RESENHA
Kenneth Waltz, O homem, o estado e a guerra: Uma analise teórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Fernando Kolleritz1 Nascido de uma tese de doutorado, o livro foi publicado há exatos cinqüenta anos, em 1954, sob efeitos ainda próximos da Segunda Guerra e em plena vigência da Guerra Fria. Esta resenha celebra sua tradução em plagas brasileiras no início deste ano. K. Waltz é autor renomado de Foreign Policy and Democratic Politics e de Theory of
Internatinal Politics.
O titulo acadêmico da obra –“O homem, o Estado e o sistema dos Estados nas
teorias sobre as causas da guerra”, – dá uma boa idéia do conteúdo do livro em pauta,
indagando a capacidade destas teorias em fornecer instrumentos conceituais para reduzir os riscos de conflitos armados. Apresentar-se-á o texto, seguido de comentário sucinto, com o mero objetivo de mostrar que as teses aduzidas no livro são questões da atualidade.
Três versões ou representações (imagens diz a autor) animam o essencial das teorias sobre as causas de guerra. Pelo primeiro prisma, afirma-se que os conflitos armados internacionais resultam da própria natureza humana, da sua eterna e perversa malevolência. A segunda imagem histórico-conceitual responsabiliza as próprias estruturas do Estado, suas qualidades intrínsecas, o regime que o conforma (inclusivo em vários graus), as suas formas institucionais, capitalista ou comunista, ditatorial ou liberal. O terceiro tipo de representação incrimina a sociedade de Estados, a lógica da pluralidade estatal forçosamente agonística, minada, de fato, pela rivalidade competitiva, pelo desconhecimento das intenções verdadeiras das entidades políticas, quando cada identidade territorial é loba para as outras, quando convivem as sociedades numa espécie de mundo natural, sem regras nem normas ou acordos que conduzam e possam forçar o convívio mútuo pacífico. O sistema de Estados está na base dos conflitos quase inevitáveis. Neste caso, não são as características internas de cada Estado que antecipam a guerra, mas a convivência associal dos Estados entre si.
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Professor Associado do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional. FHDSS/UNESP-Franca.
O autor explora com igual objetividade circunspeta as três teses, expostas em capítulos separados e acompanhados respectivamente de comentário analítico. A opção pacifista é manifesta; de fato a introdução logo nos avisa que não há vitoriosos numa guerra, apenas graus vários de derrota.
Santo Agostinho e Lutero, Malthus e Jonathan Swift pensam igualmente que na raiz de todo mal está o homem e em particular deste mal específico que é a guerra. Atrás das razões aventadas por um príncipe, atrás do que não são mais do que racionalizações, existe o mesmo gosto perverso pela violência e brutalidade que animam os brutamontes. No seu comentário sobre a primeira imagem –que diz respeito à natureza humana- Waltz designa o que ela possui de demasiado amplo e vago. Aceitando que o egoísmo humano, os impiedosos impulsos do instinto do autoconservação originem a guerra, temos, ao mesmo tempo, que a mesma natureza humana dá lugar a manifestos e recorrentes empreendimentos associativos e fraternos, a ações filantrópicas, a sacrifícios individuais e coletivos em nome de amizades e solidariedades. A mesma “natureza humana” oferece oportunidade a todo tipo de comportamentos.
Talvez seja mais interessante para nós o segundo gênero de explicação; remete aliás muito diretamente à atualidade (no caso, à guerra do Iraque). Como foi mencionado, este prisma incrimina pelas guerras a estrutura estatal. Mais concretamente, a instituição societária adequada à paz seria para Marx a coletivização dos meios de produção, dela resultaria a paz. Kant pensa as possibilidades da Paz universal a partir de princípios abstratos de direito. O presidente norte-americano Woodrow Wison raciocinou a partir do privilegiamento do princípio de autodeterminação nacional-democrática. “Ora, o povo, disse o presidente Dwight Eisenhower, não deseja o conflito – o povo em geral. Só líderes equivocados, acredito, tornam-se demasiado beligerantes e acham que o povo realmente quer lutar.” (p.13) Não é rara, nos agentes históricos e nos analistas da política, a noção que certos regimes – liberais, democratas, socialistas – têm a propriedade, por razões diferentes, de serem avessos à guerra. Nos parâmetros do credo liberal-democrático, se e quando as instituições levam à consulta do Povo, este, quem mais sofre com o estado de beligerância, opor-se-á ao conflito. As vanglórias aristocráticas, os interesses alucinadores das elites, sim, levam a reverenciar a honra dos campos de batalha, as vinganças frente a ultrajes, os ganhos utilitários das lides bélicas. O socialismo, que aboliu a luta de classes e as manobras escusas dos dominantes, instala a definitiva
fraternidade dos trabalhadores de todo mundo. Abolidas as motivações lucrativas da guerra, as únicas verdadeiras em última instância, haverá evidentemente a paz.
Estamos frente a um fenômeno central por onde, recorrendo a razões ideológicas “plausíveis”, a motivos eminentemente “bons”, uma determinada Nação poderá sentir- se na quase obrigação de adentrar em guerra contra outra. Nas bandeiras dos seus exércitos, a Revolução Francesa traz a liberdade e a igualdade, o fim dos insuportáveis privilégios estamentais. Na ponta das baionetas, a fraternidade. Os exércitos napoleônicos nutrir-se-ão, para muitos, da mesma áurea. Para terminar com regimes ditatoriais, para acabar com o militarismo alemão, para alinhar-se no campo da democracia enfrentando as atrocidades nazistas, os Estados Unidos mobilizaram-se, internacionalizando por duas vezes o estado de guerra. Marchar pela liberdade viria a ser obrigação das Nações livres, reclama-se das nações democratas e poderosas a intervenção antiditatorial. Da mesma maneira os países socialistas sentiram-se na obrigação de socorrer os seus congêneres. As ressonâncias de tais concepções não escapam ao leitor: desejos quase utópicos – generalizar a liberdade, expandir a democracia – podem transformar-se, sem mais, em imposições cruentas. De repente, o Bem inverte-se no seu contrário. De repente, o povo que se queria libertar é nosso inimigo; o herói libertador torna-se execrado das populações que viera acudir, tolhendo-as, massacrando-as. O fato é, observa o autor, que nem as intervenções liberais-democratas nem as socialistas limitaram visivelmente a ocorrência de guerras.
A sociedade de Estados, cada um dentre eles constituído em sua diferença, desconfiados uns dos outros, tornados agressivos por mero instinto de sobrevivência , sistema, por isso, na origem dos conflitos bélicos representa, já dissemos, a terceira imagem. Aquela que, tudo indica, mais convence o nosso autor. Seu princípio é propriamente ontológico: cada ser é, em sua determinação e fundamento, a negação de outros; a mera existência das entidades políticas territoriais obriga cada Estado a zelar pela própria segurança e a antecipar por razão estratégica a ação dos iguais. Tal situação só pode ser remediada pela formação de uma rede internacional, instituição contratual, dotada -ou não- de meios incontrastavelmente superiores da força. O politólogo norte-americano segue Rousseau a evidenciar que, sem a eficácia da coação, cada membro da Federação poderá sentir-se interessado em romper os compromissos assumidos. O sentido do seu livro consiste precisamente nisto: mostrar que se as guerras estão em função da mera existência de um sistema de Estados, torna-se praticamente obrigatório,
para evitá-las, formar uma instituição internacional, apta pelas suas armas de obrigar à paz.
Em comentário geral, realcemos que as distinções teóricas estabelecidas por K. Waltz quanto à origem das guerras possuem mérito hermenêutico incontestável; outrossim, cada imagem é discutida a partir de referências a situações históricas, a obras filosóficas e a exemplos de homens públicos alimentando de modo instigante a controvérsia entre as respectivas teses, subdividindo também as perspectivas abertas por cada uma delas. Se, por exemplo, imputo à natureza humana a responsabilidade das guerras nem por isso serei necessariamente pessimista, pois nada impede acreditar nos benefícios de uma boa. educação que, com maior ou menor prazo, levaria a humanidade a diminuir os riscos da guerra.
Convém, todavia, colocar algumas dúvidas. Munir-se de textos (Rousseau ou Kant) que precedem largamente a experiência histórica vivida e discutida por quem escreve arrisca ser um exercício desconcertante. A mobilização geral do Povo é um fato novo que Rousseau mal poderia entrever, a grandeza de escala dos massacres também seria dificilmente imaginável, que houvesse um dia sociedades socialistas e que se enfrentassem (Vietnam ajudado pela URSS versus Camboja respaldado pela China), os filósofos do século XVIII e XIX não poderiam prever. Indaga-se, pois, do acerto em mobilizar teorias e filosofias, para a questão pragmática da guerra, que não tenham recebido a incidência das luzes e das obscuridades provocados pelos eventos. Pergunta-se Pergunta-se as ilustrações e inferências históricas não Pergunta-serão Pergunta-sempre mais convincentes e Pergunta-se não são elas que, na realidade, verdadeiramente informam as indagações de K. Waltz. Haveria assim algo de retórico em utilizar, neste campo pragmático, textos clássicos da filosofia. Pergunta-se, em suma, se a teoria internacional não é sempre profundamente afetada pela historia.
Podemos nos perguntar também se a força das ideologias, os conteúdos expansionistas da doutrina nazista e a vocação universalista do marxismo – sob égide stalinista ou maoísta –, não complementam, de modo bastante discordante e contraditório, a terceira “imagem”, a da sociedade de Estados. De qualquer modo, Waltz nos faz lembrar que o presidente norte-americano hoje, 2004, ao utilizar-se da linguagem anti-ditatorial, do bom regime contra o mau, para justificar a guerra, seguia uma tradição teórica. Por outro lado, para além dos seus interesses particulares, a Alemanha e a França em sua oposição à guerra do Iraque nos ajudam a pensar que
houve algo de intrinsecamente belicista no grupo republicano favorável ao conflito. Evidencia-se também, no mesmo local, que a guerra gera a guerra, É possível que o enquadramento teórico das guerras seja sempre bastante precário, com tendências fortes ao ecletismo no elencar das causas.