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Dos laços de família aos laços da tradução: o trajeto de um conto de Clarice para o inglês e o espanhol

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Academic year: 2017

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Maria Aparecida Munhoz de Omena

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ão: o trajeto de um conto de Clarice

para o inglês e o espanhol.

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura)

Orientadora: Profa. Dra. Diva Cardoso de Camargo

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Omena, Maria Aparecida Munhoz.

Dos laços de família aos laços da tradução : o trajeto de um conto de Clarice para o inglês e o espanhol / Maria Aparecida Munhoz Omena. – São José do Rio Preto : [s.n.], 2002

158 f. ; 30 cm.

Orientadora: Diva Cardoso de Camargo

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista. Instituto de

Biociências, Letras e Ciências Exatas

1. Tradução e interpretação. 2. Contos brasileiros. 3. Lispector, Clarice, 1925-1977 - Os laços de família. 4. Tradução literária. 5. Modalidades de tradução. I.

Camargo, Diva Cardoso. II. Universidade Estadual Paulista. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.

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COMISSÃO JULGADORA

Titulares

Profa. Dra. Diva Cardoso de Camargo Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva

Profa. Dra. Ofir Bergemann de Aguiar

Suplentes

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(5)

AGRADEÇO:

À Profa. Dra. Diva Cardoso de Camargo, pela competência e seriedade da

orientação.

Ao Prof. Dr. Carlos Daghlian, pelas contribuições e sugestões para o

aperfeiçoamento deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva, pelas contribuições e

sugestões para o aperfeiçoamento deste trabalho.

Ao Prof. Arnaldo Franco Jr., pelas orientações de leitura sobre a fortuna

crítica de Clarice Lispector.

(6)

"Ultramuito, porém, houve o que há, por aquela parte, até aonde o luar do meu mais-longe, o que certifico e sei."

(7)

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Origem da dissertação...10

Perspectiva dos estudos da tradução...10

A tradução na modernidade...11

O texto clariciano...12

Objeto e objetivos da dissertação...13

CAPÍTULO I A TRADUÇÃO LITERÁRIA A tradução e a sua origem...14

A tradução e a singularidade da obra literária...16

A natureza da tradução...17

A fidelidade ao texto de partida...22

A configuração intertextual do processo tradutório...25

CAPÍTULO II A ESCRITA CLARICIANA “Os laços de família” Opiniões da crítica...26

(8)

CAPÍTULO III “Family ties”

Apresentação do modelo Aubert... ...60

Definição das modalidades tradutórias... ...62

Análise dos vocábulos e dos sintagmas ...66

Análise da sintaxe ...73

Análise da pontuação...74

Análise dos mecanismos de coesão textual...81

Análise do discurso narrativo...82

Análise da estrutura narrativa...85

CAPÍTULO IV “Lazos de familia” Análise dos vocábulos e dos sintagmas ...89

Análise da sintaxe ...97

Análise da pontuação...98

Análise dos mecanismos de coesão textual ...103

Análise do discurso narrativo ...104

Análise da estrutura narrativa ...107

CONCLUSÕES ...110

BIBLIOGRAFIA ...116

APÊNDICES Apêndice I: Levantamento dos dados de TC1...122

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OMENA, Maria Aparecida Munhoz de. DOS LAÇOS DE FAMÍLIA AOS LAÇOS DA TRADUÇÃO: O TRAJETO DE UM CONTO DE CLARICE PARA O INGLÊS E O ESPANHOL. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (Teoria da Literatura) da UNESP, câmpus de São José do Rio Preto, 2002.

RESUMO

Após uma análise literária de “Os laços de família” e uma discussão de questões relativas à tradução literária, esta dissertação analisa duas traduções do referido conto de Clarice Lispector: "Family Ties", de Giovanni Pontiero para o inglês, e "Lazos de Familia" de Cristina Peri Rossi, para o espanhol. A análise avaliará o grau de correspondência e de afastamento entre a forma literária do texto de partida e as dos textos de chegada, levando-se em consideração os seguintes aspectos: a) vocábulos e sintagmas; b) sintaxe; c) pontuação; d) coesão textual; e) discurso narrativo; f) estrutura narrativa.

UNITERMOS: Clarice Lispector; Conto brasileiro moderno; “Os laços de família”; Literatura brasileira; Modalidades de tradução; Tradução literária

OMENA, Maria Aparecida Munhoz de. FROM “FAMILY TIES” TO THE TIES OF TRANSLATION: THE COURSE OF A SHORT STORY BY CLARICE INTO ENGLISH AND SPANISH. Master’s thesis presented to Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus of São José do Rio Preto, State of São Paulo, Brazil, 2002.

ABSTRACT

After a literary analysis of “Os laços de família” and a discussion of questions related to literary translation, this thesis analyses two translations from this short story by Clarice Lispector: Giovanni Pontiero's "Family Ties" into English and Cristina Peri Rossi's "Lazos de Familia" into Spanish. It is an attempt to evaluate the correspondence and distance degree between the literary form of the departure text and those of the arrival texts taking the following aspects into consideration: a) words and syntagmas; b) syntax; c) punctuation; d) textual cohesion; e) narrative discourse; f) narrative structure.

(10)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nosso interesse por realizar trabalhos sobre a teoria e prática da tradução surgiu durante o curso de especialização em Estudos Avançados da Língua Inglesa, que realizamos no período de 1999 a 2000, na UNESP – câmpus de São José do Rio Preto. Tal curso estimulou-me a participar, posteriormente, como aluna especial, de duas disciplinas sobre tradução, pertencentes ao programa de pós-graduação em Letras da mesma Universidade. As leituras dos textos teóricos, bem como as tarefas realizadas nas duas disciplinas comprovaram a procedência de meu interesse inicial. A teoria e a prática da tradução constituem, hoje, um dos mais férteis campos de pesquisa, não apenas em função da importância da tradução no mundo atual, como também da riqueza de problemas que as teorias da tradução enfrentam na abordagem desse fenômeno.

A reflexão sobre a tradução é bastante antiga. Steiner (1992) apresenta uma perspectiva histórica sobre os estudos em tradução, estabelecendo quatro períodos principais. O primeiro deles estende-se desde as afirmações de Cícero (ao valorizar a tradução de sentido a sentido, ao invés de palavra por palavra)1 e de Horácio (ao reiterar, vinte anos depois, a mesma idéia desenvolvida por Cícero) com relação à tradução chegando até a publicação do primeiro trabalho teórico sobre tradução em inglês, realizado em 1791, por Alexander Fraser Tytler, intitulado Essay on the Principles of Translation (Ensaio sobre os princípios de tradução). Este período tem como característica o enfoque empírico, ou seja, a reflexão sobre a tradução baseia-se na experiência da prática tradutória, sem um caráter propriamente científico. No segundo período, com a publicação de Sous l´invocation de Saint Jérome

(1946), a preocupação principal dos estudiosos é com a interpretação dos textos sagrados. Assim, a hermenêutica dá à tradução um aspecto filosófico ao questionar e tentar diagnosticar o que significa entender uma parte de um discurso escrito ou oral. O terceiro período, década de 50, distingue-se por receber contribuições da Lingüística Estrutural e da Teoria da Comunicação. O quarto período, ocorrendo paralelamente com o período anterior, tem origem no início dos anos 60 e caracteriza-se por ter gerado um retorno às indagações da hermenêutica com relação à tradução e à interpretação.

Este retrospecto proposto por Steiner evidencia, de maneira sucinta, algumas tendências filosóficas que fazem parte da evolução dos estudos sobre tradução. Em certos

(11)

momentos, os estudiosos privilegiam a forma; em outros, o conteúdo. Mesmo nos tempos atuais esta discussão continua a estar presente nos debates teóricos. Isto porque o estudo da tradução não é estático, nem tampouco se pode afirmar que onde termina uma teoria começa outra, pois a língua é um instrumento vivo, movimenta-se, transforma-se a cada dia, obedecendo a necessidades culturais, psicossociais e ideológicas de sua comunidade. Novos fenômenos nesse campo sempre provocam dúvidas e questionamentos que estimulam a continuidade das pesquisas. Atualmente, vivendo em um mundo globalizado, em que as informações são transmitidas quase que simultaneamente, as comunidades procuram cada vez mais textos traduzidos. Cientistas vislumbram máquinas de tradução automática. Programas de computador fazem traduções instantâneas, ainda que precárias. Tudo isso para que os povos se comuniquem, vencendo as barreiras impostas pelas diferenças entre as línguas. A necessidade de pesquisas nessa área é, por isso, permanente. Tais indagações continuarão presentes, levando tradutores e teóricos a uma contínua reflexão sobre o processo tradutório.

Laranjeira (1993, p.15) comenta que “os textos traduzidos estão aí a nos dizer que nesse campo não cabem radicalizações”. Isto porque as opiniões entre os pesquisadores são contraditórias, indo desde aqueles que acreditam que tudo possa ser traduzido até os que defendem a impossibilidade teórica da tradução. Na verdade, segundo Laranjeira, existem “graus, aqui maiores, ali menores, de tradutibilidade”.

Os estudos em tradutologia têm contribuído consideravelmente para o desenvolvimento da disciplina. No entanto, ainda há muito a ser descoberto para que tenhamos uma melhor compreensão das possibilidades e limitações, inclusive culturais, decorrentes do processo tradutório.

A possibilidade ou impossibilidade da tradução literária coloca-se como uma das discussões mais fascinantes nos debates contemporâneos. Ainda hoje não há um consenso entre os estudiosos, talvez porque não haja consenso sobre a própria natureza do objeto que discutem: a tradução, e também porque não haja consenso sobre a essência do fenômeno literário.

Berman (1991) afirma que esta questão não é exclusividade do nosso século. Em 1813, Freidrich Schleiermarcher já mostrava interesse no assunto. Buscando estabelecer algumas diferenças entre tradução literária e tradução especializada, Berman escreve:

(12)

existe uma unidade, ela própria sempre única, entre a “forma” e o “conteúdo”, a “língua” e o “dito” (BERMAN, 1991, p. 11). 2

Essa passagem evidencia o grau de dificuldade que envolve a tradução, particularmente a literária, sobretudo quando o tradutor enfrenta diferenças de forma, de conteúdo, de língua, de registro, de estilo, bem como diferenças culturais. Nesse sentido, Laranjeira (1993, p.18) ressalta a existência de certos fatores, a serem discutidos no próximo capítulo, que influenciam um grau maior ou menor de tradutibilidade. De acordo com o autor, existem textos que valorizam o significado, sendo o significante um “mero suporte para veicular as idéias”, como é o caso, por exemplo, da descrição de um processo cirúrgico. O mesmo não ocorre com outros textos, em que o significante produz significado, como no caso da poesia. Além disso, a questão do estilo não pode ser relegada, pois o escritor literário “apresenta” o mundo por meio de sua escrita, de sua leitura que, segundo Moisés (1978, p 52), não se faz de maneira aleatória, pois “toda produção textual tem um caráter crítico, com relação ao mundo e com relação à linguagem”.

Autores como Clarice Lispector possibilitam o desenvolvimento de pesquisas relevantes sobre tradução, quando os aspectos acima abordados são levados em consideração. O fato, por exemplo, de a escrita dessa autora ser densa, formalmente rica e marcada pela polissemia, aproxima suas narrativas da poesia, já que sua linguagem pode ser comparada à do poeta que, segundo Paz (1982, p. 132), "... não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós". A tradução dessa prosa altamente poética não é trabalho singelo para nenhum tradutor; nem tampouco para o pesquisador a compreensão do processo.

A riqueza formal do texto clariciano e os problemas teóricos que o fenômeno da tradução apresenta levaram-nos, naturalmente, a escolher este campo de estudo em nível de pós-graduação, em virtude de seu caráter de desafio. São, de fato, fascinantes as dificuldades que a obra de Clarice Lispector apresenta para os tradutores estrangeiros. As diversas traduções que examinamos nos levaram a inúmeros questionamentos, suficientes, a nosso ver, para justificar a escolha de um texto de Lispector traduzido como objeto de nossas indagações.

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No caso específico desta dissertação, abordaremos duas traduções do conto “Os laços de família” (16 ed.): uma para o inglês, “Family ties”, traduzida por Giovanni Pontiero, que, a partir deste momento, denominaremos TC1, ou seja, texto de chegada um; e outra para o espanhol, “Lazos de família”, traduzida por Cristina Peri Rossi, que, a partir deste momento, denominaremos TC2, ou seja, texto de chegada dois. Tomaremos como objeto, portanto, as relações de correspondência ou afastamento formal entre TP (texto de partida), TC1 e TC2. Colocamo-nos metodologicamente num patamar bastante simples, entendendo por “formal” a “configuração literária” analisada sob os seguintes aspectos: a) domínio dos vocábulos e dos sintagmas; b) domínio da sintaxe; c) domínio da pontuação; d) domínio dos mecanismos de coesão textual; e) domínio do discurso narrativo e f) domínio da estrutura narrativa.

Partindo da observação dos aspectos acima mencionados, teremos como objetivo fazer uma avaliação do grau de correspondência entre a forma literária do TP e dos TCs, resultante da postura assumida pelos respectivos tradutores. A leitura da fortuna crítica de Clarice Lispector torna-se, neste caso, fundamental para que seja possível a compreensão das características que dizem respeito aos contos em geral e ao conto “Os laços de família” em particular, possibilitando, assim, o estabelecimento de parâmetros sobre a escritora e sobre sua poética.

De modo geral, os estudiosos da obra clariciana se revelam preocupados em entender a sua poética. Cândido (1970, p. 128) observa que a escritora quer "(...) buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem". Essa busca se realiza através do que os sentidos, muitas vezes implícitos, deixam escapar. Caberá ao leitor analisar o que ficou explícito ou implícito. De acordo com Souza (1980, p. 79-80), a escritora não trabalha dessa maneira por acaso. Lispector "(...) procura penetrar no que há de escondido e secreto nas coisas, nas emoções, nos sentimentos, nas relações entre os seres". Portanto, cada detalhe de sua narrativa faz parte de um enigma que o leitor buscará decifrar.

Faz-se igualmente importante a leitura crítica de obras sobre teoria da tradução, lingüística textual, teoria da intertextualidade e literatura comparada, para a obtenção de conceitos operatórios, para a análise e interpretação das relações de correspondência entre TP, TC1 e TC2. Paralelamente, o levantamento, a análise e a comparação de dados do TP e dos TCs possibilitarão a formulação de questões sobre a verificação das relações de correspondência entre a forma literária do TP e dos TCs.

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CAPÍTULO I

A TRADUÇÃO LITERÁRIA

Para Abbagnano (1970), se considerarmos os estudos teóricos a respeito de poesia – e, por extensão, de literatura – de todos os tempos, encontraremos três concepções distintas: poesia como estímulo e participação emotiva, como modo privilegiado de expressão lingüística e como verdade. Tais concepções são, simultaneamente, uma boa síntese do conceito do fenômeno literário e um atestado da grande dificuldade enfrentada pelo teórico ao abordá-lo. A leitura de um texto literário é, deste modo, a experiência de uma forma singular de expressão lingüística que revela, de modo inconfundível, as emoções e os sentimentos, as alegrias e as angústias, as certezas e as incertezas, as experiências e os enigmas do Homem. A tradução de obras como as de Clarice Lispector se apresenta, assim, como um processo de compreensão do texto literário. Os problemas do tradutor vão além dos do leitor: o tradutor não guarda para si o conhecimento, a emoção e a compreensão da obra, mas tenta reconstituí-los para os leitores de sua língua e cultura.

A lenda bíblica da Torre de Babel, embora marque, miticamente, um momento em que os homens deixaram de se compreender, pode ser tomada para aludir a um episódio de significado oposto: os primeiros instantes em que homens de diferentes culturas começaram a se compreender. Se, no mito bíblico, a incompreensão foi o fim e a ruína das metas propostas por aquelas comunidades, os primeiros contatos entre diversas culturas humanas representaram o começo de um longo processo, ainda hoje não encerrado de comunicação entre os povos. Esse processo, evidentemente, é mediado por interpretes e tradutores (CAMPOS, 1986).

Mais que o mito bíblico, o momento, realmente significativo, que pode ser tomado como marco para a questão da teoria e da prática da tradução, é o episódio da decifração da pedra de Rosetta. Trata-se de um fragmento de estela de basalto negro, descoberto em 1799 pelo exército de Napoleão em Rosetta (em árabe, Rashid), cidade do baixo Egito, na foz do braço ocidental do Nilo. Tal fragmento de estela, provavelmente composto no ano de 196 a.C. é atualmente conservado no British Museum, e apresenta um decreto de Ptolomeu V, inscrito em caracteres hieróglifos. Lembra Berlitz , a este respeito:

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elementos decorativos. Um estudioso de história antiga, o abade francês Tandeau de Saint-Nicholas, proclamou, na época mesma em que os egiptólogos tentavam decifrar os hieróglifos: ‘É claro como o dia que os hieróglifos são puramente ornamentais’ (BERLITZS, 1988, p. 128).

A estela de Rosetta possui inscrições em três tipos de escrita: duas versões em egípcio antigo, uma em hieróglifos e outra na escrita demótica simplificada, mais a mesma mensagem em grego, que os arqueólogos franceses conheciam. O grande problema encontrado por Champollion, um dos lingüistas e arqueólogos que se dispuseram a decifrá-la, era que a pedra estava partida nas duas extremidades: não se sabia, portanto, onde começava cada texto. A chave encontrada por Champollion, que acabou sendo o ponto de partida para o conhecimento dos hieróglifos e da língua egípcia, foi a correspondência entre a representação em hieróglifos do nome próprio “Cleópatra” e a escrita desse nome em grego.

A tradução literária, de certo modo, repete o episódio da estela de Rosetta. Cada texto literário é impar, emana de uma linguagem individual cujo conjunto de símbolos é preciso, primeiro, esclarecer, para depois efetuar-se o trabalho tradutório. Este “esclarecer” refere-se à interpretação. Antunes observa que

se o processo comunicativo normal busca sempre uma definição clara da mensagem, a comunicação estética, ou literária, é já na sua origem, ambígua, no sentido de que é conotativa, metafórica. Dessa forma, coloca-se de saída o problema da interpretação da obra original quando coloca-se trata de traduzir um texto literário (ANTUNES, 1991, p. 3).

O problema, no entanto, é ainda dificultado pelo fato de não haver unanimidade na própria teoria geral da tradução, em que vem surgindo e freqüentemente colidindo diferentes correntes, desde que foi publicado, em 1791, o primeiro trabalho a respeito da teoria da tradução, por Alexander Fraser Tytler, como já mencionado nas “Considerações Iniciais”.

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denomina “mútua compreensão”, torna-se ainda evidente a importância de pesquisas sobre tradução.

Particularmente em estudos sobre a tradução literária, quatro questões bastante problemáticas devem ser colocadas e delineadas logo de saída: a questão da singularidade da obra literária, da natureza da tradução (substituição, transferência, transporte, leitura, transformação, recriação), da fidelidade ao TP e da configuração intertextual do processo tradutório.

Faz parte dos domínios da poética e da teoria literária a noção de que todo texto literário é singular, irrepetível, e isso, sob certo ponto de vista, não deixa de ser verdadeiro. Por outro lado, os modernos estudos sobre Intertextualidade nos revelam que essa singularidade ou originalidade tem seus limites, em primeiro lugar porque qualquer texto, enquanto texto, é um produto individual elaborado com base em modelos e padrões prévios: utiliza-se de uma língua, instrumento social, realiza certo modelo, certo gênero e certo estilo de época, expressa sentimentos, emoções, concepções e visões características dos seres humanos. No meio de tudo, obviamente, expressa também de um modo singular a própria singularidade do escritor. Quando se fala, deste modo, em texto original, deve-se ter em mente a relatividade deste conceito, tal como, com muita propriedade, explica Paz:

Cada texto é único e, simultaneamente, é a tradução de outro texto. Nenhum texto é inteiramente original porque a própria linguagem, em sua essência, é já uma tradução: primeiro, do mundo não verbal e, depois, porque cada signo e cada frase são a tradução de outro signo e de outra frase. Esse raciocínio, porém, pode ser invertido sem perder validade: todos os textos são originais porque cada tradução é distinta. Cada tradução é, até certo ponto, uma invenção e assim constitui um texto único (PAZ, 1990, p. 13) 3.

A observação de Paz mostra-se bastante pertinente, não apenas pelo fato de relativizar a questão da singularidade ou originalidade do texto literário, mas para lembrar que, cercando-se a tradução literária de conhecimentos, técnicas e cuidados, o resultado em termos de chegada será também um texto original, o original de uma tradução. Prova disso, mais que óbvia, é o fato comum da existência de numerosas traduções de uma mesma obra em determinada língua. Essa relativização de conceitos é necessária; relegá-la seria negar a

3 Cada texto es único y, simultáneamente, es la traducción de otro texto. Ningún texto es enteramente original

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própria possibilidade de tradução literária, como afirmam radicalmente alguns teóricos cujos estudos serão mais adiante comentados.

O segundo ponto mencionado, o da natureza da tradução, é uma preliminar igualmente necessária, dada a existência e o mútuo conflito de inúmeras teorias da tradução. Para alguns autores, como Catford (1980, p 22.), “tradução é a substituição de material textual de uma língua (LF)4 por material textual equivalente noutra língua (LM)5”. Tal substituição implica em transferência ou transporte do material textual do TP para o TC. Para o autor, a transposição desse material textual se faz por meio de equivalências gramaticais, lexicais e pela substituição da fonologia/grafologia da fonte pela fonologia/grafologia da língua-meta.

Sobre essa questão, Laranjeira (1993, p. 18-9) complementa dizendo que no processo de tradução o que se busca é a equivalência entre a mensagem I e a mensagem II. De acordo com o autor, no entanto, alguns fatores condicionam um grau maior ou menor de tradutibilidade: a) fatores sócio-culturais, devido ao fato de que “quanto maior for a distância que separa duas culturas-línguas, maiores serão os óbices de natureza sócio-cultural à tradução, pois menos numerosos serão os pontos comuns em que o tradutor poderá apoiar-se”; b) fatores lingüístico-estruturais, uma vez que as diversas sociedades não distribuem e organizam da mesma forma a massa fônica de suas línguas, e c) fatores textuais, que se “prendem à natureza do texto, ao seu modo de significar, à relação que se estabelece, no processo de significação, entre significado e significante”. Segundo o autor, isso ocorre, em virtude de ser o significado em alguns textos mais importante que o significante, por exemplo em textos científicos, argumentativos, demonstrativos. Nos textos literários, todavia, o significante é parte da própria mensagem.

Nida (1975), outro teórico também importante, buscando compreender a natureza da tradução, compara palavras de uma sentença a uma fileira de vagões. A carga pode ser distribuída entre os diferentes vagões de forma irregular. A quantidade que cada vagão carrega não é importante. Isto porque se pensarmos nas palavras como vagões, compreenderemos que algumas carregam mais conceitos que outras. Assim sendo, não interessa saber quais vagões carregam mais cargas, mas, sim que o material carregado (todos os significados) cheguem ao seu lugar de destino (a língua para qual o TP foi traduzido).6

4 Para o autor, língua-fonte.

5 Para o autor, língua-meta.

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A visão anterior de tradução como transporte de significados é bastante criticada no meio acadêmico. Pesquisadores, como Arrojo, por exemplo, asseveram que

traduzir não pode ser meramente o transporte, ou a transferência, de significados estáveis de uma língua para a outra, porque o próprio significado de uma palavra, ou de um texto, na língua de partida, somente poderá ser determinado, provisoriamente, através de uma leitura (ARROJO, 1999, p. 23).

Arrojo ressalta, ainda, que “o próprio significado do ‘original’ não é fixo ou estável”. A autora complementa dizendo que a função da tradução, assim como da leitura, não é de proteger significados de um texto original, é antes de tudo criar condições para que se produzam significados. Essa mesma preocupação encontra-se em Barbosa (1986), quando ressalta que a tradução, num determinado momento, não é vista apenas como busca, mas como produção de sentidos, envolvendo o processo de interpretação. Portanto, a passagem de um TP para um TC envolve um exercício crítico.

A esse respeito, escreve Siscar (2000) que não cabe a noção de tradução compreendida como transferência de significados, uma vez que nessa visão há uma tendência em se compreender a tradução como uma simples separação entre corpo (palavra) e sentido. De acordo com o autor, essa visão ingênua não colabora para o entendimento de como se dá o processo de instauração de sentido. Em tal processo, o tradutor tem a sua responsabilidade, escreve Rodrigues (1990), pois realiza escolhas, que vão possibilitar a transformação do TC. Segundo a autora, se há transformação, o tradutor não pode ser considerado apenas como o encarregado de resgatar o sentido do texto original, mas como o responsável pela transformação. Essa transformação se faz, como já foi dito, por meio das escolhas do tradutor, que por sua vez estão vinculadas à sua leitura, às suas experiências. Logo,

o original vive, sobrevive, na e pela sua própria transformação produzida pela leitura. A tradução não transporta uma essência, não troca ou substitui significados dados, prontos em um texto, por significados equivalentes em outra língua. A tradução é uma relação em que o “texto original” se dá por sua própria modificação, em sua transformação (RODRIGUES, 2000, p. 206).

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Não há, portanto, como negar que o processo de tradução envolve uma segunda leitura; desta forma, seria ingenuidade pensarmos no texto traduzido como “cópia” do original. Mesmo que o próprio autor realizasse a tradução, esta seria outro texto, não mais o primeiro. Isto ocorre devido a fatores estruturais, situacionais, ideológicos, culturais, entre outros. Dessa forma, este processo de transformação exige do tradutor literário conhecimento das línguas envolvidas, de suas culturas, bem como da literatura, o que implica inclusive o conhecimento da poética do autor a ser traduzido.

Nesse sentido, Paes (1990), embora entenda as diferenças entre culturas e, por isso, a necessidade de transformação do texto traduzido, cita o fato de Kundera, autor de A Brincadeira, ter reprovado a atitude de um tradutor espanhol, que optou por decompor em frases curtas um monólogo dessa obra, escrito em frases longas. O mesmo escritor condenou outro tradutor norte-americano que mudou a ordem sintática. Segundo Kundera, o tradutor impediu que a tradução, por meio de suas “pressões renovadoras”, pudesse exercer alguma influência nas estruturas lingüísticas da língua de chegada. Sobre esta observação, Paes escreve:

Louvável, na verdade, há de ser a tradução que, sem desfigurar por imperícia as normas correntes da vernaculidade, deixe transparecer um certo quid de estranheza capaz de refletir, em grau necessariamente reduzido, as diferenças de visão de mundo entre a fonte e a língua-alvo (PAES, Ibid., p. 106).

Indo ao encontro dessa posição, Fernandes (1989, p.79) ressalta que “um tradutor tem que ser, sobretudo, mimético, adaptando-se ao estilo do autor, procurando, dentro de sua língua, a língua específica, o fulcro lingüístico, onde se enquadra o traduzido”. Posicionar-se desse modo não significa desconsiderar o papel do tradutor como criador; não se pode negar, no entanto, que sua criação, de certa forma, está enraizada em outra, servindo-lhe, ao mesmo tempo, de ponto de partida e de ponto de chegada, uma vez que, como disse Arrojo (1999, p. 40), de maneira apropriada, “é impossível resgatar integralmente as intenções e o universo de um autor, exatamente porque essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido”.

Esse fato ocorre também ao lermos um texto em nossa própria língua. Pode-se realizar diferentes leituras de uma mesma obra,

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privilegiar um ou outro ângulo de visão da obra. É a partir desse pressuposto que podemos considerar a tradução literária como um processo de leitura (ANTUNES, 1991, p. 6).

Rodrigues (1990) discute questões que estão interligadas à visão da tradução considerada leitura. De acordo com a autora, dentre as linhas de estudos sobre tradução, duas grandes correntes se destacam: a primeira, de base lingüística, considera “o significado como resultado previsível da combinação de regras previsíveis, ou seja, pressupõe que a língua seja sistematizável e determinável”; a segunda, pós-estruturalista, afirma que o significado não pode ser apenas estável. A primeira entende o autor como constituidor de sentido; a segunda defende que o leitor é o criador de significados. A reflexão que Rodrigues realiza, sobre essas duas linhas de estudo, possibilita-nos pensar não apenas em como se constitui o significado, mas também no sujeito denominado leitor, à medida que, segundo a autora, as duas posições

são extremas, não se considera a possibilidade de um ponto intermediário em que o leitor/tradutor esteja, dependendo das condições, na posição daquele que reconhece um significado constituído por sua apresentação formal, ou, sob outras condições, na posição daquele que cria um significado por ele construído durante a leitura (RODRIGUES, 1990, p. 125).

Fica evidente que a tradução é uma leitura; vale destacar, todavia, que existe uma diferença significativa entre leitor/tradutor e leitor comum. Yebra escreve que

o leitor comum, enquanto tal, chega ao término de sua viagem quando capta o conteúdo do texto. Aquele que lê como tradutor, ao contrário, tem desde o começo a intenção de não se deter nessa meta: pensa empreender a (...) mesma direção seguida pelo autor, só que por outro terreno: este caminho irá desde o conteúdo do texto original até os signos lingüísticos capazes de expressá-lo, mas na língua final, que costuma ser a língua própria do tradutor, a da comunidade lingüística a que pertence. Esta intenção de retorno, de regresso à língua própria, implica, normalmente, maior intensidade de leitura (YEBRA, 1997, p. 33). 7

Anterior a essa última discussão, coloca-se a questão sobre a possibilidade ou impossibilidade da tradução. Existem opiniões extremas, como a do poeta americano Robert Frost (apud ARROJO, 1999, p. 26), quando afirma que “a verdadeira poesia [e, por extensão,

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a própria literatura] é intraduzível, definindo-se precisamente como aquilo que ‘se perde’ em qualquer tentativa de tradução”.

Steiner (1992) menciona as opiniões de escritores famosos que vêem a tradução de seus textos como inferiores. O poeta alemão Heinrich Heine, ou o russo-americano Vladimir Nabokov, um dos grandes escritores do século XX, são, entre outros, alguns desses exemplos. Tais poetas e escritores entendem que a tradução não consegue alcançar a ‘alma’ do texto literário. Essa visão reflete, de acordo com Arrojo (1999, p. 27-8), “a concepção de que, especialmente no texto literário ou poético, a delicada conjunção entre forma e conteúdo não pode ser tocada sem prejuízo vital, o que condenaria qualquer possibilidade de tradução bem-sucedida”.

É preciso considerar, porém, tanto no que se refere à teoria da tradução como à leoria literária, que algumas opiniões, não só dos teóricos como dos próprios escritores, beiram o exagero. Dizer, por exemplo, que a “alma do texto literário não pode ser alcançada” é uma afirmação bastante relativa, em primeiro lugar porque não passa de uma metáfora, e, em segundo, porque o que denominamos “texto literário” envolve variadíssimos gêneros e espécies de textos, escritos segundo diversas posturas e técnicas. Há, nesse sentido, textos literários de estrutura e feição marcada por maior dose de objetividade, cuja tradução não enfrentará os mesmos problemas que os textos marcados por um alto índice de subjetividade, que, muitas vezes, provocam obstáculos de compreensão, inclusive para os próprios nativos da língua. Não devemos nos esquecer, porém, de que essas diferenças textuais serão apontadas, segundo Rodrigues (1990, p. 122) “pelas convenções da comunidade a que o leitor/tradutor pertence”. E, como foi dito anteriormente, definir literário tem sido objeto de estudo de muitos teóricos. Ao que parece, a tradução literária é o “calcanhar de Aquiles” dos estudos em tradutologia. Tal situação se dá devido ao fato de não haver um consenso sobre a própria essência do literário e, por sua vez, da tradução literária. A discussão da possibilidade ou não da tradução literária dependerá, de acordo com o que sugere Fish (1980), da decisão,

consciente ou não, do que uma determinada comunidade cultural considera como literário. O trabalho do tradutor, evidentemente, é árduo e na maioria das vezes não

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a tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto ‘original’, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos (ARROJO, 1999, p. 44).

Precisamos, no entanto, lembrar-nos de que, embora o tradutor, entre outras habilidades, seja primeiramente um leitor do TP, deixando na tradução sua vivência de mundo, sua leitura, ele também será responsável por suas escolhas. Tais opções não são eleitas aleatoriamente, pois o tradutor sabe que, ao “escolher” uma determinada obra para desenvolver seu trabalho, necessitará conhecer as principais características do autor, bem como da obra a ser traduzida. Por isso, alguns teóricos defendem a idéia de que a tradução deve possuir valor de obra original. Antunes (1991) afirma que o processo de tradução assemelha-se ao da criação, mas ressalta que

embora a tradução possa adquirir uma certa independência em relação ao original ao ser considerada como criação, é preciso considerar que esse original existe e é sempre um ponto de partida que deve ser respeitado. Esse respeito, no entanto, não significa servilismo (...). Significa, isto sim, realizar dele uma leitura a mais profunda possível, utilizando-se de todos os meios disponíveis (ANTUNES, 1991, p. 4).

É próprio da natureza humana buscar compreender o mundo e tudo aquilo que se apresenta como “impossibilidade”. Portanto, parece natural que justamente os textos literários – intraduzíveis segundo alguns teóricos e escritores – continuem sendo traduzidos. De acordo com Campos (1992, p. 35), a tradução de textos literários, por ele denominada tradução de textos criativos, será sempre “recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca”. Segundo o autor, “quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação”.

Em outras palavras, a busca pela compreensão dos enigmas que envolvem o desenvolvimento humano sempre será fonte geradora de questionamentos. Válida, portanto, é a atitude dos teóricos, dos escritores e dos tradutores de discutir aspectos como a singularidade da obra literária e a natureza da tradução. A fidelidade ao TP coloca-se como outra questão bastante discutida nos meios acadêmicos, não havendo igualmente um consenso. Sobre isso, Laranjeira escreve que

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à simples superposição coincidente de duas estruturas-fora enquanto objeto (LARANJEIRA, 1993, p. 123).

Para o autor (1993, p. 124), a tradução poética resulta de tensões existentes entre línguas, que, embora sejam diferentes, se equilibram sem se anular, já que “as tensões entre autor e tradutor, língua-cultura de partida e língua-cultura de chegada, texto original e texto traduzido sempre existirão”. Complementa dizendo que a tradução não deve preocupar-se em eliminar tais tensões em nome da fidelidade ao TP. Conforme explica o autor, existem quatro tipos de fidelidade: a) a fidelidade semântica ocorre quando o ‘sentido’ de um TP é levado para um TC; b) a fidelidade lingüístico-estrutural se dá quando os jogos de significantes no TP são preservados no TC, ou seja, “um poema cuja sintaxe esteja marcada por inversões, elipses, quiasmos, paralelismos, repetições deve traduzir-se por um poema cuja sintaxe mantenha essas marcas” (LARANJEIRA, 1993, p. 127); c) a fidelidade retórico-formal se mantém quando um soneto é traduzido por um soneto, poema em versos livres por poemas em versos livres, etc.; e d) a fidelidade semiótico-textual “justifica os outros tipos de fidelidade, que, sem ela, seria um trabalho estéril do ponto de vista da poeticidade do texto, já que ela é a responsável maior pela presença, na tradução, de uma significância homóloga e homogênea” do TP (LARANJEIRA, Ibid., p. 139), à medida que para o autor o tradutor deve realizar uma leitura que privilegie a significância do texto e não somente o sentido de vocábulos isolados.

Rónai (1981, p. 125-7) escreve que qualquer leigo, ao ser interrogado, diz que “o primeiro dever da tradução é ser fiel”. De acordo com o autor, ser fiel significa manter o sentido do TP. “Acontece, porém, que uma frase inteira pode ter vários sentidos”. Buscando uma solução para esse problema, o autor adverte que a fidelidade tem “uma obrigação dupla: para com o conteúdo da mensagem e para com a praxe expressiva da língua-alvo”.

Aubert (1989, p. 116), por sua vez, afirma que “não se pode exigir uma fidelidade àquilo que é por definição inacessível: a mensagem pretendida original”. Segundo o teórico, o tradutor deve ser fiel também às expectativas e necessidades da comunidade receptora. Ressalta, ainda, que a fidelidade ocorre quando se instaura a equivalência textual, entendida pelo autor como

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derivam das funções do texto traduzido (informativa, apelativa, metalingüística, jurídica, etc.), e do grau de identidade ou de conflito entre estas funções no texto traduzido e as funções-supostas, implícitas ou explícitas – do texto original (AUBERT, 1989, p. 117).

Por outro lado, Rodrigues atenta para o fato de que

os padrões culturais e literários são mutáveis, assim como os parâmetros para a publicação de textos, tanto os especialistas quanto os editores e os tradutores mudam suas orientações. Da mesma forma, o público pode passar a não mais aceitar determinadas traduções ou obras (RODRIGUES, 2000, p. 126).

Portanto, segundo a autora (2000, p. 126), “se a atribuição de valor a uma obra literária se faz conforme alguns parâmetros (...) seria possível pensar a avaliação das traduções nos mesmos moldes”.

Arrojo (1999, p. 38) escreve que a questão da fidelidade está profundamente relacionada com as concepções e com o contexto histórico e social de uma determinada época, isso porque o texto de partida “não é um receptáculo de conteúdos estáveis e mantidos sob controle, que podem ser repetidos na íntegra”. Se analisarmos traduções de uma mesma obra, em épocas diferentes, observaremos que cada uma delas sofrerá, por meio da leitura que o tradutor faz de seu momento histórico, influências do período em que foi traduzida.

A mesma autora (Ibid., p. 41-4), como mencionado anteriormente, complementa dizendo que é praticamente impossível ser fiel a todas intenções do autor. Isso quer dizer que, “mesmo que tivermos como único objetivo o resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse autor e de suas intenções”. De acordo com Arrojo, a tradução é fiel ao que sua comunidade instituiu como literário, ao que ela considera como literário, ou seja, a “interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos”. A autora ressalta que a tradução, além de ser fiel à leitura que o tradutor faz do TP, também é fiel a sua própria concepção de tradução. Sobre isto acrescenta que

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As polêmicas relacionadas à tradução literária continuarão a existir. Os teóricos mudarão as terminologias, debaterão sobre a possibilidade ou não da tradução literária e, em certas situações, alguns deles, radicalizarão posições, não admitindo senão a “sua” verdade. Vale lembrar, como disse sabiamente Newmark (1981), que não pode existir uma teoria que explique e defina inteiramente todo o fenômeno da tradução. Nessa mesma linha de pensamento, Baker (1999, p. 30), defende que para os estudos da tradução são muito válidas tanto as contribuições advindas da lingüística, quanto as provenientes dos estudos culturais. A esse respeito, a autora afirma que “não há necessidade de colocar diversas disciplinas em posições antagônicas, nem de opor resistência à integração das descobertas realizadas através da aplicação de diversos instrumentos de pesquisa, qualquer que seja a sua origem”.

Para finalizar essas anotações sobre as concepções de tradução, cumpre ressaltar que nenhum estudo nessa área pode relegar a importância de pesquisas sobre a intertextualidade. De acordo com Paiva (1984, p. 108), já que a intertextualidade é uma “ciência do texto que estuda a atualização da linguagem através de textos na interação comunicativa, [a mesma] pode contribuir para a ciência da tradução. (...) Pois traduzir é, sobretudo, atualizar textos da língua de partida para a língua de chegada”.

O trabalho da tradução, assim como o da intertextualidade, reside na relação entre textos. Cada texto “surge como uma nova voz (ou um conjunto de vozes) que fará soar diferentemente as vozes anteriores, arrancando-lhes novas entoações” (MOISÉS, 1978, p. 63). Portanto, não se pode, na atualidade, realizar pesquisas sobre tradução sem se ter ciência de que, seja qual for a abordagem teórica adotada, o trajeto de TP a TC é estabelecido com base na busca do maior índice de intertextualidade possível, mais alto que na citação, na paráfrase, na paródia e na estilização.

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CAPÍTULO II

A ESCRITA CLARICIANA “Os laços de família”

Este capítulo está dividido em duas partes: a primeira delas destaca algumas questões sobre a escrita de Clarice Lispector, abordadas pela fortuna crítica da autora; a segunda apresenta uma leitura do conto “Os laços de família” apoiada em considerações da crítica e observações sobre aspectos importantes ao estudo das traduções do texto, como a sintaxe, a pontuação, as notações gráficas e a coesão textual.

Opiniões da Crítica

Serão mencionados nesta seção alguns aspectos ressaltados pela fortuna crítica de Clarice Lispector como: a) a discussão sobre o estranhamento de sua linguagem; b) a aprendizagem buscada a partir de ensaios, avaliações, fracassos; c) o fazer literário; d) a tentativa de superar a linguagem através do trabalho desenvolvido entre palavra e silêncio; d) a reconstrução da linguagem por meio da eliminação do eu pessoal; e) o jogo da escrita que possibilita a idéia de narrativa aberta; f) a personagem deixando de ser agente principal; f) a busca da compreensão essencial que move todas as coisas, g) a ambigüidade proporcionada por alguns textos; h) a leitura sintagmática e paradigmática vistas como facilitadoras no processo de entendimento de seus textos e i) a meditação sobre a condição do Homem através do desnudamento das personagens. Levando-se em consideração o fato de a escritora, em alguns textos, não relegar recursos da tradição na elaboração de suas narrativas, destacaremos alguns trabalhos, realizados pela crítica literária, que discutem como a escritora interage com tais elementos no desenvolvimento de seus textos.

Como ressalta Leite (2001), questionar sobre o ato de narrar é coisa antiga. Platão e Aristóteles iniciam, no Ocidente, uma discussão que persiste até hoje, sobre qual a relação entre a forma de narrar a representação da realidade e os efeitos que a narrativa exerce sobre os ouvintes e leitores.8 No Romantismo, por exemplo, as leis de composição da narrativa dão

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lugar à verossimilhança (ilusão realista) e isso se faz em nome de Aristóteles, trazendo o velho conceito de mímesis (imitação construída através de instrumentos poéticos e não uma simples cópia). O artista deve criar no leitor a ilusão do real, fruto de uma construção. As ações e as personagens ganham lugar de destaque.

A complexidade dos novos tempos faz com que o caráter de unidade da vida e, conseqüentemente, da obra, vá se perdendo. Acentua-se a fragmentação dos valores, das pessoas, das obras. Isto faz com que essa realidade desdobre-se em tantas configurações quantas sejam as experiências de cada um. Nessa nova visão, cada indivíduo representa uma parte do mundo que, às vezes, é uma minúscula parte da realidade de cada ser. O pensamento deixa de ser único, o que era verdade para todos passa ou tende a ser verdade para um só. Se no início tinha-se um enredo que dispunha o acontecimento em ordem linear, agora esse mesmo enredo dilui-se nos feelings, sensações, percepções, revelações ou sugestões íntimas.

Frente a essa nova realidade, o tempo gasto para a realização da leitura apresenta-se como outro aspecto discutido pelos teóricos. Sobre isso, Gotlib (1991, p. 34) escreve que, para Edgar Allan Poe, o fato de o conto possuir uma extensão pequena (de meia hora a uma ou duas horas de leitura) possibilita ao escritor certo controle sobre o leitor, por serem mais raras as interrupções durante um período curto de leitura. A escritora complementa dizendo que “o conto, como toda obra literária, é produto de um trabalho consciente, que se faz por etapas, em função desta intenção: a conquista do efeito único, ou impressão total”. O escritor deve conseguir com poucos meios, o máximo de efeitos, terminando com um clímax. Conforme Gotlib, Tchekhov concorda com Poe quanto à brevidade do conto e a impressão que causa no leitor. Para o teórico, no entanto, é preciso que o conto tenha algo de novo, como força, clareza e compactação. O escritor de conto precisa controlar os excessos e o supérfluo. Sob esse ponto de vista, mais importante do que a brevidade é saber qual o impacto que o conto exerce sobre o leitor.

Por outra perspectiva, Bosi (1997) observa que o conto condensa e potencia todas as possibilidades da ficção, uma vez que nos apresenta situações reais ou imaginárias, para as quais dirigem signos de pessoas e de ações e um discurso que os enlaça.

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De acordo com o mesmo autor (1997, p. 14), a narrativa de Lispector causa estranhamento e espanto ao constatarmos "o fato banal e infinitamente misterioso de que existem, fora e além do eu, as coisas e outras consciências”.

Nota-se, portanto, que há uma busca pela compreensão da narrativa curta, bem como de seus elementos essenciais. Alguns teóricos defendem a existência de uma ação, que traduza uma mudança, seja ela de caráter moral, de atitudes ou de destino, provocando uma realização no leitor. Outros advertem que o conto mostra, justamente, a ausência de mudança e a crise. Tal idéia é bastante explorada nas narrativas de Clarice Lispector, devido ao fato de a escritora acreditar que as crises são fatais, inevitáveis, típicas da condição humana. Vale ressaltar que, nos contos tradicionais, a ação é elemento fundamental da narrativa; nos contos de Lispector, a ação é secundária; de certa forma, a escritora despreza a história, concentrando-se “nos reflexos dos acontecimentos no interior de cada personagem, dissecando emoções, sentimentos e estados de alma, mecanismos da inteligência e agonias do espírito” (SOUZA, 1989, p. 171).

Sejam quais forem os seus elementos principais, não há como negar que o conto moderno estabelece uma relação de intertextualidade (de forma e de sentido) com os contos tradicionais, aliando a estes uma experiência de caráter moderno. Nesse sentido, “o ponto de vista introspectivo (...) ofereceria o conduto para a problematização das formas narrativas tradicionais em geral” (NUNES, 1989, p. 64). O conto de Lispector, algumas vezes, apresenta uma estrutura, como no conto tradicional, de começo, meio e fim, havendo o estabelecimento de “um” conflito (principal), gerador do desequilíbrio. De acordo com Moisés (1982, p. 20), “se a paz reinasse entre as personagens, não haveria conflito, portanto, nem história”. O espaço, outro elemento essencial do conto, de acordo com o mesmo autor, é sempre restrito.

No geral, uma rua, uma casa, e, mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se organize. Raramente as pessoas se deslocam para outros sítios. E quando isso ocorre, de duas uma: ou a narrativa ´procura´ abandonar sua condição de conto, ou o deslocamento advém de uma necessidade imposta pelo conflito que lhe serve de base, vale dizer, preparação da cena, busca de pormenores enriquecedores da ação, etc” (MOISÉS, 1982, p. 22).

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A escrita de Lispector – resultante dessa relação de recursos narrativos – não propõe uma aprendizagem conquistada a partir do fácil, do já adquirido. Segundo Santos (1986, p. 75), para a escritora, “aprender não é vencer etapas para se atingir um grau máximo. É, antes, ensaiar, avaliar, fracassar, refazer: abrir vários começos”. E esse percurso rumo à aprendizagem, realizado através da narrativa, toma caminhos que, para um leitor mais ingênuo, podem não constituir sentido(s). Sobre isso, Lispector escreve: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (LISPECTOR, 1973, p. 25).

Nesse trajeto, a discussão sobre o próprio fazer literário apresenta-se em destaque na obra de Lispector, o que evidencia a plena consciência de sua técnica de escrever. De acordo com Nunes (1989, p. 65), “as peripécias da narração envolvem o dificultoso e o problemático do ato de escrever – questionado quanto ao seu objeto, à sua finalidade e aos seus procedimentos”. Lispector (1973, 1993) demonstra explicitamente esse fato nos trechos abaixo:

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente (LISPECTOR, 1973, p. 25).

É. Parece que estou mudando de modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. (...) Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. (...) E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? (...) Antecedentes meus do escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados (LISPECTOR, 1993, p. 31-3).

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antes, por meio de um instante cotidiano, “o advento de uma inusitada revelação, uma realidade que aturde” (MONEGAL, 1984, p. 242)9.

Para que possa expressar essa realidade que estonteia, Lispector trabalha alguns recursos narrativos de maneira singular. De acordo com Nunes (1995, p. 29), a escritora adota, em quase todos os contos, a terceira pessoa do singular, mas uma terceira pessoa que não se conserva de forma externa à narração. “Mas também percebe e sente com a personagem. Ora a ela aderindo, ora lhe impondo a sua presença como sujeito-narrador”. Em certos momentos, a prova desse fato pode ser verificada por meio da alternância dos discursos direto e indireto, possibilitando que a voz do narrador se confunda ou tenda a fundir-se com a voz da personagem. Logo, essa forma peculiar de escrita causa no texto certo estranhamento, levando o leitor a se perguntar de quem é a voz. Vale ressaltar que não se trata do foco narrativo onisciente da ficção tradicional; o narrador não sabe tudo e sua perspectiva, que é apenas aparentemente distante, “mergulha num desvão da realidade mais ampla, suposta pela narrativa, para assumir, em regime de perfeita empatia, o ângulo de visão da protagonista” (MOISÉS, 1989, p. 155).

O estudo sobre o foco narrativo há muito tempo ocupa lugar de destaque entre os estudiosos da teoria da literatura. De acordo com Carvalho (1981, p. 15), Pouillon desenvolve um trabalho interessante sobre o assunto, já que para o autor não importa se a narrativa é em primeira ou terceira pessoa, “o que realmente vale é a proximidade dos acontecimentos narrados em relação a um determinado ´eu` (...)”. Assim sendo, Pouillon (1974) estabelece três tipos de visões: visão com, visão por detrás e visão de fora. Na visão com, o narrador sabe o mesmo que a personagem. Já na visão por detrás, o narrador sabe tudo sobre a vida da personagem, inclusive seus sentimentos. Na terceira categoria, visão de fora, o narrador apenas descreve acontecimentos externos, não tendo conhecimento algum sobre a personagem.

Nas narrativas de Lispector, segundo Franco Jr. (1993, p. 161), a visão com

possibilita “flagrar a dimensão poética e singular do drama íntimo” das personagens da escritora. A visão por detrás proporciona um distanciamento crítico entre narrador e personagem, “capaz de barrar a identificação catártica e de introduzir uma identificação irônica entre as duas instâncias. Tal visão viabiliza considerar a vida psíquica da personagem central, refletindo sobre ela”. Delimitar quando termina uma visão e começa a outra, em certos momentos, é um trabalho árduo, pois Lispector, como já mencionado, aproxima as

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vozes, algumas vezes fundindo-as, para que o leitor tente decifrar o texto. Essa maneira de apresentar sua narrativa reflete um “modo todo pessoal de estruturar a frase e o discurso, de organizar a sintaxe, de dar relevo a certos aspectos da enunciação” (SÁ, 1984, p. 273). O narrador, além de se aproximar, de se afastar e até mesmo de se fundir com as personagens, também possui um modo próprio de narrar a história. Sobre isso, Helena (1997, p. 40) adverte que Lispector, no que diz respeito ao narrador, ora adota uma “perspectiva aparentemente clássica, costurando a trama, estabelecendo nexos mais evidentes entre episódios (...), ora pode agir movida por uma postura extremamente fragmentária” não se importando com a seqüência linear do enredo. A técnica da focalização narrativa possibilita o aprofundamento das questões psicológicas que envolvem as personagens, diante da aceitação e da passividade de suas condições na sociedade, bem como a manipulação da ordem cronológica dos acontecimentos. Helena ressalta que se, por um lado,

as personagens não completam o seu processo de despertar para a autoconsciência, nem se libertam das garras que as aprisionam, o leitor vai, por outro lado, sendo pouco a pouco conduzido a contrapor as perspectivas da ordem instituída às de um latente anseio de completude, liberdade e desvendamento (HELENA, 1997, p. 45).

Paralela à questão sobre o posicionamento do narrador, Nunes (1995, p. 83) destaca, igualmente, que o conto de Lispector segue as marcas básicas do gênero, “concentrado num só episódio, que lhe serve de núcleo, e que corresponde a determinado momento da experiência interior”. Esse episódio se estabelece a partir de um momento banal do cotidiano, gerando um mal-estar e levando à crise. Esse momento banal, no entanto, “não constitui um simples e degradante 'dia-a-dia', mas uma ação de 'vida-a-vida'" (GOTLIB, 1988, p. 20).

A leitura da fortuna crítica de Lispector, seja mais recente ou não, apresenta-se preocupada em entender sua poética. Nunes observa que encontra

no estilo de Clarice Lispector (entendendo-se por estilo aquele modo pessoal de o escritor usar as possibilidades da língua, de acordo com determinadas constantes, que correspondem a um conjunto de traços característicos) certas matrizes poéticas que indicam o movimento em círculo (...) da palavra ao silêncio e do silêncio à palavra (NUNES, 1995, p. 135).

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traço forte na escrita de Lispector, algumas vezes reiterando termos (advérbios, substantivos e verbos), membros de frases ou de frases ocorrendo em cadeia. Essa repetição dá à narrativa coesão e ritmo, aumentando a ênfase e a carga emocional das palavras. O autor complementa dizendo que “de modo geral, pode-se afirmar que a repetição está implicada no jogo entre palavra e coisa que integra o processo narrativo”. Isso porque, “onde acaba a repetição, começa o silêncio” (NUNES, 1995, p. 138-9), constituindo um dizer expressivo e revelando-nos a escrita que permeia o estilo de Lispector. Essa relação entre fala e silêncio pode ser observada, também, segundo o autor, por meio do uso dos travessões e reticências, precedendo o início brusco do texto e interrompendo-o no final. A escritora busca com isso superar as limitações da linguagem; fato que não é compreendido como negativo, uma vez que, de acordo com a personagem principal de A Paixão Segundo GH (1979), só através do fracasso da linguagem o indizível pode ser dito. A esse respeito, Nolasco (2001, p. 42) observa que “essa realidade indizível, no texto clariceano, equivaleria, por assim dizer, ao silêncio que não corresponde ao fracasso da linguagem, mas à própria significação escritural”, ou seja, o silêncio geraria significado(s). De qualquer forma, vale ressaltar que essa idéia de fracasso da linguagem só ocorre por existir uma reflexão intensa no que diz respeito ao processo de escrita, que possui, por sua vez, uma lógica muito bem desenvolvida: “Por enquanto há diálogo contigo. Depois será monólogo, Depois o silêncio. Sei que haverá uma ordem” (LISPECTOR, 1973, p. 55).

Lispector busca na escrita um meio de compreensão do mundo. Diante desse grande desafio, a escritora trabalha com seus textos de maneira que os mesmos possam gerar, assim como o mundo, alguns questionamentos. Dessa forma, é próprio de Lispector fazer experimentações relacionadas à pontuação, à estrutura sintática, aos vocábulos, ao discurso, bem como à estrutura narrativa. “Para Clarice Lispector, as palavras, na verdade, são precárias e insuficientes, incapazes de representar a coisa; sucedem-se na trilha do indizível e do que não é possível narrar” (ALMINO, 2000, p.74). Devido a essa precariedade, os vocábulos, muitas vezes, “são obrigados a perder o seu sentido corrente, para se amoldarem às necessidades de uma expressão sutil e tensa, de tal modo que a língua adquire o mesmo caráter dramático que o entrecho” (CÂNDIDO, 1970, p. 129).

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24). Lispector pretende, na verdade, compreender aquilo que se coloca como complexo e contraditório. “Em cada objeto vê, não o que o iguala a outros de sua espécie, mas o que o diferencia. Em cada ser, o que o torna único. Em cada emoção, o que a torna específica” (SOUZA, 1989, p. 171). Por isso, a preocupação com a linguagem, com a maneira de sentir e dizer perpassa toda a obra de Lispector. Tanto que em crônica denominada “Fernando Pessoa me ajudando”, a escritora recorre ao poeta para refletir sobre a escrita e suas “implicações com a noção de sinceridade e fingimento”. Gotlib relata que

enquanto a linguagem teórica e dogmática de Fernando Pessoa propõe a arte como “representação simultânea da paisagem exterior e da paisagem interior”, (...) a linguagem por vezes mais solta dos textos de cunho jornalístico de Clarice lhe traz sua imagem ao espelho, com a “alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo”, afirma, em “A Surpresa” (GOTLIB, 1989, p. 139-40).

A tentativa de mostrar a figura interna através da externa pode ser observada pela constante busca em se eliminar o “eu” pessoal. Nolasco (2001) afirma que Lispector recortou o texto inicial do livro Água Viva, na tentativa de rasurar o "eu" pessoal. Tomemos como exemplo a voz da narradora: “Repare que não menciono minhas impressões emotivas: lucidamente falo de algumas das milhares de coisas e pessoas das quais tomo conta” (LISPECTOR, 1973, p. 73). O mesmo autor (Ibid., p. 197) afirma que “o leitor, assim, é tomado pelo jogo escritural que se encena, e é preciso aprender a jogar, a jogar com a escritura, encenar sua leitura, enfim”. Esse modo de compreender o texto de Lispector afasta de sua obra a idéia de narrativa fechada; prevalecendo, portanto, a noção de inacabado, de continuidade, de reinício. Cada leitor inicia o jogo que não vai mais acabar.

Buscando criar no texto tais características, Lispector, de acordo com Lucas (1987, p. 46-7), de modo geral, despreza a seqüência narrativa (de começo, meio e fim), a personagem não é mais o agente principal “condutor da ação e do relato” e ocorre o “desfazimento da figura do herói”. O herói da idade épica é alguém de destaque, que consegue retomar sua felicidade, após vencer algum(ns) desafio(s).

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A crise de identidade que a personagem passa a ter a partir dessa época gera uma divisão interior da personalidade “na relação sujeito-objeto na mente, na separação de pensamento e ação, e do ser e da imagem (a grande problemática do espelho, tão nítida em alguns trabalhos de Clarice Lispector)” (LUCAS, 1987, p. 49). A reflexão que se instaura com relação à personagem em busca de si mesma é objeto constante da ficção contemporânea. Lispector inicia seu trabalho, portanto, em uma época marcada pela crise do enredo e da personagem. A linguagem se torna um processo de descobrimentos contínuos, chegando, algumas vezes, a nos mostrar a sua fragilidade frente ao inexprimível, causador do silêncio.

Vale ressaltar que esse processo pelo qual passam suas personagens é fruto de uma tensão conflitiva, que surge a partir de um momento banal, como mencionado anteriormente, estabelecendo uma ruptura da personagem com o mundo. Tal ruptura ocorre quando mulheres e homens mergulham por um instante em um cotidiano que, de repente, lhes apresenta algo inominável e ameaçador. A sensação de perplexidade diante do fato faz com que essas personagens, nesse determinado momento, se distanciem do mundo e delas mesmas, renunciando à linguagem e deixando prevalecer o silêncio. Esse “distanciamento”, no entanto, ocorre quando a personagem, ao olhar o outro e a si própria, sofre “um momento de lucidez plena em que o ser descortina a realidade íntima das coisas e de si mesmo” (JOZEF, 1987, p. 78). Partindo de tais instantes, Lispector analisa as consciências de suas personagens que, levadas a uma situação extrema, são projetadas “além de si mesmas, do tempo e do espaço”. A escritora, em meio a essa busca existencial, realiza um modo próprio de escrever, surpreendendo a condição humana e revelando “a solidão do ser em todas as suas dimensões” (JOZEF, 1987, p. 67 e 79). Em Água Viva lemos: “Não te desejo esta solidão. Mas eu mesma estou na obscuridade criadora. Lúcida, luminosa estupidez” (Lispector, 1973, p. 42).

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algumas vezes, no leitor a sensação de vazio. Esse instante de lucidez é interrompido quando ocorre o retorno ao ponto inicial, que é a vida cotidiana, daí a idéia de circularidade.

E, nesse limite, o enunciado (a metonímia, a sinédoque, a articulação entre as partes na linha do discurso, do sintagma) e o paradigma (a metáfora, o delírio, a condensação, a poesia, o silêncio e a auto-referência) dobram-se entre si, numa escrita que procura conter e ser contida, mas incontinente escapa em busca do inefável e do inominável, assim como dela escapam o figurativo e o real que ela quer nomear e representar. (...) Há em sua obra uma educação pelo obstáculo, na qual se procura avançar o limite da linguagem e da significação, até o impronunciável (HELENA, 1999, p. 65).

Essa procura pela nomeação do inefável e do inominável realiza-se por meio de uma escrita que se apresenta através de vocábulos simples, representando o cotidiano de homens e mulheres, em geral da classe média. Desse cotidiano, todavia, surge algo (um pequeno detalhe) que deflagra o conflito de relações entre as personagens e destas para com o mundo, desestabilizando o equilíbrio inicial. O leitor, assim, é convidado a decifrar o jogo estabelecido por sua narrativa.

Segundo Sá (1999), na obra de Lispector as indagações sobre o ser/linguagem, o

existir/escrever, o sentir/pensar percorrem suas narrativas, estando todas interligadas. E de tal maneira que se torna difícil desvincular uma idéia da outra: “o que estou te escrevendo não é para se ler – é para ser” (LISPECTOR, 1973, p. 44). A escritora denuncia “tanto o ato de escrever como o de ler (...) em agoniado confronto com o ser e o viver” (SÁ, Ibid., p. 16). Esse processo ocorre, de acordo com Sá, por meio de procedimentos que envolvem o pólo epifânico (revelador do ser num dado momento) e o pólo paródico que é “constituído pela paródia séria, não burlesca, que denuncia o ser, pelo desgaste do signo, desescrevendo o que foi escrito, num perpétuo diálogo com seus próprios textos e com outros textos do universo literário” (SÁ, Ibid., p. 15).

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O ato de escrever representa, antes de tudo, uma experiência de abertura do homem ao Ser, um processo de conscientização ou de auto-iluminação interior, provocado por um fato externo e extraordinário: o acaso, desencadeador da vivência trágica e nauseante da realidade, o mergulho introspectivo e o descobrimento da verdade existencial (SZKLO, 1979, p. 7).

Por isso, os contos de Lispector, de acordo com Szklo (1979, p. 7), deixam em nós “a estranha sensação do já-dito, da experiência já vivida em que o reconhecimento nos traz um certo desconforto”. Vale comentar, no entanto, que algumas vezes Lispector deixa explicitamente mencionado que a escrita é insuficiente para expressar e desvendar os mistérios interiores que tangem o homem. Em carta redigida ao amigo Fernando Sabino, a autora escreve: “Já me perdi em tantos pensamentos que se afinal eu pudesse fazer uma confissão que salvasse tudo, não saberia fazer. Era preciso que alguém desse as primeiras palavras ou todas por mim” (SABINO, 2001, p. 36).

O desconforto que sente o leitor diante de seus textos é gerado em virtude de as narrativas serem deslocadas, oblíquas, obscuras, mesmo quando a escritora utiliza-se de vocábulos de fácil entendimento, o que mostra uma busca incessante pela compreensão dos seres e do mundo. Indivíduos que, no princípio, vivem uma situação de “estabilidade”, mas que de repente têm a sua atenção desperta por algo do cotidiano que os desestabilizam. Lispector não quer, como já mencionado, estabelecer doutrina de espécie alguma, os seus livros inserem, de acordo com Helena (1997, p. 36-7) “questões candentes como a culpa original, a náusea, a origem da vida e da criação e a pergunta pelo sentimento da existência”

no cotidiano, por meio de uma linguagem profunda. A mesma autora complementa dizendo que Lispector registra, assim, a “luta dos seres frente a falta de correspondência entre a consciência e o sentido, entre os nossos projetos e o mundo”.

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A primeira se refere a um jogo de envolvimentos contínuos entre estados de exterioridade e interioridade atrelados ao próprio indivíduo Clarice Lispector. A segunda aponta para a supremacia que o seu discurso literário devota ao interior em relação ao exterior. A terceira, ao serem relacionados tais estados, culmina por associar elementos de categoria real a elementos de categoria ficcional (ROSSONI, 1998, p. 20).

Isto nos leva a pensar que a sensação de inquietação e de questionamento que o leitor sofre ao se aprofundar no texto clariciano é conseqüência dessa forma peculiar de escrita, que valoriza os acontecimentos interiores das personagens, usando o exterior – tudo que se coloca fora do ser, incluindo-se aqui a escrita – como desencadeador do processo de busca pela compreensão do indivíduo. De acordo com o mesmo autor, a produção literária de Lispector possui um tom filosofante

que se caracteriza pela intenção de ampliar a compreensão das coisas e buscar apreendê-las em sua totalidade, no que se refere à causa primeira, à realidade suprema, ao ser Absoluto. Assim, o seu texto pode ser concebido como uma ação que se põe a caminho da essência das coisas existentes em seus movimentos interiores (ROSSONI, 1998, p. 22).

Os textos de Lispector apresentam, em certos momentos, uma ambigüidade, elemento do jogo narrativo, que amplia o poder de significação do texto. Isso ocorre em função de o ato de escrever assumir condição de algo inesperado e revelador, bem como quando diante da insuficiência da palavra, apresenta-se o silêncio, por meio de interrupções bruscas ou de interrogações não respondidas. Não se pode afirmar, entretanto, que o objetivo de sua obra seja questionar aspectos filosóficos, nem tampouco mostrar através da literatura o real da vida cotidiana, como observa Sant´Ana:

Neste sentido, seus contos são opacos. Não transparecem a realidade real; trabalham sobre uma realidade simbólica. Seus referentes são específicos. Ao texto especular, realista e simples, Clarice prefere o texto expressionista, simbólico e complexo (SANT´ANA, 1973, p. 184).

Referências

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