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Moda e linguagem: Nietzsche e Arbus, uma aproximação

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Academic year: 2021

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[resumo] Nosso principal intuito é demonstrar a pertinência entre os estudos da fi-losofia e as reflexões contemporâneas sobre moda. Reproduziremos argumentos de alguns autores que já trataram da moda como linguagem, procurando acrescentar outras possibilidades, com ênfase no pensamento nietzschiano. No entanto, o fio con-dutor de nossa reflexão encontra-se em um texto de Carol Shloss sobre Diane Arbus. A opção por esse texto específico tem sua justificativa no fato de a autora tratar da indumentária sob o viés do impulso criativo do homem e da necessidade que ele teria de dar-se a conhecer. Pretendemos assim aproximar a reflexão da autora às contun-dentes afirmações de Nietzsche sobre tais questões já no século XIX.

[abstract] Our mean purpose is to demonstrate the relation between the studies of philosophy and thoughts of contemporany fashion. We are going to reproduce arguments of some writers who have handled the issue of fashion as a language, seeking to add other possibilities, with emphasis on Nietzsche’s thought. However, the common thread of our reflection is a text by Carol Shloss about Diane Arbus. The option for that in particular is justified by the fact that the author treat the clothing under the bias of the man’s creative impulse and his needs to make himself knew. We intend to close writer’s reflections to Nietzsche’s claims about such matters back in the nineteenth century. [keywords] phylosofy; fashion; language; Arbus; Nietzsche.

filosofia; moda; linguagem; Arbus; Nietzsche.

[ palavras-chave ]

Moda e linguagem:

Nietzsche e Arbus, uma

aproximação

Fashion and language:

Nietzsche and Arbus, an approach

artigo

]

[ SUZIE NASCIMENTO ]

Mestre em Filosofia pela PUC-PR. Graduada em Design de Moda pela Universidade Tuiuti do Paraná. Atualmente, administra o Salão & Estúdio Suzie Designer, em Curitiba, e direciona sua pesquisa filosófica em Nietzsche para as questões da moda e do consumo que impactam o universo feminino.

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113 [ ] passaria a fotografar pessoas marginais, anões de circo, mulheres gordas e travestis.

Embora alguns críticos afirmassem ter havido uma ruptura entre essas duas fases de seu trabalho, Shloss (2002) faz notar que há uma característica sua na qual é possível ver continuidade: a obsessão por máscaras, disfarces, e a necessidade de denunciar a falta de autenticidade.

É disso que trata seu texto “A margem: moda e dor na obra de Diane Arbus”, publicado no livro Por dentro da moda. Segundo a autora, Arbus teria, mesmo com as fotos de moda, um quase inconsciente desejo de solapar a ilusão, de tornar cla-ro, ainda que pela escolha de suas locações, tratar-se de algo criado sistemática e intencionalmente. Shloss (2002) entende que isso se comprovaria pelo fato de suas modelos estarem sempre em ambientes falsos, ora uma fachada de Hollywood, ora a Disneylândia, de modo a evidenciar o caráter fictício da foto. Com tal procedi-mento, Arbus teria conseguido desviar a atenção “do artefato para o desejo que o chamou à existência” (SHLOSS, 2002, p. 131). Ao refletir sobre a obra da fotógrafa, Shloss (2002) concluiu que Arbus havia feito dois movimentos com um mesmo ato fotográfico. Suas imagens tanto enalteceriam o fazer humano como também denunciariam sua ineficácia:

Uma espécie de tributo ao impulso humano que está por trás de toda criatividade – a vontade de estender o “eu” pelo mundo de objetos feitos – e ao mesmo tempo como um juízo sobre a fragilidade e a ineficácia desse esforço: ninguém se deixa enganar. A casa está vazia; o lago não está ali. (SHLOSS, 2002, p. 131)

Ao dedicar sua objetiva a outros corpos, menos harmônicos, Arbus teria radica-lizado esse modo de fotografar, deixando seu caráter fictício ainda mais evidente. O texto de Shloss (2002) vem acompanhado de duas fotos desse período que reprodu-zem travestis portando objetos e poses de moda, tipicamente femininos. Ao vermos outras fotos de Arbus, constatamos que o efeito se acentua ainda mais quando ela permite ao espectador ver o entorno, colocando esses signos de moda em contraste não somente com o corpo, mas também com o ambiente decadente. De acordo com a autora, o perturbador dessas imagens não era a marginalidade dos modelos, mas sim a “conjunção de sua presença física com seus desejos”, a ruptura entre o “investimento espiritual no artifício” e o “fracasso de reconstruir suas respectivas imagens” (SHLOSS, 2002, p. 136). Como se, ao observá-las, o espectador fosse forçado a reconhecer a impotência da moda frente aos desejos humanos. Embora reconheça que a denúncia de Arbus tem um caráter social, a autora não se deixa aprisionar em um discurso de crítica ao mercado ou à moda.

Como dissemos no início, Shloss (2002) levanta uma questão muito interessante que pretendemos enfatizar. Haveria nas publicações de moda, num nível mais pro-fundo, um apelo àquilo que nos caracteriza como humanos: nosso anseio por criar. Há inclusive, em sua reflexão, uma sensível proximidade entre o impulso à criação e o medo. Seu texto nos leva a ver a escolha da indumentária como um ato criativo cujo fim último seria comunicar algo de nós. E tal criação estaria fortemente ligada à necessidade que o homem tem de apoderar-se do seu próprio destino. Nesse ponto, podemos aproximar a autora das reflexões de Nietzsche (2001) sobre a linguagem. O impulso à comunicação teria nascido no homem pela necessidade de comunicar algo a alguém, pela sua característica gregária. Veja-se este aforismo de A gaia ciência:

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Acrescente-se que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque o gesto; o tomar-cons-ciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos. O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si – Ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. – Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária. (NIETZSCHE, 2001, p. 249)

Com Nietzsche (2001) podemos entender que os signos que o homem cria são modos de colocar a impressão dos seus sentidos, de forma concreta, ao alcance dos outros. Se entendermos que a indumentária faz parte também desse sistema de sig-nos, a moda seria um importante instrumento de comunicação. Na análise de Shloss (2002), as mensagens dos editoriais de moda teriam o poder de fazer crer que haveria, de fato, a “indumentária perfeita”, correspondente à imagem que cada um tem de si mesmo. Assim sendo, quanto mais habilidade se tivesse em construí-la, mais acerta-damente se chegaria à perfeita correspondência entre essa imagem e aquela que os outros têm de nós.

O discurso das revistas de moda não somente faria crer que isso é possível como também ofereceria todas as ferramentas através das quais o homem poderia alterar o seu destino. Se considerarmos esse raciocínio, é preciso admitir que o desejo de encontrar uma imagem correspondente de si mesmo e o desejo de controle sobre o destino, de algum modo, se tangenciam e se revelam no consumo das publicações de moda, corroborando com as reflexões de Nietzsche (2001) de que a necessidade é a gênese de qualquer tipo de comunicação ou criação, e que tal necessidade estaria ligada à subsistência, ao desejo de segurança e ao modo de viver gregário. Ora, à medida que o homem se capacita a comunicar algo de si com eficiência, a sensação de controle do seu entorno aumenta. De acordo com a autora, se analisadas por esse viés, “todas as fotografias de moda confortam ao reafirmarem que as roupas podem agir como ferramentas que transformam reivindicações internas em formas objetiva-das” (SHLOSS, 2002, p. 129). Para Shloss (2002), as imagens de moda seduzem porque “reconhecem o nosso anseio pela Outridade e nos dizem que este anseio pode ser apaziguado” (SHLOSS, 2002, p. 137).

Shloss (2002) afirma que a inadequação dos corpos marginalizados nos retratos de Arbus revelava a mentira aí existente. Tal inadequação tornava evidente a ruptu-ra entre aquilo que os modelos desejavam comunicar e o resultado obtido como os adereços de moda, o que tornava a impossibilidade de o homem dar-se a conhecer inquestionável. Como se os marginais de Arbus se vissem de determinada maneira e estivessem procurando, com os objetos e roupas da moda, dar forma objetiva ao modo como se viam, sem sucesso. Embora os objetos e as poses fossem similares, os corpos masculinos dos travestis e a desproporção dos anões e dos gigantes tornavam mais evidente a inadequação do corpo ao desejo.

Segundo Shloss (2002), isso ficava obscurecido pela beleza das modelos nas ou-tras fotos. A interpretação que a autora faz da obra de Arbus leva a esse limite. Ao ponto em que seria preciso reconhecer que não há recursos de indumentária, ou mes-mo culturais, capazes de atender o desejo do homem de dar-se a conhecer. É possível dizer que Arbus via, por sob sua lente, a profunda dor da solidão a que todo homem é condenado. A sua incomunicabilidade. O constante “olhar de fracasso” diante da sua fala, da sua imagem, que nunca corresponde à ideia e também frustra a intenção de controle da vida e do destino, que, segundo Shloss (2002), estaria vinculada a esse desejo. A autora nos leva a refletir: “Até que ponto pode a imaginação encontrar re-cursos para efetuar a apresentação do ‘eu’ que ela [a pessoa] tem em vista?” (SHLOSS, 2002, p. 132).

Com tais argumentos é possível inferir que a indumentária segue muito próxima à linguagem, entendida como um sistema de códigos e símbolos gerados e mantidos pela cultura, sendo eles também fictícios à medida que nunca correspondem a algo

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115 [ ] LHUB, 2003, p. 51). Ele escreveu seu Sistema da moda em 1967. Um pouco mais

contemporâneo é Lars Svendsen (2010), com seu Moda: uma filosofia de 2010, sobre o qual nos estenderemos um pouco mais. O livro tem um item específico em que o autor trata da relação entre moda e linguagem. Ele reconhece que após o advento da modernidade as roupas extravasaram o ambiente onde foram primeiramente conce-bidas e seus significados originários. Já não se poderia dizer que alguém que vista esta ou aquela roupa fosse isto ou aquilo. A partir da modernidade, haveria uma constante troca desses significados, deslocando-os, e a moda teria um papel importante nessa desconstrução de significados. O autor, porém, não parece disposto a reconhecer as roupas como linguagem, justamente porque elas não estariam mais “comunicando”. Exemplo disso é o modo como ele se dirige a Alison Lurie e o seu A linguagem das

roupas, publicado em 1981. Segundo Svendsen (2010), Lurie teria levado a “analogia”

entre roupas e linguagem “muito longe” e de maneira “demasiado direta” (SVENDSEN, 2010, p. 72-73). Vale lembrar, essa autora faz associações entre cores fortes e virilida-de, entre a ausência de gravata nos padres e a castração, entre a quantidade de peças que alguém utiliza para vestir-se e um vocabulário mais ou menos rico. Svendsen (2010), por sua vez, defende que não seria possível avaliar a capacidade comunicacio-nal de alguém pelo tamanho do seu closet (SVENDSEN, 2010, p. 72).

No entanto, à luz da reflexão de Shloss (2002) sobre Arbus, parece-nos bastante viável inferir que os gêneros têm modos distintos de comunicação e que não pode ser acaso que os guarda-roupas femininos são muito mais bem servidos e diversificados e o fato de a moda ser o universo feminino, por excelência. No entanto, queremos permanecer aqui no horizonte das questões levantadas por Shloss (2002), e ela aponta para o caminho inverso: se Barthes se dedica a esmiuçar a infinidade de significados da indumentária dentro do sistema moda, e se Svendsen (2010) a vê esvaziada de sig-nificados, Arbus estaria evidenciando que nem mesmo todos os significados possíveis dariam conta do impulso à comunicação do homem.

É possível dizer que há um caminho que vai dessa necessidade de comunicar à formação de sistemas rígidos, ou a conceitos generalizantes. Haveria uma tendência humana em diminuir a multiplicidade de um signo a partir do seu entendimento. O que daria sentido à proximidade entre a necessidade de uma comunicação eficiente e desejo de segurança, pois, quanto menos variações, mais segurança. Como exemplo, tomemos a palavra folha. Estender o significado de “folha” a todas as espécies de folha torna a comunicação mais eficiente e imediata, no entanto, com isso perde-se uma infinidade de possibilidades. É para esse sentido que gostaríamos de levar a relação que Shloss (2002) faz entre as imagens de Arbus e a linguagem. Como observadores, se concordamos que “peruca” significa uma só coisa e estendemos esse significado para todos que a usam, criamos uma inadequação. Não conseguimos avaliar esse ornamento separado do corpo que o usa e dos conceitos que temos sobre esse con-junto. Isso faz com que, quem quer que porte uma peruca, esteja também portando seus significados preexistentes. Mas dar à indumentária apenas um único significado não seria uma deficiência? Ou, o que é mais grave, pretender que todos os que usam peruca sejam similares não seria um empobrecimento de nossa própria humanidade? Como vimos, Svendsen levanta essa possibilidade como problemática, pois, a par-tir da desconstrução pela moda do signo “peruca”, não podemos mais compreendê-la, ela não comunica mais com eficiência. Essas questões nos encorajam a levar o assunto para outro universo, menos pautado na escrita como sistema e código e mais como uma possibilidade artística. No sentido de que com palavras, com códigos e signos também se faz poesia e romance, também se chega ao imaginário. Pretendemos aludir à hipótese de que seria possível ao homem, através da manipulação da indumentária e dos seus significados, levar seu espectador a compartilhar uma sensação ou experiência. “Constrangê-lo” também a uma criação artística, para usar uma palavra

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nietzschiana, do mesmo modo que o poeta força o seu leitor a “reconduzir uma série de efeitos à sua causa” (NIETZSCHE, 2005, p. 30). Não é possível afirmar que com isso se diria o que o homem é, mas sim que com tal prática se estaria fugindo dos limites da linguagem. Se continuarmos com Nietzsche (2005), é possível entender que esse “ultrapassar da linguagem” se dá na junção entre palavra e música. Que os símbolos, a final, também podem cantar e dançar. Veja-se o que dizia o filósofo quando das suas reflexões sobre a tragédia grega:

A palavra age primeiramente sobre o mundo dos conceitos e so-mente a partir daí sobre o sentimento; e de maneira bastante fre-quente ela não alcança absolutamente, pela distância do caminho, o seu alvo. A música, por outro lado, toca o coração imediatamente, como a verdadeira linguagem universal, inteligível por toda a parte. (NIETZSCHE, 2005, p. 30)

As palavras e, no nosso caso, a indumentária seguem presas a conceitos, ao pré--combinado, ao já conhecido e reconhecido. É na arte, naquilo que afeta aos sentidos, no que é capaz de causar emoções válidas, que elas se libertam e criam novos signifi-cados. Contrariamente ao que se pode afirmar da escrita enquanto conceito rígido, os códigos, quando usados de forma artística, podem ser inéditos e também compreensí-veis. Podemos inferir que se uma determinada composição indumentária é exitosa em comunicar, nisso há prazer, pois “o prazer consiste no entendimento do símbolo”, dizia Nietzsche (NIETZSCHE, 2005, p. 33). Com o filósofo também podemos afirmar que arte é o que acontece quando se comunica prazer. Não nos interessa tanto discutir se toda a comunicação, pela escrita ou indumentária, é arte ou não. Svendsen (2010), em outro capítulo do seu livro, apresenta vários argumentos que impediriam que se considerasse a roupa como arte.

Segundo seu texto, desde “a separação entre as artes e os ofícios ocorrida no século XVIII”, a “costura” estaria inserida “decididamente nesta última categoria” (SHLOSS, 2002, p. 102). Ele também afirma que, “desde que a alta-costura foi intro-duzida”, a moda teria aspirado ao reconhecimento “como uma arte de pleno direito”, citando Worth e Poiret como exemplos (SHLOSS, 2002, p. 102). Notadamente, ele se atém ao que culturalmente se aceita como arte, peças reconhecidas e legitimadas pelos mecanismos oficiais da cultura. Em nosso texto, o que podemos inferir da junção entre Nietzsche e Arbus é que todo o homem tem um impulso à comunicação, e que tal se dá pela criação de signos, e sendo essa comunicação exitosa e prazerosa, nela encontramos a arte. E essa espécie de comunicação pode existir para além de sistemas e conceitos. Porém, é possível, mesmo no modo como Arbus faz ver suas imagens, falar-se em belo e feio, em arte boa ou não. É o que veremos no próximo parágrafo.

Se partirmos do princípio que, de fato, haja algo nas fotos de Arbus que remete ao fracasso, o que isso nos diz? Shloss (2002) entendeu que os objetos de moda dispo-níveis teriam sido insuficientes para o impulso criador dos seus modelos. Se agora nos apropriarmos mais uma vez das reflexões de Nietzsche (2000), é possível dizer que tais fotos são “feias”, justamente pela sensação de fracasso que transmitem. Mas ele dirá também que “nada é mais condicionado” do que o sentimento do belo, que o “belo em si” é somente uma palavra (NIETZSCHE, 2000, p.77).

Mas, se nada é belo, o que seria feio? “Nada é feio senão quando é o homem que o degenera”, encontramos um pouco mais adiante. Se analisarmos as imagens de Ar-bus com essa perspectiva, podemos dizer que o “sentimento” de fracasso que elas evo-cam não pode ser inequívoco. Ele dependerá sempre de certa valoração do espectador, ainda que seja ele o próprio criador da obra. Se há um sentimento de fracasso ou falha, será sempre o sentimento de alguém em relação a uma expectativa de perfeição por ele imaginada. Ninguém poderia afirmar que tal imagem é bela, mas poderia, isso sim, vivenciar algo como perfeito, acabado, irretocável, e isso, segundo Nietzsche, seria o sentimento do belo. De modo inverso, a percepção de que o objetivo não foi alcan-çado, que a obra não foi concluída, que a vontade humana não prevaleceu, isso ao espectador pareceria feio. De maneira que, se a imagem transmite um “sentimento” de fracasso, ela não pode ser simultaneamente “bela” a esse observador em específico.

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res humanos, atrai bem mais por suas imperfeições do que por tudo o que sai elaborado e perfeito de suas mãos – sim, a vantagem e a fama lhe vêm antes da sua derradeira incapacidade que da sua rica energia. Sua obra nunca expressa inteiramente o que ele gostaria de expressar, o que ele gostaria de ter visto: como se ele tivesse o ante-gosto de uma visão, nunca ela mesma; mas uma enorme avidez por tal visão lhe permaneceu na alma, e dela retira ele sua igualmente enorme eloquência do anseio e da forma. Com ela, ele alça quem o escuta acima de sua obra e de todas as ‘obras’, dando-lhes asas para subir a alturas que normalmente os ouvintes não alcançam. Assim, tornando-se eles próprios poetas e videntes, tributam ao autor de sua ventura uma admiração tal, como se ele os tivesse levado diretamente à contemplação do que para ele é sagrado e supremo, como se hou-vesse atingido a sua meta e realmente visto e comunicado a sua visão. Sua fama é beneficiada pelo fato de ele nunca ter chegado à sua meta. (NIETZSCHE, 2001, p. 107)

Reproduzimos aqui esse aforismo para evidenciar quão diversas e múltiplas são as possibilidades da comunicação quando a entendemos como uma fazer artístico. As valorações de belo e feio, no que diz respeito à aparência humana, tornam-se flutuan-tes. Se Arbus e Nietzsche (2001) estão de acordo quanto ao “sentimento” de fracasso, em Nietzsche (2001) podemos admitir que a angústia e o desejo da criação, embora transpareçam sofrimento, são também admiráveis. Que, mesmo sendo impossível a comunicação perfeita, o desejo de alcançá-la pode tornar algo belo ao espectador. Podemos inferir que há diferença entre a dor do fracasso identificada por Arbus, e a dor da busca identificada por Nietzsche no aforismo. Porém, em ambos a dor vem vinculada ao impulso à criação, à necessidade de comunicar.

As reflexões de Nietzsche (2001) sobre a arte, porém, nos permitem ir além. De fato há valorações de “belo” e “feio”, mas nenhuma delas pode ser entendida como uma resposta à pergunta pelo “em si”, entendido como o “eu” projetado e imaginado pelo homem. O filósofo, no entanto, entendia todas as expressões artísticas como sintoma. Elas não poderiam dizer “quem é”, mas sim “como está”. Elas forneceriam uma leitura inequívoca do estado de saúde do povo e da cultura da qual emergem (NIETZSCHE, 1999, p. 9-10). Nietzsche (1999) afirmava que seria possível compreen-der a mocompreen-dernidade observando sua produção e gosto artísticos.

Se considerarmos o resultado do impulso à comunicação como criação artística, e se Nietzsche (1999) está correto quando entende que arte é sintoma, o modo como utilizamos os recursos da moda, ou nos projetamos externamente, diz algo sobre nos-sa nos-saúde. Shloss (2002), com base em Arbus, denuncia a ausência de ferramentas e símbolos suficientes para que o homem se dê a conhecer. O aforismo citado acima nos leva crer que a busca pela comunicação perfeita pode transformar o sofrimento em beleza. Com Nietzsche (1999) podemos cogitar a possibilidade de que o “sentimento” de fracasso causado por uma imagem ou pelo homem não seja, inequivocamente, falta de ferramentas suficientes para a comunicação. É dessa maneira que a expres-são artística do homem denuncia sua saúde, à medida que revela um sentimento de recusa e insatisfação. Para o filósofo, a expressão artística do moderno denunciava um desejo de livrar-se de si mesmo e de ser outro. Não estamos aqui falando de haver de fato um “em si” de quem livrar-se, mas sim que o homem diagnosticado por Nietzsche (1999) via a si mesmo com insatisfação e o revelava com seu gosto e criação artísticos. Talvez seja possível dizer que, sob essa perspectiva, o “sentimento de fracasso” frente às imagens de Arbus estivesse vinculado tanto à recusa dos modelos aos seus

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próprios corpos como também à recusa da artista aos ditames do sistema moda a que pertencia. Se considerarmos o diagnóstico de Nietzsche (1999), a moda, naquilo em que ela coincide com moderno, seria tanto mais produtiva e intensa quanto menos o homem sentisse prazer com a imagem que faz de si. Tal produção não expressaria a exaltação do homem, mas sim o seu descontentamento. A moda, a partir daquilo que Nietzsche (1999) diagnostica como Décadence da modernidade, seria um movimento frenético de recusa e tentativa de autocorreção. O que o moderno comunicaria de si seria sempre descontentamento e ressentimento.1

Contudo, entendemos que classificar Nietzsche (1999) como um filósofo “anti-moderno”, para usar uma expressão de Lipovetsky (1989, p. 15), não faz jus à atua-lidade de seu pensamento. Como procuramos demonstrar, a profundidade de suas reflexões sobre arte, beleza, linguagem e, sobretudo, o modo como ele faz derivar todas essas variáveis da saúde do homem, permitem pensar a moda como linguagem legítima e sintoma inequívoco. Nietzsche (1999) também nos dá subsídios para fazer a devida distinção entre beleza e moda. A beleza humana, entendida como sentimento de perfeição e completude, prescinde dos mecanismos da moda e da insuficiência do seu comunicar. No entanto, o homem luta para comunicar-se desde sempre, e os instrumentos de que dispõe estão dispersos na cultura por ele criada. Mas não é fortuito o fato de a moda tornar-se moda somente a partir do que Nietzsche (1999) diagnosticou como Décadence. 2

Finalizando, queremos ressaltar que nossa intenção foi evidenciar que a filosofia nos instiga a pensar a moda com maior profundidade. Ela nos faz ver que os limites dos códigos disponíveis podem ser alargados por uma perspectiva artística, pode-se levá-los para além do “sistema” moda, ou mesmo da cultura, para situações inéditas, pessoais, ainda mais criadoras; a outro nível de comunicabilidade que ultrapassa os conceitos estabelecidos e os significados reconhecidos, onde os sentidos se entendem, seja pelas cores, formas, cheiros, sons ou sensações táteis, onde os homens se comu-nicam sem precisar da fala, da escrita, da verdade. Com ela podemos ver que há muito mais a ser considerado em termos de comunicação indumentária para além do que é restrito ao mundo “verdadeiro”, “lógico”, “factual”. Talvez seja possível afirmar que não é próprio da moda dizer quem ou o que é o homem, ao modo do que parecem pretender Svendsen e Barthes, mas sim deixar transparecer como ele se sente.

NOTAS

[1] Desenvolvemos esses argumentos em nossa dissertação de mestrado, sob o título: Relações entre arte e doença na crítica de Nietzsche à modernidade.

[2] A expressão é nietzschiana e está presente particularmente em O caso Wagner.

REFERÊNCIAS

CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. São Paulo: Ática, 2003.

COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seus destinos nas sociedades modernas. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

______.A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. O caso Wagner: um problema para músicos: Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo.

São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SHLOSS, Carol. À margem: moda e dor na obra de Diane Arbus. In: BENSTOCK, Shari; FERRISS, Suzanne. (Org.). Por dentro da moda. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

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