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O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

MARÍA LAURA CORVALÁN

O desvendar do vento:

manifestações artísticas da dança de orixás.

Salvador

2012

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MARÍA LAURA CORVALÁN

O desvendar do vento:

manifestações artísticas da dança de orixás.

Dissertação a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Gilsamara Moura Robert Pires

Salvador

2012

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Corvalán, Maria Laura.

O desvendar do vento : manifestações artísticas da dança de orixás / María Laura Corvalán. - 2013.

116 f. : il.

Orientadora : Profª. Drª. Gilsamara Moura Robert Pires.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2012.

1. Bispo, Tania. 2. Soares, Isa. 3. Dança - Traduções. 4. Dança dos orixás. 5. Dança moderna. I. Pires, Gilsamara Moura Robert. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título.

CDD - 793.3

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MARÍA LAURA CORVALÁN

O desvendar do vento:

manifestações artísticas da dança de orixás.

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Dança, Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 20 de Fevereiro de 2013 Banca Examinadora

______________________________________ Prof. Dra. Gilsamara Moura Robert Pires (PPGDança – Universidade Federal da Bahia) _______________________________________ Prof. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos

(Instituto de Artes/ UNICAMP)

________________________________________ Prof. Dra. Helena Katz

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AGRADECIMENTOS

A Isa Soares, por abrir meus caminhos da dança e da vida.

A Tânia Bispo, por me possibilitar dançar meus mitos e transformá-los.

Às duas professoras, Isa e Tânia, pela confiança, generosidade e envolvimento neste trabalho.

A meu avô paterno, Tata Manolo (in memorian), por me transmitir o gosto pela música e pela dança.

A minha avó materna, Lala Dorita, pelo apoio e as rezas a distância.

A minha mãe, Beatriz Splendiani e meu pai, Victor Corvalán, por confiar nos meus passos, mesmo incompreensíveis, desviados, incertos, ousados...

A minha madrinha, Susana Splendiani, pela força constante.

A minha querida orientadora Profa. Dra. Gilsamara Moura, pela escuta sensível e cuidadosa, e pela cumplicidade.

À Profa. Dra. Helena Katz, por me reafirmar no caminho e valorizar meu trabalho como artista e pesquisadora.

À Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos, pela disposição e suas preciosas devoluções. Aos meus irmãos Manuel, Luciano, Andrea, Malena e Victoria, por estarem presentes, me acompanhando cada um a seu modo.

Às minhas amigas e parceiras nesta caminhada: Julia Broguet, Betina Pellegrini, Juana Lamas e Silvana Saavedra, e todas as pessoas que passaram por Iró Bàradé.

A Juan Pablo Cruciani – Cipó - amigo e professor de capoeira angola, e ao grupo Terreiro Mandinga de Angola, Rosário. Por irmos juntos, desde sempre, na caminhada. A Javier Infante, Laura Ro, Mariana Pereiro e a todos que fazem parte de Alábase. A Fernando Herrera, pelo seu envolvimento e contribuição na montagem dos vídeos. A Mãe Silvia de Iansã e o Terreiro ‘Ilê Axé Opon de Obaluaye ati Iansã’, da cidade de Resistência, Chaco, Argentina.

A Tata Muta Imê Santos, pelas profundas conversas e os ensinamentos sobre o universo sagrado dos candomblés.

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A Edivandete Santos Pires – Obã Itanã - pelo acolhimento no universo religioso em Salvador.

Ao grupo Nzinga de capoeira angola por ser minha família em Salvador, e me dar tantos momentos de felicidade e aprendizado.

A Mãe ‘Francisca de Iansã’ - Chica – por me receber, com tanta abertura, em suas festas no terreiro “Ilê Axe Oiá Jambeleji”, em Salvador.

A Escola de Dança da UFBA e ao PPGDança pelas referências nos modos de fazer, de indagar, de escrever outra dança, de dançar outra escrita.

A CAPES, pelo apoio financeiro que me permitiu realizar a pesquisa com maior dedicação e concentração.

Às minhas amigas de sempre, Paula Scaroni e sua irmã Anita Scaroni (in memorian), por me ensinarem a viver olhando para a luz da vida, e a tecer relações sempre com positividade e alegria.

A todos os amigos e pessoas que fizeram parte deste processo de pesquisa, que vai muito além dos anos de mestrado.

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CORVALÁN, María Laura. O desvendar do vento: manifestações artísticas das danças dos orixás. (116) Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.

RESUMO

Esta pesquisa se propôs abordar e refletir sobre as manifestações artísticas das danças dos orixás de duas dançarinas baianas: Tânia Bispo e Isa Soares, que moram, respectivamente, em Salvador e em Buenos Aires, iluminando os diferentes modos de traduzir que cada uma construiu, entre o universo mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança dos seus respectivos e distintos contextos. Para este estudo, foi escolhido um mito que fala da relação de dois orixás: Omolú\Obaluaiê, a energia da terra, e Iansã, a energia do vento e do ar. A pesquisa parte da proposta de tradução cosmopolita proposta pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que reconhece que não há uma teoria geral, mas que todas as culturas pressupõem incompletudes. Portanto, a tradução sempre implicará em criação e transformação. Assim, este trabalho de tradução permite tirar do escuro certas experiências que não são legitimadas pela monocultura ocidental. A bibliografia que apoia a construção desta reflexão parte de Souza Santos (2002), Carvalho (2002), Dominguez (2004), Motta (2009), Elbein dos Santos (2002), entre outros. As manifestações artísticas de Tânia Bispo e Isa Soares são um modo de dar visibilidade a saberes e práticas que não existem na educação oficial. Sob a hipótese de que sempre que uma dança ocorre, num contexto diferente de onde supostamente surgiu, há então uma tradução, o trabalho apontou para a necessidade de outra tradução corporal, inspirada pelas duas artistas aqui estudadas, porém realizada pela pesquisadora desta dissertação.

Palavras-chaves: Tradução cultural, manifestação artística, dança dos orixás, Tânia Bispo, Isa Soares.

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CORVALÁN, María Laura. O desvendar do vento: manifestações artísticas das danças dos orixás. (116) Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.

ABSTRACT

This research propose to deal with and think about the artistic manifestations of the dance of the orixás of two bahian dancers, Tania Bispo and Isa Soares, who lives, respectively in Salvador and Buenos Aires, enlightening the different ways of translation that each one built between the mythological universe of the orixás and the artistic and contemporary environment of the dance on their own different contexts. For this study, was chosen a myth that talk about the relationship between two orixas:

Omolú\Obaluaiê, the earth energy, and Iansã, the wind and air energy. This

investigation begins on the cosmopolitan translation proposed by the Portuguese sociologist Boaventura de Souza Santos, who recognizes that there is not a general theory, but every culture is incomplete. Therefore the translation always will imply creation and transformation. Thus, this translation work allows taking from darkness many experiences that are not legitimated in the western monoculture. The bibliography that support the construction of this reflection is based on Souza Santos (2002), Carvalho (2002), Dominguez (2004), Motta (2009), Elbein dos Santos (2002), among others. The artistic manifestations of Tânia Bispo e Isa Soares are a way of give visibility to knowledge and practices that does not exist in the official education. Under the hypothesis that every time a dance occurs, in a different context from the place that supposedly came up, then there is a translation, the inquire focus in the necessity of another body translation, inspired in the two artists here studied, however made from the researcher of this dissertation.

Key words: Cultural translation, artistic manifestation, orixás´s dance, Tânia Bispo, Isa Soares.

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LISTA DE SIGLAS

Teatro SENAC Pelourinho - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial UFBA – Universidade Federal da Bahia

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Manifestação artística de Tânia Bispo...46

Figura 2. Tânia Bispo ensinando os elementos simbólicos usados nos rituais do Candomblé a um grupo de dançarinas...54

Figura 3. Curso com Tânia Bispo...57

Figura 4. Manifestação artística de Tânia Bispo...60

Figura 5. Manifestação artística de Tânia Bispo...61

Figura 6. Manifestação artística de Tânia Bispo...62

Figura 7. Manifestação artística de Tânia Bispo...64

Figura 8. Manifestação artística de Tânia Bispo...65

Figura 9. Manifestação artística de Tânia Bispo... 66

Figura 10. Performance ‘Orixás de la Tierra’……….………69

Figura 11. ‘Danças do Xirê de Orixás’ no Congreso Afro Americano...77

Figura 12. Performance ‘Orixás de la Tierra’……….…79

Figura 13. “Danças do Xirê de Orixás”. Isa Soares e Alabasé. Parque Lezama...81

Figura 14. Alábase na Marcha do 24 de março pelos desaparecidos...87

Figura 15. Performance ‘Orixás de la Tierra’………...88

Figura 16. Manifestação artística de Isa Soares...92

Figura 17. Performance ‘Orixás de la Tierra’……….94

Figura 18. Performance ‘Orixás de la Tierra’……….95

Figura 19. Manifestação artística de Isa Soares...97

Figura 20. Manifestação artística de María Laura Corvalán...101

Figura 21. Manifestação artística de María Laura Corvalán...105

Figura 22. Manifestação artística de María Laura Corvalán...106

Figura 23. Manifestação artística de María Laura Corvalán...107

Figura 24. Manifestação artística de María Laura Corvalán,...108

Figura 25. Manuel Corvalán tocando Hung Drum. ...108

Figura 26.Manifestação artística de María Laura Corvalán...109

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

ENTRE ROSÁRIO, SALVADOR E OUTROS CONTEXTOS – UM PEQUENO RELATO OU DIÁRIO DE BORDO...12

NOMEAR É PRECISO? ...15

1 MOVER O INVISÍVEL. UMA PROPOSTA COSMOPOLITA PARA TRADUZIR AS DANÇAS MITOLÓGICAS DOS ORIXÁS ... 22

1.1DESMITIFICAR O GLOBAL...22

1.2 OS RECORTES: DO ORIXÁ AO MITO, DO MITO À DANÇA ...25

1.3 POR UMA RAZÃO COSMOPOLITA ...27

1.4 O TRABALHO DE TRADUÇÃO ...30

1.5 O QUE TRADUZIR? ...31

1.6 ENTRE QUÊ TRADUZIR? ...37

1.7 QUANDO TRADUZIR? ...38

1.8 QUEM TRADUZ?...39

1.9 COMO TRADUZIR?...41

1.10 PARA QUE TRADUZIR?...44

2 TÂNIA BISPO: TRANSCENDER O “MITO PESSOAL”...46

2.1 SALVADOR, DO TABU AO EXOTISMO...47

2.2 A UNIVERSIDADE. DANÇA DE QUAL HISTÓRIA...49

2.3 ODUNDÊ: NOVO CICLO DE UM POVO...51

2.4 OMI OLORUM, OUTRO FLUIR COM O PÚBLICO...52

2.5 OS RISCOS DE TRADUZIR...53

2.5.1 A CONSTRUÇÃO DE LUGARES COMUNS...53

2.5.2 A DIFICULDADE DA LÍNGUA, A OPORTUNIDADE DO SILÊNCIO...57

2.6 O QUE O VENTO VÊ... (O SILENCIO DA PESTE)...59

3 A LÁ B A S E , O L AB UT AR DE I S A S O AR E S . . . 6 9 3.1 PALPAR A DANÇA...71

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3.2 BUENOS AIRES: INVISIBILIDADES EPIDÉRMICAS...73

3.3 NEGOCIAÇÕES ENTRE CORPO E AMBIENTE. A ARTE DE SER LEGITIMADO...76

3.4 TEMPORALIDADES E ESPERANÇAS...81

3.5 DANÇAS DO “XIRÊ DE ORIXÁS”: ARGUMENTOS DA TRADUÇÃO...82

3.6 A DIFICULDADE DO OUVIR O CORPO...87

3.7 ALÁBASE EM DANÇA...88

3.8 ENTÃO...89

3.9 O QUE DIZ O SILÊNCIO...91

3.10 ATRÁS, NO FUNDO DA TERRA...92

3.11 O AR...95

3.12 QUANDO O DESFRUTE TRANSFORMA...97

4 TRADUZIR À BEIRA DO MITO...101

4.1À BEIRA DAS DANÇAS...104

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INTRODUÇÃO

Entre Rosário, Salvador e outros contextos – um pequeno relato ou diário de bordo

A dança e a música me habitam desde que eu cheguei a este mundo. Criei-me entre tangos e chacareras que o meu avô e o meu pai tocavam no piano e no bombo legüero1, e minha avó, de longe, cantava. Eu adorava dançar, o ritmo parecia me queimar por dentro. Porém, desde muito cedo, quando comecei a dançar na ‘academia de danças folclóricas’, aquele imenso desejo, aquela emoção que me produzia a chacarera2, não tinha como ser expressa naquela dança. Explico: as danças chamadas de ‘folclóricas argentinas’, como a zamba, gato, bailecito, chacarera, remedio, huella,

cuatro esquinas, entre muitas outras, são ensinadas na educação oficial com

coreografias fechadas e esvaziadas do seu conteúdo histórico, da sua paisagem geográfica e da cultura onde cada uma estava inserida. Assim, eu tinha de me ajustar a uma série de posturas rígidas e memorizar as coreografias sem nenhuma relação com o ritmo e a música.

Também nesta fase da infância ingressei no mundo do balé clássico, e algo similar sucedia: eu não me reconhecia naquele universo, naquela música, naqueles personagens. As técnicas posturais resultavam muito forçadas, impositivas e produziam muita dor, mas, mesmo assim, era indicado sorrir. As experiências com dança moderna e dança contemporânea não foram as mais amáveis; mesmo que as músicas fossem mais agradáveis para mim, tinha que copiar sequências de movimento que não tinham relação nenhuma com o que me acontecia. Enquanto eu buscava, quase por descuido, alguma “emoção” naquelas danças, uma pergunta me dava voltas com intensa curiosidade: o que tinham em comum aquelas práticas que, embora tão diferentes, chamavam-se todas de ‘dança’? Qual era a relação com aquilo que eu, desde pequena, sentia como dança?

Não sei exatamente como eu decidi que queria ‘dançar afro’, mas no ano 2000 fui a Buenos Aires e conheci Isa Soares, que ministrava aulas de danças baseadas nos

orixás. Para minha surpresa, me encontrei com algo totalmente diferente das minhas

expectativas, muito ignorantes por sinal, que pressupunham que tudo o que fosse ancestral teria de ser simples; ali me deparei com um tipo de dança extremamente

1

Tambor tradicional de Santiago del Estero, Argentina, com grande influência africana, com o qual se tocam ritmos populares argentinos como chacarera, zamba, cueca, etc.

2

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complexa pela densidade do seu discurso e sua carga gestual. Este fato ajudou-me a entender que quando não se conhece algo e se olha “de fora”, observa-se primeiro de uma forma completamente homogeneizadora e pasteurizante, ou seja, todas as danças são parecidas, com o mesmo tipo de roupa, o mesmo batuque e se simplificam numa mesma coisa debaixo de um mesmo nome. Tenho como argumento que seja uma ignorância provocada e reafirmada por ações colonizadoras.

Porém, o que me deteve na proposta de Isa Soares durante mais de dez anos não foi “a dança” em si, mas o modo como a professora compartilhava os ensinamentos daquela dança, que implicavam em aprender também um modo diferente de relacionar-se com o corpo, com a dança e com o mundo. Algo relacionar-se acalmava em mim, a dança começava a cobrar um novo sentido.

No ano de 2003, comecei a levar Isa Soares para a cidade onde morava, Rosário, viajando mensalmente durante quatro anos. Isto provocou o encontro de um grande número de pessoas em Rosário, com interesses e inquietudes parecidas a respeito da dança. Destes cruzamentos surgiu no ano 2003 o grupo Iró Bàradé, o qual eu coordeno, em conjunto com outras colegas, entre as que preciso destacar Julia Broguet, Betina Pellegrini, Silvana Saavedra e Juana Lamas3. Em yorubá Iró significa relato, notícia, ruído dos corpos quando chocam e Bàradé, combinar com a natureza de alguém.

Desde então, fui experimentando diferentes cenários e modos de recriar e traduzir esta dança. Com o grupo Iró Bàradé, realizamos diversos tipos de criações e apresentações, partilhamos aulas com artistas de outras cidades, com comunidades indígenas (Qom) no norte argentino, com adolescentes de um bairro suburbano de Rosário, entre outras. Minha atenção estava sempre focada em buscar modos de traduzir esta dança baseada em mitologias africanas em cada contexto onde me encontrava. No entanto, cada experiência me provocava novas inquietudes em relação ao ‘outro’ e à ideia de identidade como traço único e determinante, e em minha monografia de Licenciatura em Comunicação Social4 (2007), abri questionamentos sobre ‘de que modo habitar danças de mitos e deuses longínquos e ancestrais em corpos atuais e argentinos (rosarinos)’.

3

Embora muitas outras pessoas fossem responsáveis da gestão coletiva de Iró Bàradé, nomeio aqui as colegas que coordenaram aulas e fizeram parte da produção do grupo nos últimos anos.

4

Corpo e comunicação na dança dos orixás”, Licenciatura em Comunicação Social, Universidad Nacional de Rosario, Orientadora, Prof. Olga Corna. 2007

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Estas inquietações foram atravessadas por minhas estadias na Bahia, desde o ano 2003, em que fui me aproximando dos ambientes onde também acontece esta dança afro, com muita potência, e se traduz em diversos sentidos religiosos e artísticos. Enquanto participava de diversas festas de candomblé, ia percebendo que nas escolas de dança, as aulas de dança afro ou afro-brasileiras eram muito diferentes da proposta de Isa Soares, elas estavam mais perto de uma colagem de passos a ser copiada e reproduzida. Compreendia então como as condições de cada contexto configuram a dança de um modo particular e que, para fazer criações artísticas a partir deste vocabulário, era fundamental conhecer suas fontes, história, cultura e filosofia.

Foi na minha primeira viagem à Bahia (2003) que conheci Tânia Bispo. Eu assisti ao show folclórico no Sesc Pelourinho do qual ela dirigia e me encontrei emocionada, contaminada pela energia das dançarinas, muito longe do que esperava de um ‘show tipicamente folclórico’. Na segunda viagem (2004), depois de tomar aulas com muitos professores, acabei organizando uma oficina de dança ministrada por Tânia Bispo, com várias pessoas que ia conhecendo na viagem. Então percebi que sua proposta podia conversar muito bem com a proposta de Isa Soares e, cinco anos mais tarde, em 2009, voltei com várias companheiras de ‘Iró Bàradé’ (Argentina). Neste curso, algo se moveu em mim de tal modo que entendi que tinha que viver na Bahia por um tempo, me deixar contaminar por mais tempo pelas lógicas de vida do povo baiano, viver o cotidiano e as contradições sociais da cidade, as cores, os aromas, as comidas, as crenças que entretecem seus mitos, mistérios e mandingas.

Assim, ingressei no Curso de Especialização em Estudos Contemporâneos em Dança – Latu Senso (UFBA- 2010), onde achei um espaço para ler, refletir e discutir sobre estas problemáticas da dança, o que me incentivou para reafirmar a construção do pensamento contemporâneo nas danças mitológicas dos orixás dentro do espaço acadêmico da dança.

O simples fato de viver na Bahia já me colocou na condição de estrangeira, e a tarefa de traduzir virou um modo de estar, de me comunicar e de compreender o mundo. Por esse caminho, consegui estabelecer laços afetivos que ampliaram e enriqueceram minhas buscas, como foi o encontro com Edivandete Santos Pires, mais conhecida como Oba Itanã, grande amiga que me acolhe e me orienta nas questões em torno da religião do candomblé de Keto. Oba Itanã, faz parte do terreiro “Ilê Axê Opó Ajaôkeji”, localizado em Barra do Pojuca, Camaçari-BA, onde tem a função hierárquica de ekede

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(aquela que cuida do orixá quando desce) do (orixá) Oxaguiã. Especificamente, ela recebeu o cargo de Ia Tebêssê, quem invoca os cânticos em todas as cerimônias. Vale dizer que Oba Itanã é muito reconhecida no ambiente religioso pela sua experiência e compromisso.

Também tive a sorte de conhecer a mãe ‘Francisca de Iansã’, mãe do terreiro

“Ilê Axê Oiá Jambeleji”, de Salvador, mais conhecida como ‘Chica’, baiana que vende

acarajé embaixo do morro de São Lázaro, onde eu moro. Os encontros cotidianos com ela e sua gente me permitiram participar das suas cerimônias de Candomblé de uma forma mais familiar, o que me habilitou, inclusive, a fazer registros audiovisuais das festas, material de grande valor para a análise das danças para esta pesquisa.

Nas últimas viagens, conheci Tata Mutá Imê Santos, um líder espiritual do

‘Terreiro Mutá Lambô ye Kaiongo’, Candomblé da nação Angolão Paquetan, muito

reconhecido em Salvador. Embora fosse Oba Itanã quem me apresentou a ele, Tata Mutá ministrava aulas de “danças de voduns, nkisses e orixás” no espaço onde eu aprendo capoeira angola. As aulas de Mutá representaram para mim, uma ponte entre o contexto religioso e o contexto artístico. Por sua vez, aprender as danças de outras nações, além da yorubá, foi uma chave para minha pesquisa, no reconhecimento da diversidade de nações dentro do universo mítico dos candomblés, fato que desmitifica a hegemonia yorubá tão relembrada por antropólogos e demais pesquisadores. Embora minhas duas mestras de danças, Isa Soares e Tânia Bispo, trabalhem especificamente com a cultura yorubá, eu percebo a importância de frisar as pluralidades de nações que são responsáveis pela construção dos candomblés, o universo mítico dos orixás. De fato, desde sempre foi no encontro com o outro e suas possíveis misturas que se gestaram novas formas de estar e de sobreviver no mundo.

Todas essas experiências pessoais e, seguramente, muitas outras que não tive consciência ou que não foram registradas aqui, acabaram nutrindo esta pesquisa de Mestrado da qual me animo a dizer, começou quando comecei a dançar, onde sem saber já estava traduzindo outras culturas.

Nomear é preciso?

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Nomear uma dança implica posicioná-la e afirmá-la entre os membros da comunidade onde surge e sua nomeação depende totalmente do contexto onde está inserida. Neste caso, urge esclarecer que esta dança, constituída por elementos da cultura afro, yorubá, gege, congo, angola, brasileira, e muitas outras (árabes, portuguesas, indígenas, espanholas), ainda não está isenta de problemas em sua nomeação.

Na Bahia, onde a prática religiosa é muito presente, se sublinha a diferença entre “dança de orixás”, que é a manifestação do orixá quando desce e se incorpora numa pessoa, e a dança-afro que se pratica nas academias de dança e contém elementos da simbologia dos orixás. No entanto, na Argentina, tal dança convive com outras danças de origem afro, tanto do Noroeste da África (entre as que se encontram: djole, ku-ku,

domba, dunumba, yankadi, makuru, e mendiani)5, quanto com a dança afroperuana, afrocolombiana, afrocubana, afrouruguaya, entre outras; portanto, não pode ser chamada simplesmente de dança-afro. No Brasil, chamá-la de dança afro-brasileira também gera confusão com outras práticas da mesma origem como é o samba, a capoeira, o congado, o maracatú, o maculelé, etc. Durante algum tempo, em Rosário, onde a religião era muito pouco conhecida, a chamamos de ‘dança de orixás’, para diferenciá-la de todos os afros e afro-brasileiras; mas, depois de conhecer o seu significado na Bahia, começou a ser um problema ainda maior para mim. Por enquanto, em Rosário está nomeada como “dança afro-yorubá”, mas, ao entender a multiplicidade de nações que constituem este universo mitológico, é preciso deixar de alimentar a hegemonia yorubá já instalada.

Segundo Godard:

“nossa maior tentação é de nos contentarmos em classificar as danças por épocas históricas, por origens geográficas, por categorias sociais, por escolhas musicais, pela estética do figurino, da cenografia, ou ainda pela forma dos diferentes segmentos corporais colocados em ação. Todos esses parâmetros descrevem muito bem o limite externo ao campo da dança, mas pouco se aproximam das riquezas da dinâmica interna do gesto, que a ele dão sentido” (1995, p. 12).

5

(18)

Assim, vemos que, embora o problema apresentado nesta dissertação seja o da tradução, ela enfrenta mais um problema que é o da nomeação. A impossibilidade de encontrar um nome adequado que contemple as necessidades religiosas de onde essas danças são, ou seja, do ambiente do candomblé para outro ambiente artístico e contemporâneo da dança. Se no ambiente religioso são os orixás que dançam, quem é exterior ao ambiente religioso, já está fazendo uma tradução desse ambiente. Que nome dar a uma dança que existe predicada a quem a faz - o orixá – quando é feita por quem não é orixá? Ou seja, alguém que está traduzindo uma dança que no seu ambiente é feita por quem é. E aqui, fora desse ambiente é feita por quem não é.

Sobre o pressuposto que o nome, de algum modo, coloca a dança entre outras, não pretendemos solucionar o problema, nem esquivar todos os riscos que implica a nomeação, mas por enquanto vamos sugerir tratar todas as manifestações dançadas para quem está fora do ambiente religioso como “manifestações”. Deste modo, já não chamamos dança “de orixá” quando não é dele. Vamos nomear uma “manifestação artística dessa dança”, indicando que se trata da dança de outra pessoa. Assim, chamamos “manifestação artística das danças dos orixás”, não a dança da divindade quando incorpora na cerimônia religiosa, mas a dança realizada conscientemente, seja qual for o contexto e o sentido de comunicar.

O objetivo dessa dissertação reside em estudar os diferentes processos de tradução de manifestações artísticas das danças dos orixás, realizados por Tânia Bispo em Salvador e por Isa Soares em Buenos Aires, os quais serão complementados pela minha própria criação. Estas traduções flutuarão entre o contexto do universo mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança onde se desenvolve cada artista.

Esta dança se caracteriza por sua grande gestualidade, sua rítmica, sua relação com a natureza, seu sentido mítico e pelos valores da sua cosmovisão africana, considerando que as relações efetivas destas informações organizam-se de certo modo que determinam suas técnicas corporais específicas. Interessa-me estudar como se dão as diferentes possibilidades de tradução dos conceitos, cosmogonias e arquétipos deduzidos da mitologia yorubá e como eles se traduzem em princípios de movimentos que permitem fazer um caminho pessoal e criativo em cada corpo. Será necessário, portanto, identificar que tipo de informações dessas danças ficou ancestralmente como

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estável, nos diversos diálogos interculturais até identificar-se como manifestações artísticas das danças dos orixás.

Para deduzir estas questões pretende-se analisar a construção do corpo dos

orixás Obaluaiê/Omolu6, divindade da terra e da peste, e Iansã, força do vento e a tempestade, retratados pelas duas profissionais da dança, acima citadas: Tânia Bispo e Isa Soares, cada uma no seu respectivo contexto (Salvador/Brasil e Buenos Aires/Argentina). Daqui, importa-nos reconhecer diferentes graus ou tipos de tradução corporal a partir da relação corpo-ambiente-orixá que entra em jogo no processo criativo da dança.

Sem desmerecer a relevância de todos e de cada um dos orixás, foram selecionados somente dois, Obaluaiê/Omolú e Iansã com a intenção de aprofundar no tema da pesquisa. Obaluaiê/Omolú representa a terra, e Iansã, o elemento ar. Para estas cosmovisões africanas, a terra é a matéria de nosso corpo, e o ar é o elemento que lhe outorga vida e movimento; assim, interessa-nos explorar como essas energias atuam no corpo e na dança. Esta escolha também é consequência da necessidade de partir das doenças de cada corpo, das suas faltas e incômodos, e da vontade de transformá-las na combinação com o outro, para realizar o processo criativo da tradução do mito para dançar. Assim, foi escolhido um mito onde a palha que cobria a terra/pele de Obaluaiê é descoberta pela dança/vento de Iansã, e em agradecimento, Obaluaiê lhe concede o poder sobre os mortos. A relação desses dois orixás com a morte cobrou uma dimensão muito importante durante os dois anos da pesquisa, por eu vivenciar situações ligadas à morte de pessoas muito próximas, onde pude reconhecer o grande tabu que temos a respeito dela.

O corpo teórico selecionado para a dissertação propiciou diálogos entre estudos da dança e da sociologia, entre cosmovisões africanas e pensamentos contemporâneos, entre estudos científicos e estudos artísticos. Para contextualizar a situação social onde surgem estas traduções em dança, trazemos as propostas de Canclini (2008) e Lepecki (2006) sobre a globalização e o pós-colonialismo, que nos permitem chegar ao entendimento de ‘tradução cultural’ que propõe o sociólogo português Souza Santos (2002), o qual busca uma articulação recíproca entre culturas, evitando uma canibalização da cultura hegemônica.

6

Tanto o nome Obaluaiê quanto Omolú, referem-se a diferentes qualidades do mesmo orixá, senhor da terra e a peste. Porém nesta pesquisa, vamos a utilizar qualquer dos dois nomes indistintamente. Já que as professoras vão nomear das duas formas diferentes.

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Para estudar o contexto da cultura yorubá no Brasil, foram muito significativos os escritos de Elbein Santos (2007; 1975), Prandi (2001), Verger (2003), Reis (2000), em discussão com a pesquisa de Capone (2009), na qual traz reflexões críticas sobre a construção de legitimidade dos cultos afro-brasileiros.

No que se refere ao estudo do universo mitológico das danças dos orixás, os trabalhos de Barbara (1995 e 2003) e Zenicola (2001) serão de grande apoio. Porém, para o nosso foco voltado para os processos criativos desta dança, interessa destacar a investigação “Corpo e Ancestralidade”, de Inaicyra Falcão dos Santos (2006), que atende à experiência singular de cada intérprete por meio de memórias ancestrais, com ações corporais carregadas de significados e valores da tradição africana brasileira, trazendo-as para o presente e as ressignificando por meio da arte do movimento criativo.

Mesmo assim, no intuito de abordar contemporaneamente esta dança surgida da tradição afro-brasileira, este trabalho parte do conceito de contemporâneo do filósofo Giorgio Agambem (2009, p. 64), quem o define como a singular relação que se estabelece entre o indivíduo e o seu tempo: "o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele".

Interessa-nos pensar aqui um modo de manifestar, artisticamente, a dança dos

orixás a partir da relação do corpo com a luz e as sombras dele e de seu entorno. Em

palavras de Najmanovich (2001, p. 28), “um corpo que participa de uma dinâmica criativa de si mesmo e do mundo com que ele está em permanente intercâmbio”, é um corpo que interage com o seu ambiente, onde se modifica e o modifica, que consegue garantir a sua permanência no mundo contemporâneo e a sua evolução.

Neste viés, Bittencourt (2004) e Britto (2008) discorrem sobre as configurações em dança e suas permanências, entendendo a dança como expressão do pensamento do ambiente em que se encontra o corpo que dança. A gestualidade também merece ser analisada nesta dança em questão, para o qual Godard (1995) sublinha o pré-movimento como condição da expressividade do gesto humano e o diferencia do movimento.

Para estudar estas traduções foi necessário realizar pesquisa de campo tanto no contexto mitológico do Candomblé, quanto no contexto artístico da dança das

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professoras Tânia Bispo e Isa Soares7. A pesquisa de campo no contexto mitológico consistiu na observação participante de cerimônias de candomblé de diversas nações ou cultos (keto, angola, caboclo), nas quais consegui experimentar diversos modos de participação das mesmas de acordo com o grau de familiaridade e abertura dos terreiros. Em algumas festas, consegui participar como assistente; em outras, me foi permitido fazer um registro audiovisual e, em outra, me convidaram a dançar no xirê (sob o cuidado de Oba Itanã). Também foram realizadas entrevistas com Tata Muta Imê Santos e com Oba Itanã sobre as danças desta pesquisa a fim de engrandecer o rol de informações, embora não serão citadas nesta dissertação.

A pesquisa de campo no contexto artístico da dança contou com a observação participante das aulas de Isa Soares, os cursos de Tânia Bispo realizados em 2004, 2009, 2010 e 2011, o registro audiovisual dos mesmos e a realização de entrevistas semi- estruturadas às duas professoras, isto é, entrevistas com base numa guia de perguntas bastante abertas, que vão se complementando de acordo as falas das pessoas entrevistadas. Além disto, como já pudemos constatar, as experiências vividas com estas duas pessoas durante alguns anos fazem parte da coleção de informações que interagem e alimentam esta investigação.

A pesquisa, direcionada pelo trabalho de tradução, as percepções do pesquisador e a reflexão biográfica foram de grande importância para guiar a investigação. Procurou-se apresentar as múltiplas perspectivas dos participantes, atendendo aos modos de relacionamento de cada corpo com o ambiente da manifestação artística da dança dos orixás. Haverá, assim, múltiplas vozes, e uma diversidade de modos de dançar.

Esta dissertação está organizada em quatro capítulos.

O primeiro capítulo debruça sobre a proposta de ‘tradução cosmopolita’ do sociólogo Boaventura de Souza Santos, para pensar os processos tradutórios das manifestações artísticas das danças dos orixás elaboradas pelas professoras Isa Soares e Tânia Bispo. A proposta de tradução cosmopolita parte do reconhecimento da incompletude de todas as culturas, em busca de um diálogo horizontal, recíproco e não hegemônico. Portanto, as condições de nosso campo de tradução serão atravessadas por

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Nesta dissertação, optei por chamar as professoras Tânia Bispo e Isa Soares pelo nome e sobrenome, para uma maior otimização da memória viva desses nomes, reafirmando o reconhecimento das artistas.

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questionamentos sobre o que traduzir, entre quê, quem traduz, quando, como e com que objetivos.

No segundo capítulo estudaremos como a professora Tânia Bispo retrata as corporalidades dos orixás Omolú/Obaluaiê e Iansã, a partir de uma abordagem sensorial baseada nas vivências do culto aos orixás e arquétipos oriundos dos mitos. Apresentaremos as questões levantadas mais relevantes, os obstáculos e os caminhos que a professora foi transitando dentro do seu trabalho.

No terceiro capítulo vamos refletir sobre o trabalho que a baiana Isa Soares desenvolve em Buenos Aires. Estudaremos como ela traduz no corpo as danças dos

orixás Obaluaiê e Iansã, no contexto da sua proposta “Xirê de Orixás”. Nas cerimônias

do candomblé, chama-se xirê à ordem hierárquica na qual os orixás ingressam ao barracão. A professora toma este xirê como base das suas recriações de danças arquetípicas dos orixás, respeitando a organização hierárquica imposta pelas funções e lugares simbólicos que ocupa cada orixá. Descreveremos como as danças de Obaluaiê e

Iansã são recriadas a partir de vivências, histórias e relações da professora com o seu

contexto. Atenderemos também às dificuldades que a professora se encontra neste processo de tradução.

Por último, o capítulo “Traduzir da tradução: minha dança na vera do mito” abrirá questionamentos para os diferentes graus ou tipos de tradução e as complexidades que isto implica num diálogo com os autores estudados. Os modos como as danças propostas por Isa Soares e Tânia Bispo são traduzidas e recriadas por mim, a partir das minhas condições com a dança em Rosário e em outras cidades de Argentina. Minha dança contaminada pelas manifestações artísticas de dança de orixás destas professoras e pela minha história pessoal, o tango e a zamba vêm problematizar os contornos das traduções culturais das danças. Este capítulo finaliza com as considerações finais, os possíveis desdobramentos e propostas para novos projetos de pesquisa.

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CAPITULO 1 MOVER O INVISÍVEL

Uma proposta cosmopolita para traduzir as danças mitológicas dos orixás

Este capítulo pretende trazer à luz o trabalho de tradução que propõe o sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2002) como uma opção para traduzir as danças baseadas na mitologia africana dos orixás, em uma cultura colonizada pelos valores e critérios ocidentais, em busca de uma articulação recíproca e não hierárquica.

O autor sugere um trabalho de tradução sustentado por dois procedimentos sociológicos: a ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’, os quais visam desafiar, transgressivamente, o modelo de racionalidade imperante, através da dilatação do presente, que amplia as experiências sociais disponíveis e da contração do futuro, que expande o domínio das experiências sociais possíveis.

Com o objetivo de analisar, posteriormente, os processos de tradução experimentados nas propostas de duas professoras e dançarinas, Tânia Bispo e Isa Soares, tentaremos aqui atravessar os contextos e condições específicas de nossos campos de tradução pelos seguintes questionamentos que sugere Santos: O que traduzir? Entre quê? Quem traduz? Quando traduzir? Traduzir com que objetivos?

Desmitificar o global

A contemporaneidade na América Latina, explica Canclini (2008), transforma os cenários da cultura popular na medida em que as categorias dualistas convencionais (subalterno/hegemônico, tradicional/moderno) vão perdendo sentido. Segundo este autor, a propagação trans-local da cultura se intensifica com os deslocamentos de migrantes, exilados e turistas, os fluxos econômicos e comunicacionais, e também com as trocas financeiras multinacionais e os repertórios de imagens e informação distribuídos a todo o planeta por jornais e revistas, redes televisivas e internet. Neste mundo intertextual, mestiço, de interface e de co-presença de todas as tradições (STOÏANOVA 1985, apud PELINSKI, 2000), as manifestações artísticas das danças dos orixás não ficam fora do cruzamento de culturas, ou seja, encontram-se implicadas neste cruzamento, se contaminando e se recriando, tomando novos sentidos. Além da sua natureza religiosa, esta dança se traduz em múltiplos cenários artísticos trans-nacionalizados.

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Porém, Canclini (2008) sugere que para analisar como vão se transformando as heranças culturais e ressituando num tempo de misturas interculturais, há que diferenciar os diversos sentidos da globalização: “não são idênticas a globalização financeira, a de bens industrializados e artesanais, as que ocorrem nas indústrias editoriais, de cinema, musicais ou informáticas” (CANCLINI, 2008, p. 30). Os processos de globalização não se dão de forma equitativa, mas com uma assimetria que beneficia aos países donos das indústrias culturais, que decidem sobre a reorganização dos mercados culturais, “reestruturando os estilos de vida e desagregando imaginários compartilhados” (CANCLINI, 2008, p. 28).

Em consonância com esta questão, Lepecki (2006) prefere nomear esta ‘condição global’ sob a ideia de “pós-colonialidade”, que segundo o autor, supõe uma transformação social derivada da queda dos impérios Europeus (Alemanha, França e Grã Bretanha) nos anos 50 e 60. O pós-colonialismo, então, antecede a outros termos como multiculturalismo, hibridação e miscigenação, “nomes simpáticos que descrevem a entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens, sons, peles e gostos onde o ocidental se redime do seu passado por via de uma “celebração” da “cultura” do até ontem colonizado” (LEPECKI, 2006). Porém, o autor sublinha que falar de “pós-colonialidade” é um artifício semântico, já que não implica uma superação temporal, como se já vivêssemos uma situação pós. Mas ainda continuamos submetidos “às mesmas lógicas de subjugação e de disciplina que são o chão do projeto colonialista: racismo, fome, guerra, movimento desenfreado, terraplanagem” (Idem).

Lepecki chama a atenção para o que o multicultural sugere, ou seja, o fim fictício e delirante das tensões políticas e dos horrores corporais e sociais causados pelo colonialismo, propiciando os mercados culturais globais baseados numa etno-diversidade pacífica, humanista e unanimemente “global”. Portanto, um fenômeno multicultural não pressupõe a ocorrência de trocas recíprocas e coerentes entre culturas.

Diante dessa armadilha capitalista, onde as multiculturas redefinem suas estéticas comerciais como “exóticas e performáticas (ou espetaculares, dignas de serem contempladas à distância)” (LEPECKI, 2006), este capítulo busca apresentar questionamentos sobre de que modo é possível traduzir danças de uma cultura africana e ancestral para uma cultura onde imperam os valores e critérios ocidentais

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contemporâneos, sem se deixar cair numa canibalização8 que suprima tudo o que incomode neste processo e/ou põe em risco a compreensão do mundo ocidental.

Neste viés, procurando abrir um diálogo intercultural mais horizontal, o sociólogo Boaventura de Souza Santos (2002), propõe um trabalho de tradução sustentado por dois procedimentos sociológicos, conforme citados no início deste capítulo: a ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’, os quais visam desafiar, transgressivamente, o modelo de racionalidade imperante - que ele chama de ‘indolente’ -. O autor centra-se na crítica a uma de suas formas: a ‘razão metonímica’, a qual opera sempre sob uma teoria geral que implica a ideia de totalidade e a homogeneidade das suas partes. Essa totalidade se explicita, concretamente, nas relações dicotômicas que encobrem sempre uma hierarquia e uma verticalidade: Ocidente/Oriente; civilizado/primitivo; cultura/natureza; branco/negro; conhecimento científico/conhecimento tradicional; etc. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 242)

A ideia de tradução aqui proposto, se afasta do uso comum e literal do termo, já que inclui sempre algum tipo de criação e, portanto, de transformação. Uma tradução que esta mais perto da transmutação. A teoria da tradução parte do reconhecimento da incompletude de todas as culturas, e daí busca identificar o que é comum entre as entidades, sem suprimir nada da autonomia ou diferença que lhe dá sustento.

Assim, na crítica a esta teoria geral da ciência moderna, o autor parte de outro pressuposto: ‘a teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral’ (Ibidem, p. 268), para o qual sugere um trabalho de tradução que permita “criar inteligibilidade recíproca, coerência e articulação num mundo enriquecido por uma multiplicidade e diversidade de experiências disponíveis e possíveis” (Ibidem, p. 268). Este pressuposto também sustenta nosso entendimento a respeito das manifestações artísticas das danças dos

orixás, para o qual, longe de pretender ‘reproduzir padrões’ de movimentos que

representam um dado orixá, busca-se uma dança em que cada corpo contemporâneo e colonizado estabelece um modo de tradução daqueles princípios de movimentos que foram configurados a partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança.

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O termo “canibalização” associado à cultura refere-se ao ato de deglutir a cultura do outro. Embora leve uma longa trajetória no Brasil, está muito associada à indústria do turismo, como explica Carvalho (2010, p.64) o canibal é “um consumidor de costumes alheios e, para isso, se desloca de seu contexto para o contexto do outro, ‘primitivo’, com a finalidade de usufruir de seu modo de vida e de suas expressões culturais. Segundo este autor, este processo de canibalização cultural traz como consequência a espetacularização das culturas populares.

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Nossa hipótese é que há um processo tradutório sempre que a dança aconteça num ambiente diferente de onde surgiu. Portanto, todas as manifestações artísticas das danças de orixás são traduções de uma cultura para outra. A tradução não toca somente aos estrangeiros, há tradução em Salvador e em Buenos Aires. Se a dança de orixás só existe sendo incorporada dentro do terreiro, então, fora do terreiro, toda dança é tradução cultural.

Os recortes: Do orixá ao mito, do mito à dança

Os orixás são divindades que eram cultuadas entre os yorubás e chegaram a Brasil com o tráfico de escravos, onde se misturam e se organizam numa religião chamada ‘candomblé’. O termo orixá, na lingua yorubá, é uma combinação de duas palavras: ‘Ori’ que significa cabeça e ‘Sa’, que se traduz como guardião, ficando assim como “Guardião da Cabeça”, “divindade elementar da Natureza” (FONSECA Jr., 1988, p. 311). Mas também há autores que traduzem orixá como “cabaça-cabeça” (ZENICOLA, 2001, p. 15). Para o candomblé, o orixá é um ancestral, que desce à terra montado num dos corpos que dançam para saudar os seus descendentes. Os orixás são personagens internos, arquétipos que cada um tem e que não são controláveis, que sacamos à luz em determinadas situações, antes que pudéssemos pensar em como agir.

Com uma perspectiva contemporânea e artística, podemos tomar os orixás como metáforas, por meio de suas danças, para reconhecer as energias que nos compõem, para explorar seus arquétipos representados nos humanos e assim ampliar nossas possibilidades de relacionar-nos com os outros e com o mundo. Utilizamos a ideia de metáfora dos filósofos Lakoff e Johnson (2002), na qual traduzem conceitos, ideias, e são corporais: toda experiência tem lugar dentro de um amplo conjunto de pressuposições culturais. “Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões do intelecto... Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas.” (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 45/46)

Nesta ótica, pretendemos aqui investigar os processos tradutórios das danças dos

orixás Obaluaiê e Iansã que ocorrem entre o seu universo mitológico e a dança criada

artisticamente por um corpo colonizado, a partir daquele universo.

Interessa-nos aqui apresentar quais são as informações que vão sendo traduzidas e como o corpo de cada um traduz isso de forma criativa. Para esta etapa, se iluminará o

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trabalho de tradução experimentado por duas professoras e dançarinas: Tânia Bispo9 e Isa Soares10 na construção corporal dos dois orixás selecionados: Obaluaiê/Omolú, a energia da terra e a peste, e Iansã, a energia do vento e a tempestade.

Por conhecer os múltiplos e complexos desdobramentos de cada orixá, focalizamos a tradução das suas danças em relação ao seguinte mito:

“Omolú nasceu com o corpo coberto de chagas e foi abandonado por sua mãe, Nanã Buruku, na beira da praia...

Certa ocasião, todos os deuses reunidos dançavam alegremente, com exceção de Omolú, que da porta observava solitariamente.

Ogum perguntou a Nanã por que Omolú não se juntava aos outros e

dançava. Ela explicou que ele tinha medo de aparecer por causa das pústulas.

Ogum resolveu ajudá-lo e teceu para ele uma roupa de ráfia.

Assim, Omolú foi para o salão e dançou bravamente diante de todos, cantando uma cantiga que homenageava Ogum, “que o levara para o mato e lhe dera uma bela veste de palha-da-costa”.

No entanto, nenhum orixá se habilitou a dançar com ele, só Iansã, altiva e corajosa, acompanhou Omolú.

O turbilhão de ventos de Iansã enfeitou ainda mais a dança e acabou levantando as vestes de Omolú, que, para espanto de todos, revelou-se um homem de rara beleza.

“Grato a Iansã, Omolú concedeu a ela o poder de reinar sobre os mortos.” (REIS, 2000, p. 119)

Interessa-nos, especialmente, esse mito por falar de um corpo/terra marcado pela doença e rejeitado por isso, que consegue transformar sua condição na combinação com outras energias. O vento destemido de Iansã faz dançar a terra de Omolú levantando a palha e descobrindo os mistérios dele. Como explica Reis (2000, p. 119), o capuz de palha-da-costa (azê) guarda mistérios terríveis para simples mortais, revela a existência de algo que deve ficar em segredo, de interditos que inspiram cuidado e medo. Esses segredos da terra estão relacionados com a morte, por isso são terríveis para os mortais. Segundo o autor, desvendar o azê, a temível máscara de Omolú, seria o mesmo que desvendar os mistérios da morte, pois Omolú venceu a morte (REIS, 2000 p.119). No

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Tânia Bispo é baiana, dançarina, coreógrafa e diretora de reconhecidos espetáculos em Salvador. Embora trabalhe como professora de dança em diversos espaços da sua cidade (Ufba, Sesc) desenvolve sua proposta sobre ‘Transmissão do Conhecimento da Cultura Afro Brasileira através da Sensibilização’, em oficinas para grupos de estrangeiros. Não é um detalhe menor ressalvar que a profissional integra uma comunidade da religião do Candomblé.

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Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires. Além de ela ser minha mestra, que me apresentou estas danças, foi a primeira pessoa que levou estas danças para Buenos Aires, a qual hoje está espalhada enormemente.

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entanto, Iansã, guerreira corajosa, tem a energia da tempestade, de um raio que corta o céu no meio de chuva. Só ela se atreve a dançar com a terra que guarda o mistério da morte. Iansã governa as almas dos mortos, manda-os embora e traz alegria e festa para a vida.

Chama atenção o que esse mito diz a respeito da morte, como segredo terrível e misterioso. Porém, há um convívio com o mundo dos ancestrais e Omolú e Iansã os fazem presentes. Os dois orixás dançam aquilo que não se vê, nem se conhece.

Eis que vejo uma afinidade entre esse oculto a ser dançado, esse mistério aser descoberto numa beleza sublime e a nossa ignorância a respeito dessa cultura, ignorância que mantém ela na invisibilidade. Nós não temos acesso a essas informações por não ser reconhecidas pelas monoculturas da razão ocidental, como assinala Souza Santos, portanto elas não aparecem na educação oficial e ficam silenciadas na obscuridade.

Do mesmo modo, as informações sobre dança que propõem as professoras Tânia Bispo e Isa Soares, também não se encontram na educação regular. Há razões e causas colonizadoras para elas ficarem na invisibilidade. Enquanto nós continuamos na ignorância, somos agentes de produção de invisibilidade. Este trabalho, então, pretende ser um agente para tirar do escuro estas danças, suas histórias e experiências.

Segundo Souza Santos (2002, p. 238), a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante, e esta riqueza social está a ser desperdiçada. O autor sugere um outro modelo de racionalidade no intuito de dar reconhecimento às múltiplas experiências invisibilizadas: a razão cosmopolita.

Por uma razão cosmopolita

Para estudar esses processos tradutórios é preciso entrar em contato com outro modo de compreender o mundo, alternativo à razão metonímica, que seja capaz de pensá-lo além do mundo ocidental capitalista. Souza Santos (2002, p. 242), propõe uma ‘razão cosmopolita’ que permita criar o “espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje...” e assim “evitar o gigantesco desperdício da experiência...”, expandir o presente e contrair o futuro.

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Nesta razão cosmopolita, o autor procura fundamentar três procedimentos sociológicos: uma ‘sociologia das ausências’, para expandir o presente; uma ‘sociologia das emergências’ para contrair o futuro, e uma teoria ou trabalho de tradução, como alternativa a uma teoria geral, a qual pressupõe sempre a monocultura de uma dada totalidade e a homogeneidade das suas partes... (Ibidem, p. 261/262). Portanto, para um melhor entendimento do trabalho de tradução, é indispensável entender esses dois procedimentos anteriores.

A ‘sociologia das ausências’ busca a ampliação do mundo e dilatação do presente, ao tornar visível a infinidade de experiências que acontecem no presente, mas que não são reconhecidas pela razão capitalista ficando na inexistência. Assim, o autor começa por revelar cinco modos em que a ‘razão metonímica’ produz a não-existência do que não cabe na sua totalidade e no tempo linear (Idem, p. 246):

- a monocultura do saber, que toma a ciência moderna e a alta cultura como cânones exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística;

- a monocultura do tempo linear, que entende a história com sentido e direção únicos: o progresso e a modernização. Tudo o que não é declarado avançado, é residual sob a forma de obsoleto, primitivo, tradicional, simples ou subdesenvolvido;

- a monocultura da naturalização das diferenças, onde as hierarquias por raça ou gênero são imodificáveis porque naturais;

- a monocultura do universal que outorga validez a realidades independentes do seu contexto específico: o global deixa fora ao local;

- a monocultura da produtividade capitalista, no qual o crescimento econômico é um objetivo racional inquestionável, critério que se aplica tanto ao trabalho humano quanto à natureza sob a forma de exploração.

Segundo Souza Santos, estas cinco monoculturas produzem cinco formas de

não-existência: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. (Idem, p.

248). Sob esta perspectiva, evidenciam-se, como nosso objeto de estudo, as manifestações artísticas das danças dos orixás, atravessadas por todas estas categorias: é ignorante e inculto por se basear num saber oral e mitológico; é atrasado e primitivo, por conter temporalidades cíclicas, espiraladas e conviver com os antepassados; é inferior pela sua origem negra e escrava; é local porque sua configuração depende

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diretamente do contexto e a cada novo contexto tem que se reconfigurar; é improdutivo porque suas lógicas de produção e distribuição não se regem pela exploração do homem e da natureza, mas sim, pelo contrário, cuida da distribuição das energias do universo com dinâmicas que inclui o homem como parte da natureza.

A ‘sociologia das ausências’ pretende recuperar essa multiplicidade e diversidade de práticas que Souza Santos chama de “desperdício de experiências” e assim aumentar o campo das experiências credíveis existentes, sugerindo para cada monocultura uma alternativa ecológica: a ecologia de saberes, a ecologia de temporalidades, a ecologia de reconhecimentos, a ecologia de produções e a ecologia de distribuições sociais.

A dilatação do presente ocorre pela expansão do que é considerado contemporâneo, pelo achatamento do tempo presente de modo a que, tendencialmente, todas as experiências e práticas que ocorrem simultaneamente possam ser consideradas contemporâneas, ainda que cada uma à sua maneira. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 249)

Uma ecologia de reconhecimentos permite visualizar como o “popular” deixa de ser sinônimo de local. Segundo Canclini, já não consiste no que o povo é ou tem num espaço determinado, mas no que lhe resulta acessível ou mobiliza a sua afetividade (2008, p. 86). Da mesma forma, a ‘identidade’ já não pode ser pensada em termos estáveis de territorialidade, mas bem se define como uma ‘construção’ permanente de relações selecionadas por identificação e pelas experiências simbólicas, onde um se reconhece e se expressa em relação ao mundo.

No âmbito da cultura, ainda é possível gerar laços de identificação entre distintos países de América Latina, onde certamente o Brasil, e especialmente a Bahia, é um referente enquanto ao modo de sobreviver de vários processos de adaptação e resistência da cultura negra. Embora toda a América Latina seja uma construção híbrida e mestiça, configurada com raízes indígenas americanas, mediterrâneas da Europa e de migrações africanas, em países como a Argentina se realizaram políticas de “branqueamento social” tão poderosas que, ainda hoje, a grande maioria dos argentinos nega a presença negra no país.

Talvez pelo fato de compartilhar processos históricos e por encontrar, na atualidade, as mesmas condições de desvantagens na participação deste mundo

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globalizado, resulta-nos mais acessível compreender certos conceitos da cultura africana já traduzidos por uma outra cultura latino-americana.

Enquanto a ‘sociologia das ausências’ se ocupa de dilatar o presente, ampliando o domínio das experiências sociais já disponíveis, a ‘sociologia das emergências’ pretende contrair o futuro expandindo o domínio das experiências sociais possíveis.

A concepção do tempo linear do discurso colonizador e a planificação da história conseguiram estender o futuro indefinidamente. “Quanto mais amplo o futuro, mais radiosas eram as expectativas confrontadas com as experiências do presente.” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 239) A ‘sociologia das emergências’ busca a expansão simbólica de saberes e práticas de diversos campos, a fim de identificar as condições de possibilidades e as tendências do futuro, e determinar “princípios de ações que promovam a realização dessas condições” (Idem, p. 256). .

A ‘sociologia das emergências’ é a investigação das possibilidades e capacidades plurais e concretas que permitam contextualizar as expectativas sociais. Este procedimento sociológico pretende, deste modo, equilibrar a relação entre experiência e expectativa já que, quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo, mais experiências são possíveis no futuro.

Assim, a fim de fazer emergir as ausências, Santos propõe realizar um trabalho de tradução, capaz de fazer inteligível a multiplicidade de experiências disponíveis, buscando uma relação coerente com aquelas outras que ainda são possíveis. Portanto, “o trabalho de tradução permite criar sentidos e direções precários, mas concretos, de curto alcance, mas radicais nos seus objetivos, incertos, mas partilhados” (Idem, p. 274).

O trabalho de tradução

Greiner, no seu texto “A natureza precária das traduções” (2010, p. 25), vislumbra a emergência de uma pluralidade de projetos coletivos articulados de modo não hierárquico, capazes de confeccionarem teorias cada vez mais específicas e localizadas, a favor da eliminaçãodo pressuposto da existência de uma teoria geral.

O trabalho de tradução cosmopolita tem lugar sobre saberes e sobre práticas - que são saberes aplicados e materializados-, que partem desse mesmo consenso transcultural, já enunciado anteriormente: “a teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral”. Assim, este procedimento tende a explicitar os limites e as possibilidades

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da articulação entre os diferentes saberes e práticas culturais, já que, nas palavras de Santos, “todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 264). Daí se compreende a necessidade de buscar em outra cultura, regida por outros valores e modos de estar no mundo, respostas para problemas e vazios da cultura própria. Em concordância, Bhabha diz que “não há comunidade ou massa de pessoas cuja historicidade emita “sinais corretos”. Por isso, o ato de negociação/tradução precisa ser sempre interrogatório.” (apud GREINER, 2010, p. 30) Não se trata, então, de pensar numa tradução literal ou absoluta, mas numa tradução que implique uma mudança, que dê lugar para uma criação e para uma mutação.

Para esclarecer as condições e procedimentos deste trabalho de tradução, Santos sugere formular as seguintes questões: O que traduzir? Entre quê? Quem traduz? Quando traduzir? Como traduzir? Traduzir com que objetivos?

Assim, inspirada e instigada pela proposta de Souza Santos, seguirei com as questões a partir deste ponto da dissertação.

O que traduzir?

A razão cosmopolita propõe construir ‘zonas de contato’, que se definem como campos sociais onde se encontram, chocam e interagem diferentes práticas e conhecimentos. Esta ‘zona de contato’ é sempre seletiva, cada saber ou prática decide o que é posto em contato com quem, contudo, tais saberes e práticas excedem a zona de contato selecionada (SOUZA SANTOS, 2002, p. 268).

Para nosso trabalho de tradução, pretende-se colocar, como ‘zona de contato cosmopolita’, a ‘dança’ que, de acordo com Bittencourt (2001, p. 36) “revela-se como um sistema de alta complexidade e temporalidade ao configurar-se como produtora de linguagem, um sistema de informações que estabelece relações efetivas, transformando-se dinamicamente ao transitar em ambientes diversos”.

Sob esta perspectiva, as manifestações artísticas da dança dos orixás se configuram como um sistema composto por múltiplas informações: um orixá, um elemento da natureza, um mito, um ritmo, um canto, uma certa gestualidade e o corpo que dança – em interação com o ambiente – e também o modo de relacionar-se entre elas, estabelece lógicas de organização específicas. Portanto, observamos que, o que singulariza o sistema dança não é somente o conjunto de informações, mas é a lógica de

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organização das informações, na qual a repetição reproduz-se como padrão.“O padrão apresenta-se como organização e, portanto, como resultado de alguma regularidade. E, sendo assim, revela-se como um sistema que possui uma linguagem própria, um sistema de informações” (BITTENCOURT, 2001, p. 44). Assim, os padrões construídos nas manifestações artísticas das danças de orixás, são abordados a partir de seu sistema de informações e de sua lógica de conectividade e organização, a fim de compreendê-los e incorporá-los como linguagem. Mas, como afirma a autora, a dança se transforma dinamicamente ao transitar em ambientes diversos, a partir das informações que traz o corpo que dança, o qual se correlaciona diretamente com seu contexto. “A dança e o corpo que dança expressam o pensamento do ambiente em que se encontram, os valores de sua época, destacando, marcando e transformando hábitos. Por isso, apresenta-se também como sinalizadora de um tempo passado” (BITTENCOURT, 2001, p. 45).

Na tentativa de delinear a dança como zona de contato da tradução intercultural, ou seja, cosmopolita, é preciso, antes de mais nada, abrir um diálogo a respeito do entendimento de corpo e de dança entre certos autores fenomenológicos, pesquisadores das danças da cultura yorubá e pensadores contemporâneos.

Em “Fenomenologia da Percepção” do filósofo Merleau-Ponty (1977; 1960), destaca um paradoxo de dupla referência na experiência da corporalidade. Vislumbra-se que o corpo é a mesmo tempo sensível e sentente, visível e vidente, isto é, que pode ser um corpo objetivo – coisa entre as coisas, pertence à ordem do objeto - assim como também um corpo fenomênico - aquele que vê e toca às coisas, pertence à ordem do sujeito-. Sujeito e objeto não estão divididos, mas constituem potências numa relação de coimplicação, onde cada uma “chama à outra”.

No entanto, corpo e mundo se comunicam inevitavelmente através da espessura da carne: “o mundo está feito com o mesmo pano do corpo” (MERLEAU-PONTY, 1977, p.16-17). Essa noção do corpo como parte do tecido do mundo, descarta a dicotomia de corpo-mente e restabelece a relação horizontal do corpo e a natureza para podermos nos reconhecer neste corpo sensível e “que sente”, objeto e sujeito, que afeta e se deixa afetar por outros corpos e pelo mundo.

Para a cultura yorubá, o corpo humano, “é um microcosmo e nele estão contidos todos os elementos e forças da natureza que, distribuídos harmoniosamente pelo corpo, explicam a sua mitologia” (ZENICOLA, 2001, p. 84). Assim como o corpo é natureza,

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