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Trabalhadores frente à produção de medicamentos: trajetórias, trabalho e subjetividade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA

SÔNIA APARECIDA LOBO

TRABALHADORES FRENTE À PRODUÇÃO DE MEDICAMENTOS:

Trajetórias, trabalho e subjetividade

Florianópolis (SC)

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SÔNIA APARECIDA LOBO

TRABALHADORES FRENTE À PRODUÇÃO DE MEDICAMENTOS:

Trajetórias, trabalho e subjetividade

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia Política do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

Orientadora: Prof. Bernardete Wrublevski Aued

Florianópolis (SC) 2007

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TRABALHADORES FRENTE À PRODUÇÃO DE MEDICAMENTOS: Trajetórias, trabalho e subjetividade

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia Política do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

Florianópolis, março de 2007

BANCA

Prof. Dra. Bernardete Wrublevski Aued Prof. Dr. Fernando Ponte

Prof. Dr. Jacob Lima

Prof. Dra. Maria Orlanda Pinassi Prof. Dr. Ricardo Muller

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Aos meus pais, Jaime e Waldivina, que me deram a vida e o sentido dela.

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AGRADECIMENTOS

A todos os trabalhadores que de maneira direta ou indireta se envolveram nesta pesquisa: funcionários da universidade, professores e àqueles que generosamente nos concederam entrevistas.

Às instituições a que estamos vinculada, Universidade Estadual de Goiás e Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás, pelo apoio expresso durante todo o curso e sem o qual não seria possível a sua realização.

Aos professores e alunos ligados ao Núcleo de Estudos Sobre as Transformações no Mundo do Trabalho – TMT, pelas ricas discussões; aos professores Paulo Sérgio Tumolo e Marcos Antônio Segatto Silva, membros da banca de qualificação, pelas críticas e contribuições oferecidas; e, especialmente, à prof. Bernardete W. Aued, pelo acompanhamento atencioso e afetuoso que nos dedicou.

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RESUMO

Esta pesquisa versa sobre as trajetórias de trabalhadores, sua percepção sobre o seu cotidiano e os processos de trabalho dentro da indústria farmacêutica. A criação de um pólo farmacêutico em Goiás, na última década, movimentou capitais e atraiu trabalhadores para a região. Instaladas nas cidades de Goiânia e Anápolis, as indústrias têm passado por transformações tecnológicas e organizacionais, mesclando características do modelo fordista e toyotista. Aliadas a esse contexto, mudanças na legislação sanitária têm determinado as características específicas dos processos de trabalho dentro dessa indústria. Os trabalhadores, que vivenciaram uma mobilidade geográfica e ocupacional recente, defrontam-se com o trabalho fabril e com as rotinas restritivas inerentes à produção de medicamentos. Diante dele, tecem interpretações, e mesclam aceitações e negações frente às exigências sanitárias, de produção e controle.

PALAVRAS-CHAVE: indústria farmacêutica, trajetórias, processos de trabalho, controle sanitário, fordismo, toyotismo, subjetividade operária.

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ABSTRACT

The present work deals with the trajectory of workers, their perception of their daily lives and of labour processes in the pharmaceutical industry. The creation of a pharmaceutical complex in the Brazilian state of Goiás over the last decade has led to the transfer of capital and migration of workers to the region. Established in the cities of Goiânia and Anápolis, the industry has undergone technological and organizational transformations, blendind characteristics of the Fordist and Toyotist models. Along with this context, shifts in the sanitary legislation have determined the specific characteristics of labour procesess within this industry. Having experienced a recent geographical and occupational move, labourers are now faced with factory work and the restrictive routines related to the production of drugs, towards which they have engendered interpretations and an ambivalent position of acceptance and negation in face of the sanitary, production and control demands.

KEY WORDS: pharmaceutical industry, trajectory, labour processes, sanitary control, fordism, toyotism, labourer subjectivity.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Tabela: principais laboratórios farmacêuticos no Brasil na década de 1970...50

Figura 2 – Tabela: reajustes de remédios x inflação (em %)...64

Figura 3 – Tabela: faturamento do mercado de medicamentos...65

Figura 4 – Tabela: participação das maiores empresas no faturamento...66

Figura 5 – Quadro: trajetórias anteriores ao trabalho na indústria farmacêutica...93

Figura 6 – Quadro: trajetórias de trabalhadores dentro do Laboratório A...158

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LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1 – Produção de medicamentos nos anos de 1970 – granulação...54

Fotografia 2 – Produção de medicamentos nos anos de 1970 – drageamento...54

Fotografia 3 – Inauguração do DAIA...86

Fotografia 4 – Trabalhadores durante as obras de construção do DAIA...86

Fotografia 5 – Pesagem de matéria prima...121

Fotografia 6 – Manipulação...121

Fotografia 7 – Secagem de granulado...122

Fotografia 8 – Compressão...122

Fotografia 9 – Esteira completa: manipulação, contagem, embalagem...123

Fotografia 10 – Sistema de Bin: elevador...123

Fotografia 11 – Sistema de Bin: misturador...124

Fotografia 12 – Controle do misturador no sistema Bin...124

Fotografia 13 – Tanque de manipulação...125

Fotografia 14 – Abastecimento da máquina de envase...125

Fotografia 15 – Operador da máquina de envase...126

Fotografia 16 – Máquina cravadora – mesa acumuladora ...126

Fotografia 17 – Esteira: revisão e embalagem...127

Fotografia 18 – Processo de compressão – final dos anos de 1970...139

Fotografia 19 – Processo de compressão – ano de 2005...139

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LISTA DE SIGLAS

ABIFARMA: Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica

ALANAC: Associação de Laboratórios Farmacêuticos Nacionais

ANVISA: Agência Nacional de Vigilância Sanitária

BIRD: Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento

BPFs: Boas Práticas de Fabricação

CADE: Conselho Administrativo de Defesa Econômica

CEME: Central de Medicamentos

CCQs: Círculos de Controle de Qualidade

CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito

DAIA: Distrito Agroindustrial de Anápolis

EPI: Equipamento de proteção industrial

FCO: Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste

FIPE: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas

FEBRAFARMA: Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica

FMI: Fundo Monetário Internacional

FOMENTAR: Fundo de Participação e Fomento à Industrialização do Estado de Goiás

GATT: Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio

GRUPEMEF: Grupo de Executivos do Mercado Farmacêutico

ICMS: Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

IDE: Investimento Direto Estrangeiro

IDEC: Instituto de Defesa do Consumidor

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INTERFARMA: Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa

IPI: Imposto Sobre Produtos Industrializados

IQUEGO: Indústria Química de Goiás SA

IR: Imposto Sobre a Renda e Produtos de Qualquer Natureza

JIT: Just in time

OMC: Organização Mundial de Comércio

ONU: Organização das Nações Unidas

OTC: Over the counter

PIB: Produto Interno Bruto

POP: Procedimento Operacional Padrão

PRODUZIR: Programa de Desenvolvimento Industrial do Estado de Goiás

P&D: Pesquisa e Desenvolvimento

RDC: Resolução da Diretoria Colegiada

SENAI: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SUMOC: Superintendência da Moeda e do Crédito

TJLP: Taxa de Juros de Longo Prazo

TRIPS: Trade related aspects of intellectual property rights

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SUMÁRIO RESUMO...VI ABSTRACT...VII LISTA DE FIGURAS...VIII LISTA DE FOTOGRAFIAS...IX LISTA DE SIGLAS...X 1. INTRODUÇÃO...01 1.1 Materialidade e subjetividade...02 1.2 Trabalho e alienação...05

1.3 Formas de subjetivação sob a ordem do capital...10

1.4 Resistência e superação...16

1.5 Trabalhadores e mundo do trabalho no século XX e início do século XXI...21

1.5.1Hegemonia estadunidense, ascensão do keynesianismo-fordismo e subjetividade operária...21

1.5.2 Reestruturação produtiva e superação da crise do capital...28

1.5.3 O toyotismo...31

1.6 Problema e metodologia...35

1.7 Organização da tese...41

2. A CONSTITUIÇÃO DAS FORÇAS DO CAPITAL E A EXPANSÃO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO BRASIL...43

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2.1 Breve histórico...44

2.2 Características da indústria farmacêutica no Brasil no período recente...55

2.2.1 Produção de medicamentos e lei de patentes...59

2.2.2 Dados sobre o estágio de pesquisa e desenvolvimento...61

2.2.3 Produção de fármacos...62

2.2.4 Produção de medicamentos ...63

2.2.5 Propaganda e marketing ...69

2.3 Medicamentos e políticas públicas...71

3. AS FORÇAS DO TRABALHO FRENTE AO PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO...79

3.1 Andanças: três trajetórias...79

3.2 Entre o campo e a cidade: a mediação da palavra “liberdade”...87

3.3 Trajetórias e diversificação das ocupações...93

3.4 Para onde se dirigem os trabalhadores?...98

3.5 “Foi um mundo novo...” - O início do trabalho na indústria farmacêutica...106

4. AS CIRCUNSTÂNCIAS FAZEM OS HOMENS: PROCESSOS DE TRABALHO E TRAJETÓRIAS DE TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS...112

4.1 A produção de medicamentos...113

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4.2.1 Legislação sanitária, processos de trabalho e garantia da qualidade...130

4.3 Formas de gestão e organização da força de trabalho...140

4.4 Cultura de empresa e estratégias para adesão dos trabalhadores...145

4.5 Os trabalhadores adequados ao capital...149

4.6 Instabilidade da força de trabalho...153

4.7 Mudanças ocupacionais nas trajetórias dos trabalhadores dentro das fábricas...157

4.8 O medo do desemprego: profissão e perspectiva para o futuro...163

5. MAS OS HOMENS FAZEM AS CIRCUNSTÂNCIAS: PERCEPÇÕES E NEGAÇÕES FRENTE AOS PROCESSOS DE TRABALHO...167

5.1 Do controle ao autocontrole: o corpo do trabalhador...168

5.2 Rotinas: o processo de trabalho...177

5.3 Novas tecnologias segundo os trabalhadores: entre o encanto e a ameaça...184

5.4 “Eu estou no limite!”: intensificação do trabalho e negação do saber operário...188

5.5 Produtores de medicamentos ou produtores de saúde?...195

6. CONCLUSÃO...204

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...212

OUTRAS FONTES DE PESQUISA...222

SITES CONSULTADOS...222

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1. INTRODUÇÃO

O mundo do trabalho é um mundo em mutação e nos últimos anos as mudanças têm sido intensas, afetando a vida de milhões de pessoas nas mais diferentes regiões do planeta. O avanço do capitalismo global provoca não só a migração de capitais como de força de trabalho. Profissões novas surgem e as antigas desaparecem rapidamente. A introdução da tecnologia da automação e da informática, dentre outras, exigem dos trabalhadores novas qualificações. A diversificação da força de trabalho, com a entrada definitiva das mulheres, transforma não só o mercado de trabalho, mas a própria relação entre os sexos. A crise do trabalho industrial e o crescimento do setor de serviços oferecem novos contornos à classe trabalhadora. A sonhada estabilidade, com emprego e profissão para a toda vida, torna-se cada vez mais distante e irreal para a maioria da população do planeta, e a precarização das relações de trabalho, mascarada pelas mais diferentes formas de “flexibilidade” e “empreendedorismo”, intensificam-se dentro de um contexto marcado pelo crescimento do desemprego.

Porém, se o mundo do trabalho é um mundo em mutação, onde “tudo que é sólido se desmancha no ar” (MARX, 2002:48), é também uma realidade que perpetua relações há muito consolidadas, dentre elas: a extensão e aprofundamento da extração de mais trabalho pelo capital, favorecido pelo desenvolvimento dos meios de produção e a acumulação crescente de capitais, à custa do aumento da pobreza mundial; as estratégias de centralização e deslocamento dos grandes capitais em busca de força de trabalho mais barata como forma de geração de valor; a manutenção de um “estoque” de força de trabalho disponível, garantindo a reprodução das relações de subordinação do trabalho ao capital; a negação das potencialidades humanas por meio do trabalho destituído de sentido.

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A presente pesquisa tem a intenção de dar conta de algumas mudanças e permanências do mundo do trabalho que incide sobre a produção de medicamentos, em uma região pouco industrializada do Brasil: o estado de Goiás. Nesse espaço de produção, carregado de especificidades, o trabalhador e sua relação com o trabalho são o foco principal.

1.1 Materialidade e subjetividade

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como a querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado: a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.

Karl Marx, em “O 18 Brumário de Luís Napoleão.”

Pensar os sujeitos e suas trajetórias nos processos de transformação social não tem se revelado tarefa fácil. Ora privilegiando os indivíduos, ora as estruturas na determinação dos caminhos trilhados pela sociedade, as análises, via de regra, terminam por atribuir a um lado da balança uma importância superior em relação à outra.

Em texto escrito nos anos de 1930, Elias (1994:133) apontava o problema e identificava na história da sociedade contemporânea a gênese dessa oposição entre indivíduo e sociedade. Recorrendo ao uso dado à noção de “indivíduo”, notou que a família dos conceitos agrupados em torno desse substantivo é recente. Assim, no latim medieval a palavra individualis ou individuus referia-se ao que era indivisível. A palavra individuum era usada para expressar o caso singular numa espécie não se referindo apenas ao ser humano.

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Na cultura escolástica, o termo “indivíduo” era ligado ao que é singular e no Renascimento passa a se referir à singularidade de cada pessoa comparada às demais. No século XVII, passou a servir de distinção entre o que era feito individualmente e o que era feito coletivamente. No século XIX, com o surgimento de movimentos sócio-políticos antitéticos, dá-se a formação de vocábulos como individualismo, de um lado, e socialismo e coletivismo de outro. Concretiza-se a oposição dos termos “indivíduo” e “sociedade”.

Essa oposição se expressou também na produção intelectual, orientando análises em que essa cisão se reproduzia. Dentro das ciências humanas essa dicotomia aparece como uma oposição entre análises que privilegiam o indivíduo como centro da ação, desvinculado da esfera social, em uma abordagem de caráter “psicologizante”. E outras, em que as estruturas sociais são determinantes, o sujeito se torna nulo e a sociedade aparece como uma entidade orgânica supra-individual. Constrói-se, nessa perspectiva, uma história sem rosto.

Na tradição marxista o papel do sujeito nos processos de transformação social foi, muitas vezes, relegado a segundo plano e, em alguns casos, como no estruturalismo, chegou a desaparecer. A história e os processos sociais apresentavam nessa leitura uma autonomia que redundava na “morte dos sujeitos”, uma vez que esses não encontravam expressão dentro dos grandes movimentos estruturais do capitalismo. A ênfase das análises era dada às forças produtivas. Essa abordagem, em que o peso da balança oscilava claramente para o nível macro-social, terminou por gerar críticas ao marxismo quanto a sua incapacidade de pensar os indivíduos como sujeitos ativos da história.

Na entanto, é importante percebemos que a unidade dos aspectos objetivos e subjetivos compõe uma totalidade de determinações e relações recíprocas. Para Iasi (2004:18), a relação entre sujeito e sociedade para a compreensão dos movimentos sociais e da história é parte constitutiva da análise marxiana.

(18)

A ação dos seres humanos cristaliza-se em produtos sociais que se autonomizam relativamente a estes, como na troca ampliada de mercadorias, de forma que o produto da ação coletiva assume uma racionalidade diversa da ação individual, portanto não podendo ser reduzida à inteligibilidade individual.

A superação da dicotomia sujeito/sociedade encontra-se na relação entre o sujeito que é constituidor ao mesmo tempo em que é constituído pela história, e na autonomia que a própria sociedade ganha nesse processo em relação ao sujeito individual. Ou seja, a ação dos sujeitos constrói a história, no entanto, essa construção é mediada pela forma como a sociedade em que aqueles se inserem está organizada, pelas suas relações econômicas: divisão e organização do trabalho, apropriação dos excedentes, bem como por suas tradições, cultura, costumes e política. Nas próprias palavras de Marx (1984:85): “Os indivíduos partiram sempre de si, mas naturalmente de si nos quadros de suas condições e relações históricas dadas. Não do indivíduo puro no sentido dos ideólogos, mas no curso do desenvolvimento histórico...”. É na articulação e no movimento dialético entre sujeito e sociedade que esta se organiza e a história se faz. A objetividade da história torna-se impensável sem uma correspondência com a subjetividade. Nesse sentido, o problema que se coloca é como compreender o desenvolvimento social e histórico por meio dessa mediação entre sujeito e sociedade. Ou, como diria Marx (2004:35): “Importa acima de tudo evitar que a ‘sociedade’ se considere novamente como uma abstração em confronto com o indivíduo. O indivíduo é o seu ser social.”

(19)

1.2 Trabalho e alienação

No pensamento de Marx, o trabalho tem uma dimensão histórica e ontológica fundamentais na formação do homem. É por meio do trabalho que o homem se humaniza. A dimensão ontológica do trabalho indica que o homem, ao trabalhar, transforma não somente a natureza, mas a si mesmo. Assim as dimensões objetiva e subjetiva seriam forjadas no trabalho por meio da práxis. A esfera da produção se torna o lócus privilegiado e explicativo da condição humana. Para Marx (1988a:142)o trabalho é:

Um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se da matéria natural, imprimindo-lhe uma forma útil para a própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica ao mesmo tempo sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças ao seu próprio domínio [...]realiza na matéria natural o seu objetivo, subordina-a a sua vontade, exige sua atenção e mobiliza as forças físicas e espirituais do trabalhador.

O trabalho é uma condição eterna da produção e manifesta-se enquanto processo de trabalho1. Nele o ser humano modela a natureza ao mesmo tempo em que se modela corpo e mente.

Sob o capitalismo, o processo de trabalho, que resulta na produção de valores de uso voltados para a satisfação de necessidades humanas, adquire uma forma específica. O valor de uso passa a ser simultaneamente valor. O processo de trabalho é essencialmente

1 Marx (1988a:146) nos diz que “o processo de trabalho é a atividade orientada a um fim para produzir valores

de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre homem e natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as formas sociais.”

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processo de produção de mais-valia e não de produção simples de mercadorias. 2 Nesse contexto, produz e reproduz as relações capitalistas baseadas na distinção entre capitalistas e proletariado.

Para que essa forma específica de ordenação do trabalho, da produção e de apropriação das riquezas produzidas se concretizasse foi necessário um longo processo histórico. A liberação da força de trabalho servil, bem como a plena apropriação privada dos meios de produção, alienando a maior parte da população do acesso ao mesmo e tornando o próprio trabalho alienável no sentido da possibilidade de ser vendido como mercadoria, constituíram os princípios fundamentais da nova ordem social. A mesma dinâmica que expropriou os trabalhadores e alienou a sua força de trabalho transformou os meios sociais de subsistência e produção em capital. Assim, após a expropriação dos trabalhadores, duas espécies de possuidores de mercadoria irão se confrontar. De um lado, os possuidores do dinheiro (meios de produção e de subsistência) e, de outro os trabalhadores livres, (vendedores da força de trabalho). Marilena Chaui3 nos diz que:

Para que o trabalho se torne alienado, isto é, para que oculte, em vez de revelar, a essência dos seres humanos, e para que o trabalhador não se reconheça como produtor das obras, é preciso que a divisão social do trabalho, imposta historicamente pelo capitalismo, desconsidere as aptidões e a capacidade dos indivíduos, suas necessidades fundamentais e suas aspirações criadoras e os force a trabalhar para outros como se estivessem trabalhando para a sociedade e para si mesmos[...] sob os efeitos da divisão social do trabalho e da luta de classes, o trabalhador individual pertence a uma classe social – a classe dos trabalhadores – que, para sobreviver, se vê obrigada a trabalhar para uma outra classe social – a burguesia –, vendendo sua força de trabalho no mercado. Ao fazê-lo, o trabalhador aliena para um outro (o burguês) sua força de trabalho, que ao ser vendida e comprada, se torna uma mercadoria destinada a produzir mercadorias. Reduzido à condição de mercadoria que produz mercadorias, o trabalho não

2 “No processo capitalista de produção, o processo de trabalho apresenta-se como meio e o processo de

valorização, ou produção de mais valia como fim” (MARX, 1996:69).

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realiza nenhuma capacidade humana do próprio trabalhador, mas cumpre as exigências impostas pelo mercado capitalista.

A possibilidade da venda da força de trabalho como se fosse qualquer outro objeto, traduzido na sua “vendabilidade”, enfrentou grandes obstáculos antes que se pudesse constituir enquanto um princípio universalmente aceito. Até a Idade Média a idéia de alienação era rigidamente controlada pelos princípios religiosos e políticos, o vassalo nada podia alienar sem o consentimento do seu superior, nem o burguês alienar as coisas da comunidade sem a permissão do rei. Esses entraves vão ser superados na medida em que as relações capitalistas avançam e que ganha corpo a noção de que cada um é livre para alienar o que é seu. Segundo Mészáros (2006:38), “a glorificação mistificadora da ‘liberdade’ como ‘liberdade contratualmente salvaguardada’ desempenhou um papel importante para retardar o reconhecimento das contradições subjacentes”. A livre venda de tudo, inclusive da força de trabalho, resultou em sua própria reificação e conseqüente desumanização.

Em A Questão Judaica (2004:29), Marx afirma que a alienação foi realizada por meio da transformação de todas as coisas em “objetos alienáveis, vendáveis, em servos da necessidade e do tráfico egoístas. A venda é a prática da alienação.” A alienação caracteriza-se, assim, pela possibilidade extensiva da vendabilidade, da coisificação da força de trabalho e pela fragmentação do corpo social em indivíduos perseguindo seus objetivos particularistas.

Se por meio do trabalho o homem se hominiza, é também por meio dele que o capitalismo produz a alienação. Nos Manuscritos econômico-filosóficos (1989), Marx aponta a alienação como tendo quatro dimensões: a primeira diz respeito a uma alienação do homem com relação à natureza; a segunda, uma alienação do homem consigo mesmo, ou auto-estranhamento que se dá no ato de produzir; a terceira, uma alienação do seu ser

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genérico ou da espécie humana e, finalmente, uma alienação com relação aos outros homens.

A relação ser humano-natureza, mediada inicialmente pela atividade produtiva, passa a ser mediada pelo capital, e a própria natureza é transformada em valor de troca, em mercadoria. Num nível mais genérico, essa separação é concebida como a separação do ser humano do seu “corpo inorgânico”4. Por um lado, essa separação significa para o trabalhador que sua sobrevivência e reprodução não estão postas como certas, pelo intercâmbio de sua atividade com o meio natural, mas antes estão condicionadas à mediação da propriedade, do intercâmbio e da divisão do trabalho, conformando uma mediação de segunda ordem. Por outro lado, estabelece um distanciamento com relação a essa própria natureza. O homem não se vê como parte constitutiva da mesma.

A segunda dimensão da alienação ocorre relativamente à sua própria atividade produtiva, transformada em auto-alienação, como uma atividade que não lhe oferece satisfação por si mesma, mas apenas pelo ato de vendê-la a outra pessoa. Sob o capital, ocorre uma cisão entre os sujeitos e o produto de sua ação, de forma que os objetos se fetichizam. Como há uma intensa divisão entre concepção e execução no trabalho, e como o trabalhador não possui os meios de produção, o objeto produzido pelo trabalhador se lhe opõe como um ser estranho, como se fosse independente do produtor. Quanto mais o trabalhador produz tanto menos ele possui, e mais se submete ao domínio do capital. Dessa forma, a alienação não se revela apenas na apropriação do resultado do seu trabalho, mas ocorre durante o processo de produção. Para Marx (1989:159):

4 A expressão “corpo inorgânico” é usada por Marx nos Grundrisse: “A natureza é o corpo inorgânico do

homem, a saber, a natureza na medida em que ela mesma não é seu corpo, com o qual tem que permanecer em constante processo para não morrer” (1971:155) “.... ao arrancar do homem o objeto de sua produção, o trabalho alienado lhe arranca... o seu corpo inorgânico, a natureza” ( 1971:157).

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O objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, se lhe opõe como ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se transformou em coisa física, é a objetivação do trabalho. A realização do trabalho constitui simultaneamente a sua objetivação. A realização do trabalho aparece na esfera da economia política como a desrealização do trabalhador, a objetivação como perda e a servidão do objeto, a apropriação como alienação.

A alienação do trabalho decorre do fato de que o trabalho se torna exterior ao trabalhador, que não mais se afirma por meio dele, mas antes nega nele a sua própria essência.5 Essa alienação da atividade produtiva se dá em três níveis: primeiramente porque o produto do trabalho distancia-se do trabalhador na medida em que foi produzido por necessidades alheias e não pelas necessidades dos trabalhadores; segundo, porque o que foi produzido, enquanto mercadoria, não é apropriado pelos produtores; e, em terceiro lugar, porque o produto do trabalho aparece como coisa existente em si mesma e não como resultado da ação do trabalhador.

A alienação do ser humano com relação ao seu ser genérico e a si mesmo resulta em um afastamento crescente do indivíduo com relação aos outros. No ato da produção não ocorre uma identificação entre o ser que produz e o ser que vive, entre o trabalho individual e o coletivo. As formas assumidas pelo processo de produção social fragmentam o indivíduo que, em última instância, passa a se perceber como ser isolado do contexto social. Decorrem daí algumas formas de subjetivação da realidade que se caracterizam pelo sentimento de isolamento social, pelo crescente processo de individualização e pela sobreposição do ter ao ser.

5 Para Marx, a “essência humana” é a capacidade de socialização que se concretiza através do movimento

histórico. “A essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na realidade ela é o conjunto das relações sociais” (1984:109).

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1.3 Formas de subjetivação sob a ordem do capital

As mudanças empreendidas na materialidade, na relação do ser humano com a natureza, na sua atividade prática, na relação com os outros seres humanos é que vão definir o seu processo de subjetivação. Isso significa dizer que a subjetividade não é pensada como uma essência interior, mas, ao contrário, ela se constitui na e pela prática. Assim, o processo de expropriação, as relações de assalariamento e de classe, bem como a alienação e fetichização da mercadoria, as formas como os diferentes grupos e sujeitos se relacionam com essas mudanças, marcam a construção da subjetividade sob o capital.

Podemos dizer que, sob o capital, os processos de subjetivação caracterizam-se pelo fortalecimento da individualidade e do isolamento social. Mészáros (2006) salienta que o ideal de liberdade individual surge na história humana na medida em que a dependência direta da natureza é superada pelas forças produtivas do capitalismo. Enquanto a dependência era uma preocupação geral da comunidade, as aspirações de uma forma distinta de liberdade individual só podiam se expressar marginalmente. O advento do capitalismo com o avanço vitorioso das forças produtivas permitiu um modo de vida que coloca ênfase na privacidade. Assim, ele diz:

À medida que avança a liberação capitalista do homem em relação a sua dependência direta da natureza, também se intensifica a escravização humana ante a nova “lei natural” que se manifesta na alienação e reificação das relações sociais de produção. Diante das forças e dos instrumentos incontroláveis da atividade produtiva alienada sob o capitalismo, o indivíduo se refugia no seu mundo privado “autônomo”. É o que ele pode fazer, porque o poder hostil da necessidade natural, que antes o unia aos seus semelhantes, agora parece estar sob controle. (MÉSZÁROS, 2006:326)

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É importante lembrarmos que a autonomia com relação à natureza é sempre parcial e é fruto de uma construção social. Porém, as relações sociais de produção alienadas e reificadas, que asseguram o rompimento relativo do homem com a natureza, aparecem como rompimento da dependência social, como forma de autonomia do indivíduo, libertado de forma fictícia não só de seus laços com a natureza, mas com os outros homens.

A par dessa crescente autonomia, as mudanças sociais no que diz respeito às relações de trabalho e produção resultam numa forma específica de individualidade. Marx utilizará a expressão “indivíduos indiferentes” para caracterizar essa nova individualidade. Nos Grundrisse (1971:91) o autor afirma: “Os indivíduos apenas parecem independentes [...] apenas a quem se abstrai das condições de existência sob as quais estes indivíduos entram em contato[...] esta independência em si mesma é apenas uma ilusão que melhor seria designada como indiferença”. Essa indiferença aponta no sentido da superação de elementos que caracterizariam as formas antecedentes à produção capitalista.

Sob o capital, o valor torna-se o novo nexo social e se apresenta como independente, autônomo, alheio, naturalizado. Transforma-se assim a dependência pessoal que caracterizava as formas de produção anteriores. Nesse sentido, a instauração do valor como nexo social elimina e cancela as diferenças sociais preestabelecidas, ao mesmo tempo que gesta uma nova diferença.

Nessas condições, o produtor só é considerado como desgaste de cérebro, músculos e nervos, como trabalho abstrato, que elimina qualquer diferença ou determinação particular em relação à atividade, ao produtor e ao produto. A acumulação originária é condição para que a força de trabalho se transforme em mercadoria, como para que a atividade, o trabalho, desprenda-se de qualquer particularidade, tornando-se indiferente.

A ultrapassagem das diferenças e o surgimento da indiferença sob o capital coincidem com a separação do trabalhador com relação à natureza; as condições de

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sobrevivência e reprodução dos indivíduos passam a ser destituídas de qualquer garantia social prévia. Em uma sociedade regida pelo mundo das “coisas”, os laços sociais também se coisificam. Assim, Silveira nos aponta que (1989:63):

No que concerne às formas anteriores, a indiferença da individualidade significa a eliminação, o ultrapassamento de formas de trabalho cristalizadas de sociabilidade, aqui, sob o nexo do valor de troca, o que se elimina e se abstrai são as diferenças qualitativas dos outros e de si mesmo, que são precisamente as diferenças que possibilitam que os indivíduos se tornem sujeitos. Com isso quero dizer também que na própria subjetividade está plasmada[...] de uma maneira profunda, a diferença que torna os indivíduos, sob o capitalismo, indiferentes: a diferença quantitativa, a comparabilidade quantitativa de si mesmo, dos outros e do conjunto das relações: a universalização da alienação.

Se a individualidade sob o capital se expressa como indiferença, a nova diferença se funda no mundo das coisas, no ter em contraposição ao ser. Marx, no terceiro Manuscrito (1989:197), aponta para o fato de que:

A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e unilaterais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é imediatamente possuído, comido, bebido, vestido, habitado, em resumo, utilizado por nós [...] em lugar de todos os sentidos físicos e espirituais aparece assim a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido do ter.

Quanto ao trabalhador, “[...] se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz [...] com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (MARX,1989:169). Assim a pobreza do trabalhador, como mercadoria, não se esgota em uma pobreza material; a ênfase recai na sua própria reificação, na impossibilidade de sua realização como ser social, expressa por Marx (1989:197) como o “rico carecimento humano”.

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O processo de alienação caracterizado pela separação entre homem-natureza, homem-humanidade, homem-homem e com relação a si mesmo resulta na impossibilidade da realização do ser humano no que ele tem de específico: sua capacidade de produzir, criar e socializar-se.

De maneira sintética poderíamos dizer que sob o domínio do capital se conforma uma subjetividade que é marcada pela alienação nos diversos níveis que foram apresentados, por uma forma de individualidade marcada pela indiferença e simultaneamente, pela valorização do indivíduo. Conforme Elias (1994) nos chama a atenção, o caráter singular de uma pessoa com relação às outras passa a ocupar um lugar elevado na escala social de valores das sociedades contemporâneas. Distinguir-se, ser diferente passa a ser um ideal a ser seguido. Essa valorização do “único”, “pessoal”, ocorre em função de um processo de aprendizagem social e o ideal de individualização passa a fazer parte do seu ser, da sua psique.

Dessa forma, o sentimento contemporâneo de que somos indivíduos únicos, apartados da história, solitários em nossa essência, separados da sociedade, tem sua contrapartida nas próprias condições materiais em que nos encontramos.

Se a subjetividade dos seres humanos é conformada em sua relação com os processos históricos amplos, pensar no âmbito restrito da força de trabalho nos remete à dimensão da ação do sujeito. Marx (1982a:187) trata a força de trabalho como “o conjunto de faculdades vivas e mentais, existentes na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie”. O trabalhador, no processo produtivo, vende a sua força de trabalho, mas essa força está indissoluvelmente ligada à sua pessoa.

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Ao comprar a mercadoria “força de trabalho” o capitalista está, ao mesmo tempo, comprando uma qualidade e quantidade indeterminada, ligada ao sujeito que é seu portador. Dessa forma, Lopes (2000:204) entende que:

O que ele compra (o capitalista) é infinito em potencial, mas limitado em sua concretização pelo estado subjetivo do trabalhador, por sua história passada, por suas condições sociais gerais sob as quais trabalha, pelas condições próprias da empresa e condições técnicas de trabalho. O trabalho realmente executado será afetado por esse e muitos outros fatores, inclusive a organização do processo e as formas de supervisão dele, no caso de existirem.

O próprio processo de subsunção formal e real do trabalho ao capital, que transformou amplos setores da população, submetidos aos mais variados regimes de trabalho, em força de trabalho objetivada, exigiu do patronato modos diferenciados de acionar a subjetividade operária. Segundo Lopes (2000:101):

Para extrair sobretrabalho o capital necessita mobilizar e pôr a subjetividade operária (aptidões, habilidades) sob o seu comando. Desse modo, ao identificar os mecanismos diferenciados de apropriação da subjetividade pelo patronato, pode-se pensar as diferentes formas históricas (técnicas e organizacionais) assumidas pelo processo produtivo. O que se busca nesse processo é a sujeição dos sujeitos aos objetivos exclusivos do capital.

Nesse contexto de subordinação dos trabalhadores, foram tecidas diversas formas de resistência ao longo da história, evidenciando a luta contra a exploração e a alienação e a busca do controle da subjetividade dos trabalhadores.

Se a universalização da alienação leva à construção de uma subjetividade específica ligada ao desenvolvimento do capitalismo, é importante lembrarmos que não

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existe alienação absoluta, como uma totalidade inerte. A capacidade dos sujeitos sociais de tecerem contraposições à alienação reinante, por meio de sua práxis, torna possível a sua superação. O trabalhador, no ato da produção, reproduz e ao mesmo tempo se opõe aos processos alienadores, estabelecendo-lhes resistências.

Compreender que a subjetividade dos trabalhadores se dá na práxis nos leva a abandonar qualquer compreensão determinística dos processos macro-sociais sobre os sujeitos trabalhadores. Significa também compreender que outros elementos constitutivos do sujeito – como sua história, cultura e tradições – podem vir a atuar na forma como esse sujeito trabalhador se relaciona com o capital em suas diferentes formas de organização.

1.4 Resistência e superação

Mészáros (2006) destaca que alienação e transcendência estão inter-relacionados, de maneira que não se pode falar de alienação sem mencionar o problema de sua superação. Porém, enfatiza também que o problema da transcendência não pode ser resolvido de forma definitiva, como se a humanidade estivesse caminhando para uma sociedade utópica e isenta de contradições, constituindo-se como fim da história.

O processo de superação da alienação é histórico, dependendo da ação dos seres humanos em suas inter-relações sociais. Para o filósofo (2006:228), a “substituição das mediações de segunda ordem capitalistas, alienadas e reificadas por instrumentos e meios de intercâmbio humanos conscientemente controlados é o programa sócio-historicamente concreto dessa transcendência”. Tendo como referência essas considerações iniciais,

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faremos algumas reflexões sobre a questão da superação, a fim de não absolutizarmos a alienação.

Como havíamos destacado anteriormente, o trabalho que cria e explica ontologicamente a humanidade, é ao mesmo tempo o espaço da alienação na forma da divisão do trabalho. A relação original e primeira entre homem-atividade-natureza, fonte de toda a humanização, passa a ser mediada de forma secundária pela propriedade privada, pelo intercâmbio e pela divisão do trabalho próprios do sistema do capital, numa forma de mediação de segunda ordem. Para Marx a superação da alienação passa pela superação dessa mediação propriamente alienante. Mészáros (2006:78) nos diz que:

O que Marx combate como alienação não é a mediação em geral, mas uma série de mediações de segunda ordem (propriedade privada-intercâmbio-divisão do trabalho), uma “mediação da mediação”, isto é, uma mediação historicamente específica da automediação ontologicamente fundamental do homem com a natureza. Essa mediação de segunda ordem só pode nascer com base na ontologicamente necessária mediação de primeira ordem – como forma específica, alienada, dessa última. Mas a própria mediação de primeira ordem – a atividade produtiva como tal – é um fator ontológico absoluto da condição humana.

A superação da alienação não passa pela negação do trabalho em geral, mas da forma que assumiu sob o capital. A primeira forma de consciência do ser humano é a consciência dada pela materialidade, que se manifesta então como contingência. Trata-se de uma objetividade internalizada. É a consciência do ser fragmentado, marcada pelos processos de individualização. A questão que se coloca é de como, numa realidade marcada pela alienação, os seres humanos podem tecer a sua superação.

Iasi (2004:180) nos indica que a chave do movimento das formas de consciência é uma contradição “ou um jogo de contradições, cuja síntese é uma não correspondência

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entre a antiga visão do mundo e o mundo real em movimento”. Ou seja, o que está colocado como real e verdadeiro pode ser questionado por meio das próprias contradições sociais. Talvez o exemplo mais claro quanto a essa questão diga respeito aos projetos de ascensão social, ao desejo de mudança de classe, manifestado pela maioria das pessoas e obliterado pela realidade, na qual raramente ocorrem. A não correspondência entre o que é objetivo e o que é colocado como possibilidade individual pode ser observada pelos sujeitos por meio de sua própria história ou daqueles que lhes são próximos. Essas contradições podem ser vivenciadas como sofrimento pessoal e interno sem que o sujeito perceba que se trata de uma contradição objetiva. Pode manifestar-se como frustração diante de sua trajetória de vida, como crise pessoal, ou ainda se expressar como revolta individual.

Iasi (2004:208) considera que o salto de qualidade na percepção das contradições e na elaboração de uma crítica à mesma parece surgir preferencialmente dentro dos grupos sociais.

O sentimento de pertencimento em relação a um grupo produz no indivíduo uma mudança qualitativa: o ser social subsumido pela forma individualizante se vê como parte de uma coletividade que lhe dá identidade e no interior da qual experimenta uma força que fora dela desconhecia.

O grupo institui uma primeira possibilidade de negação do real instituído. O que se segue depende da natureza do grupo em que as pessoas estão inseridas e da qualidade das contradições que expressa, o que pode chegar a se constituir em uma impossibilidade de continuidade da produção social da vida, em uma contradição em que a própria existência social de um grupo, classe ou mesmo do ser humano de forma genérica se encontra ameaçada. As elevações dos níveis de contradição que podem ameaçar a reprodução da vida social podem, também, promover a coesão dos grupos num nível qualitativamente mais

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elevado. “Essa circunstância produz uma identidade que não pode ser simplesmente reduzida ao mecanismo do grupo, muito menos derivados dos mecanismos individuais. Este é o salto do grupo em direção à classe” (IASI, 2004:247).

A possibilidade da emergência de um ser social como classe carrega duas possibilidades: a de integração à ordem do capital pelo amoldamento/consentimento, ou de enfrentamento de classes. As duas possibilidades aparentemente contraditórias integram-se na própria determinação do capital como forma societária hegemônica. Os seres sociais necessitam, para sobreviver, de se moldarem às estruturas constituídas dessa sociedade, daí a aceitação e incorporação de seus valores, como os princípios da individualidade, a busca pela ascensão social e sua negação como trabalhadores, assumindo a consciência do outro, da burguesia; ao mesmo tempo, essa própria estrutura pode ameaçar-lhes a existência enquanto seres humanos e sociais, o que levaria a uma oposição aos mecanismos de reprodução do capital.

Nesse sentido, remetemos-nos à compreensão de E. P. Thompson e Francisco de Oliveira sobre a formação de classes e de sua subjetividade/identidade. Thompson (1987:12) inscreve a sua análise dentro do processo de constituição da classe trabalhadora tendo como eixo o princípio de que as classes não são constituídas apriorísticamente, mas se fazem dentro do processo histórico e no confronto com o seu oposto:

A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, essa é a sua única definição [...] Não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico.

Nessa abordagem, a ação do sujeito na constituição das classes é alçada a primeiro plano, contrariando as análises em que há uma predeterminação da estrutura de

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classe. Se as experiências de classe são determinadas pelas relações de produção, a consciência de classe é a forma como essas experiências são assimiladas.

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas e partilhadas), sentem e articulam a identidade dos seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) aos seus. (THOMPSON, 1987:10)

Francisco de Oliveira (2003:18) considera que as classes sociais não se constituem em si ou para si, mas em relação a outras. Quando se pensa em consciência de classe deve-se ter em mente essa relação. A consciência de classe é o reconhecimento da existência do seu oposto. “Quando o trabalhador reconhece o capitalista como aquele que, ilusoriamente, lhe fornece o dinheiro de que necessita para comprar os elementos de sua subsistência é que se fundam o operariado e a burguesia.”. Não é a autoconsciência, mas as consciências recíprocas entre as classes que dirão o que é “consciência de classe”. Nesse sentido, a identidade do trabalhador se constrói na medida em que pode reconhecer dentro da materialidade o seu oposto, o seu outro, mesmo que seja uma relação baseada em uma “ilusão” ou “alienada”.

Para Oliveira (2003:18), “a constituição das classes repousa sobre esse movimento complexo de produção e reprodução, e as representações das classes umas vis-à-vis das outras formam a trama insubstituível das mediações.” Nesse sentido, é na concreticidade das relações que a classe trabalhadora construirá sua própria representação de classe, sua identidade e sua negatividade frente ao outro.

Poderíamos dizer que, se são os sujeitos concretos que constituem a classe, é na mediação entre a ação do indivíduo e as determinações sociais que esta se coloca em movimento. Como afirma Marx (1984:49):

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Em todos os estádios se encontra um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e dos indivíduos uns com os outros que a cada geração é transmitida pela sua predecessora, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, por um lado, é de fato modificada pela nova geração, mas que por outro lado lhe prescreve as suas próprias condições de vida e lhe dá um determinado desenvolvimento, um caráter especial. Mostra, portanto, que as circunstâncias fazem os homens tanto como os homens fazem as circunstâncias.

Esse processo não é linear, o que significa dizer que a classe e os sujeitos que a constituem podem caminhar tanto no sentido da superação quanto na produção de novas formas de fragmentação. Portanto, transcendendo ou reproduzindo os processos sociais e de produção existentes.

1.5 Trabalhadores e mundo do trabalho no século XX e início do século XXI

Na história recente do capitalismo as diferentes formas de organização da

produção, buscando maior produtividade e extração de mais-valia, demandaram diferentes comportamentos e atributos subjetivos aos trabalhadores tendo em vista a sua adequação ao mundo do trabalho. Formas inovadoras de controle da força de trabalho por um lado, e busca de adesão aos princípios capitalistas de geração de riquezas por outro, foram gestadas e constituíram o centro dos princípios da organização e gerenciamento do trabalho no século XX e início do século XXI. Marcam esse momento, a predominância do modelo taylorista-fordista e a emergência de novas formas organizacionais inspiradas no toyotismo. O que não significou o rompimento com o processo de individualização, alienação e

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fetichização. Acompanhar essas mudanças nos permite compreender a relação entre capital e trabalho na atualidade, assim como a posição dos sujeitos frente a essas transformações.

1.5.1 Hegemonia estadunidense, ascensão do keynesianismo-fordismo e subjetividade operária

Após a Segunda Guerra Mundial o capitalismo viveu o que Hobsbawm (1995) designa como a sua “época de ouro”. Caracterizado pela emergência, imbricação e consolidação do modelo keynesiano na economia, do fordismo como paradigma organizacional das empresas e de gestão da força de trabalho, e pela ascensão dos Estados Unidos da América como nação hegemônica, o capitalismo atingiu níveis de produção e acumulação inéditos.

O enfraquecimento do modelo liberal, marcado principalmente pela Grande Depressão dos anos de 1930 bem como pela ascensão de regimes políticos totalitários e que tinham à sua disposição mecanismos de planejamento eficazes, como na antiga União Soviética, fez com que a aceitação de políticas econômicas baseadas no planejamento e intervenção estatal crescesse, principalmente nas nações onde a crise havia sido mais aguda e onde a Segunda Guerra Mundial havia desestruturado a vida econômica. A crença no livre mercado, apesar de ainda encontrar defensores, estava visivelmente em baixa. O período pós-Segunda Guerra Mundial até início dos anos de 1970 foi caracterizado pela intervenção da economia pelo Estado e teve em Keynes sua maior expressão teórica. 6

6 Assim Hobsbawm (1995:268) se refere à repercussão, no meio intelectual, da adoção do keynesianismo após

a Segunda Guerra: “Não foram mudanças pequenas. Eles levaram um estadista americano de férreas credenciais capitalistas – Averrel Harriman – a dizer de seus compatriotas, em 1946: ‘As pessoas deste país não têm mais medo de palavras como planejamento... as pessoas aceitaram o fato de que o governo tem de

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O keynesianismo trouxe, também, a marca de um pacto social ampliado para alguns países europeus. O sonho de Henry Ford de que cada trabalhador pudesse vir a ser um potencial comprador de seus carros tornou-se cada vez mais real nos anos de 1950. A produção em massa visando a amplos mercados que se formavam pela inclusão crescente dos trabalhadores se tornou cada vez mais concreta nos países desenvolvidos, especialmente Estados Unidos e Europa. Tal política visava não apenas à recuperação econômica, mas também à proteção contra o avanço do socialismo no contexto da Guerra Fria, e teve desdobramentos os mais variados: desde a implantação de políticas protecionistas cada vez mais amplas para com os trabalhadores, formando o que se chamou de social democracia, até a domesticação do movimento sindical, que se tornou refém das políticas conduzidas pelo Estado, perdendo em grande parte sua autonomia e perspectiva revolucionária. A questão ecológica começa também a aparecer como uma contradição insolúvel dentro do contexto do capitalismo, como nos sugere Mészáros.7

A adoção desse modelo econômico e seus desdobramentos principais diziam respeito a uma pequena parcela do globo. Segundo Hobsbawm (1995), três quartos da população mundial exportavam, naquele momento, 80% da produção manufatureira. No entanto, teve reflexos nas mais diferentes regiões do mundo, inclusive no Brasil, que no período adota políticas de planejamento estatal, industrialização e expansão da produção,

planejar tanto quanto os indivíduos desse país’ (Maier, 1987, p. 129). Elas fizeram um defensor do liberalismo econômico e admirador da economia americana, Jean Monnet ( 1888-1979), tornar-se um defensor do planejamento econômico francês. Transformaram Lionel ( Lord) Robbins, um economista adepto do livre mercado que antes defendia a ortodoxia contra Keynes, e dirigira um seminário em conjunto com Hayek na London Scholl of Economics, num diretor da semi-socialista economia de guerra britânica. ...Todos queriam um mundo de produção e comércio externo crescentes, pleno emprego, industrialização e modernização, e estavam preparados para consegui-lo, se necessário, por meio de um sistemático controle governamental e administração de economias mistas, e da cooperação como movimentos trabalhistas organizados, contando que não fossem comunistas.”

7 Mészáros (2002) considera as práticas do capital sobre o ambiente natural como catastróficas e irredutíveis

dentro do sistema, levando em última instância à própria destruição das condições básicas de reprodução sociometabólicas do capital.

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porém, com uma pequena contrapartida social. O mesmo se verifica em vários países da América Latina, África e Ásia.

Cabe ainda destacar a grande importância que a ascensão dos Estados Unidos da América como nação hegemônica teve na consolidação do modelo keynesiano-fordista. Na leitura de Arrighi (1996), a mudança fundamental nesse século se deu em torno da passagem de um ciclo sistêmico de acumulação8 dominado pelos britânicos para um novo, sob a hegemonia estadunidense. Sob seu domínio a economia passou a ser auto-centrada, e a base para o processo de internacionalização do mercado mundial se deu no âmbito das corporações empresariais, cujas atividades econômicas são organicamente integradas e marcadas pela verticalização.

Essa tendência de internacionalização da economia se refletiu na importância assumida pelos investimentos diretos das empresas estadunidenses no processo de reconstrução da economia capitalista após a Segunda Guerra Mundial como, por exemplo, nos investimentos na reconstrução da Europa. Esses investimentos diretos levaram a uma transferência do controle administrativo de setores substanciais das economias estrangeiras para cidadãos estadunidenses e deram origem a uma fase de expansão da produção de mercadorias.

Tendo as empresas transnacionais no centro do processo de acumulação capitalista, a política intervencionista do Estado tomou fôlego. Organismos internacionais

8 Assim Arrighi (1996:xi).define os Ciclos Sistêmicos de Acumulação:“A idéia braudeliana das expansões

financeiras como fases finais dos grandes desenvolvimentos capitalistas me permitiu decompor a duração completa do sistema capitalista mundial ( a longue durée de Braudel) em unidades de análise mais manejáveis, que chamei de ciclos sistêmicos de acumulação.”

“[...] a fórmula geral do capital apresentada por Marx (DMD’) pode ser interpretada como retratando não apenas a lógica dos investimentos capitalistas individuais, mas também um padrão reiterado do capitalismo histórico como sistema mundial. O aspecto central desse padrão é a alternância de épocas de expansão material (fases DM de acumulação de capital) com fases de renascimento e expansão financeiros ( fases MD’). Nas fases de expansão material, o capital monetário coloca em movimento uma massa crescente de produtos ( que inclui a força de trabalho e dádivas da natureza, tudo transformado em mercadoria); nas fases de expansão financeira, uma massa crescente de capital monetário ‘liberta-se’ de sua forma mercadoria, e a acumulação prossegue através de acordos financeiros[...] Juntas, essas duas épocas, ou fases, constituem um completo Ciclo Sistêmico de Acumulação.” (1996: 6).

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como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas tornam-se instrumentos suplementares administrados pelos governos dos Estados Unidos no exercício de sua hegemonia, e durante a crise dos anos de 1970 e 1980 passam a ser preponderantes na regulamentação monetária global.

O fordismo alcançou sua maior aceitação nesse período. Tendo suas origens no começo do século XX, é só na “época de ouro” que se tornará o paradigma organizacional de referência da maior parte das empresas. Mas como havia apontado Gramsci (1984), também no início do século, o fordismo não se restringiu à fábrica. Ele extrapolou a esfera da produção e se espraiou pela sociedade e pelo Estado. Não foi apenas uma forma específica de produção, mas antes de tudo um instrumento de criação de hegemonia das classes burguesas dentro da sociedade estadunidense. Para o pensador italiano, nos Estados Unidos da América encontravam-se as condições propícias para o desenvolvimento do fordismo, pois nesse país não existia, como na Europa, uma camada social parasitária. Essa seria uma das razões para a acumulação de capitais ocorridas naquele país. A vida social estaria voltada para a produção de capitais. A existência dessas condições tornou fácil a racionalização da produção e do trabalho, combinando a força (por meio da destruição do sindicalismo) com a persuasão (por meio do pagamento de altos salários, benefícios sociais e propaganda ideológica) para, finalmente, basear toda a vida do país na produção. Segundo Gramsci (1984), a hegemonia vem da fábrica e, para ser exercida, só necessita de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia.

Porém, a criação do modelo de produção taylorista-fordista levou à necessidade de um trabalhador com habilidades e comportamento específico. Engendrou ainda uma determinada estrutura social e um Estado liberal, no sentido da livre iniciativa e do individualismo econômico. No que diz respeito ao trabalhador necessário à produção,

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Gramsci destaca a importância do controle moral, de sua vida sexual e do seu consumo. Os altos salários pagos pela Ford eram instrumentos para selecionar trabalhadores aptos para a produção e para manter sua estabilidade.

Harvey (2002:119) recupera a análise gramsciana e considera que o auge do taylorismo-fordismo, que se estendeu de 1945 a 1973, “teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo, configurações de poder político-econômico e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano”.

Para esse autor, a novidade do fordismo era sua visão e reconhecimento de que produção em massa pressupunha consumo de massa, um novo sistema de reciprocidade da força de trabalho, uma nova estética, psicologia, uma nova sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista. Enfim, uma nova cultura em que a adesão da força de trabalho aos processos produtivos transcendesse o âmbito fabril.

Tentando compreender os aspectos culturais que envolvem o fordismo, Sennet (2001) considera que a marca desse modelo é a tentativa de estabelecimento definitivo da rotina na vida dos trabalhadores. Os aspectos repetitivo, degradante e alienador do trabalho estiveram presentes desde o início do processo de industrialização, no entanto, é no fordismo que encontram o seu auge, pois apenas uma dura disciplina e apego à rotina poderiam levar a cabo o processo produtivo. Contrariamente à rotina emergia grande parte da resistência dos trabalhadores ao trabalho na fábrica. O atrito que tal situação gerava fez surgir muitas teorias que tentavam humanizar o trabalho nas empresas, e foi objeto de constantes negociações entre patrões e empregados. A degradação imposta pela rotina era compensada com aumentos salariais.

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Contraditoriamente, o tempo rotinizado tornara-se uma arena na qual os trabalhadores podiam afirmar suas próprias exigências, como no caso das negociações sindicais: uma arena que dava poder. Tornara-se ainda uma conquista pessoal, na medida em que a rotina, ao mesmo tempo em que poderia degradar, poderia proteger, permitindo projetos de longo prazo e um planejamento para o futuro.

Trabalhadores que se inseriam dentro do modelo terminavam por ter uma trajetória de vida e profissional bastante previsíveis, longe da instabilidade de um mercado de trabalho não regulamentado, por exemplo. Havia um tempo certo para o cumprimento de determinados percursos de vida: uma idade para a escolarização obrigatória, para a formação profissional, para a carreira geralmente ligada a uma só empresa, para a aposentadoria. A rotina e a previsibilidade do trabalho se estendiam para a vida dos trabalhadores.

Nesse contexto, o que os capitalistas esperavam dos trabalhadores era a adequação aos postos de trabalho, o domínio técnico de sua função. O trabalhador desejado era o que possuía uma “personalidade burocrática”9, ou seja, aquele que se destacava como bom cumpridor de regras. Em termos de qualificação, a valorização era dada aos componentes formais da educação escolar, profissional e técnica.

No entanto, na esfera da produção, o trabalho rotinizado, as poucas habilidades manuais necessárias, o controle quase inexistente do trabalhador sobre o projeto, ritmo e organização da produção levaram a uma grande rotatividade da força de trabalho. O problema perpétuo de acostumar o trabalhador a sistemas de trabalho repetitivos,

9 O conceito é desenvolvido por Philip Brown, em Cultural Capital and social exclusion: some observations on recent trends in education, employment and the labour market. Work Employment &

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inexpressivos e degradados nunca foram totalmente superados e se tornaram ponto de fricção entre capital e trabalho.

Dentro desse contexto é importante pensar algumas especificidades do modelo fordista no Brasil. Silva (1993) nos lembra que o Fordismo desenvolveu-se somente em regiões e setores industriais específicos. Durante o auge do fordismo nos países centrais, o processo de industrialização no Brasil era ainda bastante incipiente e características como produção e consumo de massa foram bastante restritas até a década de 1970. Com o regime militar e a ampliação do processo de industrialização, com a abertura para o capital estrangeiro, o modelo se reforçou, porém, moldado por uma rígida intervenção estatal que determinava as normas salariais, proibia greves e eliminava a estabilidade no emprego com a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Dessa maneira, estabilidade e profissão para toda a vida não fizeram parte da trajetória profissional da maior parte da população brasileira. O caráter autoritário de que se revestiam as relações sociais como um todo também se expressaram no ambiente fabril. Nesse contexto a própria atuação dos sindicatos era bastante limitada. O fordismo no Brasil se construiu numa interação justa com as políticas estatais, em que a prerrogativa dos empresários de alterarem salários e as estruturas funcionais não eram contestadas. A intervenção do Estado no mercado de trabalho criou um núcleo de trabalhadores estáveis e qualificados e outros semi-qualificados em rodízio. Esse modelo se transformará a partir da década de 1980, com o processo de mudanças organizacionais e tecnológicas nos setores modernos da economia. Nesse período tem início também a introdução das práticas japonesas dentro das indústrias no Brasil.

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1.5.2 A reestruturação produtiva e superação da crise do capital

Na década de 1970 uma crise e a conseqüente instabilidade atingiram o mundo capitalista. A economia global não desabou, mas a produção industrial das “economias de mercado desenvolvidas” foi reduzida em 10% ao ano e o comércio internacional em 13%, entre 1973 e 1975 (HOBSBAWM, 1995:937). O crescimento econômico continuou a existir, porém em um ritmo mais lento, com exceção dos países asiáticos, que apresentaram um espetacular crescimento, especialmente a China. O mesmo não se pode dizer de países da África, Ásia Ocidental e América Latina, onde o crescimento praticamente cessou, e das economias do “socialismo real”, que desabaram. Porém, mesmo nos países desenvolvidos do mundo capitalista a pobreza, o desemprego em massa, a miséria e a instabilidade aumentaram visivelmente. Os extremos entre riqueza e pobreza cresceram. A crise só não foi mais profunda porque nesses países o sistema público de seguridade montado nas décadas de crescimento, conseguiu ainda conter a onda de insatisfações geradas pelas perdas salariais e de emprego, embora em todos esses países, tais direitos tenham sido constantemente atacados pelos governos na década de 1980. Para Hobsbawm (1995:938):

O grande fato das décadas de crise não é que o capitalismo não mais funcionava tão bem quanto na era de ouro, mas que suas operações se haviam tornado incontroláveis. Ninguém sabia o que fazer em relação aos caprichos da economia mundial, nem possuía instrumentos para administrá-las.

Chegara o momento em que a supremacia das empresas transnacionais e o aprofundamento da globalização econômica solapavam o poder dos Estados Nacionais. O modelo keynesiano de controle econômico tinha encontrado o seu limite. Em seu lugar o

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retorno às práticas liberais, com toda a sua crítica ao sistema de proteção social e a intervenção do Estado na esfera econômica encontrava, novamente, repercussão no meio empresarial, político e intelectual.

Para Harvey (2002), a crise também significou a erosão do compromisso keynesiano-fordista e a emergência de um novo sistema baseado na acumulação flexível. Desde meados dos anos de 1960 o fordismo apresentava sérios problemas relacionados à sua “rigidez”: investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo impediam a flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariáveis; a alocação e os contratos de trabalho também se baseavam numa pretensa estabilidade da produção e do consumo. A crise do capital colocou em cheque esses pressupostos, apontando para a necessidade de reestruturação do modelo de acumulação.

A economia de escala, verticalizada com produção em série, característica do fordismo, também se viu confrontada por novas formas de produção baseadas em uma variedade de bens e preços baixos, em pequenos lotes - a chamada “economia de escopo” -o que implicou na adoção de novas formas de gerenciamento da produção, inspiradas nas práticas japonesas, como também num novo ritmo de produção e consumo cujo tempo de uso das mercadorias se encontra cada vez mais restrito.

Nas décadas de crise acentuou-se a organização do capital por meio da dispersão e da mobilidade geográfica. Desde a “época de ouro” a tendência à dispersão se encontrava presente por meio do processo de internacionalização da economia. Grandes indústrias procuravam regiões onde a proximidade com a fonte de matérias-primas, baixos salários, incentivos fiscais por parte dos Estados, bem como mercados consumidores em potencial estivessem à sua disposição. No entanto, a crescente transnacionalização do capital e o enfraquecimento do poder dos Estados acentuaram ainda mais essa dispersão. O capitalismo

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tornou-se mais organizado, reforçando uma divisão internacional do trabalho em que os países centrais dominam o processo de pesquisa e desenvolvimento enquanto os periféricos realizam as etapas de confecção dos produtos.

Todas essas mudanças foram acompanhadas pelo neoconservadorismo e pela emergência de políticas liberais em contraposição às políticas desenvolvidas pelo Estado do Bem-Estar Social. Inauguradas por Thatcher e Reagan, no início dos anos de 1980, permitiram, junto com o processo de reestruturação da produção, um ataque ao salário real dos trabalhadores e ao poder sindical. No entanto, o sucesso político do neoconservadorismo encontra-se também vinculado a uma nova cultura individualista, empreendedorista e competitiva que molda tanto o mundo da produção quanto do consumo. Nesse processo, a valorização do efêmero, do fugaz e do contingente tem marcado o comportamento de amplos setores da população e tem levado à construção de teorias que classificam esse momento como pós-moderno. 10

1.5.3 O toyotismo

Na esteira da crise dos anos de 1970 e da tentativa de reorganização do capital, faz-se notar desde os anos de 1980 um amplo movimento de reestruturação das empresas e de gestão de força de trabalho. A referência para essa reestruturação ficou conhecida como ohnismo ou toyotismo.

10 David Harvey (1992:3) contesta a tese de que estaríamos vivendo o fim da modernidade e em última

instância o fim da sociedade capitalista tal como foi descrita em seus princípios por Marx. Para ele, as mudanças vivenciadas após 1972, “quando confrontadas com as regras de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova.” Tese com a qual concordamos.

Referências

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