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Histeria e feminilidade.

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Academic year: 2017

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RESUMO:Discu te-se a fem in ilidade n os dias de h oje a partir da abertura discursiva introduzida pelos estudos sobre a histeria, de Freud. A própria definição da clínica psicanalítica é rem etida às m odalidades de defesa con tra a posição fem in in a e ao qu e ela veicula de diferença radical, aqui associada à castração. Mediante apresentação de um a “nota” clínica, aborda-se a fem inilidade frente à inscrição e à relação dos sexos, evidenciandose a função sim -bólica de um a m ãe. A posição fem inina na transm issão é tratada pelo viés da nom eação. A pesquisa clínica sobre a histeria indica que a posição fem inina subm etida à castração sim bólica revela-se condição da flexão do nom e e produção de diferença.

Pa lavra s - c h ave : histeria, fem inilidade, castração.

ABSTRACT: Histeria and fem ininity. The article discusses fem ini-nity in the contem porary w orld from the point of view of Freud‘s Studies on Histeria. The definition of the psychoanalytic clinical practice itself is referred to the m odes of defense against the fem i-nine position and the radical difference it im parts. The latter here is associated to castration . Usin g th e presen tation of a clin ical “ note” , it approaches fem ininity in face of both inscription and sexual relations and highlights the sym bolic function of the m other. The fem inine position in transm ission is treated through nom i-nation. The clinical research on histeria indicates that the fem inine position under sym bolic castration reveals the conditions for the utterance of the nam e and for the production of difference.

Ke y w o rds : histeria, fem ininity, castration.

PALAVRA DE MULHER

Quem negaria, hoje em dia, que as relações entre hom ens e m ulheres se transform aram profundam ente há pelo m enos um século? Quanto a determ inar as razões e as causas, as análises divergem , algum as privilegiando os fatores

econô-Psicanalista e Psiquiatra em Paris.

Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro

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m ico e social, outras considerando, antes, as im plicações religiosas e, outras ainda se referindo a um a m udança da discursividade cujas raízes seriam bem m ais antigas.

As lutas que desde m eados do século passado tiveram por objeto a “causa das m ulheres” visavam , a princípio, sua integração profissional, o direito de voto, a igualdade das chances, etc. Tais reivindicações só puderam vir à baila graças a um a transform ação política ím par, sendo a instauração de um regim e dem ocrático nos Estados Unidos da Am érica e a Revolução Francesa apenas seus sinais anunciadores. Do ponto de vista da dem ocracia, o Novo Mundo é, de fato, o m ais antigo. Se os Estados Unidos de hoje ocupam o lugar que é o seu, é graças a suas instituições e ao funcionam ento destas, tanto quanto ou até m es-m o es-m ais do que devido a seu peso econôes-m ico e es-m ilitar. Se eles por acaso abusassem dem ais disso, com o sem pre tendem a fazer os poderosos do m undo, seria o prelúdio de seu declínio, com o já ocorreu tantas vezes na história da hum anidade. É surpreendente que seja nesse país que as m ulheres tenham pela prim eira vez adquirido o direito ao voto, em 1869, em um estado do Far West, o Wyom ing, a leste do Grande Lago Salgado ( é verdade que esse estado só se juntou à União em 1890) . Tam bém nesse país, departam entos de W omen Studies

foram organizados e desenvolvidos com resultados por vezes surpreendentes, m as nem sem pre desprovidos de ranços ideológicos.

Foi nesse contexto da dem ocratização — cujo m ovim ento com eçou há m ais de dois séculos e está longe de acabar — , portanto de um a relação diferente com a lei e com a autoridade ( política e religiosa) , que um questionam ento da posição tradicional da m ulher em nossas sociedades ocidentais se tornou possí-vel, sem correr grandes perigos. Estes eram bem reais, se considerarm os os procedim entos brutais e os m étodos expeditivos em pregados pela Inquisição na Europa, desde o século XIII. Em bora ela tenha sido contrariada pouco a pouco pela centralização do poder real na França e pelo advento da Reform a em outros países, a Espanha seguiu um ritm o m ais lento e continuou a enviar m ulheres e hom ens para a fogueira, até o século das luzes; suprim ida inicialm ente em 1813, depois restabelecida por Ferdinando VII, a Inquisição só foi abolida defin itivam en te em 1 8 3 4 ( MORELLET, 1 9 9 0 ; BENNASAR,1 9 7 9 ) .1 Daí para

Wyom ing, que passo! Isso nos dá um a pequena indicação sobre o tem po que as coisas levam para evoluir, as idéias novas para abrir cam inho e os hábitos para m udar. Mesm o não sendo m ais perseguidas e condenadas com o bruxas, as m ulheres não viam seu status m udar fundam entalm ente; as instâncias política,

1Ver Morellet ( 1990) “ Abrégé du Manuel des Inquisiteurs” , 1762, que é o resum o em língua

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jurídica e religiosa, as disposições m entais, sobretudo, que outrora as haviam julgado, não tinham desaparecido de um dia para o outro. Os discursos dom i-nantes sou beram se m an ter su bjetivam en te, qu an do n ão in stitu cion alm en te, p o r m u ito tem p o além d a extin ção d as ú ltim as fo gu eiras d a In q u isição. Con sideran do a história recente, não é proibido fazer a aproxim ação com as fogueiras ainda m ais terríveis que inflam aram nosso século e incendiaram e ensangüentaram o Antigo Mundo, que vom itou sua alm a nos cam pos de exter-m ínio da Polônia.

Chegar até a elim inação física daquelas pessoas cujas únicas arm as eram o sexo e a palavra, m ostra bem a que ponto elas eram consideradas am eaçadoras para a ordem estabelecida e para os discursos em vigor. Mesm o se no Ocidente as coisas tenham evoluído m uito, sobretudo desde a Segunda Guerra Mundial, o m esm o não aconteceu em outras regiões do globo. Entretanto, vale ainda per-guntar por que foi preciso esperar a derrota nessa guerra para que as m ulheres, enfim , obtivessem o direito de voto, na França e em outros países. O lugar dado às m ulheres e ao fem inino é sem pre sintom ático de um a estrutura social, dis-cursiva ou subjetiva. O Ocidente, até nossos dias, não se esforçou para estudar o pensam ento de um a excepcional riqueza sobre o status da m ulher, elaborado na discussão dos sábios do Talm ude, entre os séculos II e V de nossa era. Freud ( 1897/ 1986) , por sua vez, não se enganou ao reconhecer nas bruxas de pios teólogos e de zelosos juristas o papel de ancestrais e precursoras das histéricas de doutos m édicos, estabelecendo, além disso, um paralelo entre a sina reserva-da às m ulheres e o lugar atribuído aos judeus nas sociereserva-dades ocidentais ( FREUD, 1909/ 1941) . Ele se deixou ser ensinado por essas “bocas de ouro” ( LACAN, 1991) que foram suas prim eiras pacientes, que não teriam tido direito à palavra em nenhum dos discursos tradicionais e que a m edicina de seu tem po só estava pronta para acolher com reserva. Qualificá-las de histéricas, com efeito, não deixava de ter um a conotação pejorativa; o que obrigatoriam ente não m udou desde então. Apesar de tudo, tal diagnóstico, tornado freudiano, m ostra-se m e-lhor e às vezes até m esm o ostensivo. Para alguns, ele serve para designar a m elhor estrutura possível ( portanto relação do sujeito com o desejo) que há, para opô-la a estruturas m enos nobres; outros tornaram -se verdadeiros m ilitan-tes da histeria. Ponto de partida da psicanálise, ela parece tam bém ter se torna-do seu térm ino; assim som os levatorna-dos, no rastro de Lacan, a defini-la com o um a

histerização do discurso.

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toda tentativa de controle, conceitual ou não, já que nesse nível tudo é m etáfo-ra. Daí tam bém a dificuldade para o historiador em localizar seus vestígios no passado, com o observam Duby e Perrot ( 1991) : ela foi relegada às m argens da h istó r ia, o n d e só ir ro m p ia acid en talm en te, e p assa através d as red es d a historiografia clássica, ligada, antes, aos fatos de guerra, aos atos políticos ou às exações religiosas. Para saber m ais sobre isso, foi preciso, em prim eiro lugar, que alguém desse crédito a um a palavra de m ulher, considerada pouco digna de confiança, ao contrário da do hom em , supostam ente direita ( essa palavra, bas-tante evocadora, m ereceria ser explorada de m odo m ais am plo) . Ela quase não teria tido chance de se fazer ouvir por um representante de um dos grandes discursos, político ou jurídico, filosófico ou teológico, que, aparentem ente, no final do século passado, tinham ainda suas am arras sólidas na sua tradição m etafísica. A m edicina não estava m elhor preparada para receber essa palavra insensata, ainda que estivesse se transform ando da cabeça aos pés, graças à cientificidade nova de seus m étodos de investigação que ganhou um im pulso excepcional e durável graças aos trabalhos de Helm holtz e de Dubois-Reym ond, em Berlim , e de Claude Bernard, em Paris. Foi através de Brücke, representante deles em Viena, que Freud foi introduzido nesse novo paradigm a científico que pouco a pouco livrou a m edicina de seus pressupostos e preconceitos tradicio-nais para lhe conferir, em com pensação, um brilho e um prestígio jam ais atin-gidos. Não é de se surpreender que esse filho de im igrantes em busca de reco-nhecim ento tenha desejado tornar-se, por sua vez, m estre de um a disciplina ornada com tal auréola.

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Mesm o se o “prim eiro” psicanalista não se livrou de todas as prem issas da m etafísica — Alexandre Koyré ( 1957) dizia, com bastante hum or, m ais ou m enos a m esm a coisa de Copérnico — reconheçam os sua coragem extraordi-nária de ter sabido estar na ponta da subjetividade de sua época, aventurando-se para além dos lim ites, im postos pela tradição, entre os diferentes cam pos do saber que seus representantes defendiam com o um a aquisição que lhes caberia de direito. Freud não se apropriou da histeria com o de um território a ser conquistado, m as a abordou, antes, com o um discurso a ser descoberto e estu-dado. Deixando-se ensinar por essa palavra incôm oda e inaudita, inqualificável e inclassificável, quando não no m odo do opróbrio ou da exclusão, ele pôde achar aí a fonte de inspiração para a elaboração de um a nova discursividade. Esta, entretanto, não se im pôs de um a só vez e Freud é, apesar de tudo — poderia ter sido de outro m odo? — um filho de seu tem po. Os abalos econôm i-co e social que se produziram ao longo do século passado, em prol da industria-lização e da colonização, foram apenas m eros precursores das catástrofes polí-ticas e hum anas de um a ordem bem diferente que m arcou esse século, que viu surgir m estres bem m ais ferozes que os antigos. Um a análise sum ária veria aí com o um últim o sobressalto dos traços m ais virulentos e m ais destruidores de um a virilidade, já abalada e atingida em seu status, cuja desm esura só era igual à sua fragilidade. “A m ulher”, quanto a ela, seria m ais pacífica?2

Canetti ( 1960) tinha razão de atribuir à paranóia um a dim ensão política, com o ele expõe na últim a parte de sua obra princeps referindo-se particularm en-te ao “caso Schreber”: “Encontrarem os em Schreber um sisen-tem a político que nos parece ser terrivelm ente fam iliar.” ( “M an wird ein politisches Sy stem bei Schreber

finden, das einen unheim lich vertraut anm utet”, p. 198) . Ao m esm o tem po que m

enci-ona seu projeto delirante de se transform ar em m ulher, ele refuta, categorica-m ente, a tese freudiana da paranóia cocategorica-m o defesa contra a hocategorica-m ossexualidade: “ Não é possível com eter u m erro m aior” ( “ Ein grösserer Irrtu m ist kau m m öglich” , p. 506) . O interesse para nós das “ Mem órias de um nevropata” ( SCHREBER, 1903) é que o sistem a que elas expõem realiza no plano do delírio aquilo a que a histeria acede em outro registro, o da fantasia, a saber, a subm is-são à posição fem inina, contra a qual ele, de início, tanto se defendeu, fazendo-a sufazendo-a. Alguns perversos, pfazendo-arfazendo-a chegfazendo-ar fazendo-ao m esm o resultfazendo-ado, são obrigfazendo-ados fazendo-a colocá-la em ato no real de seu cenário. O discurso am biente lhes é favorável atualm ente e conduziu o legislador, em alguns países, a tomar medidas que visam proteger sua posição e até m esm o dar-lhe um estatuto próprio, o que há bem pouco tem po teria sido literalm ente im pensável. Por todos esses m otivos, é sobre as perver-sões e o que elas im plicam que as questões teóricas e discursivas parecem ser as

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m ais im portantes no futuro, com o foi o caso para a histeria há um século, e para as psicoses, desde os anos 1950.

Os freudianos são pegos de surpresa por um a m odernidade, que eles contri-buíram para m odelar, e por um a fem inilidade, que até então não tinha ousado se dizer e se m ostrar, que estavam , no entanto, entre os prim eiros a pôr em evidência; eles tinham até m esm o lhe reconhecido um lugar de destaque colo-cando-a no centro de seu projeto clínico e terapêutico. Eles se sentem ultrapas-sados ao ver exposto à luz do dia aquilo que para eles constituía um dos nú-cleos do recalque e se interrogam , alguns ao m enos, sobre sua parte de respon-sabilidade nesse “retorno do recalcado”, surpresos, às vezes abalados, por en-contrar na prim eira esquina a bissexualidade, cujo cam inho eles tiveram de abrir com am argas lutas teóricas e que correspondia a suas hipóteses m ais ousadas. Tratar-se-ia do disfarce/ desvelam ento m ais recente e m ais provocador da histeria jam ais dom ada? Eles se encontram , às vezes apesar deles, no lugar do filho m ais velho ou do ancestral, que, de certa m aneira, eles sem pre ocupa-ram e até m esm o reivin dicaocupa-ram , para assistir, im poten tes, a efeitos de seu ensinam entos que eles não tinham nem previsto, nem desejado, ao m enos nessa form a. Não há dúvida algum a de que um a certa m odernidade se inscreve, aber-tam ente, no avesso de seu discurso, reivindicando-a im pliciaber-tam ente até nos m enores detalhes. Esta relação com plexa não deveria lhes causar m edo, já que ela constitui um a chance e um a espécie de desafio que lhes cabe indicar, talvez um “convite à viagem ”, que pode lhes perm itir fazer novas descobertas. No entanto, eles nada têm a esperar de um puro debate das idéias, m as deveriam voltar ao que constituiu seu ponto de partida, a saber, o estudo e a pesquisa clínicos, verdadeiras m arcas de sua originalidade.

A clínica psicanalítica se definiu, com o indicado, segundo um leque m ais ou m enos am plo das m odalidades de defesa contra a posição fem inina e o que ela veicula e im plica, quer dizer, um a diferença radical que associam os com a

castração. Este últim o term o é um dos m ais debatidos e dos m ais controvertidos

tanto pelos freudianos quanto por seus adversários. A seguir, vou tentar, a partir de um a nota clínica, dar m inha contribuição a esse dossiê já bem extenso. Será m in h a m an eira de h om en agear essa form idável abertura discursiva in du zida e introduzida pelos “ Estudos sobre a histeria” , publicados há exatam ente um século. Essa abertura atraiu para a psicanálise grandes hom ens e m ulheres, m as tam bém teve com o efeito repelir outros que em vez de consistência e univocidade só encontraram m etáfora escorrendo entre os dedos, com o areia, escapando assim a seu esforço de dom ínio ou de “ apreensão” ( no sentido de concipere, begreifen) .

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inscrevem de m aneira particular no tem po e continuam a significar fora do contexto de sua em ergência, ao qual, todavia, é indispensável poder levá-los de volta, em últim a instância. Eles contribuem para determ inar a especificidade de um dado cam po, assim com o seus lim ites, estabelecendo pontes com outros dom ínios do saber. No que toca a psicanálise, tal função só lhes cabe em sua relação privilegiada com a castração, que designa um lugar vazio situado no centro de um dispositivo term inológico. É com o se a posição fem inina, que entrou desde o início na textura desse discurso que ela contribuiu para tecer, m ais se aproxim asse dele. Daí resultou um a dificuldade própria ao discurso freudiano, que foi a de tem atizar o que se encontrava em sua origem . O que se deixou “apreender” com m ais facilidade é o que cham am os de histeria, tanto a do hom em quanto a da m ulher. Não é o m enor m otivo para se interessar por ela e estudá-la, não esquecendo que ela é, de início, definida com o m ecanism o de defesa contra a posição fem inina. Não está excluído, entretanto, que tal aporia, que foi pouco evidenciada, possa conduzir a um im passe teórico.

INSCRIÇÃO E RELAÇÃO DOS SEXOS

Vam os dar agora a palavra a essa jovem analisante no início dos trinta anos e m ãe de um a m enina cujas palavras aparentem ente contraditórias refletem bem o paradoxo da posição fem inina no que concerne à relação dos sexos. Ela diz, a um só tem po, que nunca teve orgasm o e que acaba de ter um a m aravilhosa noite de am or, que ela é fria e insaciável, que lhe acontece ficar frustrada e satisfeita com o ato sexual. Ela acrescenta que descobriu sua sexualidade tardia-m ente, que esperou até seus vinte e dois anos, idade de suas pritardia-m eiras relações, antes de “se tocar” e que suas tím idas tentativas de se m asturbar pouco lhe deram prazer. Em seu idiom a, para falar de seu sexo, ela utiliza um significante que se aproxim a do alem ão Scheide, vulva, term o de um a grande riqueza, que poderia por si só constituir, com o que ele evoca ou im plica, o ponto de partida e o suporte de todo um desenvolvim ento sobre a sexualidade, em particular a fem inina.3Scheide quer dizer, com efeito, estojo, bainha, capa, m as tam bém fen-da e sobretudo lim ite, fronteira, separação. O cam po sem ântico coberto por esse term o designa os cortes essenciais que escandem a vida do sujeito e se estende até suas extrem idades. Eis dois exem plos disso: de verscheiden, m orrer, só a form a do particípio, com valor adjetivo, verschieden, tem uso corrente e signifi-ca, a um só tem po, diferente e m orte; unterscheiden, diferenciar, perm ite nom ear as diferenças dos sexos e das gerações, portanto os fundam entos do sim bólico;

3Acrescentem os ainda, no rastro do que precede, que de Scheide é tam bém derivado Scheit,

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nesse contexto se situa, igualm ente, a significação jurídica de Scheidung, divór-cio. Esse lugar de onde toda vida em ana seria tam bém aquele onde ela vem fracassar? É, provavelm ente, o receio de m uitos neuróticos e tam bém o que poderíamos ouvir nessa exclamação do Coro, em “Édipo em Colônia”, lamentan-do-se sobre o herói trágico esgotado e em fim de linha: “Não nascer (m è phunai), eis o que vale m ais que tudo. Ou ainda, vindo à luz, voltar de onde se veio, o m ais rápido possível, é a sina a ser colocada logo depois.”( SÓFOCLES, p.129) .

O NOME INDIFERENCIADO

A analisante dem orou para avaliar a que a expunham a descoberta e a conside-ração de seu sexo, esse ponto de partida de todas as espécies de diferenças e de distinções que, até então, ela havia tentado evitar com todo o cuidado, m as sobre as quais ela devia se render à evidência, repousa o “m undo”. Pouco a pouco ela se abriu para a am plitude do questionam ento que daí resulta. Ela achava sua situação im possível e inaceitável; ela a tinha, no entanto, escolhido e desejado, até em seus m enores detalhes. Ligava-se ao pai de sua filha, com m ais ou m enos dois anos no início do tratam ento, por um a relação física m uito forte, m as igualm ente efêm era. Ela sabia, pertinentem ente, que esse hom em , que já tinha um filho quase adulto e que havia deixado a m ulher há anos, não procu-rava de m odo algum um a ligação estável e durável; isso contribuiu, com certe-za, para tornar as coisas possíveis para ela. Ela havia chegado, além disso, ao fim de um a longa relação com um hom em com quem ela acabava de construir um a casa pronta para ser habitada. Quando ficou grávida, já que não tinha tom ado a precaução de se proteger durante as relações, ela deixou o am ante, sem lhe dar a m enor explicação. Ele tam bém não pedira, m as não havia desapa-recido com pletam ente de sua vida; ela continuava, entretanto, escondendo dele que ele era o pai de um a m enina. Tam bém não revelou a m enina a identidade do pai. Contudo, a questão a havia preocupado o bastante para que ela decidisse vir m e consultar.

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Essa utilização do nom e, com várias variantes possíveis, é bastante freqüente hoje e parece, portanto, ser relativam ente anódina. Não deixa de ser um abuso, e em certas condições um a usurpação do nom e, com conseqüências im previsí-veis para a geração ou as gerações vindouras. É óbvio que é m elhor para um a criança ter o nom e de seu pai, a fim de ser inscrito em um lugar diferente do discurso m aterno, do qual será m ais fácil para ela se separar em seguida. Se a criança tem o nom e de solteira de sua m ãe, é com o se esta tivesse ficado grávi-da do nom e de seu próprio pai, que, em todo caso, ocupa o lugar grávi-daquele de onde a transm issão procede. A fantasia, de m odo quase obrigatório, se apodera dessa constelação, que é a do incesto. O resultado pode ser um a indiferenciação dos nom es e um a confusão dos lugares. A coabitação aqui é um fator de com -plicação suplem entar. A criança, cedo ou tarde, será confrontada com a questão: quem é quem ? (who is who?) . Foi o que aconteceu com essa outra analisante, antiga anoréxica, que durante m uito tem po ficou profundam ente fixada no discurso parental. Com vinte anos apenas, ela teve um a filha de um jovem psicótico, que encontrou... no consultório de um terapeuta precedente, tendo continuado a viver na casa dos pais e de sua avó m aterna. Seu pai, quase todos os dias, ia visitar sua própria m ãe que m orava perto dali. A analisante obstinou-se, com êxito, em evitar qualquer contato e, portanto, a tornar im possível qual-quer relação com o pai de seu filho. Quando, no final de um certo percurso analítico, ela deixou a casa da fam ília, escolheu, de início, um apartam ento, a dois passos de sua casa e que pertencia a seus pais. Em seguida com eçou a viver com um hom em um pouco m ais velho, que veio m orar em sua casa com o filho, um jovem adolescente. Essa nova constelação acarretou m udanças notá-veis, sobretudo em relação aos lugares ocupados por cada um dos protagonis-tas. A jovem m ãe ficou siderada ao ouvir sua filha dizer, depois de um certo tem po de vida com um : “Um papai não é, então, um vovô.” Ela teve que se render à evidência de que até então sua filha, que tem seu nom e de solteira, havia vivido na confusão, alim entada por ela, desses dois lugares e papéis per-tencentes a duas gerações diferentes.

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prim eira m orada e com o talrepresenta a m orada sim plesm ente, a do sujeito, em sua relação fundam ental, m as não exclusiva, com o fem inino e com o m a-terno. Eis por que a tradição diz que a m ulher é o baït ( a casa) do hom em ; isso deve ser considerado em toda abordagem do lugar da m ulher na transm issão. Ora, a clínica nos ensina que a escritura não sim boliza nada. O analisante que anota seus sonhos, no m ais das vezes, não faz m ais que consolidar sua resistên-cia e sua oposição a que eles possam ser interpretados. A sim ples transcrição em um a linha fam iliar não basta para dar acesso à m etáfora ( paterna) , que é a única em condições de ratificar, de validar retroativam ente (nachträglich) essa “escritura prim eira”. Isso nos sugere que a escritura interviria antes do lado da m ãe e sua interpretação antes do lado do pai; o que perm itiria com preender m elhor certos percursos de escritor. Dizendo de m aneira m ais im agética, no contexto dessa digressão sobre a letra, desenhar a curva da barriga ou a da gravidez é apenas o ponto zero de um a seqüência tem poral m uito precisa, o prelúdio a um a sucessão de acontecim entos tão significativos, que eles são tão m etafóricos quanto reais: a abertura da fenda e a ruptura das águas, expulsão, corte do cordão e prim eiro grito, abertura das m em branas alveolares e passa-gem do ar, evacuação da placenta, nom eação em seguida e inscrição em um registro ( do estado civil) . É com o um a porta que se abre para outra porta que se abre para outra ainda, etc.

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se ela fosse anim ada por um a obstinação ferrenha de sobretudo não se abrir para outrem , para o tem po e para si m esm a.

Foi para salvar um laço ancestral que ela se entregou a esse perigoso exercí-cio de escritura, o de inscrever o nom e de seu próprio pai para sua filha. Sua sintom atologia, antes de tudo sexual, encontrou aí um ponto de apoio sólido. A prática analítica, por sua vez, fica suspensa nessa escritura, prelúdio de todas as outras, do nom e próprio, cuja lógica — outra m odalidade da escritura — da incidência na vida do sujeito ela evidencia, juntando a ela, todavia, um a dim en-são oral suplem entar. Ela acrescenta ao texto o que não se encontra nele, para introduzir aí um a abertura para um a coisa diferente dele próprio — é o que cham am os de interpretação. Este acréscim o, precedido, no m ais das vezes, do sinal da negação, perm ite ouvir de outro m odo o que está escrito, de ler, em particular, o nom e de m odo diferente do que está escrito. É unicam ente com essa condição que intervém e que se transm ite o nome do pai, com o instância sim bólica e em sua diferença com o sobrenom e paterno. Desse ponto de vista, a psicanálise tem um a grande dívida com a tradição judaica, que ela está longe de ter reconhecido.

A analisante não desconhecia o que estava se passando. É com o se ela tivesse parado à beira de um processo, para barrar a m etáfora paterna. Ela afastou o pai de sua filha de linha fam iliar potencial, evitando ser tocada no fundo de si m esm a, am orosa e sexu alm en te. Ela n ão dizia n ada além disso ao evocar su a fr igidez, qu e an dava ju n to com o desejo sexu al in saciável. Ela devia por isso perm an ecer intocável e deixar n esse estado u m a parte im portan te de seu pas-sado, a fim de su btraí-lo aos estragos do tem po. Nisso repou sava, an tes de tu do, esse desejo im ortal (der unsterblicheW unsch) “ da” cr ian ça ( FREUD, 1 9 0 0 / 1 9 41, p. 559) , form ulação cujo duplo sentido do genitivo sugere essa versão m uito difundida da fantasia da histérica, ter um filho do pai — sem ser tocada. Tal paradoxo está ligado à estr u tu ra da fan tasia, cu ja fu n ção é preser var para além das ru gas da idade, da m atern idade tam bém , u m lu gar qu e deve ficar vazio, “ virgem ” de certa m an eira, a fim de m an ter viva a econ om ia libidin al do su jeito. A virgin dade ser ia en ten dida, en tão, com o u m fator tem poral qu e in trodu z u m a cesu ra in dispen sável ao acion ar do desejo. A idéia de ter po-dido ser “ tocada” , m esm o qu e só por alu são ou de m an eira in direta, é tan to m ais in su portável para o su jeito qu e ch egou à idade adu lta, qu an to ele sen te esse lu gar am eaçado. Isso pode dar lugar a longos percursos analíticos, a fim de esvaziar esse lugar de um gozo que aí havia ou teria feito irrupção, e às vezes tam bém a processos de ressonância, a fim de restabelecer um a lei que foi aber-tam ente achincalhada.

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portanto, ser objeto de sanção algum a ou, em outro registro, àquele que é excluído da sociedade ( com o o paria, na Índia) e portanto não se beneficia da proteção da lei. No plano religioso, a m esm a noção serve para designar, parti-cularm ente, o que corresponde aos diferentes graus de im pureza concernente, entre outros, às feridas do corpo ( que podem conduzir até a exclusão da socie-dade, no caso da lepra) , os corrim entos do corpo ( que travam as relações sexu-ais, e até m esm o as proíbem ) e, últim o estágio, o cadáver ( ou seja, o corpo subtraído às leis da vida e de sua reprodução) . Isso nos dá um a idéia da exten-são do cam po sem ântico coberto por esse term o, do qual só extraím os um a parte, suficiente, entretanto, para nos dar um a idéia do que está em jogo para o sujeito em sua relação com o inconsciente e com a lei.

A analisante nos ensina, à sua m aneira, ou seja, a contrario, que a posição fem inina se define por um certo núm ero de aberturas, que ela consegue intro-duzir nos diferentes registros do sexual: o genital, o m aterno e o filial. São relações ao corpo que se inscrevem em um a seqüência tem poral bem precisa, que um a m ulher dispõe preferencialm ente — ela tira daí sua força, m as se arrisca tam bém a ver seu arrebatam ento interrom pido — , e à qual um hom em , por sua vez, deve se subm eter, se ele quiser intervir no processo da transm issão. As aberturas em questão, no entanto, só se sustentam em sua m ultiplicidade com referência ao que as m antém juntas, a saber a metáfora paterna. Ela opõe o único lim ite válido ao real do gozo, bem com o em outro plano ela é responsá-vel pela transform ação da im agem do corpo pela gravidez e pela inscrição da criança que vai nascer no sim bólico. Ela é esse fio invisível que liga entre si os diferentes dom ínios da vida do sujeito, lhe perm itindo se encontrar neles e reconhecer a unidade de sua ação na diversidade de seus atos, que ele sem pre dá um jeito, se for neurótico, de fazer com que fracassem . É o resgate de sua “liberdade” que ele adquire a custo de sua alienação, ou seja, de ser, no essen-cial, estranho a si m esm o. Sua única chance de aceder a ela é a de se subm eter ao que o determ ina no lugar do Outro, reconhecendo a causa de seu desejo, com o um a “causa ( coisa) perdida”, desde sem pre.

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que im punha seu colorido à sua vida sexual, tinha por conseqüência o fato de ela só poder aceitar com o parceiro alguém que renunciasse a ser verdadeira-m ente hoverdadeira-m everdadeira-m . O que ela chaverdadeira-m ava de “frigidez” era uverdadeira-m coverdadeira-m proverdadeira-m isso, afinal de contas bem côm odo, entre as diferentes tendências que a habitavam e que lhe perm itiam preservar aquilo a que ela não estava pronta para renunciar, um a certa relação com o poder e com o gozo, cujos gostos se confundiam .

Para caracterizar um a relação física m uito forte, ela cham ava de “paixão” ou m ais facilm ente ainda de “transe”, evocando um estado próxim o da expe-riência m ística, que Lacan tentou aproxim ar daquilo que seria o próprio do gozo fem inino. Não é especificado que parte do corpo entra em jogo no estado de transe, se não for o corpo inteiro, cujo despedaçam ento im aginário com referência a um a instância sim bólica ( fálica) ficaria assim suspenso, provisori-am ente. Isso não im pede o sintom a histérico, dito de “conversão”, de se estabe-lecer, em últim o caso, segundo as linhas de fratura de um corpo, que não é, justam ente, o da anatom ia.

Jogando com as palavras, poderíam os acrescentar que houve trans-, m as não -m issão. A analisante queria, em todo caso, im por sua própria lei à transm issão. Ela queria ser m ãe, m as sem aceitar para seu filho a m ínim a lealdade para com um hom em , a subm issão, portanto, ao que só um hom em pode veicular: essa instância sim bólica que determ ina a identidade sexual e a inscrição nas gera-ções. O único que a seus olhos teria podido desem penhar esse papel era seu pai, que, entretanto, não era o m elhor colocado para fazê-lo. É com o se ela tivesse querido conceber um filho, segundo a ordem da fantasia, e com isso m esm o se alçar ao nível da geração de seu pai. Ela tinha, no entanto, total consciência das dificuldades que estava criando e às quais expunha a filha.

Ela se perguntava tam bém se o que estava lhe acontecendo não era um a m aneira de reagir ao que ela havia percebido do lado de sua própria m ãe, concernente a seu lugar na fam ília. Ela estava praticam ente ausente em seu discurso, m as não m enos presente no real de sua vida; é com o se essas duas dim ensões tivessem dificuldade de se agenciar. Ela m e dizia: “ Minha m ãe é com o a som bra de m eu pai.” Tal form ulação sugere, em todo caso, que sua posição de m ãe era igualm ente apagada e inapagável, inexistente e, no entanto, onipresente. “Com o se livrar de um a som bra?” poderia ter sido a questão de sua filha que estava frustrada com um a rivalidade com um a m ãe que tinha encon-trado um m eio bem eficaz para se proteger dela. Isso explica o im pacto de um a

referência paterna por dem ais exclusiva e diz m uito dos receios da analisante em

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infor-m ado, anos infor-m ais tarde. Soubeinfor-m os depois que o avô infor-m aterno era alcoólatra ( ou tinha assum ido esse papel) , razão pela qual os avós paternos teriam se oposto a esse casam ento. Por não ter sido rejeitada, sua m ãe teria dado provas de um a gratidão excessiva. Seu próprio apagam ento, entretanto, não adiantou de nada para ela, nem para sua filha. Ela só fez lhe deixar um a culpa inarticulada, quase em estado bruto, tal com o, provavelm ente, ela havia recebido de seu próprio pai. Tal culpa, que a analisante tinha em parte endossado e que estava passando para sua filha, perm anecia sob a autoridade de um super-eu feroz e era acom pa-nhada de um a relação com o gozo m ais destruidora pelo fato de não estar pronta para renunciar a ela. Isso intervinha, provavelm ente, para determ inar sua relação com a sexualidade, a atitude de subm issão adotada por sua m ãe, assim com o o alcoolism o de seu avô.

O super-eu intervém aqui, de m odo bastante freudiano, na herança (Vererbung) de um a culpabilidade que im põe seu colorido ao sintom a sobre várias gera-ções. Ele se opõe de m odo m ais ou m enos eficaz à transm issão do nom e-do-pai, tendo com o conseqüência um a perturbação bastante considerável da relação com o gozo, com o o ilustra bem esse exem plo clínico. O percurso analítico consiste em “transferir” a culpa para outro plano, em outro registro, a fim de traduzi-la e transformá-la em dívida simbólica. Para conseguir isso, convém levar em conta três gerações que intervêm no Édipo. Seu desenlace pode ser comparado com a interpretação de um texto que se deixa “abrir” e despojar de um sentido dado, para dar lugar a traduções sucessivas. A criança que vai nascer torna-se o vetor de um a nova versão de um texto, cujo original está perdido. O verdadeiro “dom ” da vida corresponde a deixar advir um a criança a seu próprio m undo sim bólico e, portanto, para um a m ãe e tam bém para um pai, a não fazer obstru-ção a que ela tenha seu nom e de m odo diferente do que ela o recebeu.

FLEXÃO DO NOME

O que nos ensina essa história clínica, da qual só forneci poucos elem entos, sobre a questão tão im portante, que nos ocupa aqui, da função sim bólica de um a

m ãe? Deve-se observar que sobre isso a literatura psicanalítica ficou relativa-m ente erelativa-m silêncio, corelativa-m algurelativa-m as exceções, quando as publicações sobre o fe-m inino e o fe-m aterno estão cada vez fe-m ais nufe-m erosas. Só encontrafe-m os poucas indicações sobre o que é, no entanto, essencial, a saber, com o um a m ulher se inscreve, diferentem ente de um hom em , em sua relação com as gerações. A razão disso é, e esta é a m inha hipótese, que o tem a da transm issão foi pouco abordado com o tal, m esm o se, de m aneira im plícita, ele está presente desde os prim eiros passos do discurso freudiano.

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É ainda um a m aneira, desesperada e um tanto paradoxal, de fazer intervir um terceiro que cruelm ente faltou. Seria fácil dar outros exem plos desse apelo à

justiça, que existe tanto no grande crim inoso quanto no extrem ista político ou religioso, com o tam bém pode se encontrar na base de engajam entos m uito m ais m oderados ou dar lugar, por que não, a um a elaboração teórica da justiça social. Tal aspiração, tão profunda, existe porque ela visa o que está na origem do sim bólico e de sua am arra subjetiva. Tudo parece ser um a questão de justa m edida, de justa apreciação das coisas e dos lim ites.

A analisante se encontrava em um a constelação edipiana particular que lhe causou m uitos problem as, m as que ela ainda não estava pronta para resolver. Ao tornar-se m ãe, por sua vez, ela teria podido decidir fundar seu próprio lar, quando escolheu, ao contrário, voltar para aquele de onde era oriunda; por com odidade, dizia ela, m as havia, provavelm ente, outra coisa. Isso constituía um a hipoteca pesada, que, entretanto, nada tinha de definitivo, em relação à abertura que ela teria podido contribuir para produzir em um a linha fam iliar. Esta fica suspensa na inscrição do recém -nascido em um registro, a fim de que ele possa ser cham ado por um sobrenom e e um nom e; m as ela só tem um a chance de prosseguir, de atravessar o tem po se a cada geração se produz um a abertura bem específica, inédita, que permite a uma criança achar seu lugar, gra-ças a uma versão do nome que lhe é própria. Será seu tesouro mais caro, sua vida inteira, ao qual ela não poderá renunciar, m esm o sob am eaça de m orte. A m etá-fora, ligada de m aneira indissociável ao que é novo, é o único escudo eficaz contra a pulsão de m orte e dá ao sujeito os recursos sim bólicos necessários que lhe perm item se separar do autom atism o da repetição (W iederholungszwang) . Ora, a abertura em questão está ligada à posição fem inina, determ inada no essencial, m as não exclusivam ente, por sua relação com a castração simbólica, operador es-sencial da inscrição do sujeito na lei e na linguagem . Inapreensível enquanto tal, a castração se m anifesta clinicam ente pelo efeito de fem inilização que ela acarreta no nível do corpo, independentem ente do sexo. O hom em , com efeito, não escapa dela, m as a fem inização ganha um colorido bem diferente segundo sua estrutura: o que contribui para lhe dar um status sim bólico com o histérico e que o perverso terá tendência a revestir, im aginariam ente, para eventualm ente exibi-lo à luz do dia, o paranóico o perceberá com o a m aior am eaça, de tornar-se m ulher realm ente.

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infân-cia, para fazer contrapeso à estatura esm agadora de seu pai, e no atual de sua vida, para aceder à descendência que sua m ulher não lhe deu. Foi o que fez Freud ( 1911/ 1941) dizer: “Seu casam ento, que ele qualifica de feliz, não lhe deu filhos, em particular, não lhe deu o filho que o teria consolado da perda de seu pai e de seu irm ão, e para o qual ele poderia derram ar sua ternura hom os-sexual insatisfeita. Sua linha fam iliar (Geschlecht) estava am eaçada de extinção, e ele parecia ter sido bastante orgulhoso de sua linhagem (Abstam m ung) e de sua família”(p.293).Seu delírio lhe oferecia a saída de um devir-mulher que lhe teria permitido se deixar engravidar pelos “raios de Deus” e de conceber um a “nova raça de hom ens” ( p. 293) . Ele produzia assim sua própria versão daquilo que é o núcleo de toda psicose, a saber, um delírio de filiação. “Schreber pode muito bem ter im aginado que, se ele fosse mulher, ele teria sabido m elhor com o ter filhos...” (p. 294), ou seja, que ele teria sido um a m ulher m elhor para seu pai. Encontrar-se na posição de m ulher em relação ao pai corresponde à fantasia do histérico ( hom em ou m ulher) , que Schreber conseguiu reconstruir no m odo delirante.

É interessante notar que Freud, para falar de linha fam iliar, só cita persona-gens m asculinas: pai, irm ão, filho, entre as quais ele adm ite um a atração ho-m ossexual; coho-m o se o pai tivesse o poder de transho-m itir diretaho-m ente a seu filho, sem passar pelo interm édio de um a m ulher e sem que esta tenha a m enor influência sobre o processo. O que quer dizer essa observação, a não ser que a atração hom ossexual no seio da fam ília constitui um cim ento entre as gerações podendo im pedi-las de se diferenciar e de se inscrever. Um a m ulher torna-se cúm plice, se ela realiza assim sua fantasia fundam ental, na continuidade de sua própria história fam iliar e segundo “a ordem ” do pai. Foi talvez contra isso que Schreber se defendeu construindo à sua m aneira um a posição fem inina — e portanto hom ossexual.

A posição fem inina, se ela aceita se subm eter à castraçãosimbólica, torna-se um fator de descontinuidade. Ela produz assim um a flexão do nome, na origem de um a abertura ím par, para dar lugar a outra versão deste. Ele não pode, com efeito, ser transm itido tal e qual, ou seja, igual a ele m esm o. Um a diferença radical4 se acha assim instituída no início de toda vida e funda a am arra subjetiva na lei e no sim bólico. O significante, por sua vez, se refere a ela, definida com o o que não é igual a si m esm o: A ≠ A. Esse princípio de não-identidade nos ensina,

aliás, que a transm issão não poderia se inscrever de m aneira exclusiva de um ú n ico lado da diferen ça dos sexos,5 m as qu e ela é sem pre e por essên cia

transgressora. Eis por que a nom eação não se produz em linha direta fazendo a

4Que define a identidade do povo judeu e pela qual ele pagou um tributo elevado. 5Foi assim durante m uito tem po, para a filosofia e para outros discursos tradicionais. Notem os

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econom ia da posição fem inina, nem pode ser deixada ao único governo desta, m as ela é o efeito de um a inflexão da linha familiar. Um a m ulher desem penha um papel privilegiado nesse processo, com a condição de não se identificar com a autoridade que ela contribui para transm itir. Isso é verdade tam bém para o hom em , de m aneira que am bos só encontram seu lugar pelo selo da divisão, que os eleva ao nível de suas funções sim bólicas respectivas no sistem a de parentesco, com o pai e m ãe. O hom em não dispõe m ais do nom e do que a m ulher, m as ele é seu vetor privilegiado — para a criança.

A introdução da questão do nom e no raciocínio clínico tem repercussões profundas sobre nossa abordagem e nosso m anejo da transferência que se en-contra assim subtraída a qualquer apreensão na intersubjetividade. O princípio de não-identidade tem um efeito de refração-difração sobre o nom e, de m anei-ra que se ele se escreve N1, ele se lê N2, m as só chega à geração seguinte com o N’: N2/ N1 N’.

O que se transm ite, portanto, não é nem N1, nem N2, e sim a diferença deles. Um a condição necessária é que o nom e é recebido de m odo diferente do que é dado, m as ela é insuficiente. Tal form ulação, tributária de um a teoria da com unicação, é incapaz de dar conta do que se passa e se “transfere” entre as gerações. Tam pouco bastaria dizer: “m ensagem recebida porque recebida na form a inversa”. O que é válido no plano da intersubjetividade torna-se caduco pela exigências da transm issão, cuja fórm ula adequada é que o nom e é transm itido de m odo diferente do que é recebido.

Poder-se-ia im aginar que a pesquisa clínica sobre a histeria e outras estrutu-ras tom a o cam inho indicado por essa últim a form ulação. Ela deveria tam bém perm itir rearticular estas questões tão espinhosas para a prática psicanalítica: com o produzir algo novo? E qual é o status do novo?

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André Michels

Referências

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