Copyright do texto©2005 by Reginaldo Prandi
Copyright das ilustrações © 2005 by Pedro Rafael
HGFEDCBA
C a p aRaul Loureiro sobre ilustração de Pedro Rafael
I l u s t r a ç õ e s Pedro Rafael F a t o s Reginaldo Prandi P r e p a r a ç ã o Vanessa Barbara 1 n d i c e r e m i s s i v o
Marcelo Yamashita Salles
R e v i s ã o
Otadlio Nunes Marise Simões Leal
Dado, Internacionais de Catalogação na Publicação (cn-)
A
( C â m a r a Brasileira d oL i v r o .S P ,B r a s i l )
Prandl, Reginaldo
Segredos guardados: Orixás na alma brasileira IReginaldo Prandí : fotos do autor: [ilustrações Pedro Rafael], - São Pau-lo : Companhia das Letras.zoos.
Bibliografia
ISBN 85-359-0627·4
I.Afro-brasileiros - Religião 2.Candomblé (Culto) 3. Ori-xás 4. Religião e sociologia 5. Umbanda (Culto) 1.Rafael, Pedro.
T I , T í t u l o . ru. Tttulo : Orixás n a a l m a b r a s i l e i r a .
05-1567 CDO.306.69960981
lndice p a r a c a t á l o g o sisteruético: 1.Religiões afro-brasileiras: Sociologia da religião 306.69960981
\
S u m á r i o
Prólogo .. . . ..
7PARTE I: NOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ
1.
Tempo, origem e autoridade
2.
Os mortos e os vivos . . .
3.
Orixás, santos e demônios
4. Um panteão em mudança
s.
Os espíritos caboclos na religião dos orixás
19 53 67 101 121 141 159 175 187 215
. 239
[2005]Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista 702cj.3 2
04532-002 - São Paulo - sp Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501
www.companhíadasletras.com.br
MLKJIHGFEDCBA
';".-,;
PARTEn :NOS TERREIROS E NO MUNDO
6. Hipertrofia ritual e falência moral
7. Cultura religiosa, memória e identidade
8. Música sacra e música popular
9. Nas canções do rádio
10.
Devotos, terreiros e igrejas
do e reserva sobre questões de doutrina. Esta é pouco ensinada e
discutida, e fartamente ignorada por pais e mães que não tiveram
tempo, interesse.ou oportunidade de aprender,
desconhecendo-se, por exemplo, as concepções de nascimento, morte e
reencar-nação que foram fundamentais na religião dos orixás.
Aos fatores que favorecem a hipertrofia ritual junta-se, pois,
a concepção corrente que se tem da profissão de pai-de-santo
co-mo sendo um feiticeiro agora socialmente legitimado pelo
con-sumo esotérico e midiático, que trabalha por dinheiro para
re-solver os problemas de quem dele precisar, como qualquer outro
profissional do bem-estar espiritual ou psíquico do indivíduo.
Para se situar bem no mercado de muitos competidores, terá
es-se profissional que es-se fazer visível, bem visível. Nada melhor,
pa-ra alcançar a publicidade, que se esmepa-rar no rito, sobretudo
quan-do não se tem o treino necessário para se impor pela presença
intelectual nem o carisma para se afirmar como líder espiritual.
MLKJIHGFEDCBA
É
exatamente como acontece, em graus variados, também com
os novos sacerdotes do catolicismo carismático, do
neopentecos-talismo e de tantos e tantos credos disponíveis no mercado reli"
gioso contemporâneo.
7.
A
C u l t u r a
r e l i g i o s a , m e m ó r i a
e i d e n t i d a d e
1
P:
cultura afri91n~ªill,!ída.naJQrfl.1açã.? da cultu~ bra~~~ira
corresponde a um vasto elenco de itens que abrangem a língua,
a culinária, a música e artes diversas, além de valores sociais,
re-presentações míticas e concepções religiosas, conservadas não a
partir de uma matriz africana única, mas de várias, oriundas de
diferentes povos africanos. Fora do c~!!!p'o religioso, l~nhuma
das instituições culturais africanas logrou, entretanto, sºQ..r~viyer
~ ,- - ,~ -
...-,,-....•.•..-_
..•- " ''''- " ..
-'..--
..._._-
.•.._..;,.,...~ ~ "com suas estruturas próprias. Ao contrário, cada contribuição é
n••• '-- , o --___ \') 1\
res tante de um longo e lento processo de diluição e apagamen-
tJ-'').\i\''(to étnico a tal ponto que, diante de um determinado traço cultu-
E;t'· "ral, embora se possa reconhecer nele uma origem africana gené-
","-'
"J'\c~", ,.,. . . \~ .~
rica,
édifícil, quando não impossível, identificar o povo ou nação \..~~/_\)'..\'
de
que provém. Tudo
ésimplesmente África, perdidas as
.9:.i~!t:Q~
'i;>ali
e especificid;d-;;,-McJs'que isso-os pr6p;i~s
~fro-g.escenden-por não cOllh~~;~
--r--~---~--
a próp~i~-orige~ nem saberem~;;us
~--- - -
_
-cepassados eram bantos ou sudaneses - os dois grandes
gru-,~-"'"'---- --. _-_o .,._ . - "'""""-_. __ ~_ _ .. 159
pos étnico-linguísticos de nossa formação africana -, também
nao poâem iaentffica~ ~ origens dos aspectos cultur;is, como se
---a cultur---a-br---asileir---a como um todo, ao se apropriar d~ks, tivess
apagadõ ãs fontes. A memória que se tem da África
é-vaga,gené-rica, indefinida, .
Mesmo que se imagine uma África única, inespecífica, é
pos-sível, através da pesquisa, identificar estruturas e elementos
her-dados de culturas bem definidas. Assim, no caso do canqqmblé,
podemos buscar sua estrutura hierárquica, divisão de ~rabalho
sacerdotal e concepção de poder nos padrões familiares da
anti-10
117HGFEDCBA
r g~-famílialio!u á, com empréstimos tomados de outros povos
',101:.1-'1[\---. --- - . __ ~
o ' afncanos.
Os ioru~ás tra~icion~~_~ª-~J!~!~gínicos,_com
famíliª-exten-sa, e habitam residências coletivas formadas de quartos e
aparta-mentos contíguos, os c o m p o u n d s . Cultua~ixás articulares
para cada família, cidade e região (Fadipe, 1970). O chefe mora
coma esposã principal e os filhos d~1.!ºos a osentos m:incipais;
as demais esposas moram com seus filhos, habitando ada uma
quartos separados. As áreas comuns são reservadas para cozinha,
lazer, trabalho artesanal e armazenamento. A família
cul~ri-xá do chefe masculino, divindade ancestral que ele herda
atrili-nearmente, e que é o orixá principal de todos o filhos. Cada e_s-:
posa cultua também o o!jxá da família d~_~eupai, que é o segundo orixá de seus filhos. Assim, os irmãos devem culto ao orixá do pai, que é o mesmo para todos, e ao orixá da mãe, que pode ser
diferente de acordo com a herança materna. Como os iorubás
crêem descender de seus orixás, a origem de cada indivíduo não
é necessariamente a mesma. Um c o m p o u n d é assim u~a reunião
de diferentes cultos, cada um com seus mitos, tabus e cerimônias.," - .- ._,_.,--- ._-~. -.-
-
-----
~_.,--
•..MLKJIHGFEDCBA
H !~ 1 !ldeEs~eral e deus~~.Earticulares louvados nas casas das
di-versas esposas. A família também tem como culto comum a d~
--- --
----voção a Exu, orixá
-
t r i c k s t e r que estabelece a comunicação entreos diferentes planos e personagens deste mundo e do mundo
pa-r~?_dos
d~~s~i$.~.~Q{ritos.-Ti~j~~-~se5yltua~
os.o'ri~ás .9!!e
protegem a cidade, em geral orixás da família do rei, os orixás do
mer~á.do,~;~~ômico-
~'d~-;ociabilidad~
MLKJIHGFEDCBA
d ~
cidade, e
ou-tros que podem ser adotados individualmente por livre escolha.
O chefe da família é o chefe do culto do orixá principal;
iniciam-se entre membros da familia os sacerdotes que devem
incorpo-rar a divindade em transe ritual durante as grandes celebrações
festivas. O mesmo se dá com respeito aos orixás secundários, os
das esposas.
O culto ao orixá da adivinhação, chamado Q!..'ElJ!liláou Ifá,
é pratiCado fora do âmbito da família 12.m:Jlma_confraria~d_e
--
sa-cerdotes chamados bab_~
•...
en.c,an:e.g~o§ d.et.ªtri!Y~~-Ee2ráti~
---~ "-'
.cas divinatórias, ler e interpretar
Ç ,futl!Io_daspessoas, conhecer
õ-desígnio-d~s de-~s-;-p~~;~rever
os sacrifídospropiclatório's
'ãõsorixás. A-adivi~h~ção~l~ b~b;laô épraÚ;ada através da
in-,~~~ _. ..". .~ ,•...'~ ' '-' '- , . --.
-terpretação de um enorme a~erY5?'de..Elrtos (seus instrumentos
'~ii~i~atórios selecionam os mitos a serem interpretados em cada
consulta oracular), mitos que ele aprende durante a iniciação e
que explicam para o iorubá seu mundo, a vida, a morte, a ação
dos deuses e tudo mais que existe, e que fornecem e inspiram os
valores e normas da sociedade iorubana.
Uma outnL§Q.ciedé!.ge9}!,eenvolve toda a cidade, às vezes
- :' -
---'-'-
._~
---.-._---
._- ---
. . .~ "•.•....-._ ,~---mais de uma, é a que se dedica ao culto dos ancestrais
fundado-res
'd;'~id~d~,
os e.gun~-;'~~~Eii;ç·;tiitament;:;~:;;uli;;~
res-_.. '~ - '~ " " - .--~ '-- ~
ponsável pela administração da justiça no plano das relações
co-munitárias. A ~sa organi:ação religiosa de culto aos fundadores
e heróis humanos contrapõe-seuma
___ ...O-~...--.-. ' .,- ~outra, a sociedade Gueledé,
~~--que celebra os ancestrais femininos, as grandes mães. A religião
--'--
-. ,~ ,- - ',.
,-do dia-a-dia, de to,-do mo,-do, é a religião familiar. Não se separa
religião e família na vida cotidiana.
\,
O candomblé, criação brasileira, estruturou-se
como essa
._ .,---,- '...-..-'.---- .;-~
famíli~ iorubá.
o
grupo de culto é dirigido por um chefe,
mas-culino ou f~minin~~E!~_utoridade
máxima, e o orixá do
fun-dador do grupo é o orixá comum daquela comunidade, para o
q~al é le~~tado o te~210
rincipal, T~mplo~ ~ec~~dários,
d;no--~i;ados- casas ou quartos-de-santo,
são construídos para cada
um dos orixás ou famílias de orixás louvados pelo grupo. ~
rarquia copia a da família iorubá: os membros mais' ovens
de-vem respéito e submissão aQs mais elhos, aos és dos uais se
prostram em reverente saudação, como fazem os filhos ioruba-
MLKJIHGFEDCBA
.- - -
A
- - . _ - ...•nos para com os pais e mais velhos, e como faz todo iorubá em
respeito às autoridades. Supõe-se que os mais jovens devam
apren-der com os mais velhos e assimilar o conhecimento religioso
pe-la pape-lavra não escrita. A_hierarqJJia_agora é re upe-lada não epe-la
ida-de, mas2elo te~o
de inicia ão, já que a inclus-o~aiamília
(religiosa) faz-se .p~rlivre adesão ~não_p_o.r..nas.cimentQ.
Asmu-~~s
mais velhas, .isto é iniciadas há m~s_t~
(e no Brasil o
sétimo ano de iniciação ganhou o estatuto de ano que marca a
senioridade) chamam-se entre si de ebômi, "minha irmã mais
ve-lha", tratamento que as esposas mais antigas do chefe, e por
con-
..---seguinte mais importantes, usam entre si. A recém-iniciada é
cha-mada iaô, ou jovem esposa, noiva, que é como as esposas mais
velhas chamam as mais novas. Claro que; com o passar do
tem-po, essas designações reservadas às mulheres passaram também
a ser usadas para os iniciados masculinos. Além das práticas
ini-ciáticas, como a raspagem da cabeça que marca o ingresso das _
meninas na puberdade e o uso de escarificações indicativas de
origem tribal e familiar (osHGFEDCBA
a b e r é sdo candomblé), costumes do
cotidiano familiar africano foram igualmente incorporados à
re-ligião no Brasil como fundamento sagrado que não deve ser
mu-dado: dormir em esteira, comer com a mão, prostrar-se para
cum-primentar os mais velhos, manter-se de cabeça baixa na frente de
autoridades, dançar descalço etc.
162
Do governo das cidades o candomblé copiou postos de
man-do na religião. O conselho man-do rei de Oió, cidade de Xangô,
inspi-rou a criação do conselho dos
o b á sou
m o g b á sem terreiros desse
orixá. O general
b a l o g u mtransformou-se
em cargo de alta
hie-rarquia no culto a Ogum. As mulheres encarregadas de
adminis-trar o provimento material da corte do rei inspiraram as
i a l o d ê sdos candomblés. A mulher encarregada de zelar pelo culto a
Xan-gô no palácio do rei de Oió, e por isso mesmo chamada Ekeji
Ori-xá, que significa a segunda pessoa do oriOri-xá, foi certamente o
mo-delo do cargo das equedes, mulheres que não entram em transe
e que vestem os orixás e dançam com eles quando incorporados
em suas sacerdotisas e sacerdotes.
~mb~ra a identidade étnica de ~!E0s escravo~~ nej;ros
li-vres tenha se preser.Yª90 até
QJilléll...doséculo
XIX--ohretudo
entre ~~hegaram
dfu\frica havia menos tempo e que
~sta-vam organizados _emco~f:..ari~scat~licas,_com a formação _da
s o-ciedade de classes, j~ sob a República==, fad.2 vez_mais as
orga---
- - ---
--~
d~sºr1.e e~a!!len.tal e étnico foram perdendo o sentido,
e aspect9~ ?as ~ulturas africanas foram igualmente _sen_d~mais e
mais absorvidos pela cultura nacional, que é primordialmente
branca, européia e cristã. Embora em muitos aspectos,
sobretu-a~~
campo das artes, possamos identificar, no final do século
XIX
e no início do século xx, manifestações culturais
caracteristi-camente negras, sua sobrevivência dependia da capacidade de
se-rem absorvidas pela cultura branca.
Éo..f.a~~xeIl!Plar.4a
músi-ca popular brasileira, em que os ritmos e estruturas melódimúsi-cas de
orig~~~iricana
~E~e~iYeraIl!-na ,~dida em
q u ep~saram -a
~n-teressar aos compositores brancos e aos consumidores da
cultu-rã~iA~si~~l~~~'~'
negro abr~ ç~i~ho
pa;a? choro
bran-éô;
a música do candomblé
<k>§n~grQs pobres fornecia a matriz.
para o ~a;ba nacio~al-das classes médias. Em outras
alavras, a
preservação daquilo que é africano requeria apagar ou disfarçar
---na Bahia, em Per---nambuco, Alagoas, Maranhão, Rio Grande do
Sul e, secundariamente, no Rio de Janeiro. Embora tenha
tam-bém surgido e se mantido uma religião equivalente por
iniciati-va de negros bantos, a modalidade banta lembra muito mais uma
adaptação das religiões sudanesas do que propriamente cultos da
África meridional, tanto em relação ao panteão de divindades
co-mo em função das cerimônias e processos iniciáticos.
A religião negra, que na Bahia se chamou candomblé, em
Pernambuco e Alagoas.: xangô, no Mara~hão, ta~bor-d~~~i~;e
no R~§!ande
fl~
~uh b--;'tiqye,fol
orgª-.niil!da em grupos de"na-ções': ou "nações de c~domb!é" (Lima, 1984). Em cada uma
de-"la!-,_<:!.1~ãg l!fri~a!1a que aidentifica é responsável pela maioria
~os se.us~ementos, em~"~ra haja gran.:te troca de elementos
en-tre elas, resultado dos contatos entre nações no Brasil e mesmo
anteriormente na África. Na Bahia surgiram os candomblés
que-to e ijexá - e mais recentemente o
efã -,
todos de origemacen-tuadamente nagô ou iorubá, além de um candomblé de culto aos
ancestrais, o candomblé de egungum. Também da Bahia é o
can-domblé jeje ou jeje-rnahim, enquanto no Maranhão o tambor
denominado mina-jeje dependeu mais de tradições dos jejes
dao-meanos, ali também se criando uma denominação rnina-nagô,
de predominância iorubá. Em Pernambuco sobreviveu a
recria-ção da narecria-ção egbá, também chamada nagô, e no Rio Grande do
Sul, as nações iorubanas oi6 e ijexá. Em Alagoas criou-se um
cul-to de nação xambá, igualmente nagô, hoje praticamente extinta.
Na Bahia, como em outros lugares, tivemos a formação dos
can-domblés bantos, com três referências básicas: candomblé angola,
congo e cabinda, mas apenas as dimensões da língua ritual e da
música parecem ser sua marca de identidade, pois os deuses são
os orixás dos nagôs e seus ritos seguem os dos candomblés
na-gôs e jejes.
Como disse antes, a religião negra que se refez na Bahia e
MLKJIHGFEDCBA
- - - - + - - -
-exatamente a origem e a marca negra, num processo de
bran-- ._ ~ - -_. ----
A
-queamento e miscigenação que atingiu todas as áreas - a
um-b a ~ d ~ é
~"~pl~-embl~mático no âmbito"da ~~íigião (Ortiz, "-i978) ":::":-eque somente foi ~e~~rtido de maneira lin~ita~1a apar-tir da década de
1960,
quando a diferença, o pluralismo culturale a valorização das origens étnicas passaram a constituir a
orien-tação dos produtores e consumidores culturais, num
movimen-to que foi bastante expressivo no Brasil.
2
Por volta da metade do século XiX,com a
presença.de.escra-vos, negros libertos e ~eus descendentes nas g.@Qçles cidades, a
população negra conheceu maiores possibilidades.de.integração
entre si, com maior liberdade de movimento e maior ca acidade
de organização, uma vez que mesmo o escravo
já
não estavapre-so ao domicílio do senhor - negro de ganho que era então - e
podia agregar-se em residências coletivas concentradas em
bair-ros urbanos onde estava seu mercado de trabalho. Vivia com seus iguais africanos, numa época em que tradições e línguas trazidas da África estavam vivas em razão de sua chegada recente ao país
(Oliveira, M.,
1996).
Foi quando se criou o que talvez s.!!ja are-constituição culturalmais bem acabada do negro no Brasil, ca az
de preservar-se até os dias de hoje: o candomblé,
Nas diferentes grandes cidades do século XIX surgiram
gru-~ - -
-
~-
_ ._ "
pos que recriavam no Brasil cult~s religiosos que reproduziam
. não somente a religião africana, mas também outros aspectos da
cultura na África. Os criadores dessas religiões foram negros de
etnias nagôs ou
iorubás,
especialmente os das cidades e regiõesde Oi6, Lagos, Queto, Ijexá e Egbá, e os dos povos fons, aqui
em outros lugares é uma reconstituição não ..ªp~Jlª_S da reli ião
---
-MLKJIHGFEDCBA
..- --- - _.--africana, mas de muitos outros aspectos culturais__ - _ ~.. ...- o ". •__da África ori-w. _
ginal, numa espécie de reposição da memória do ue ficou para
- - - '....,...._ --- - ,'-
---_._--
. ,
-trás. Tomemos o candomblé queto, que inclusive serve de
mode--
10
para os demais. Primeiro, refez-se no plano da religião aco-munidade africana perdida na diáspora, criando-se no grupo
re-ligioso relações de hierarquia, subordinação e lealdade baseadas
"Jnos padrões familiares e de parentesco existentes na África. A fa-
HGFEDCBA
f . - o G . j e ' '; '- ' mília-de-santo, a comunidade de culto, tornou-se uma espécie
~ '
,tG ~ ~ # '~
_~~i~tura s!m~ól!~c:~a fa~.~ia iorubá.. . ./ ~ • ',G~'\ .. ,"' O candomble que se formou no Brasil foi mais que a
recons-1;~:··:
c ( . .~'vtituição da religião. Não sendo a religião africana uma esferaau-tônoma em relação às demais que formam a sociedade
tradicio-nal, para que ela fizesse sentido no Brasil, muitos outros as ectos
da sociedade africana tiveram que ser aqui reconstituídos, pelo
menos simb"alic~~~,- umã-vez_ qu; no Brasjlas estruturas
fa-miliares e societárias africanas estavam completamente ausentes,
-
" . --
-
---substituídas, mesmo no caso do escravo, pelos padrões ibero-bra-.
'.s~le~!:.?s.Isso evidentemente implicou muitas acomodações. Com
a destruição no Brasil da família africana, perdendo-se para
sem-pre as linhagens e as estruturas de parentesco, a identidade
sa-grada não pôde mais ser baseada na idéia de que cada ser humano
descende de uma divindade através de uma linhagem biológica.
E.~saherança, baseada na família de sangue, f~i substituída por
uma concepção de linhagens mítico-espirituais. Continuou-se a'
, -
--
---
----..•.~~er ,que cada i~divíc!!:to descende de um orixá, qu~! ~.??~idera-do seu pai ancestral e a quem deve culto, mas agora isso independe
áa-~~I!iã"b@§~ã:ê o'orix~
d ~
~~4~~~~:~Ó
p-;;de~r-!.e;.~ladoatravés do oráculo do jogo de búzios, ql!e noBrasil
é.prerrogati-'va dõs-chefes'de~~t~, as mãe~ eos pais-de-santo. Mas se
mante-ve a idéia de um segundo orixá regendo o indivíduo, o adjunto
166
ou j u n t ó , que na África era o da mãe biológica e que aqui é
iden-tificado também através do oráculo.
Através da religião, como mostrou Roger Bastide
(1971),~-criou~se no Brasil, c~ as i~~itáveis adaptações, uma África
sim-1:.iólicaque-fcl, dur~Pelo ~~~~-;~~ sé~ulo, a ~ais completa
refurê;;~ia ~ultur~l- p"a-;;; negro brasileiro, Agora um; instituição
dà'
soci~d~d~ b;asileira, passou a funcionar como uma espécie de~
-
A
- --- -
.• -_.---
..ilha à qual o negro podia recolher-se periodicamente, num
refú-gIO idíli~~ ~~
d ~
~;;uar, q~em sab~?, as agrÚras dàvida-cõti:-cliau'; na ~ociedacÍ; inclusiva,- branca e cristã. Quando o tráfico
~égr~'i;o c.ÇSSQ).l·,;
10&9..
depois a es~ravidão chegou ao fim, ini~ci~u-s; o lento e inconcluso processo de int~g~açã; do negro na
sociedade de classes, então em
formação,
O candomblé comor::u-nião de negros ori inários e descen~entes de determinada~ etnias
ou n-;ções africanas foi deixando de fazer sentido. As !!.~vas
ade-s~dos negros, na maioria já nascidos brasileiros, àsdiferentes
naçõ~;de-~andomblé d6xaram de se~=~I!.t@aU2ela orjgem.
ét-'ni~~ e passaram a se constituir numa escolha pessoal, pesando na
&dsão- as simpatias pelo chefe do grupo, o conhecimento e
ami-zade dos adeptos, localização do terreiro etc. De todo modo, no
começo do século xx, definitivamente o corte já não era mais
ét-nico. Assim como o negro esqueceu sua origem e a língua dos pais
e avós, o candomblé também esqueceu o significado das palavras
e a sintaxe das línguas sagradas. Embora os cânticos e rezas
te-nham sido preservados nas línguas originais, modificadas e
corrompidas, evidentemente, a cada geração, as diversas línguas
do candomblé deixaram de ser línguas de comunicação, para ser
línguas rituais intraduzíveis. Os mitos de origem de que falam Sls
cânticos sacros foram igualmente em 8!and~ p~rte _(!squecidos~
----
.-
-
---memória ancestral foi 9.eJx-ª!ldo de reafirmar as verdades
.impera-tivo de se viver num mundo contemporâneo em const<l:~te trans-for!pação:
O que restou da memória coletiva viva, que
constantemen-te faz referência a um determinado povo, a uma etnia,
transfor-mou-se em fundamento religioso, cristalizou-se. A comunidade
de culto no candomblé_.. ...- - -
MLKJIHGFEDCBA
~ não é mais necessariamente uma comu---
-nidade afro-descendente, não é mais uma reunião de negros que
cultiva uma origem comum, os próprios antepassados
lembra-dos nos terreiros não são mais os heróis africanos das cidades e
~os troncos familiares, mas os fundadores da religião dos
orixás
no Brasil e os velhos líderes dos terreiros. Apenas os mitos de
in-teresse religioso serão lembrados; os costumes africanos
somen-te sobrevivem quando reinterpretados e adotados como
elemen-tos e práticas da religião.
3
A reconstituição da cultura religiosa africana no Brasil foi
orientada, não sem a ocorrência de mudanças, acréscimos e
per-das, por um processo que vislumbrava dar sentido à memória e
à identidade do negro na diáspora, num jogo que o
povo-de-san-to imagina apenas como pleno de mistérios perdidos e segredos
guardados.
Antes do contato com a cultura européia, os iorubás e ou- -'
tros povos africanos acreditavam, como vimos, que o ~po era
cíclico, não linear, não histórico. Nada na vida é novidade, tudo
se repete desde os tempos imemoriais. Acontecimentos do
pas-sado estão vivos nos mitos, que se refazem na vida de cada um
de nós. E é no tempo mítico do passado remoto gue se acredita
---. _ - - --
---
-----estar a verdade do presente. O tempo do mito é o tempo das
ori-géOs:-õ passado mítico, coletivo, compartilhado de geração a
ge-168
ração, forn~SD-,'edade o sentido ger~l da vida, orienta a
con-duta e fornece valores para nortear a vida. O tempo do mito é,
portanto, o tempo da tradição, da permanê~cia,~d~ ancestralidade.
As danças do candomblé, com os orixás manifestados nas filhas
e filhos-de-santo em transe, trazem para o presente da
comuni-dade de culto, por meio dos mitos representados nas
coreogra-fias, o passado remoto, imutável e verdadeiro das divindades. Que
não é mais o passado real da comunidade do terreiro, hoje não
mais formado exclusivamente por afro-descendentes.
O mito, agora no Brasil, como elemento constitutivo da
re-ligião afro-brasileira; deve fazerséntido ~~ mai~
ªC1usivamen-te-pãrao~~grZ;_e_ to~~'~fr_o-desc~1id;~nte., Jl1ªS também para o
branco qüe ";:J;re à religião dos orixás. Não está mais referido a um passado genealógico, 'c~nsa~güh;'eo, que identifica e legitima cada tronco familiar, como na África, mas liga espiritualmente
cada membro da religião, independente de sua origem étnica, a
um dos antepassados que formam o panteão das divindades
cul-tua das em solo brasileiro: os orixás Exu, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Omulu, Nanã, Oxumarê, Euá, Xangô, Obá, Iansã, Oxum, Logum
Edé, Iemanjá, Oxaguiã, Oxalá. O candomblé, que é brasileiro,
en-sina que cada ser humano descende de um desses deuses,
inde-pendentemente de sua origem familiar, étnica, racial ou
geográ-fica. Os orixás são agora divindades universais.
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o candomblé foi deixando de ser fonte de memória eidentidade do negro, embora um ou outro terreiro possa,
reman-do contra a corrente, buscar inserção no movimento negro.
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trapassada a primeira metade do século xx, a possibilidade de
es-côf:her-; ~andomblé como religião deixou de ser prerrogativa do
negro, abrindo-se a religião afro-brasileira para todos os
brasi-leiros de todas as origens étnicas e raciais. A..§ociedade branca,
que já no início do século criara uma versão mais branqueada do
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mento de inclusão, aquela que durante um séculoti!lhª
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ligião dos negros. Já estávamos na sociedade de massa e o
can-domblé seria o grande reservatório da cultura brasileira mais
pró-xima da África.
Se aspectos de origem africana já compunham a cultura
bra-sileira nas mais diversas áreas, a partir de
1960ocorreu um
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co-mo habitual, próxico-mo, contemporâneo. A própria música
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-batidas, mais próximas da percl:lssão dos terreiros
de.candomblé.
Ãsesc-ólas
desâm ba
do carnaval não se cansam de fazer desfilar
os orixás na avenida. A televisão, na notícia e na ficção,
sobretu-do nas novelas, não consegue deixar de lasobretu-do referências
constan-tes aos deuses dos terreiros, ao jogo de búzios, aos pais e
mães-de-santo, sejam eles apresentados como autênticos ou falsos. A
cultura de uma minoria agora já é consumo de todos.
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A valorização da cultura negra no Brasil ocorreu
!.l:l!1.!~!!!en-te com a formação dos movimentos de minorias, entre os quais
o movimento negro nas suas mais diferentes
manifestàçõés:ã~i-vándo-se para os afro-descendentes
a questão da origêm"e da
ía.~tidâde. Depoi~ de séculos deintegração, miscigenação e
bran-queamento físico e cultural, setores das populações negras e
mes-tiças questionam e são questionados sobre sua origem africana e
afro-descendente. Enquanto intelectuais e artistas não
identifi-cados com uma causa negra procuram, de modo geral,
incorpo-rar e dissolver a África brasileira numa arte e num discurso de
corte universal, surgem aqueles interessados exatamente no
con-, I
11I
170
trário: delinear a origem negra como sua origem, fazendo da
cria-ção artística documento da própria identidade.
Mas o negro, obrigado a incorporar-se numa cultura nacio-~l
nal, européia, branca e cristã, sem o que não era possível
sobre-viver -
e o sincretismo católico das religiões afro-brasileiras é a .,
demonstração nítida dessa obrigatoriedade de ser brasileiro e por
conseguinte católico, mesmo quando se é africano e se cultuam
orixás e outras divindades africanas - pois bem, esse negro
es-queceu sua origem. Já não é capaz de saber de onde vieram os
an-cestrais, se eram dessa ou daquela tribo ou cidade, que língua
fa-lavam, nem mesmo sabe se eram bantos ou sudaneses.
A superioridade numérica dos negros iorubás na Salvador
do século
XIXtransformou sua língua, o iorubá, numa língua
co-mum dos negros escravos e libertos das mais diferentes origens
étnicas que conviviam na cidade (Rodrigues,
1976).Quando os
diferentes grupos organizaram sua religião na Bahia, foram
can-domblés nagôs, com muitas contribuições rituais dos jejes, que
melhor conseguiram se impor como modelo de culto, de tal
mo-do que os seus deuses, os orixás, acabaram ganhanmo-do relevo,
pri-meiro local e depois nacional, encobrindo a presença dos voduns
dos jejes e dos inquices dos bantos. Enquanto os orixás passaram
a ser reconhecidos como as autênticas divindades africanas,
so-bretudo com o surgimento da umbanda, que os disseminou por
todo o país, os voduns ficaram limitados a uns poucos templos
,de Salvador e cidades do Recôncavo e completamente
escondi-dos do resto do país nos templos do Maranhão, até que a
migra-ção os trouxesse para o Sudeste (Prandi,
1998).Os inquices
ban-tos desde longa data ha~iam sido substituídos pelos orixás e
encantados caboclos. Como se tudo que é negro remetesse aos
povos nagôs, como se todos os deuses africanos fossem orixás
(Prandi,
2001b).
O ~nsaísta e poeta norte-americano Steven White,
do a poesia produzida nos últimos quinze anos por poetas
brasi-leiros negros, como Estevão Maya-Maya, Oliveira Silveira,
Edi-milson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo e Lepe Correia, entre
outros, mostra exatamente como a procura de uma identidade
negra, africana de origem, acaba remetendo à necessidade de
rein-ventar um passado através da religião que se professa hoje, e que
é a fonte brasileira por excelência da "memória" das origens
afri-canas (White,
1999).
A religião tradicional, reconstituída do ladode cá do Atlântico, pas;~-a-~e-r-fo~t~d~
me~ó~iacr'i~'d~,g~~re-,,~ente para o passado, num caminho inverso .
MLKJIHGFEDCBA
.o
processo deela-boração desse passado rnítico e idílico vai beber nas próprias
tra-dições preservadas como fundamento das instituições religiosas
negras mais presentes no cenário cultural do país, e a identidade
define-se a partir de uma origem idealizada, que o poeta adota
como sendo a dele. A reconstituição do passado que orienta a
construção da identidade se faz, assim, a partir da cultura
brasi-leira e não da verdadeira e perdida origem étnica, familiar 'e, em
última instância, racial.
, Mesmo quando o
tiegrô
se expressa para afirmar anegritu-) \l',' ," t> de, a condição africana, não resta a ele fazê-Ia senão como
brasi-bl
i\ j~ · r i''J)\.I " " " "leiro, Ainda que o passado ancestral perdido seja a África
pluriét-nica, multicultural, o passado recuperável é aquele que o Brasil
logrou incorporar na construção de uma nova civilização,
passa-do que só pode ser reinventapassa-do, memória recriada. Entre o
Bra-sil contemporâneo e a velha África, bem como entre a antiga EU'"
ropa e as perdidas civilizações indígenas, situa-se a nossa própria
história, que nos impede ou auxilia no reencontro do nosso
pon-to de partida, nos meandros da civilização que ela mesma
engen-drou. D.~~..:asil d~_hoje se faz a África,
de
..Q!1!gm,..Air.ka....s.imMli-c~ qu~é m:mória e identidade possív~~_doL<lfLQ:.br.asilei.r.os ....O
c:al~domblé, nesse prõcesso, deixa de ser religião e passa a
funcio-nar apenas como fonte idealizada de identidade, mesmo porque
172
~~n9:<?mblé não tem a menor disposição de se enfileir~~ com o
~ovim~~~ de afirmação do negro.~pa~,_~.~~ães-d':,::~~nto,
mui-tos deles l?~~!l50Sou mestiços, querem ser apenas líderes
religio-,~Io;~ge de qualquer outra instituição que possa interferir na
comunidade que eles formam e dirigem com mão-de-ferro. Do
outro lado, embora alguma parcela do movimento negro possa
escolher o candomblé como símbolo de identidade africana,
di-ficilmente o conjunto todo estará disposto a assumir uma
reli-gião e submeter-se às suas orientações.
Candombléemovimen-to negro têrI?_a pes}naJ)rigem, mas
já
não podem ~er jttnJaçlq§.Õ~;;ld:2.I:!1~léJ9!!10-q.-.se r~ligiªo universal, já não pertence a raça
~;tnias defi~idas, é religião "para todos nós", para todos os