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O principio d'hereditariedade

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Academic year: 2021

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ê printip d'hmattariiàdt

DISSERTAÇÃO INAUGURAL

P a r a acto grande na escola medico cirúrgica

do Porto

POB

«MHW*

PORTO

Typ. de Antonio José da Silva Rua do Calvário n.0 36

1877

(2)

-^^i? Z &-~er- &

^ ^ ^ . .á- Séj-Jirp, ^y-— ^-^

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(2?y -*^^C^

^Eschola não responde pelasífloutrinas expendidas'na^r­'**, S''^*^ ertaçSo e enunciadas nas proposições.

(3)

DIRECTOR

O ILL.™ E m . ™ Still. CONSEIBEIRO, MANOEl HAltIA H COSTA LEITE

SECRETARIO

O I H , ™ E E K .m» SUR. ANTONIO D'AZEVEDO MAIA

OORPO O A T H E D R A T I C O

LENTES CATHEDRAT1COS

Os III.»0' e Exc.0"8 Snrs. 1." cadeira—Anatomia

descri-ptiva e geral João Pereira Dias Lebre. 2.a cadeira—Physiolngia . . Dr. José Carlos Lopes. 3.a cadeira—Historia natural

dos medicamentos.

Mate-ria medica João Xavier d'Oliveira Barros. i:'° cadeira—Pathologia

exter-na e therapeutica exterexter-na Antonio Joaquim de Moraes Caldas. 5.3 cadeira—Medicina

operató-ria Pedro Augusto Dias. 6.a cadeira—Partos, moléstias

das mulheres de partos e

dos recem-nascidos . . Dr. Agostinho Antonio do Souto. 7.a cadeira—Pathologia interna

e therapeutica interna. . Antonio d'Oliveira Monteiro. 8.a cadeira—Clinica medica . Manoel Rodrigues da Silva Pinto. 9.a cadeira—Clinica cirúrgica. Eduardo Pereira Pimenta. I0.a

cadeira—Anatomiapatho-logica Manoel de Jesus Antunes Lemos. ll.a cadeira—Medicina legal,

hygiene privada e publica

e toxicologia geral . . Dr. José F. Ayres de Gouvêa Osório. 12.a cadeira—Pathologia geral,

semeiologia e historia

me-dica Illidio Ayres Pereira do Valle. Pharmacia Felix da Fonseca Moura.

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Secção medica.

Secção cirúrgica

Secção medica.

Í

Dr. José Pereira Reis. Dr. Francisco Velloso da Cruz. Visconde de Macedo Pinto. José de Andrade Gramaxo. í Antonio Bernardino d'Almeida. ! Luiz Pereira da Fonseca.

' Conselheiro, Manoel M. da Costa Leite. LENTES SUBSTITUTOS

l Antonio d'Azevedo Maia. " j Vago.

Secção cirúrgica . í fg u s t o H e n r i (Iu e d'A l m e i d a B r a n d a o-} Vago.

LENTE DEMONSTBADOR Secção cirúrgica . Vago.

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grave interesse philosophico.

Duas grandes questões encaradas na sua maxima generalidade absorvem todas as faculdades e activida-de activida-de que o homem poactivida-de dispor : é por um lado a questão scientiflca levantando todos os problemas da intelligencia, todas as mysteriosas revelações da natu-reza, todas as incognitas do presente e do passado, e applicando-lhes para as resolver a frieza inexorável d'uma critica systematica e forte ; é pelo outro a ques-tão religiosa, debatendo-se nas convulsões d'uma agonia immensa, e procurando salvar d'aquella terrível de-molição o thesouro das crenças em que a humanidade tinha concentrado o trabalho de muitos séculos. Entre uma e outra não medeia um palmo só de terreno aonde o espirito se acolha á espera da luz que ha de illumi-nar os horizontes d'essa arena pejada de ruinas, porque nem sequer é permittida a indifferença.

Eram dois mundos muito distinctos, o das scien-cias naturaes e o das scienscien-cias moraes, históricas e lit-terarias. Tmha cada um seus astros : Newton, Galileu, Bichat, Lamarck, para o primeiro, Chateaubriand, Fe-nelon, Bossuet para o segundo. Mas um dia as suas

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aos confins d'um e d'outro sentiram brotar uma mul-tidão de consonancias e accordes que até ahi não ti-nham pressentido: era que uma mesma força vibra-va em ambos elles harmonias cuja combinação se tor-nava estranhamente sublime. Uma fatalidade os tinha separado primeiro, outra os approximava agora : era mister que se fundissem para que o espirito que pai-rava sobre um voasse livremente atravez do outro.

D'aqui a lucta que se tem ferido entre ambos para decidir qual d'elles teria maior parte na obra de re-generação a que se ia proceder.

No que até hoje se tem passado a victoria cabe sem contestação ás sciencias naturaes que dispunham sobretudo d'uma arma muito mais forte e exclusiva-mente sua ; —o methodo. Venceram, é certo ; e, quando um diaellas apontarem á humanidade as paginas da no-va Biblia que a esta hora se está escrevendo, o futuro , dirá se usaram prudentemente d'aquella vantagm ras-Vx gando despiedadamente a antiga.

Nenhum dos domínios da intelligencia ficou estra-nho ao movimento de renovação que a concepção nova da natureza ia operando : a historia, as artes, as

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lin-todos os pontos da circumferencia se repercutiu, par-tindo do centro, o impulso unitário que, propagan-do-se de camada em camada, as ia successivamente demolindo para deixar apoz si a pacificação e a

har-monia. ^ !!** U- 1 Filho d'uma Escola onde as grandes ideas bioló-gicas modernas teem encontrado sábios interpretes e sectários convictos cedo tive o prazer de ser iniciado n'aquelle movimento ; e desde então o tempo que me crescia dos estudos e applicações practicas indispensá-veis votava-o a retemperar o espirito no conhecimento dos princípios que deviam completar, defimndo-a, a minha educação scientiflca.

É um d'esses estudos de confecção intentado sobre as ideias dos auctores adiante mencionados que tenho a honra de submetter como prova final á appreciaçao dos meus illustres professores ; e a mão que traça estas linhas, noviça de mais para deixar de ser atten-dida, não desdenha eslender-se e pedir a benevolên-cia que merecer.

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au win

Para comprehender o principio da heretarieda-de em toda a plenituheretarieda-de do seu immenso e mysterioso poder o espirito precisa remontar na serie das gera-ções, seguindo pecientemente a linha das causas, visto que dos elementos que compõem o animal não ha um só que não tenha um passado mais ou menos remoto e, portanto, uma historia de que cada um dos antepas-sados escreveu uma pagina.

Isolado dos que o precederam na scena da vida o ser actual seria perante o espirito philosophico e a analyse scientifica uma entidade inconsistente e verda-deiramente enigmática, uma emergência incomprehen-sivel na unidade phenomenal da natureza. O segredo da sua existência, a sua razão de ser tal qual é será

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forçoso pedil-a ás gerações que passaram, porque fo-ram ellas que, accumulando progressivamente o pro-ducto do seu trabalho lento e muitas vezes inconsciente e transmittindo-o d'umas ás outras, talharam o molde em que se vasaram as formas do seu ultimo represen-tante e orientaram as funcções d'um organismo que, como veremos, é apenas a continuação do seu.

No fundo de toda a existência individual não pode-mos deixar de reconhecer que existe como factor de pri-meira ordem um elemento hereditário. Esta verdade, que é hoje familiar áquelles mesmos que são media-namente versados em sciencias naturaes, adquiriu todo o relevo e importância que merece desde que a bio-logia entrou no novo caminho de theorisação a que a conduziram as grandes concepções formuladas no de-curso do século actual. Em quanto a hypothèse das creações especiaes dominou na sciencia, cada espécie animal representava a incarnação d'um pensamento creador, e a origem das formas orgânicas era explica-da por processos sobrenaturaes, em cuja contextura não entrava um único facto positivo. É de ver que em tal concepção a hereditariedade tinha um papel extrema-mente insignificante a representar, sendo antes olhada como uma curiosidade mysteriosa sobre que se exer-cia o sentimentalismo, do que como um agente natu-.ral de primeira importância. Contrariamente a esta

opinião e theoria mecânica, olhando as formas da na--tureza orgânica ou anorganica como productos neces-sários das forças naturaes.. dá uma ideia profunda-mente verdadeira do phenomeno de que nos occupa-mos.

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certo meio uma particularidade orgânica surge n'um ou mais indivíduos d'uma geração. É indecisa, rude, grosseira, imperfeita na forma e no trabalho que exe-cuta, mas, constituindo já para o animal uma certa superioridade, elle dar-lhe-ha um largo uso, aperfei-çoando-a. A geração seguinte recebe-a em herança moditicada por todo o trabalho d'organisaçao que a geração precedente exerceu sobre ella, e, continuando a viver no meio que a necessitara, aperfeiçoal-a-ha ainda. Volvidas mais algumas gerações o que na pri-meira era vago e sem expressão ter-se-ha tornado pre-ciso e caracteristico : o desenho é ni tido e firme, e a fancção, desenvolvendo-se em especialisação progres-siva e correspondente com o estado orgânico, é per-feita e exclusiva. .

As modificações assim accumuladas durante esta evolução que um órgão percorre, progredindo no sen-tido d'uma maior especialisação e complexidade, ope-ram muitas vezes uma verdadeira transformação, por forma que á primeira vista seria impossível conside-rar as foimas extremas como membros d'uma progres-são, de que allas são effectivamente os termos últimos. D'aqui a necessidade evidente de empregar no estudo d'um órgão todos os recursos da analyse para

des-cobrir os vestígios da sua profissão atravez das eda-des, para decifrar todos os signaes que a vida lhe gra* vou.

Foi esta noção fundamental que serviu de base á afflrmação em que a biologia moderna condensa os resultados obtidos por um trabalho infatigável no cam-po da embryogenia, da paleontologia, da philologia, e que acará sendo uma das conquistas mais

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grandes actividades vitaes, — e adaptação e aheredita-ricedade. Encarada debaixo d'esté ponto de vista a hereditariedade deixa de ser um facto vulgar e sem importância momentosa para se tornar um dos prin-cipaes factores da lei d'evoluçâo ; a força que accumu-lando as pequenas differenças produz effeitos em des-proporção apparente com as causas primitivas.

Fixemos o sentido d'estas palavras. Em que con-siste a lei d'evoluçâo ? O que deve entender-se por especialisação e cemplexidade crescentes? Como inter-veem estes princípios na formação do elemento here-ditário?

A lei d'evoluçâo pode reputar-se hoje diíinitiva-mente estabelecida e universaldiíinitiva-mente acceite como uma das grandes concepções philosophicas do século XIX. Esboçada por Goethe, Oken e Treviranus, elevada depois por Lamarck á cathegoria d'uma verdadeira theoria scientifica independente, alla attingiuo seumais elevado grau de generalisação e rigor lógico quandoDar-win, formulando a theoria da selecção, poz em rele-vo a sua causa principal, isto é, demonstrou quaes eram as causas efficientes das modificações invocadas até então somente o titulo de factos.

D'uma maneira geral a lei d'evoluçâo pode for-mular-se assim : — toda a força produzindo mais d'um eííeito, quando actua sobre um aggregado material, este tende a passar d"um estado simples, homogéneo, incohérente, indefinido, a um estado mais complexo, mais heterogéneo, mais cohérente, mais definido. Toda a evolução é portanto uma integração. Tal é, na ordem

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astronómica a passagem da nebulosa primitiva quasi homogénea ao nosso systema solar com os seus pla­ netas e satellites, tão diversos em densidade, em ve­ locidade, em distancia ao centro ; na ordem geológica a passagem da massa ignea primitiva, relativamente homogenia, á terra actual, cuja superfície por si só nos parece tão heterogénea ; na ordem biológica, a passa­ gem da organisação inferior das edades primitivas ás floras e faunas multiformes da edade actual ; na or­ dem psychologica, a passagem das formas syntheticas e embryonarias do espirito a estados cada vez mais analyticos e complexos ; na ordem social, a passagem das sociedades simples dos primeiros tempos às so­ ciedades tão complicadas e heterogéneas da nossa epo­ cha ; na ordem histórica, o desenvolvimento das lín­ guas, das artes mecânicas, das bellas artes, e a sua subdivisão em géneros cada vez mais numerosos.

É, como se vê, uma theoria grandiosa que abran­ ge n'uma concepção única o domínio inteiro dos conhe­ cimentos humanos. O seu mérito, porém, não consiste somente cm abranger um grande numero de factos e douctrinas parciaes; o que verdadeiramente lhe dá um caracter irresistível de legitimidade lógica é ter toma­ do para base um princípio experimental, seguindo pos­ teriormente nas suas operações um methodo objecti­ vo, scíentífico, — o dos naturalistas.

O princípio que a theoria da evolução adopta para base do seu systema é o da conservação da energia, ou, expresso por outras palavras, da persistência da força, Os princípios de uniformidade de lei e equiva­ lência das forças, os de rhythmo constante de movi­ mento e direcção d'esté no sentido da mais fraca re­

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sistencia, os de continuidade de movimento e indestru-ctibilidade da materia, que, ou dimanam d'aquelle como consequências, ou o representam debaixo d'outra for-ma, constituem com elle os alicerces de todo o conhe-cimento geral, os primeiros principies de todos os phé-nomènes especiaes, como da uniformidade geral de suecessão manifestada pelo conjuncto geral da natu-reza, a expressão mais profunda, emflm, da lei de ca-sualidade. (1)

A simples enumeração d'estes principies revela desde logo o ponto de vista mecânico debaixo de que é concebida a theoria, e, n'este sentido ainda, impor-ta observar que elles, dominando as mudanças dos objectos e suas partes, as quaes são reconhecidamente constituídas por novas combinações da materia que os compõe e por uma destribuição nova das forças que os animam, imprimem-lhe uma direcção necessária e fa-tal. Esta direcção, por ultimo, ou é n'um sentido de progresso, isto e, de natureza a produzir uma inte-gração com augmente do numero e diversidade das partes, ou de degradação motivada por uma desinte-gração com diminuição do numero e diversidade das partes, segundo as força externas são ou não de na-tureza a destruir a cohesão do aggregado, restituin-do-as á sua independência primitiva. A constituição do aggregado, portanto, e a sua conservação são sobera-namente dominadas pelas forças incidentes. Ou as par-tes que o compõem, recebem d'ellas um impulso egual.

(1) A. Bain — Logique inductive et deductive -- Tom. il pig. 33.

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uma orientação commum em velocidade e movimento, e se grupam n'um todo homogéneo, isto é, se

inte-gram, ou são animadas de movimentos dissimilhantes

em direcção e intensidade, e se separam em grupos heterogéneos, isto é, se desintegram.

No domínio da biologia, onde a theoria da evolu-ção é já agora uma conquista indiscutível, a revoluevolu-ção operada por um tal systema philosophico agitou desde os alicerces a sciencia da vida. A dependência, que acabo de consignar entre o aggregado e as forças ex-ternas, adquire aqui uma importância capital, fazendo do aggregado vivo uma funcção das condições ambien-tes ; por forma que esta única consideração basta a caracterisar o phenomeno essencial da biologia. M. H. Spencer defme-o assim : — a vida é um conjuncto de mudanças simultâneas ou successivas, organisadas em vista d'um íim determinado e correspondentes ás cir-cumstancias externas; ou, mais resumidamente, — é a adaptação continua das relações internas ás relações externas. (1) O modo como até aqui se encarava este phenomeno tão importante, a concepção que d'elle se fazia, concepção que umas vezes era de todo inadmis-sível por envolver idêas extra-scienlificas, outras dema-siadamente incompleta, porque não attingia a essên-cia do phenomeno, e sempre incapaz de prestrar um solido apoio á sciencia de que era, por assim dizer, a pedra angular, foi completamente derrocada. Toda a intervenção de agentes subrenaturaes de qualquer or-dem foi banida, todo o elemento incognoscível

supprl-(1 ) H. Spencer — Principes be Biologie. Tom. i, cap. iv e v. 2

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mido,toda a idea de finalidade proscripta. E, revestin-do-se assim d'um caracter de positividade, o único que pôde convir ao espirito scientiflco, a theoria evolutiva consegue dar da vida uma definição que, longe de apresentar um caracter abstracto e systemalicamente forçado, é pelo contrario o resultado legitimo e único a que pôde conduzir a analyse guiada até ás suas ul-timas consequências pelas regras seguras da lógica.

Na formula, que precede, o philosophe inglez ex-prime o mais nitidamente que é possível as duas idéas culminantes do phénomène vital: —a evolução que faz entrar esse phénomène no conjuncto geral do uni-verso, e a adaptação que, dependendo essencialmente da nutrição, é constituída por uma operação d'equili-bração entre as relações internas e as influencias ex-ternas, extremamente característica da flexibilidade e mutabilidade vitaes. Applicada ao individuo ou á espé-cie ella dá a lei do cyciod'existencia que nós associa-mos nas nossas concepções á idea d'individualidade, suppondo que todo o individuo vivo provém de outro da mesma natureza, e que toda a existência individual tem um fim necessário apôz uma carreira determina-da. Exprimindo uma successão d'estados de equilíbrio movei que tendem ao equilíbrio completo, dá a chave da infinita variedade de gradações sob o ponto de vista de volume, de complexidade e de structura que os seres vivos atravessam no curto espaço da sua exis-tência individual, ou durante os longos séculos da sua existência especifica.

Na exposição que precede era minha intenção mostrar até que ponto um estado do organismo tem por condição d'existencia um estado anterior de que

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diffère por um grau mais elevado de desenvolvimento com differenciação, e como, em virtude da acção re-ciproca dos órgãos e das funcçoes, um augmento d'es-tas sollicitado por uma excitação externa é favorecido pela capacidade que teem aquelles de crescerem e des-envolverem-se. A cada modificação adaptiva corres-ponde, por assim dizer, uma reconstrucção geral da structura interna com uma polarisação nova das forças que a manteem, a qual persistirá em quanto persisti-rem as condições que a determinaram. Conformemen-., te á sua definição de vida M. Spencer considera o in-dividuo como um todo concreto realisando per si pró-prio o accordo das suas relações internas com as suas relaçães externas, de maneira a manter a propria exis-tência. Á hereditariedade pertence fixar as mudanças successivas correspondentes a novos estados d'equili-brio das unidades physiologicas, dando a um organis-mo novo uma forma impressa de uma organis-modificação nova.

D'aqui a intima connexão que prende a evolução e a hereditariedade como factores necessários de toda a transformação orgânica persistente. Uma sem outra, ou não se comprehende, ou perde todo o valor scien-tiflco.

Imagine-se a evolução sem a hereditariedade. As modificações orgânicas ou dynamicas que se vão suc-cedendo no individuo, embora o habito as fixe, desap-parecem com elle : os seus descendentes terão de re-começar ao nascer um trabalho de accommodação que pode prolongar-se durante toda a sua existência, mas que não aproveitará a mais ninguém. A vida consu-mir-se-hia assim n'uma lucta improfícua e sem

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tre-guas, e o cyclo das gerações offereceria, em vez do progresso que nos assombra, uma estabilidade inque-brantável que nem mesmo podemos comprehender.

lmagine-se a hereditariedade sem a evolução. Os mesmos typos reproduzir-se-hiam indefinidamente. Or-ganismo e funcções, offerecendo a mesma estabilidade passariam de pães a filhos immodificados e sempre os mesmos. Em vez da multiplico variedade de formas e aptidões uma uniformidade geral e monótona.

Bastarão estas considerações para fazer compre-hender o papel que na historia da vida desempenha o elemento hereditário. Para o descobrir seria forçoso seguir em meandos inextricáveis esta actividade, cujas vibrações diminuindo progressivamente de amplitude produzem accordes cada vez mais puros; seria neces-sário discriminar no seu materialismo subtil este laço que prende as gerações ás gerações, fazendo commún-gar a ultima da vida obscura ou ruidosa de primeira.

É n'este trabalho Ímprobo de critica paleontolo-gica que se acha empenhada a biologia moderna desde que o darwinismo fez derivar a unidade e continuidade do mundo orgânico da mutabilidade e da selecção na-tural, da adaptação e da hereditariedade. E com tal ra-pidez se teem succedido os estudos e averiguações po-sitivas que a theoria da selecção natural, apresentando sob a forma de leis as series de phenomenos, nos faz conhecer desde já as causas e effeitos da hereditarie-dade e da adaptação. Desde que o naturalista guiado pelo principio da hereditariedade seguiu nos différen-tes typos de desenvolvimento o legado hereditário, o campo da biologia foi illuminado por uma nova luz, e uma grande parte dos phenomenos até ahi

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inexplica-dos encontraram uma triuraphante interpretação. Para não recordar senão os principaes eu citarei apenas os órgãos rudimentares, que por muito tempo foram o desespero de todas as lheorias teleológicas, e os factos de desenvolvimento sem metamorphoses, de transfor-mações e de alternâncias de geração, que todos se re-ferem mais particularmente ás funcções de reproduc-ção e desenvolvimento.

Eu não me proponho estudar o elemento heredi-tário, seguindo o desenvolvimento historico-paleonto-logico do homem : além de ser um propósito louco da minha parte, seria totalmente alheio ao meu fim. Eu desejo simplesmente accentuar a sua importância na vida do individuo, pol-o em relevo, tornal-o bem dis-tincte, e, se não me engano, os elementos que coor-denei são sufiBcientes para isso. Vejamos. O individuo é o producto do meio em que vive, e como este obe-dece á lei geral d'evoluçao, aquelle bade necessaria-mente acompanhal-o n'este movimento de variação, collocando-se em equilíbrio com as novas influencias que se vão succedendo. Ou a adaptação, ou a morte, diz Gazelles. Cada uma das novas variações produzirá uma nova destribuição das forças incidentes no inte-rior do organismo: da parte d'esté,portanto, ha uma reacção funccional equivalente, que se manifesta e é as-segurada por uma funcção e um apparelho especiaes. Mas, por mais rápido que seja este movimento d'equi-libração, nunca a vida d'um individuo será sufliciente para o realisar completamente, e, para que não se perdesse o trabalho adquirido era necessário que in-terviesse uma actividade différente da que elle havia

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utilisado para conseguir a adatapçao ; uma actividade em virtude da qual elle transmittisse e fixasse.

Só com esta condição se realisará a lei do pro-gresso, de que o elemento hereditário é condição es-sencial, fornecendo de geração em geração uma causa physica d'aperfeiçamento. Para subir na hierarclna da evolução o ser vivo precisa apoiar-se em degraus cada vez mais sólidos: a linha que o representa na historia, antes de attingir o colorido reforçado das ultimas eda-des, tem de passar por todos, os cambiantes indecisos das primeiras.

Para adduzir um exemplo da importância que no estudo de qualquer manifestação vital merece o

subs-tatum hereditário, eu tomo uma das hypotheses mais

palpitantes da actualidade, a da génese do pensamen-to, professada em Inglaterra por MM. H. Spencer, Le-wes e Murphy, hypothèse a que os estudos de MM. Maudsley, Carpenter e Bain, em Inglaterra, de Wundt e Helmholtz, na Allemanha, de Taine, em França, e tantos outros, fornecem de dia para dia uma confirma-ção a mais. É uma das questões mais delicadas que se lêem suscitado no campo das investigações modernas e que empenha para o fim d'uma resolução definitiva a actividade dos homens mais eminentes da nossa épo-ca. Por outro lado ainda é certo que, tendo-a por ver-dadeira, ella concede á hereditariedade um papel tão culminante, que eu, estudando o elemento hereditário na historia da vida, pensei dever apresental-a, ainda que mui succintamente.

Estabeleçamos em primeiro logar as bases do ra-ciocínio.

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e Moreau (de Tours) resulta como verdade incontestá-vel que todo o estado psychologico, qualquer que seja, tem sempre por condição e antecedente um estado physiologico. «A necessidade lógica e a necessidade mecânica différera, não na essência, mas simplesmente na forma porque as consideramos. O que é dado pela analyse psychologica como uma continuidade de ope-rações lógicas, è dado pela analyse physiologica como uma continuidade d'effeitos mecânicos... O mecanis-mo e a lógica são idênticos. Um e outro não são mais do que formas d'ura conteúdo idêntico na essência.»(1) Esta aflirmação, porém, tão pouco duvidosa eraquanto se refere aos phénomènes de percepção, de memoria e d'imaginaçâo, offerece, quando se tracta dos phe-noraenos superiores do pensamento, — comparação, abstracção, generalisação, juizo, raciocínio, etc., algu-mas difflculdades. M. Maudsley parece ter resolvido definitivamente a questão, observando que nós não podemos pensar sera as palavras, isto é, sera o signal; e d'esta forma, sendo o signal uma espécie d'imagem dependente do cérebro, as reflexões mais abstractas, desde que carecera necessariamente d'elle, suppoem

um estado cerebral correspondente.

Por outro lado os trabalhos dos Drs. Laycock,(2)

(1) Wundt — Menschen und Thiersede ^ c i t . por M. Bi-bot.

(2) Veja-se sobre todo este assumpto um interessante artigo publicado por M. T. Laycock na Revue scientifique de 1876 n.0 6 e 8 sob a épigraphe «Les lois de la mémoire peisonelle et ances-trale», onde além de numerosas -vistas theoricas se encontram frequentes applicações á pathologia mental.

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Carpenter, (1) e Luys (2) estabeleceram que o cérebro possue também uma actividade automática que lhe é propria e que elles designaram sob o nome de «cere-bração inconsciente», d'onde resulta que todos os phe-nomenos psycliicos de qualquer cathegoria, quer os phenomenos de sensibilidade, quer os modos de ser intellectuaes (percepção, memoria etc.), quer as ope-rações lógicas (juizo, raciocinio), podem exercer-se sem a intervenção da vontade ou da consciência, con-stituindo verdadeiras acções reflexas que Huxley cha-ma artificiaes em opposição ás que são proprias da espinal-medulla, que elle denomina naturaes. Inter-pretando a expressão de reflexos artificiaes Huxley diz: (3) a-c'est-à-dire qu'une action peut exiger tout

no-pre attention et toute notre force de volonté quand nous l'exécutons pour le première, la seconde ou la troisième fois; mais si elle est souvent répétée, elle finit par fai-re, pour ainsi dire, partie de notre organisation, et s'accomplit sans intervention de la volonté, sans même que nous en ayons conscience». O mesmo acontece nos

estados mentaes : si deux états mentaux quelconques

sont provoqués simultanément ou successivement un cer-tain nombre de fois et avec une cercer-taine vivacité, il suf-fit plus tard que l'un d'eux se produise pour provoquer l'autre, et cela indépendement de notre volonté». Sem

me demorar na apreciação d'estes phenomonos incon-scientes e do papel que elles desempenham na vida

(1) W. Carpenter — Principles of human physiology — 6.' edição, cap. xi, § 430 e seguintes.

(2) Luys — Le cerveau — cap. m.

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do homem, assumpto que foi ainda ha pouco tra-ctado a uma grande altura, (1) eu direi simplesmente que esta transformação de movimentos e estados men-taes, que primeiro eram voluntários, em movimentos e estados mentaes automáticos secundários, como lhes chama Hartley, ao mesmo tempo que constituem uma superioridade para o animal, por que dão logar a uma actividade mais coordenada e portanto mais perfeita, só podem ser devidos a um trabalho gradual d'orga-nisação, attestando sempre uma accumulação de po-der. Por esla forma as duas asserções, que acabo de enunciar, completam-se mutuamente.

Posto isto vejamos como se formula a hypothèse; e, para ter a certeza de me exprimir convenientemen-te, eu tomo as palavras do próprio auctor.

Para M. Spencer (2) as faculdades geralmente admittidas, — instinclo, memoria, razão, etc., são ape-nas um meio commodo de grupar e designar os phé-nomènes, mas não correspondem a diflerença alguma real: verdadeiramente essas faculdades constituem uma série, apresentando d'uma para outra classe transições insensíveis. Para chegar ao estado actual o espirito teve de percorrer todos os degraus que constituem essa série, progredindo n'uma evolução ascendente de

que o instincto representa um dos primeiros momen-tos.

Para o instincto não ha que duvidar; resulta evi-dentemente d'uma somma d'habitos hereditários.

To-(*) É, d'Hartman — Philosophie de l'incouseient. (2) Herbeit Spencer — Principes de psychologie.

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memos, diz M. Spencer, um animal aquático d'ordem inferior, munido d'olhos rudimentares. Esta visão nas-cente, sendo apenas um toque antecipado, não permit-tirá ao animal apreciar a passagem dos corpos opacos na agua senão quando elles estiverem muito perto dos olhos. Por consequência, na maior parte dos casos, esses corpos serão postos em contado com o seu or-ganismo e produzirão assim uma sensação tactil, que será seguida de contracções. Assim nos animaes d'esta espécie haverá constantemente esta successão: uma impressão visual, uma impressão tactil, uma contrac-ção. Se agora admittirmos que estados psychicos, que se seguem constantemente um ao outro, n'uma certa ordem, se prendem cada vez mais estreitamente n'essa mesma ordem de maneira a tornarem-se insepará-veis, segue-se que, se na experiência d'uma raça in-teira .d'organismos, uma impressão visual, uma im-pressão tactil e uma contracção forem continuamente repetidas debaixo d'esta forma successiva, os diversos estados nervosos serão tão solidamente relacionados que o primeiro não poderá produzir-se sem que os outros o sigam necessariamente.

Supponhamos agora no animal uma visão mais perfeita. Os mesmos corpos serão vistos a maior

dis-tancia e os mais pequenos quando estiverem mais pró-ximos. Ou não haverá collisão, ou será muito ligeira, sendo produzida pelo objecto mais pequeno que está mais proximo, e por consequência não haverá uma contracção forte, mas uma tensão parcial dos múscu-los, como a do animal que vae agarrar a presa. Assim — uma impressão visual, uma tensão dos músculos. O ultimo çstado permitte ao animal ou apoderar-se de

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um objecto pequeno, se está proximo, ou entrar na concha,- ou produzir movimentos convulsivos para es-capar a um inimigo.

Por ultimo supponhamos um desenvolvimento mais completo da visão e o habito de mover-se na agua. De todos os corpos que giram em torno d'elle os que lhe fazem maior impressão são os que vêem de face : primeiro vê-os, depois toca-os, e esse conta-cto traz-lhe muitas vezes para perto da cabeça ou dos órgãos tácteis alguns pequenos corpos, que podem ser-vir d'alimento. Excitação dos nervos da retina, exci-tação dos nervos dos órgãos de prehensão, exciexci-tação d'um conjuncto especial de músculos, eis a ordem da suecessão d'esses três estados psychicos. Pela sua re-petição em gerações sem numero elles devem relacio-nar-se tão intimamente que o primeiro evoca necessa-riamente os outros.

«Jd donc, nous voyons comment un instinct des

plus simples, sous les conditions requises, s'établira par me accumulation d'expériences.... qu'on accorde que cette tendence est héritée qoique à un degré très-faible, de sorte que, si les expériences restent les mêmes, cha-que génération successive legue um tendance cha-quelcha-que pen augmentée, il en résulte que, dans les cas semblables à celui que précède, il doit s'établir une connexion auto-matique d'actions nerveuses correspondant aux relations

externes perpétuellement expérimentées. (1)

(1) Herbert Spencer — Principes de psychologie = § 198.

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Para as formas superiores do pensamento um ra-ciocínio análogo conduz aos mesmos resultados. O at-tribute de duração encontra-se no fundo de todos os grupos de phenomenos, o de extensão no de quasi to-dos, a relação de causalidade no do maior numero, e, sendo assim, devem repetir-se milhões de vezes na vida d'um individuo/e por conseguitite tender pela experiência a tornarem-se orgânicos. «De même que

l'établissement de ces actions reflexes composées, que nous appelons instincts, est explicable, par ce principe que des relations internes s'organisent par une perpé-tuelle répétition, de façon a correspondre à des relations externes, de même l'établissement de ces relations men-tales instinctives qui constituent nos idées de temps et d'espace, est explicable par le même principe. Si, même pour des relations externes qu'un seid organisme a éprou-vées, il s'établit des relations internes qui sont pres-que automatipres-ques... alors, il doit arriver pres-que, s'il y a certaines relations qui ont été expirementées par tous les organismes quels qu'ils soient; relations éprouvées en même temps que toute autre expérience; relations qui sont absolument constantes, absolument universelles, — il s'établira graduellement dans l'organisme des relations qui sont absolument constantes, absolument universelles.

Telles sont les relations d'espace et de temps Étant les elements constants et infiniment répétées de toute pen-sée, ils doivent devenir les elements automatiques de tout pensée, — les elements de la pensée dont il est

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impos-sible de se défaire, — les formes de l'intuition.» (1)

As formas do pensamento, como as formas da vida são evoluções, não preformações. Se é certo que constituem as leis da experiência, é certo também que são o resultado da experiência; — são o resultado da experiência da raça e não da experiência individual ; são emíim o producto da hereditariedade.

Não lia muito que um pbysiologista notável disse que se um dia fôr permiltido a um ser humano pene-trar e comprebender as incognitas desesperadoras que

se lhe deparam, esse ser, herdeiro dos progressos

ac-(1) H. Spencer — Principes de psychologiá — pag. 208. Para mais auctorisar eata idea cuja exposição eu tive de fazer o mais resumidamente possível seja-me permiltido citar as palavras de dois escriptores de provada competência. «Seres vouloir affir-mer que l'espace et le temps sont en eux-mêmes de pures f<lrmes> conçues par l'esprit sans aucune rapport avec les choses particu-lières qui sont étendues et qui durent, M. Spencer prétend que ces notions ont acquis ce caractère abstrait par suite d'une transmis-sion héréditaire.» Bain — Logique deductive et inductive —vol. i, pag. 340. 0 auctor admitte completa-nente este modo de vêr.

« Tout le monde admet que les connaissances ne peuvent se transmettre d'une génération à l'autre, mais on reeonnait qu'il est possible d'hériter d'une aptitude plus grande à acquérir soit les connaissances en général, soit un certain genre de connaissances. Ces tendances et ces aptitudes prendront plus de force, d'expansion et de durée à chaque génération nouvelle, par l'habitude de s'exer-cer sur les matières que leur fournira une experience toujours croissante, et ainsi les habitudes acquises, produits par la culture intellectuelle des siècles, deviendront une seconde nature pour tous ceux qui en hériteront' M.Carpenter—Discours présidentiel dans l'associSt'ion britannique. Congrès de 1872—Revue scientifique —

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cumulados durante milhares d'annos deverá ser infini-tamente superior a nós mesmos e viverá sem duvida n'uma edade em que o pó de todas as raças actuaes estiver de ha muito disperso. Talvez assim seja. O que é certo é que ao nascer o homem não é a estatua vir-gem d'impressôes de que fallava Condillac, não é uma folha de papel em branco onde a experiência venha gravar as suas acquisições. Não; no seu organismo dormita a experiência de gerações sem numero ; o seu todo é o resumo d'um vasto conjuncto d'associaçôes, cuja historia não deve ser olvidada.

O grande mérito da escola evolucionista consiste em não acceitar o individuo como um typo creado de uma vez para sempre com lodos os seus attributos pbysicos e moraes: partindo d'esté principio o seu grande empenho é submettel-o a um processo minu-cioso d'analyse, desfazel-o camada por camada para

reconstituir a sua historia.

O que d'esta grande obra se acha realisado basta a fazer comprehender o largo papel que coube á he-reditariedade.

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Toda a modalidade statica ou dynarmca, physio-lógica ou patliologica, innala ou adquirida, que affecta um organismo durante toda ou uma grande parte da sua existúacia, é susceptivel de se reproduzir nos seus descendentes. Abundam em numerosos livros, e prin-cipalmente nos de P. Lucas (1) e Darwin (2) factos em apoio d'esta asserção.

D'aqui resulta para o principio hereditário um primeiro caracter, que é ao mesmo tempo um dos mais

salientes, — o de universalidade d'acçao. (3)

(t) P. Lucas — Traité de l'hérédité naturelle.

(2) Ch. Derwin — De la variation des animaux et des plan-tes — Cap. XII e seguinplan-tes.

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Em quanto que um exame attente dos phénomè-nes hereditários e o conhecimento das leis biológicas não tinham illucidado sufficientemente a natureza dos legados e a linha de transmissão, que haviam seguido, muitos naturalistas circumscreveram notavelmente o poder da hereditariedade, chegando alguns até negar completamente a sua intervenção. Foi assim que to-maram corpo e vogaram até ha muito pouco tempo as opiniões que, ou admittiam que a hereditariedade se applicava somente aos principaes caracteres e não aos pormenores de structura, ou sustentavam que, appli-cando-se aos pormenores que constituem as differen-ças especificas, não se applica aos que são menos sa-lientes. Para nós, que estamos habilitados a apreciar as ligeiras restricções que soffre a hereditariedade, con-cedendo á tendência que o organismo tem para va-riar, á acção do meio, á acção dos sexos, a parte que lhes cabe na resultante geral do organismo, o princi-pio d'hereditariedade tem um império verdadeiramen-te illimitado : admittimos sem hezitação que, não sen-do annuliada por outras influencias naturaes, a ten-dência para a repetição se exerce sobre todas as ma-nifestações vitaes.

Importa porém, não perder de vista que é a esta tendência para a repetição, e nada mais que se applica o principio d'hereditariedade. Imagine-se um typo qualquer mórbido ou physiologico assaz preponderante para determinar a direcção d'um movimento organi-sador parallèle em toda a economia. Goncebe-se que a infinita variedade de reacções vitaes assim motiva-das desorientaria dentro em pouco o impulso inicial, fazendo surgir do embate de circumstancias fortuitas

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um novo typo, se uma força egualmente poderosa não mantivesse, dominando-a, a linha de direcção d'aquelle movimento. Essa força é a hereditariedade, e a linha que ella traça seria constituída na sua forma ideal por uma successão de pontos idênticos, se a acção d'outras forças a não obrigassem a algumas concessões. Ainda assim cumpre reconhecer que ella domina soberana-mente todas as manifestações, que entram na sua as-phera d'acçâo, e, por mais variadas que ellas se nos afigurem na successão dos indivíduos, sempre è certo que todas se acham invencívelmente prezas a uma for-ma typica. Muitas vezes mesmo a hereditariedade, livre de todas as outras influencias, ou porque as supplan-tou, ou porque ellas deixaram d'actuar, readquire todo o seu império e então aquella forma reproduz-se de-pois de muitas gerações exactamente com os mesmos caracteres, que tinha quando appareceu, constituindo os numerosos factos d'atavismo. Foi attendendo a esta circumstancia que Goethe designou o poder interno de hereditariedade que mantém a unidade do typo por

vis centrípeta. (1)

Quando, decorridas cem gerações, nós vemos reap-parecerem os mesmos caracteres, o espirito pasma deante do enorme poder de fixação e de tenacidade de . que esta força dispõe, recordando ao mesmo tempo

as conceituosas palavras de Virchow a propósito d'um assumpto muito similhante : «se, á imitação do hes-toriador e do pregador, o naturalista costumasse

ex-il) Goethe cit. por Haeckel — Histoire de la creation natu-relle — pag. 80.

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primir por uma vã ostentação de grandes palavras sonoras phenomenos prodigiosos e únicos na sua es-pécie, seria occasião de o fazer. » É assmi que a he-reditariedade réalisa a seu modo o—nada se perde — que a sciencia d'hoje proclama. Na lucta sem tré-guas, que tem a sustentar no campo da vida, ella retra-he-se por vezes, parecendo ter-se aniquilado, mas, no momento opportuno de readquirir os seus direitos)

apparece com o caracter de solidez invencível e de per-sistência obstinada que a distinguem e que, na phra-se elegante e profundamente verdadeira de Ribot, a fazem considerar como um d'esses numerosos laços inflexíveis, pelos quaes a omnipotente Natureza nos vincula na corrente da necessidade.

O empenho, que todos os que se teem occupado d'esté assumpto manifestam em fazer sobresahir o ca-racter de poder essencialmente conservador, indica bem quanta importância elle tem e quão perigoso seria es-quecel-o. A hereditariedade não cria coisa alguma, con-serva apenas. Se no decurso da vida nós vemos um caracter ou modalidade qualquer modificar-se progres-sivamente, caminhando n'um sentido de maior especi-alisação, isso significa simplesmente que a heredita-riedade não é a Única força que actua sobre o orga-nismo. Tudo o que vive tende a variar, realisando uma

evolução que lhe é propria, e basta recordar o que eu disse no primeiro capitulo d'esté trabalho acerca das relações da hereditariedade com a evolução para apre-ciar o que cabe a uma e a outra. É tanto mais para attender esta consideração, quanto que nós sabemos que um certo numero de modificações accumuladas, e tornando-se com o decorrer do tempo orgânicas, são

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a condição de novas modificações, por forma que o confronto d'estas com aquelias faz pensar n'uma po-tencia creadora. Existe de facto essa popo-tencia, mas è muito différente da hereditariedade ; é a sua anta-gonista.

No que hei escripto até aqui parece-rae ter defi-nido mais ou menos explicitamente o segundo termo do antagonismo que acabo de apontar: no entanto, como a expressão que empreguei tem sido por mais d'uma vez adoptada para exprimir idèas muito différentes, é de toda a necessidade que eu me explique mais d'es-paço.

P. Lucas, (1) deduzindo a lei d'hereditariedade de considerações metaphysicas, chega á conclusão de que no acto primeiro da creação, e ainda hoje em toda a natureza, existem duas leis que presidem a todo o acto creador, dominando os attributos do objecto creado ; — a lei d'invençao, d'onde resulta o diverso, e a lei d'imitaçao, d'onde resulta o similhante. Referidas uma e outra é procreação, isto é, ao facto do nascimento e ao acto orgânico da geração, ellas devem necessaria-mente, ao passar por esta fonte, participar d'eila, e, mudando de relações, mudar de nome. «Dans cette

transition de la création á la procréation, la loi d'inven-tion devient l'inneité, qui représenté ce qu'il y a d'origi-nalité, d'imagination et de liberté de la vie dans la gé-nération mediate de l'être. La loi d'imitation devient l'hérédité qui represente ce qu'il y a de répétition et de

(1) P. Lucas. — Traite de l'hérédité naturelle. Tom l.s pag-21 e seguintes.

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mémoire de la vie dans la même nature de génération.» (i) No entender pois d'esté auctor a verdadeira

anta-gonista da lei d'hereditariedade é a inneidade, a que elle attribue egualmente o caracter de lei.

Não me demorarei em combater este modo de pensar, a cuja elaboração eu não posso deixar de re-conhecer que presidiu um saber profundo guiado pelo desejo de dar uma solução satisfatória a um dos pro-blemas que na edade media agitou mais fortemente a escholastica, e que ainda no século XIX se impunha ao espirito eminentemente philósophico de Lucas; — o problema da individuação. Não só o ponto de vista em que me colloque!, que é o da evolução biológica, me não permitte acceitar como factor de qualquer transformação uma lei différente das de hereditarie-dade e adaptação, e que além d'isso é nada menos que hypothetica e metaphysicamente deduzida, mas tam-bém os argumentos de Lemoine, Ribot e Lorin, dema-siadamente conhecidos.são assaz concludentes para não deixar duvida a tal respeito. Comtudo não passarei adeante sem apontar a antinomia que existe entre a noção de lei, que exprime a relação invariável de cau-sa paia effeito, e a inneidade tal como Lucas a inten-de, isto é, a variação caprichosa e irregrada da natu-reza. De resto a seguinte passagem de Lemoine

(Psy-chologie morbide) citada por Lorin e Ribot (2) encerra

uma apreciação muito exacta d'esté emprego de duas leis, uma d'hereditariedade, outra d'inneidade que se

(1) P. Lucas. O. C. tom. I. pag. 96. (2) Ribot— L'Hérédité — pag. 296.

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supprem mutuamente com uma complacência inexgo-tavel. a Quand l'une est en défaut> et fait courir au

système le risque de couler bas, vite on fait intervenir l'autre que sauve tout avec un mot. Un aliéné, est fils d'aliéné, on invoque la loi d'hérédité pour expliquer sa folie. Un idiot nait de parents et descend d'ancêtres tous sains de corps et d'esprit, on invoque Vinnéité. Nous croyons, accrescenta Ribot, avec lui que l'innéité ainsi entendue est une qualité occulte, une explication qui n'explique rien, comme le Quia est in eo virtus

dormi-tiva.»

Concluindo eu direi, pois, que universalidade de acção, conservação absoluta, tenaz e indefinida são os attributos essenciaes do principio de hereditariedade, os caracteres com que elle se exerce em qualquer das suas formulas d'acçâo.

As duas classificações, que até hoje se teem feito d'essas formulas, verdadeiras leis empíricas a que se referem os factos d'hereditariedade, revelam nas dif-ferenças, que as separam, os progressos realisados, já pelas investigações experimentaes, já pelas conce-pções theoricas, no campo dos phénomènes hereditá-rios. A primeira d'essas classificações é exposta por Lucas, 'da maneira seguinte :

I Hireditariedade directa, quando os

indi-víduos representados são os auctores immédiates; A — Ambos os pães são egualmente representa-dos

B •—• Um d'elles é-o mais particularmente, e en-tão

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a — a hereditariedade exerce-se entre os

se-xos do mesmo nome; do pae ao filho, da mãe á filha.

b — a hereditariedade tem logar entre os

sexos de nome contrario; do pae á filha, da mãe ao filho.

II Hereditariedade indirecta, quando os in-dividues representados são ascendentes collateraes.

IH Atavismo, quando o individuo reproduz as qualidades d'antepassados remotos.

IV Hereditariedade de influencia, quando reproduz as qualidades de cônjuges anteriores.

A classificação de M. Lucas toma, pois, para base a linha de transmissão do legado, e debaixo d'esté ponto de vista não ha duvida que satisfaz completa-mente, visto que encerra a formula de todas as direc-ções. No entanto o seu quadro é por demais circum-scripto, precisamente porque a base que adoptou é li-mitadissima. No estudo do phenomeno hereditário não ha só a attender á relação de parentesco entre o re-presentante e o representado: é um dos elementos de estudo por certo, mas outros ha que sobrelevam em importância para o fim de uma boa classificação, e esses, exprimindo mais de perto a natureza do legado, não só alargam notavelmente a área de classificação, mas ainda fornecem esclarecimentos precisos acerca dos principaes caracteres do phenomeno em si. Uma classificação é tanto mais perfeita quanto mais largo é o circulo que abrange e quanto mais bem

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determina-do é o numero de divisões irreductiveis que encerra. Ora, na classificação que precede, seria desde já pos-sivel fazer uma reducção importante, referindo a dois casos principaes todos os phenomenos de hereditarie-dade : — hereditariehereditarie-dade immediata e mediata. Com-parando ainda os casos d'hereditariedade mediata com certos phenomenos de reproducção conhecidos sob o nome de gerações alternantes, não seria difficil fazel-a entrar nos casos d'hereditariedade immediata, reali-sando assim uma ultima simplificação tendente a fazer considerar a hereditariedade como um cyclo, de que apenas restaria estudar as phases d'evoluçao. Assim, ao passo que se foram restringindo as divisões, a con-cepção do phenomeno foi ganhando em amplidão, al-tingindo por ultimo uma grande generalidade.

Não é ainda hoje possível codificar em verdadei-ras leis de historia natural lodos os casos d'heredita-riedade, porque, apesar de numerosos estudos, a com-plexidade dos phenomenos por um lado, e por outro a ausência d'esclarecimentos sobre assumptos, de que este depende, o não consentem. Dirigindo-se aos seus ouvintes Haeckel dizia-lhes a este respeito : «Je n'aurai

donc à vous communiquer au sujet des diverses lois de hérédité que quelques fragments empruntés au trésor, d'une richesse infinie, qui s'ouvre ici avant le savoir humain.-» (1) Não obstante, a melhor exposição, que,

quanto a mim, se tem feito até hoje das leis

d'here-(1) E. Hacekel — Histoire dela création naturelle — pag 183.

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ditariedade, é a que este auctor apresenta na sua nona conferencia e que eu adopto n'este trabalho.

Todos os phénomènes d'hereditariedade podem ser hoje referidos a dois grupos muito geraes, desde que se demonstrou que o individuo pode transmittir ao seu immediate descendente as particularidades ad-quiridas durante a sua vida. Ao primeiro grupo per-tencem todos os casos em que a hereditariedade pside á transmissão das qualidades que o individuo re-cebeu dos ascendentes, ao segundo aquelles em que ella dá logar á de qualidades adquiridas pelo indivi-duo; por forma que o mesmo principio domina phé-nomènes, que, idênticos na essência, são oppostos quanto ao seu destino ulterior. Expliquemo-nos. Não é certo que a lei d'especialisaçao e complexidade cres-cente domina todos os phénomènes biológicos ou a sua resultante immediata ? Não é certo ainda que a con-firmação d'esta lei depende antes da revolução de mui-tas gerações, do que de toda a duração da existência individual? Não é certo, por ultimo, que, para que esta condição se realise, é necessário que as gerações comprehendidas dentro do cyclo d'evoluçâo do phéno-mène particular, sobre que está actuando a lei de es-pecialisação, transmittam d'umas ás outras os progres-sos realisados n'esse sentido por cada uma d'ellas?A hereditariedade, portanto, desde que assegura a trans-missão de qualidades adquiridas, é uma condição de progresso.

Imagine-se agora que, passadas cinco, seis ou mais gerações, em que a lei d'hereditariedade se exer-ceu em condições favoráveis á lei d'especialisaçao, o phenemeno sobre que se ia operando o movimento

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progressivo surge exactamente como nos primeiros momentos da evolução ou em grau pouco adiantado d'esta. Todo o progresso cessou, ou foi momentanea-mente interrompido, e n'este caso a hereditariedade reveste o caracter inflexivel, que já lhe reconhecemos, de principio conservador.

N'um como n'outro caso o principio é o mesmo: os resultados é que variam, e a hereditaridade cha-ma-se no primeiro progressiva, no segundo

conserva-dora.

Occupemo-nos em primeiro logar d'esta ultima. A hereditariedade conservadora encerra como leis de maior generalidade— 1.° a lei de hereditariedade

ininterrompida, — 2.° a lei de hereditariedade inter-mittente, que também se pôde chamar hereditariedade latente ou alternante,—3.° a lei de hereditariedade se-xual, — 4.° a lei de hereditariedade bilateral, — 5.° a

lei de hereditariedade abreviada.

A lei d'hereditariedade ininterrompida é de certo a mais geral, dando mesmo logar ao axioma, que é ao mesmo tempo o facto capital da hereditariedade, — o similhante, — ou, como Hajfckel corrige, — o análogo produz o análogo. Em virtude d'ella o pae pa-rece-se egualmente com os avós e com os filhos.

Outro tanto não acontece nos casos d'hereditarie-dade intermittente, em virtude da qual, como o nome indica, o legado parece saltar por cima d'uma ou mais gerações: o filho, longe de se parecer com o pae, as-similha-se a um membro da segunda, terceira ou mais longínqua geração, por forma que esta lei se apresen-ta á primeira visapresen-ta em perfeito anapresen-tagonismo com a precedente. Não é assim que eu a considero: e era

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outra parte d'esté capitulo, quando esta mesma idêa se me apresentou debaixo d'oulra forma, já eu me pro-nunciei sobre o sentido, que se lhe devia ligar. A lei d'hereditariedade intermittente, á qual se referem os casos d'atavismo, de gerações alternantes e talvez os d'hereditariedade em epochas correspondentes da vida, poder-sé-ha reduzir á lei d'hereditariedade ininterrom-pida desde o momento em que se prove que o indi-viduo pode reter durante toda a sua vida como cara-cteres latentes todos aquelles, que pela sua ausência o tornam dissimilhante dos progenitores, e que esses caracteres podem apresentar-se na terceira geração sem alteração alguma, de maneira a dar á progressão hereditaria a forma seguinte A - C — E ou outra equivalente. Depois d'isto restaria apenas que na for-mula que encerra a lei se exprimisse a duração do cy-clo hereditário. Ora está com effeito averiguado que os caracteres d'uma geração se podem conservar em estado latente nas immediatas, prestes a manifestarem-se em certas condições, manifestarem-sem que nos manifestarem-seja possível descobrir vestígio algum da sua presença ; e um dos exemplos mais palpitantes encontra-se, segundo Da-rwin, (1) nos caracteres sexuaes secundários : — em cada fêmea existem no estado latente todos os cara-cteres masculinos, em cada macho todos os caracara-cteres femininos. Entre muitos factos, que o demonstram, nós vemos dar-se, por exemplo, a transmissão d'um hydrocele do avô ao neto por intermédio da filha. Foi

(1) Ch. Darwin — Variation des animaux et des plantes. — Tom. ii, pag. S3 e seguintes.

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por isso que esta lei foi designada também pelo nome d'hereditariedade latente, e é força confessar que assim desenvolvida ella aniquilla a idêa de que os factos de atavismo sejam devidos á combinação de circumstan-cias raras ou accidentaes. Para certos casos de doença Sedgwik mostrou mesmo que o atavismo é quasi in-variavelmente a regra.

Toda esta douctrina dos caracteres latentes, cujo desenvolvimento se pode 1er no livro de Darwin, tem em hereditariedade uma importância summa. Além dos numerosos casos que é destinada a illucidar, a sua applicação immediata ás leis d'hereditariedade inter-mittente e d'hereditaridade sexual bastariam a fazel-a considerar como um precioso recurso d'interpretaçâo scientiflca. A lei d'hereditariedade spxual realisa-se to-das as vezes que cada sexo transmitte á sua posteri-dade caracteres particulares, que não lega aos descen-dentes do outro sexo. Um dos exemplos mais frisan-tes é, como acaba de ver-so, a transmissão dos cara-cteres sexuaes secundários.

A quarta lei applica-se aos casos em que o indi-viduo recebe de cada um dos progenitores caracteres particulares.

Quanto á quinta lei, finalmente, eis como Haeckel se exprime : — «L'ontogenie ou l'histoire du

devollope-ment de l'individu, est simpledevollope-ment um recapitulation courte, rapide, conforme aux lois de l'hérédité et de la adaption, de la phylogénie, c'-est-â-dire de l'évolution paléontologique de toute la tribu organique, á l'aquelle

appartient l'individu examiné... Mais le parallélisme ou la eoncordance de deux séries évolutives ne sont ja-mais rigoureusement exactes. Toujours il y a dans

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l'on-44

togênie des lacunes, des sauts repondant à l'absence de quelques stades phylogeniques». São essas lacunas, é

essa abreviação que são umas e outra dividas á lei de hereditariedade abreviada.

As leis comprehendidas no segundo grupo, e que portanto se appiicam aos casos d'hereditariedada pro-gressiva, recebem da sua frequente applicação e da importância dos resultados, que dominara, uma

confir-mação não menos accentuada que as do grupo prece-dente, as únicas que até ha pouco eram conhecidas. Antes dos trabalhos de Darwin eu não sei que alguém se aventurasse n'este terreno, onde de mais a mais faltava a luz d'uma theoria para dirigir os exforços da observação. De pouco serviria corn effeito o conheci-mento da hereditariedade de particularidades adquiri-das se o observador, munido d'um núcleo d'idêas di-rectrizes, as não podesse afferir por ellas com o fim de lhes dar uma interpretação cathegorica. Fora d'isto permaneceriam como outros tantos factos isolados a complicar os resultados da experiência sem alargarem por forma nenhuma a esphera das acquisições intel-lectuaes. Para proceder logicamente na deducção das leis d'hereditariedade progressiva importava sobretudo averiguar até que ponto se realisava a transmissão das particularidades adquiridas ; e foi assim que, só depois de demorada observação, o facto primordial e característico, sobre que assentara todas as conside-rações relativas á investigação dos princípios por que se regera os phenoraenos incluídos n'este grupo, foi elevado á altura d'uraa verdadeira lei, que em virtude da sua generalidade se acha á frente de todas as ou-tras. É a lei de hereditariedade adaptada ou adquirida

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e exprime a idea de que em circumstancias dadas o organismo pode transiniltir á sua descendência todas as propriedades, que adquiriu durante a vida. Apesar da sua generalidade, porém, esta lei conta algumas excepções, cujas condições determinantes nós infeliz-mente não podemos precisar. O que sabemos é que de todas as modificações orgânicas adquiridas nem to-das sãoegualmente transmissíveis: taes são entre ou-tras a maior parte dos casos de mutilação por motivo de feridas. Esses casos, no entanto, não bastam para invalidar a lei, visto que por outro lado é egualmente certo que alterações de forma violentamente produzi-das, bem como numerosas doenças, podem lornar-se hereditárias. (1)

Até q^e ponto devem ser fixadas para se trans-mittirem as qualidades adquiridas? É o que a segun-da lei d'hereditariesegun-dade progressiva procura determi-nar, affirmando que as propriedades adquiridas são com tanto maior certeza transraittidas quanto maior foi o espaço de tempo durante o qual o individuo es-teve submettido ás causas modificadoras, e que, por outro lado, essas propriedades são tanto mais heredi-tárias atravez da série das gerações quanto maior foi também o espaço de tempo durante que essas gera-ções se acharam sob a influencia das mesmas causas. Não vemos nós a cada passo que a phthisica, por exem-plo, que n'uma geração apenas se manifesta num dos membros da família, vae nas gerações seguintes au-gmentande o numero das suas victimas, por tal modo

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que a qnarta ou quinta é totalmente sacrificada por este flagello a ponto de muitos, em vista d'isso, a considerarem como uma espécie de voragem destina-da a fazer desapparecer as raças viciadestina-das e a limpar assim a humanidade do que poderíamos considerar como verdadeiras fezes? O mesmo acontece com a gotta, com o rheumatismo, com as doenças mentaes, etc. A lei, a que obedecem estes casos, enunciada co-mo foi, pode denominar-se lei de hereditariedade

fixa-da ou constituifixa-da.

Resta finalmente, para concluir o estudo das leis pertencentes a este grupo, apresentar duas ultimas, que na pathoiogia das doenças hereditárias se podem considerar fundamentaes.

A lei de hereditariedade homochrona, que Darwin chama — lei d'hereditariedade nas idades correspon-dentes,— faz com que uma doença appareça nos des-cendentes no mesmo período da vida em que o orga-nismo paterno a adquiriu. As doenças hereditárias dos pulmões, do fígado, dos dentes, do cérebro, da pelle conflrmam-a a cada passo.

A lei de hereditariedade homotopica, ou, segundo Darwin, lei de hereditariedade nas mesmas regiões, não menos evidente que a precedente nos casos d'heredi-tariedade pathologica, applica-se nos casos em que, por exemplo, largas manchas hepáticas (pityriaris

ver-sicolor), manchas pigmentares, tumores cutâneos, etc.,

apparecem durante uma série de gerações não só nas mesmas epochas da vida, mas em pontos correspon-dentes do corpo.

Taes são os modos d'acçao genéricos do princi-pio d'hereditariedade que me propuz estudar n'este

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capitulo. Acho inutil insistir sobre o caracter empírico d'estas leis: quando no estudo d'um phenomeno não se pode attender a todas as variáveis, ou parque se ignora o modo de ser de cada uma d'ellas, ou porque-conhecendo-o, o numero e a complicação das suas re-lações se oppoem á descoberta da lei ultima, o espi-rito recorre ás formulas empíricas que, sendo d'uma generalidade secundaria, lhe servem de degrau para generalidades mais elevadas. Todas as que acabo de enumerar estão n'esse caso.

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IK

# fÉmïp$ iímãiUtuiuk t &

Um dos progressos mais notáveis realisados mo-dernamente no campo da pathologia consiste na rápida mudança d'opiniôes a respeito da antiga divisão das doenças em agudas e chronicas e no modo d'encarar a etiologia d'umas e d'outras. E esta mudança toca tão de perto no coração do assumpto, que nos propo-mos tractar n'este capitulo, que não podepropo-mos deixar de lhe consagrar algumas palavras.

Um distincto professor inglez, M. Samuel Wilks, presidente da secção de medicina no congresso dé 1872 da associação medica britannica, discorrendo sobre os progressos de medicina referia-se nos seguintes termos aquella questão : Une des méthodes usuelles

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aiguë survenant chez des sujets sains : or le désappoin-tement que j'éprouvai et qui était partagé por tmsmes camarades, à m pas trouver ces càs-là dans les salles d'hôpital, me convainquit bientôt qu'il y avait là

quel-• que chose de faux. Nom voyons une. grande quantité / C d'affeéions chroniques et accidentellermnt une maladie

aiguë, de sorte que il devient évident pour nous qu'à l'exception des affections aiguës de m poitrine dues aux changements de température extérieure, une inflamma-tion aiguë survenant chez une personne saine était ce qu'il y avait de plus rare. (1) A affirmaçao de M.

Wil-ks não tem nada de gratuita, e os estudos pathologi-eos especiaes proseguidos com infatigável canceira ten-dem a dar-llie ama confirmação absoluta. É, pois, cer-to que a grande maioria das doenças agudas é devida, como todas as doenças chronicas, á persistência d'um estado geral mórbido da economia, de que a doença, que se nos apresenta, é apenas uma manifestação ou symptoma, e, ou se admitta que os progressos do bem-estar e melhoramento de todas as condições devidos á mais frequente applicação dos recursos d'hygiène publica e privada tenham prolongado a vida de pes-soas valetudinárias, que sem isso teriam succumbido desde a juventude, e lhe permittam assim chegar a uma edade avançada, multiplicando pela propagação o numero das victimas designadas das diatheses heredi-tárias, ou se façam intervir n'aquelle resultado outras causas, ou ainda se considere como uma asserção, a que conduziram processos mais bem dirigidos

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lyse e observação medicas, nem por isso deixa de ser geralmente admittido que a causa de taes doenças ó mixta, e que é necessário para as produzir a con-corrência d'uma certa predisposição orgânica e de cir-cumstancias atmosphencas favoráveis. O que d'esta mudança d'opiniâo resultou para a etiologia é fácil de prever : primeiramente a doença deixou de ser con-siderada como uma entidade distincta caindo de golpe sobre o individuo ; em segundo logar o quadro etioló-gico foi consideravelmente alargado, e a hereditarieda-de collocada á frente das causas mais frequentes hereditarieda-de doença. Desde que se cenceba uma doença como chro-nica na sua causa, quando mesmo os symptomas sejam agudos, a primeira necessidade medica a satisfazer ó conhecer as condições pathologlcas intrínsecas em que um individuo se acha, e para isso importa principal-mente estudal-o nos seus antepassados.

É por este lado que o assumpto se prende ao que annunciamos na nossa épigraphe. Antes porem de pas-sar adiante eu julgo de toda a necessidade precipas-sar o sentido das palavras, que emprego, visto que algumas d'ellas teem sido tomadas para exprmir idêas

diffé-rentes.

Eu considero diathese : — o estado mórbido geral sob cuja influencia se produzem atfecções conslltucio-naes.

Chamo affecções constituclonaes—os estados mór-bidos, que affectam todos os processos vltaes, acom-panhando-se de manifestações locaes particulares.

Por constituição entendo — o estado orgânico in-dividual e especial, que mede a intensidade diathesica.

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constitucional, a principio minima, não comprometten-do por forma alguma a saúde individual, não se mani-festando por signal algum apreciável, se vai progres-sivamente accentuando, trahindo-se em graus cada vez mais adiantados por lesões que indicam já uma tituição mórbida, e termina por fim na doença cons-titucional completa e evidente com as suas manifesta-ções locaes características, ó suppor no fundo do pro-cesso pathologico uma evolução de todo o ponto aná-loga á que se dá no estado physiologico, evolução em que o principio d'hereditariedade se revela com todos os caracteres e modos d'acçao que temos estudado até

aqui.

Ha n'este raciocínio uma primeira proposição a demonstrar, e vem a ser a realidade d'estas mudanças progressivas que se operam no processo pathologico. Muitas d'ellas, é certo, são a maior parte das vezes inapreciáveis, principalmente quando affectam a cons-tituição em grau pouco elevado : no entanto pode affir-mar-se que n'um grande numero de casos se obser-vam entre os primeiros signaes que denotam uma viciação do organismo e as affecções locaes pathogno-moniás de cada um dos estados diathesicos lesões se-cundarias mais ou menos importantes, expressivas do grau d'intensidade d'esses estados. A escrófula, por exemplo, tem por affecção local pathognomonica o en-gorgitamento ou suppuração dos ganglios lymphaticos, com corrimento d'um pus especial, com pouca tendên-cia para a cicatrisação, deixando por ultimo cicatrises irregulares e raiadas de vermelho. Mas, antes de che-gar a esta manifestação, o individuo apresenta em dif-férentes períodos da vida entumescimento da mucosa

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que cobre os cornetos, tumefacções do periosseo das phalanges, otorrhea, pústulas no bordo livre da cornea, -impetigocomentumescunentoganglionar,etc. que,

exis-tindo isoladamente ou successivamente não caracteri-sariara por si a affecção escrofulosa, sendo comtudo preliminares ou stadios da diathese. O mesmo acon-tece com a gotta, da qual uma dyspepsia mais ou menos incommoda, frequentes depósitos d'uratos, ligeiras eru-pções eczematozas de tempos .a tempos, dores anor-raaes nos diversos músculos, estalidos na região cer-vical do rachis nos movimentos pouco extensos do pes-coço, etc, podem ser igualmente considerados como provas das mudanças que vai realisando até attingir o estado de climax. Sir J. Paget, que me serve de guia em tal assumpto, não admitte a menor duvida a este respeito. On peut être sur de la réalité des changements

progressifs par lesquelles ce que nous appelons une pré-disposition ou tendance constitutionelle, devient une ma-ladie constitutiomlle, de même que les deux noms de gar-çon e d'homme signifient la même chose á des périodes différents, (1) Baumes, mesmo depois de ter

exprimi-do a mesma opinião nos seguintes termos : — M

dia-theses préludent déjà dans le jeune age au rôle pré-pondérant qu'elles joueront plus tard (2) apresenta em

seguida a marcha ordinária dos signaes precursores. das diatheses dartrosa, catarrhal, tuberculosa, e ou-tras.

Se por um lado a experiência confirma a

realida-(1) Sir James Paget— Leçons de clinique chirurgicale (cli-nical lectures and essays) pag. 70.

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de d'esta evolução, os princípios, que temos exposto no decurso d'esté trabalho, illucidam a natureza do processo. Ninguém hoje admitte que as diatheses se-jam devidas a virus particulares introduzidos no san-gue, posto que o sangue seja realmente um dos ele-mentos viciados : o que todos admittem, e o que pa-rece incontestável, é que em virtude de más condições hygienicas, desfavoráveis a um estado orgânico nor-mal e a um exercido regular das funcções, condições que actuaram sobre os nossos antepassados ou sobre nós, se foi estabelecendo uma disposição viciosa da ma-teria que constituo o aggregado humano, dando origem a perturbações funccionaes correspondentes. Debaixo da acção continuada das mesmas causas os resultados deveram seguir a lei geral d'evoluçao e portanto ca-minhar em especialisação e complexidade crescentes ; porque de facto a modalidade pathologica, por não se apresentar favorável á economia, nem por isso deixa de ser constituída por uma mudança das partes, que a compõem, e nova distribuição das forças que a animam, o que representa o caso typico exigido para a realisa-ção absoluta da lei devolurealisa-ção. Não é pnr certn um movimento adaptativo, porque a causa que o produz é uma condição anómala; mas ainda assim não são raros os casos em que elle pode conduzir a uma adaptação mais ou menos completa, e tanto basta para demons-trar a identidade do processo. Não é este porem o caso mais frequente: o que de ordinário acontece é que o equilíbrio orgânico alterado vai perdendo gradualmente a sua força de resistência, e, a cada passo que este recua, desconcertando-se, e a doença avança,

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