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Sob as asas do poeta gauche: Diálogo entre o lutador de Drumond e O poeta, o poema, as palavras de Pereyr

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Sob as asas do poeta gauche:

Diálogo entre o

lutador

de Drumond e O

poeta,

o poema, as palavras de Pereyr

Cristiano do Nascimento Santos

Carlos Drummond de Andrade, poeta mineiro da cidade de Itabira do Mato de Dentro, nasceu e um “anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”

Como um anúncio feito por um arauto, esse “anjo torto” va-ticina o que mais tarde seria o poeta itabirano e toda sua obra literária. O poeta multifacetado espalha pelo “vasto mundo” a sua voz polissêmica e carregada do “sentimento” dele e das imprecauções do próprio mundo, fazendo disso um misto onde se pode verificar a convergência dos pólos heterogêneos da vida humana. Os que têm contato com a sua construção literária são seduzidos pela sua obra, principalmente, sua poética. Drummond possui um conjunto de textos dos mais privilegiados e importantes da tradição literária do Brasil e essa condição o tornou, assim o diz a crítica, o maior poeta do país e um dos grandes do mundo de sua época. Mesmo os que conferem a João Cabral de Mello Neto a primazia entre os poetas brasileiros, acreditam que Drummond, não fosse o isolamento social, político e econômico sofrido pela língua

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portuguesa, teria um lugar de maior destaque, em se tratando de literatura, no panorama internacional.

Quando Drummond começou a dar seus primeiros pas-sos como poeta, publicando seus poemas, na década de 20, o Brasil estava passando por manobras políticas e econômicas que abalaram sua estrutura enquanto nação governada pela República Velha: os levantes militares dos tenentes de Copa-cabana, o fim da política de São Paulo com Minas Gerais, o agrupamento das oligarquias dissidentes da Aliança Liberal, diminuição da força da economia cafeeira e outros fatores criaram uma perfeita convulsão político-econômico-ideológico que

abarcou todo o país.

É em meio a esse cataclismo nacional que o poeta

itabirano começa a disseminar, através da sua poesia, os seus

primeiros versos de muitas “faces”; “alucinações e espera”. Sua poética alcança e influencia uma parcela considerável de leitores e aprendizes de feiticeiros dentro do país, principal-mente. Cinqüenta e dois anos depois da primeira publicação de Drummond, (1930), encontramos Roberval Pereyr, poeta ainda tentando colher as primeiras nuvens “no vento, / no azul de puro azul sem nuvens”; Pereyr está formulando, na alquimia verbal, seus primeiros versos paradoxais; suas primeiras sílabas poéticas. Entretanto, percebem-se, já a partir dessa época, sinais em sua escrita do feitiço drummondiano, uma contaminação gauche

que, conforme passa o tempo e seu combate com as palavras se torna mais renhido, mais se evidenciam influências do “poeta de sete faces”.

Nascido em 1953, Roberval Pereyr mudou-se para Feira de Santana em 1964, onde reside até hoje. Iniciou na poesia com o livro Iniciação ao estudo do um (1973) e é com as Roupas do nu

(1981) que as lições drummondianas começam sendo percebidas

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seu livro de 1981, um dos poemas metapoéticos chave da obra de

Pereyr para entendermos essa relação de fonte e influência: o poeta, o poema, as palavras, um discurso interlocutório com

Car-los Drummond em resposta ao seu “O lutador” – (publicado originalmente no livro José, de 1942). Falando de interlocução

entre esses textos, a idéia que objetiva o diálogo está presen-te logo no início do poema de Pereyr, quando ele responde, supostamente, ao poeta itabirano: “Eu também lutei com as palavras/ E luto”.

Se pensarmos nos elementos do processo de comuni-cação, por exemplo, fica claro que há um emissor e do outro

lado há um receptor; ou como bem poetizava João Cabral de

Melo Neto em “Tecendo a manhã”, há um primeiro galo que canta e encanta outros galos com seu canto, no caso, um dos encantados fora Pereyr. A propósito disso, João Cabral de Melo Neto foi poeticamente descritivo na construção desse canto-luta

que sai das entranhas do galo.

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. (MELO NETO: 1997, p.15)

São esses poetas-galos que, lançando suas vozes, são

ou-vidos por outros poetas-galos que realizam a perene missão de

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assim que Roberval Pereyr apanha o grito de Drummond para construir o seu próprio grito e lançá-lo a outros. Contudo essa ação não parece fácil ou gratuita aos poetas; como não parece gratuito aos galos a construção do seu grito de galo. Ferreira Gullar, em seu poema Galo galo, alude à idéia de que ao

pro-duzir o “canto no centro do seu corpo” a ave parece que “vai morrer” quando “encurva vertiginoso pescoço donde o canto rubro escoa”. Essa é a luta de vida e morte que Drummond e Pereyr parecem travar para construir o grito-palavra – laborar

entre as feras que, talvez, Roberval Pereyr tenha se referido no seu “ecce homo”:

Nasci entre feras entre elas me vou fera que sou

entre feras.

Vou devorado por elas e as devoro

(os dias difíceis? as tardes belas?): elas e eu num declive elas presas e eu livre

nelas. (PEREYR: 2004, p. 184)

Como o mundo é uma construção simbólica de pala-vras que têm “cada uma mil faces secretas sob a face neutra” e estamos convulsivamente tendo que manter uma relação de

palavração na reconstrução ou construção das nossas ideologias,

dos embates, dos acordos, das relações humanas como um todo, a companhia dessas “feras” é imprescindível, pois não se pode idear o ser humano sem a companhia das palavras.

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(1962) e em As impurezas do Branco (1974), parece promover,

só para ficar nestes dois, um embate incansável entre si e os poetas que em vão tentam seduzi-las, adestrá-las, domesticá-las, torná-las úteis utensílios.

Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali.

(ANDRADE : 2004, p. 182) Eu também lutei com as palavras. E luto

É como colher nuvem no vento, no azul de puro azul sem nuvens. É como colher noites no orvalho (PEREYR: 2004, p. 225)

Mas o que deveríamos nós esperar de uma entidade que deu forma a todas as coisas misteriosas ou claras deste mun-do? Essa entidade secular que desfila por entre todas as eras desde a fundação (?) dos séculos. A palavra carrega todos os elementos essenciais da construção humana: vida, morte, ale-gria, dor, abraço, afastamento, erotismo, sexo — só para ficar nestes. Em seu “reino”, “lá estão os poemas que esperam ser escritos”, e não só os poemas, como também todas as formas que não foram ditas ainda por ela.

É por entre esta matéria multiforme (a palavra) que são veiculadas as nossas intenções genuínas e que, vez por outra, fugindo das nossas mãos, nos deixam privados de uma boa

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luta, a qual Drummond e Pereyr, no caso posto, batalham para a construção poética. Aliás, escrever nunca foi uma tarefa fácil ou gratuita. Esta máxima é sempre comprovada no momento em que, de posse da pena, caneta, lápis, computador ou coisa que o valha, e do papel, ensaiamos dar forma a uma idéia in-quietante, um sentimento amoroso, raivoso, uma música, uma carta, um simples bilhete, uma teoria qualquer, um estudo religioso, uma equação matemática ou outras formas, através das palavras. A transposição do pensamento para a escrita,

grosso modo falando, em alguns casos, é um verdadeiro martírio,

visto que há nesse momento uma manifestação de processos cognitivos, psicossomáticos, derramados de uma só vez no ato da escrita — no caso particular, a construção de um poema ou

a construção poética. Escrever, neste sentido, é um descobrir-se,

um traduzir-se, operacionalizar linguagens para manifestar as verdades das mentiras ou as mentiras das verdades. Também o ato da escrita poética tem uma relação muito próxima com a abstração, com a construção paradoxal, metafórica, meta-poética. Assim escreve Pereyr, conceituando o ato da escrita poético-literária:

É como colher nuvem no vento, no azul de puro azul sem nuvens. É como colher noites no orvalho (manhã de sol) cintilante – é como ter somente as mãos para tecer o mundo

e só tecer as formas imperfeitas de lidar com vultos

e sombras; luzes: que as luzes também ofuscam

na curva extrema do verso. (PEREYR: 2004. p. 225)

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Se para Pereyr essa batalha abstrata com as palavras causa-lhe “incontáveis contendas”, Drummond parece, vez por outra, manter uma aparente “amizade” com elas, uma vez que “Deixam-se enlaçar, / Todas à carícia”, porém, como todo animal desconfiado, como todo “javali”, elas fogem de qualquer aproximação do homem. Contudo, como um grande galantea-dor – um dom Juan das palavras – Drummond tenta seduzir as palavras fugidas e, uma vez seduzidas, levá-las a cópula “neste descampado”, e gozar com elas “o gozo / da maior ternura”. Como não é fácil (às vezes), numa relação humana, a conquista amorosa, da mesma forma elas se riem do poeta e se vão “na curva da noite”. E por falar em noite, essas “damas da noite” parecem conduzir o poeta à prostituição, à corrupção, à perda da identidade e a construção de quimeras.

Eu também perdi-me com as palavras. E busco-me.

Edifico-me em míticas viagens

Por montanhas de sonos, por mil mares engolfados no mar da poesia. E procuro meu nome em ruas distantes, nos caminhos de volta à casa

primeira em que um dia fomos um só

(PEREYR: 2004, p. 225)

Assim como Drummond, Pereyr, e outros poetas abando-nados pela palavra, eles não desistem da luta, do embate, para a apreensão da linguagem: “Luto corpo a corpo, / luto todo tempo, / sem maior proveito / que o da caça ao vento”. Apesar de se apresentar como um “inimigo fluído / que me dobra os músculos”, Drummond e Pereyr constroem, num processo de intertextualidade e diálogo, esse discurso dialético, esse

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mosaico de textos que se harmonizam. Conforme Julia Kristeva em Introdução à semanálise (2005), “todo texto se constrói como

mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro”. Pensando dessa forma, podemos dizer que Pereyr trava esse diálogo com Drummond a partir do próprio Drummond. O poeta, o poema, as palavras é o resultado de um

entrecruzamento de idéias afins com “O lutador”, na perene

busca da identidade de um sujeito fragmentado, multifacetado,

gauche. Uma busca diária por entre as ruas modernas: ruas da

memória que ficaram esquecidas num passado.

E procuro

meu nome em ruas distantes, nos caminhos de volta à casa

primeira em que um dia fomos um só

(PEREYR: 2004, p. 225)

Por fim, essa luta mítica continuará enquanto existirem homens dispostos a batalhar com as palavras, enquanto existi-rem homens dispostos a batalhar na “luta vã” que se luta todo dia para sobreviver, comunicar, amar, desamar, pois “o inútil duelo/ jamais se resolve” e nesta batalha, assim se segue:

doce, amargo cabisbaixo

entre as dores do canto conquistado e a mudez do poema

intangível

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Cristiano do Nascimento Santos é Mestre pelo Pro-grama de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS -E-mail: cristianosantos2005@ ig.com.br.

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Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião: 19 livros de poesia. 2.

ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1985. 2 v.

PEREYR, Roberval. Amálgama: Nas praias do avesso e poesia anterior.

Salvador: STC, FUNCEB, 2004.

PEREYR, Roberval. A unidade primordial da lírica moderna. Feira de Santana:

UEFS, 2000.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução Lucia Helena França

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