescimento do menor. De mais a
mais, tratando-se de legislação infraconstitucional, específica sobre os direitos
das crianças e adolescentes, não poderia o ECA dispor de forma distinta do
texto constitucional, notadamente se a disparidade importar em condições
menos favoráveis aos destinatários da proteção conferida pela norma maior.
5. No mesmo encalço, o projeto em referência contém previsão de restrição
para os alvarás judiciais de autorização para o trabalho prestado pelo menor de
16 (dezesseis) anos, devendo delimitar com clareza as exceções ao trabalho em
representações artísticas e atividades desportivas, o que deve se dar, sempre,
“em caráter individual, extraordinário e excepcional”, a teor da redação proposta
para o § 2º, do art. 60, da Lei nº 8.069/90, e desde que o trabalho da criança ou
do adolescente não possa ser prestado por outro de idade superior aos 16
(dezesseis) anos (§ 3º). A proposta, formulada nesses termos, é de imperioso
acolhimento, porque atende à constatação, de diversas ordens (médica,
psicológica, estatística etc.), que o trabalho, em tal faixa etária, deve ser exceção.
Daí que já não se pode admitir que os alvarás judiciais, ao autorizarem o
trabalho de menores de 16 (dezesseis) anos, funcionem como “cartas brancas”
para qualquer tipo de exploração ou rotina. Pela proposta em curso, veiculada
em substitutivo, impor-se-á à autoridade expedidora do alvará judicial, como
de ser, que estipule as condições em que o trabalho artístico ou desportivo deverá ser
prestado, prevendo as garantias que atendam aos interesses de crianças e
adolescentes, dentre as quais a limitação da jornada, a frequência escolar e o
acompanhamento médico, odontológico e psicológico, dentre outros. De outro modo,
não se poderia admitir a exceção.
6. Nesse particular, porém, o novel substitutivo poderia avançar,
atentando para o que já está estabelecido no direito comparado a respeito do
tema. Assim, p.ex., no Estado da Califórnia (Estados Unidos da América), há a
“Lei do Artista Infantil”, cognominada “Lei Coogan”, que destina 50%
(cinquenta por cento), pelo menos, do que ganha o artista a uma poupança, que
só poderá ser levantada ao completar dezoito anos. Essa medida, ao mesmo
tempo em que resguarda o futuro da criança ou do adolescente, retém os
ímpetos patrimonialistas das respectivas famílias. Em França, a Lei n. 211-6
também trata da salvaguarda sobre os ganhos da criança e adolescente, de
modo que uma parte poderá até mesmo ser retida por seu responsável, mas isto
somente depois da deliberação de uma comissão especial. O restante —
inclusive o que decorre do uso da imagem — deve permanecer depositado em
poupança até a “maioridade”. Na Colúmbia Britânica, província do Canadá, a
legislação segue o mesmo padrão, dando garantia sobre os ganhos da criança,
sendo que 25% (vinte e cinco por cento) da receita bruta devem ser depositados
em um fundo específico, inacessível para os pais. Sobre a reserva em poupança,
ademais, existem precedentes legislativos mesmo no Brasil. A Lei n. 6.858/80,
em seu artigo 1º, § 1º, prevê o depósito em caderneta de poupança da cota que
couber ao dependente de empregado falecido com menos de 18 anos. Já a Lei n.
7.644/87 estabelece que adolescentes que vivem em casas-lares ou aldeias
assistenciais, sob os cuidados de Mães Sociais, deverão ter até 30% do que
auferirem depositados em conta de poupança (art. 12, parágrafo único, III).
Nessa esteira, em acréscimo aos limites que já se encontram no novel
substitutivo, a ANAMATRA propõe a afetação de 30% (trinta por cento) de
todos os ganhos do artista ou do atleta menor de 16 (dezesseis) anos, em
salários e consectários (direitos trabalhistas típicos, direitos de imagem,
direitos de arena, direitos de participação etc.), para depósito em
conta-poupança em nome da criança ou do adolescente. Apenas mediante autorização
judicial, após análise acurada da autoridade judiciária trabalhista, parcelas
desses depósitos poderiam ser excepcionalmente liberadas para o uso atual das
respectivas famílias.
7. Mas diga-se mais. A despeito de todas essas alterações (caso vinguem),
será ainda inegável que, mantidas as atuais condições institucionais, as medidas
nele previstas poderão vir a carecer de efetiva aplicabilidade. É de
conhecimento público que, nos nichos das justiças estaduais, desenvolveu-se
uma cultura de liberalidade que, ressalvadas honrosas exceções, tem
franqueado amplamente a licença para o trabalho infanto-juvenil, seja
artístico/desportivo, seja mesmo comum. Assim, veja-se, por todos:
«Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, entre os anos de 2005 e 2010, mais de 33 mil alvarás judiciais permitindo a contratação de menores de 16 anos para trabalhar foram baseados em informações falsas ou erradas fornecidas por empresas de todo o País por meio da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).
“Podemos trabalhar com as hipóteses de que as empresas estejam fornecendo informações inconsistentes, equivocadas, mas talvez ainda seja cedo para emitirmos qualquer juízo de valor sobre o assunto. Vamos precisar analisar um universo maior de dados. Óbvio que, diante desta possibilidade, é altamente recomendável que o Ministério do Trabalho estenda a iniciativa para todo o País para esclarecer o que de fato está ocorrendo e, assim, buscarmos os responsáveis”, disse o procurador Rafael Marques.
Lembrando que os empregadores são legalmente obrigados a fornecer, por meio da Rais, as informações corretas sobre seus funcionários, o procurador afirma que, confirmadas as inconsistências, os responsáveis pelas empresas autuadas podem responder administrativa, civil e penalmente.
O procurador lembra que, a partir dos dados da Rais, o Ministério Público do Trabalho tenta conscientizar e até mesmo proibir juízes a autorizar menores de 16 anos a trabalhar. “Vamos continuar fazendo isso. Até porque, temos conhecimento de casos muito graves envolvendo autorizações realmente concedidas não só por juízes, mas também por promotores de Justiça. Agora, se a base de dados com que vínhamos trabalhando não for fidedigna, talvez tenhamos que mudar um pouco o foco da nossa ação, investindo mais na responsabilização das empresas que imputaram aos juízes um ato inexistente”, declarou.» (Fonte: Agência Brasil — g.n.).
Ainda:
«Acidentes no local de trabalho vitimaram 8.179 crianças e adolescentes de 10 a 17 anos no estado de São Paulo entre 2006 e 2013. Do total de ocorrências, 28 levaram a óbitos e três a transtornos mentais, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde. São Paulo é o estado que apresenta o maior número de acidentes notificados com menores de 18 anos. Dentre as atividades que causaram os acidentes em situação de trabalho infantil estão o comércio de alimentos e a fabricação de calçados.
A coordenadora estadual da Saúde do Trabalhador, Simone dos Santos, da Secretaria Estadual de Saúde, afirma que os municípios que apresentaram maior número de notificações foram São Paulo, Franca e São José do Rio Preto. “Após a ocorrência dos acidentes em trabalho, são estabelecidas ações para a retirada da criança em situação irregular, encaminhamentos intra-SUS, dependendo do quadro de saúde apresentado, e encaminhamento à rede de garantia de direitos”.
Os casos de acidentes em ambientes de trabalho infantil provêm, em maioria, das situações em que são concedidas autorizações judiciais para que crianças e jovens possam trabalhar antes dos 16 anos. O tema foi discutido na tarde de ontem (30) no Fórum Paulista para a Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. O espaço de discussões completa 14 anos neste mês e foi implementado pela Conferência Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, em 1999.
Mesmo com as ações de erradicação do trabalho infantil, 8,3% das crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos exerciam atividade laboral em 2012. Os dados foram constatados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo IBGE e divulgada na última sexta-feira (27). O número apresentou uma redução de 4,2% em relação a 2011. Ainda assim, 3,5 milhões de jovens ainda estão em situação de trabalho irregular.
O artigo 7 da Constituição Federal de 1988 regula a condição de trabalho para crianças e jovens. O inciso 33 estabelece que é vedado qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Além disso, proíbe trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos. Ainda assim, diversos juízes concedem autorização para que menores de 16 anos possam trabalhar sem obedecer à condição de aprendiz. Os grandes centros de chancela dessa prática no estado de São Paulo são as varas de Fernandópolis e Franca, segundo o MPT. Para o coordenador geral do Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente, Rafael Dias Marques, procurador do Ministério Público do Trabalho paulista, “quando se fala em autorizações judiciais, não estamos falando de uma omissão do estado brasileiro. É o estado brasileiro que está apoiando o trabalho infantil”.
As principais justificativas para autorizar o emprego de jovens são as que endossam o caráter social do trabalho. Apresentado como elemento dignificador, ele é usado como saída para as crianças que vêm de famílias em situações financeiras precárias. “O mito que diz que o trabalho é bom para
criança pobre só reproduz o círculo de miséria em que ela vive. Há a transferência de responsabilidade. Não é a criança ou o adolescente que precisa suprir as necessidades da sua família, mas o estado e a comunidade”, argumenta o coordenador.
Para que a criança e o jovem sejam considerados aprendizes e possam trabalhar, eles devem estar vinculados a alguma instituição de aprendizagem, seja técnica ou acadêmica. “Muitos juízes concedem alvará se a criança estiver só trabalhando, sendo que ela precisa estar matriculada em um curso. Essa prática demonstra o desconhecimento da justiça estadual sobre o contrato de aprendizagem”, reforça a auditora-fiscal do trabalho Carolina Vanderlei de Almeida.
A auditora esclarece que o Ministério do Trabalho passou a notar a existência de menores de 16 anos declarados como trabalhadores – sem estarem na condição de aprendiz – na Relação Anual de Informações Sociais (Rais). O sistema garante o controle federal sobre as relações trabalhistas e as estatísticas anuais do trabalho no Brasil. A partir disso, ele passou a investigar as empresas que declararam que esses menores possuíam alvará judicial para exercer a função.
Regulação
A situação do trabalho infantil é regulada por leis nacionais e internacionais, que consideram criança ou jovem todo indivíduo menor de 18 anos. A Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, criada como Carta Magna em 1989, e ratificada como lei internacional no ano seguinte, determina, no artigo 24, que “Os Estados-Partes adotarão todas as medidas eficazes e adequadas para abolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança”. Para Marques, “o dano à saúde é o mais visível argumento contra o trabalho infantil, sendo que as crianças são indivíduos em processo de formação”.
Além disso, dois outros documentos internacionais normatizam a questão do trabalho infantil. A Convenção sobre a Idade Mínima da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – elaborada em 1973 – estabelece que os signatários comprometem-se a “seguir uma política nacional que assegure a abolição efetiva do trabalho de crianças e eleve, progressivamente, a idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho a um nível que torne possível aos menores o seu desenvolvimento físico e mental mais completo”. A Convenção 182 da OIT surge em 1999 para reforçar a deliberação da primeira norma e versa sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil e sobre as ações imediatas para a eliminação dessa prática.
No Brasil, a própria Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) versam sobre o tema. O ECA possibilita o trabalho aos maiores de 14 anos, na condição de aprendiz com formação técnico-profissional, e assegura que o adolescente empregado possua direitos trabalhistas e previdenciários. “Se a criança e o jovem não podem trabalhar, eles podem ter acesso à cultura, à educação, à profissionalização, à saúde, como disposto no artigo 227 da Constituição”, afirma o coordenador.
O artigo 227 ainda protege os menores de 18 anos integralmente contra qualquer forma de exploração. “O alvará judicial é o atestado de violação dos direitos básicos da criança e do adolescente. No trabalho, o menor é explorado economicamente, porque é mão de obra barata e obediente”, reforça. Segundo o promotor, alguns tribunais de justiça estaduais proibiram a concessão dos alvarás. Caso o juiz desrespeite a proibição, estão previstas punições administrativas.” (Fonte: Rede Brasil Atual — g.n.).
8. Não por outra razão, aliás, o Ministério Público do Trabalho, pela sua
Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e
Adolescentes, viu-se instado a editar a seguinte orientação:
ORIENTAÇÃO N. 01. Autorizações Judiciais para o Trabalho antes da
idade mínima. Invalidade por vício de inconstitucionalidade.
Inaplicabilidade dos arts. 405 e 406 da CLT. Inaplicabilidade do art. 149 da CLT [leia-se ECA] como autorização para o trabalho de crianças e adolescentes. I - Salvo na hipótese do art. 8°, item I da Convenção n. 138 da
OIT, as autorizações para o trabalho antes da idade mínima carecem de respaldo constitucional e legal. A regra constitucional insculpida no art. 7º, inciso XXIII [leia-se XXXIII], que dispõe sobre a idade mínima para o trabalho é peremptória, exigindo aplicação imediata. II – As disposições contidas nos arts. 405 e 406 da CLT não mais subsistem na Ordem Jurídica, uma vez que não foram recepcionadas pela Ordem Constitucional de 1988, a qual elevou à dignidade de princípio constitucional os postulados da proteção integral e prioridade absoluta (art. 227), proibindo qualquer trabalho para menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14. III – A autorização a que se refere o art. 149, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não envolve trabalho, mas a simples participação de criança e de adolescente em espetáculo público e seu ensaio e em certame de beleza.(v. BRASIL. Ministério Público do Trabalho – Procuradoria Geral do Trabalho. Disponível em: <http://www.pgt.mpt.gov.br/atuacao/trabalho-infantil/orientacoes.html>. Acesso em: 19 fev. 2010. — g.n.).
9. Esta situação, ademais, não é nova. Ao revés, é de conhecimento notório,
sendo recorrentemente tratada no âmbito do Ministério do Trabalho e
Emprego, do Ministério da Saúde e do Ministério Público, não raro com o
surreal pendor de “conscientizar” juízes estaduais do equívoco inerente à
“doutrina do trabalho dignificante”. Nessa esteira, é de rigor que, como
elemento qualitativo novo, o texto legal consagre a especialização temática junto à
Justiça do Trabalho. A autoridade judiciária a quem deve competir a expedição
dos alvarás de autorização há de ser, inequivocamente, o juiz do Trabalho. E
não pode ser outro o entendimento do legislador, s.m.j., seja pelos dados da
realidade (supra), seja pela referida especialização temática, seja ainda pela
particular formação humanística dos juízes do Trabalho, o que tem carreado à
Magistratura do Trabalho o autoreconhecimento de uma função genuinamente
protetiva (e não apenas burocrática ou “arbitral”, na acepção anódina que tem
designado a mera composição/pacificação de conflitos de interesses). Pelo sua
expertise com a interpretação/aplicação do Direito do Trabalho — em
permanente interface com a Teoria Geral dos Direitos Humanos, diga-se —, o
juiz do Trabalho deterá as melhores condições para analisar os aspectos frisados
acima (limitação de jornada, condições não-agressivas de trabalho, adaptação
do trabalho às obrigações escolares etc.), dada a sua tendencial sensibilidade
para o entendimento e para a abordagem constitucional das questões do
trabalho, derivada da sua formação e do trato diuturno das controvérsias afetas
às relações de trabalho.
10. Outrossim, mesmo sob a ótica literal-positiva, é certo que a Constituição
Federal atribuiu à Justiça e ao juiz do Trabalho a análise de todas as matérias
relacionadas ao trabalho humano prestado em condições de hipossuficiência
(econômica, técnica, psicológica etc.), a teor do seu art. 114, I, sendo decerto
mais razoável a interpretação de que cabe a esta autoridade judiciária, e não a
qualquer outra, a análise de questão tão tormentosa. A sensibilidade do juiz do
Trabalho para tais ensejos, inconteste, pode ser hodiernamente percebida no
intenso engajamento da Magistratura do Trabalho, institucionalmente (i.e.,
pelos tribunais) e por suas associações de classe, na luta pela promoção dos
direitos humanos nas relações de trabalho e, em particular, na luta pela
erradicação do trabalho infantil, em clara demonstração de sua compreensão de
que a criança e o adolescente são sujeitos de direito destinatários de especial
proteção constitucional, e não potenciais contraventores que, em razão da sua
condição social pouco favorecida, precisam de ocupação remunerada que lhes
possibilite o auxílio no sustento de suas famílias. É de rigor compreender, como
princípio, que o sustento familiar é tarefa que, constitucional e decisivamente,
não pode lhes caber.
11. Os esforços da Magistratura do Trabalho tem se estabelecido, perante
toda a sociedade civil, no sentido de fazer reduzir as multitudinárias
autorizações judiciais para o trabalho infantil, amiúde concedidas por
autoridades judiciárias que, por razões diversas, não estão imbuídas do
entendimento de que a criança e o adolescente são aprioristicamente
destinatários da proteção constitucional, e não arrimos de salvação econômica
para suas respectivas famílias. Diga-se, para efeitos ilustrativos, que
recentemente, na III Conferência Global sobre o Trabalho Infantil, que teve lugar em
Brasília no mês de outubro de 2013, estiveram presentes, a convite da
Organização Internacional do Trabalho, a Justiça do Trabalho, o Ministério Público
do Trabalho, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
(ANAMATRA) — que, antes, atuara como moderadora e facilitadora na
respectiva plataforma virtual preparatória — e a Associação Nacional dos
Procuradores do Trabalho (ANPT); outras entidades associativas da Magistratura
e do Ministério Público, porém, por lá não estiveram. Na ocasião, por iniciativa
da ANAMATRA, foi lançada e publicada, entre os participantes do sistema
judiciário brasileiro, a seguinte Carta (quando o único substitutivo apresentado
ao PLS 83/2006 cuidava de estender meramente as “liberalidades” da
contratação do trabalho infantil do âmbito artístico para o âmbito desportivo):
Declaração-Compromisso sobre o Trabalho Infantil
Os participantes da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, reunidos em Brasília de 8 a 10 de outubro de 2013, magistrados e procuradores do trabalho infra assinados, enunciam a presente declaração, como resultado dos debates e do aprofundamento dos compromissos firmados;
RATIFICAM o compromisso pela erradicação do trabalho infantil e, em especial, a eliminação das suas piores formas, em cumprimento das normas internacionais e como prioridade ética de atuação;
DEFENDEM que Poder Judiciário e Ministério Público devem participar ativa e decisivamente para assegurar a erradicação do trabalho infantil, visto que os princípios da absoluta prioridade e da proteção integral, vinculados à tutela geral dos direitos humanos, detêm universalidade e se dirigem não apenas aos governos e parlamentos, mas também ao Estado-juiz. Nessa medida, devem atuar proativamente e em concerto com os órgãos de inspeção
do trabalho e outros órgãos governamentais, o que inclui as diversas possibilidades de judicialização coletiva das políticas públicas, quando insuficientes ou desviadas;
CONSIDERAM que os magistrados e procuradores devem assimilar a compreensão de que os mandamentos derivados da Convenção n. 182 integram os blocos de constitucionalidade ou ao menos de supralegalidade de todos os Estados, deles derivando até mesmo mandados de criminalização daquelas piores formas, tendo em conta os termos da Declaração da OIT de Princípios e Direitos Fundamentais de 1998 e da Recomendação nº 190/OIT;
RESSALTAM a importância central que a Justiça do Trabalho ocupa no sistema de justiça brasileiro, que detém competência para o exame de toda e qualquer causa que envolva o trabalho infantil, dentre as quais as autorizações para trabalho e as ações para reparação de dano individual ou coletivo pela exploração da criança e do adolescente, incluídas as suas piores formas;
CONCLAMAM, segundo esquema do sistema de justiça brasileiro, os membros do Ministério Público do Trabalho, à adequada utilização de ações civis públicas visando ao provimento de tutela judicial de implementação de políticas públicas de combate ao trabalho infantil e proteção do adolescente trabalhador;
PUGNAM pela aprovação célere do PL 3.974/2012, afastando qualquer dúvida sobre a competência para a concessão de autorizações do trabalho;
CONSIDERAM inaceitável qualquer tentativa de redução da idade mínima para o trabalho, considerando a necessidade de aplicação da legislação do trabalho e que, ao contrário, seja progressivamente elevada a idade de inserção do adolescente no mercado de trabalho, assegurando-lhe o direito à qualificação escolar e profissional e os meios para sua subsistência digna;
DENUNCIAM e reputam inaceitáveis as propostas para redução das garantias existentes na legislação brasileira, pugnando pela rejeição integral do PLS 83/2006 e seu substitutivo, que pretendem liberar o trabalho infantil artístico e esportivo a partir dos catorze anos, independentemente de autorização judicial;
PUGNAM por reforma legislativa que forneça melhores instrumentos para o combate ao trabalho infantil e forneça melhor proteção para o trabalho legal dos adolescentes;
SALIENTAM a necessidade de construção ou fomento de fóruns nacionais e internacionais de cooperação, difusão e formação da cultura de erradicação do trabalho infantil, com uma dimensão estatal, concernente à troca de informações e experiências entre os sistemas de justiça dos diversos países, e uma dimensão social, concernente à troca de informações e experiências institucionais de interlocução com a sociedade civil, por intermédio de programas intersetoriais e globais de combate à exploração do trabalho infantil.
Brasília, 10 de outubro de 2013
Ministros do Tribunal Superior do Trabalho:
Lelio Bentes Corrêa Kátia Magalhães Arruda
Juiz do Trabalho, Presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA
Paulo Luiz Schmidt
Procurador do Trabalho, Coordenador Nacional do Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente – COORDINFÂNCIA
Rafael Dias Marques
Desembargadores do Trabalho
Gabriel Napoleão Velloso Filho Ricardo Tadeu Marques da Fonseca Silvana Abramo Margherito Ariano
Juízes do Trabalho
André Luiz Machado Andrea Saint Pastous Nocchi Guilherme Guimarães Feliciano José Roberto Dantas Oliva Marcos Neves Fava
Platon Teixeira de Azevedo Neto Rosemeire Lopes Fernandes Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes Zéu Palmeira Sobrinho
Procuradores do Trabalho
Alexandre Marin Ragagnin Antonio de Oliveira Lima Cândice Gabriela Arosio Eliane Araque dos Santos Elisiane dos Santos Mariane Josviak Regina Duarte da Silva Sueli Teixeira Bessa Thalma Rosa de Almeida Valesca de Morais do Monte