UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ARIANNE RAYIS LOVO
“Lá, sendo o lugar deles é também o meu lugar”:
pessoa, memória e mobilidade entre os Pankararu
Campinas
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação, composta pelos Professores e
Professoras a seguir descritos, em sessão pública realizada no dia 27 de Março de 2017,
considerou a candidata Arianne Rayis Lovo aprovada.
Prof. Dr. José Maurício Paiva Andion Arruti
Profa. Dra. Verena Sevá Nogueira
Profa. Dra. Joana Cabral de Oliveira
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de
vida acadêmica da aluna.
Dedico aos meus pais,
Jaqueline e Ari,
e aos Pankararu.
Agradecimentos
Um trabalho acadêmico nunca é feito apenas por duas mãos. Com este não seria
diferente. Desde o início, contei com o apoio e o incentivo de várias pessoas e entidades, e
tentarei me lembrar de todos e todas que contribuíram, de algum modo, na feitura dessas
páginas e ideias.
Agradeço ao meu orientador, José Maurício Arruti, pela sua orientação sempre atenta
e cuidadosa, por suas sugestões e críticas, e por der me dado a liberdade necessária para que
meu projeto seguisse seu próprio rumo.
Agradeço a minha co-orientadora, Artionka Capiberibe, que desde a Unifesp vem me
incentivando em minhas pesquisas, com leituras atentas, críticas e conversas sempre
generosas.
Agradeço aos professores Geraldo Andrello, Ronaldo de Almeida, Heloísa Pontes,
Cesar Gordon, Uirá Garcia, Juracilda Veiga, Joana Cabral de Oliveira e Verena Sevá
Nogueira que, em algum momento, leram e deram sugestões valiosas a esse presente trabalho.
Agradeço aos meus amigos e professores do Centro de Etnologia de Pesquisa
Indígenas (Cpei), Marta, Ju, Gabi, Rodolpho, Thiago, Thais, Jefferson, pelas conversas,
risadas e também pelos comentários ao meu trabalho.
Agradeço também ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), que me concedeu uma bolsa de seis meses, e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pela bolsa de um ano e três meses (número de
processo 2014/19329-5), que possibilitou o meu trabalho de campo na aldeia em Brejo dos
Padres, Pernambuco, e no Real Parque, em São Paulo.
Aos Pankararu, agradeço primeiramente à Roziani, com quem estabeleci meu primeiro
contato em São Paulo. Obrigada pelas nossas conversas e pelas acolhidas em sua casa, pelo
suco de murici, pela paciência e generosidade em sempre me acolher e me ajudar. Seu terceiro
filho, Jeffrey, nasceu enquanto essa dissertação terminava. Agradeço também a seu marido,
Peterson, e aos outros dois filhos, Thales e Pietro.
Agradeço à Diana, pelas acolhidas em sua casa sempre que precisei e pelas conversas
animadas com sua filha Tainá.
Em Pernambuco, agradeço a família de Bino e Ninha, por terem me acolhido tão
generosamente em sua casa. Ninha, com suas poucas palavras, me adotou como sua “filha
branca”, ou como ela mesmo chamava, “minha galeguinha”. À Bino, pela disposição e
paciência em me ajudar no que precisei. À Dora, por ter me ajudado no meu percurso em
campo, facilitando meu contato com o grupo na aldeia e também na cidade. Agradeço pela
sua generosidade e paciência na pesquisa. Agradeço também aos seus três filhos, Ítalo, Íngrid
e Mathaws.
Na aldeia, ainda agradeço à David da Luz, Antônio Moreno, mãe Bia, Josivete,
Moisés, Cida, Paulo, Yan, Ryan e Marcela.
Em São Paulo, agradeço ainda à Tia Lídia, que propiciou minha entrada na equipe
médica, estreitando meus laços com o grupo. À Leidi, pelas conversas sempre
bem-humoradas e pelas acolhidas em sua casa e na casa de sua filha. Agradeço ainda à Deise e
Clarice.
Aos amigos que ganhei “do tempo da Unifesp” Jenny, Nat, Sarah, Leandro, Rafa,
Flávia, Ivan, Paulo, e, em especial, Ju e Pri, agradeço pela amizade, conversas e alegrias.
À minha amiga Carla, com que pude conviver em campo e com quem aprendi muito,
agradeço por ter sido uma interlocutora importante a esse trabalho, com críticas e sugestões
sempre bem-vindas. Nossas conversas e desabafos durante essa etapa da escrita me ajudaram
muito.
À Ana Cláudia, agradeço pela confiança e disposição em sempre me ajudar a ser uma
pessoa melhor.
Agradeço à minha família que sempre me apoiou em minhas decisões e trabalhos, me
dando todo o incentivo em continuar naquilo que acredito.
Ao meu irmão, Paulo, que mesmo longe está perto, agradeço pelas brincadeiras.
À minha irmã Aline, que além de tudo é companheira e amiga, agradeço pelas
conversas, risadas e por compartilhar sua vida comigo.
Ao meu pai Ari, agradeço pela companhia, conversas e generosidade em me ajudar em
tudo o que preciso. Obrigada pelos cafés sempre pontuais e pelas nossas corridas.
À minha mãe, Jaqueline. Obrigada pela delicadeza e força. Tudo o que realizo possui
um traço do que me ensina. Você será sempre uma inspiração em tudo o que faço.
“A vida é um movimento de abertura e não de fechamento”.
Tim Ingold
RESUMO
Busco analisar nesta dissertação a noção de pessoa, memória e mobilidade entre os Pankararu,
população indígena localizada na TI Pankararu, na aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco,
e na favela do Real Parque, em São Paulo. Privilegiando a trajetória de uma história de
família que vivenciou durante trinta anos esse “trânsito” entre aldeia e cidade, esse trabalho
busca compreender os sentidos que a mobilidade adquire para o grupo. A mobilidade é aqui
compreendida como um modo de produção de vida, ou seja, uma maneira específica de
habitar o mundo. Ela põe em relação diferentes agentes (Estado, indígenas, não indígenas) e
agências (memória, cura, encantados, saberes, sofrimento) produzindo novas territorialidades.
Ao mesmo tempo, busco compreender aspectos relevantes da cosmologia e organização social
do grupo. Para isso, alguns elementos como a casa, a memória, o asseio e o sofrimento são
importantes pois se encontram intimamente interligados, nos dando subsídios para alargar
nossa compreensão sobre a noção de pessoa Pankararu.
ABSTRACT
I seek to analyze in this dissertation the notion of person, memory and mobility among the
Pankararu, an indigenous group located in the village Brejo dos Padres in Pernambuco, and in
the slum of Real Parque, in São Paulo. Emphasizing the trajectory of a family history that
lived during thirty years in the "back and forth" among village and city, this dissertation seeks
to demonstrate the senses that mobility acquires for the group. Mobility is apprehended in this
work as a way of producing life, that is, a specific way of inhabiting the world. It connects
different agents (state, indigenous, non-indigenous) and agencies (memory, healing,
encantados, knowledge, suffering) that produce new territorialities. At the same time, I seek
to understand relevant aspects of the cosmology and social organization of the group. For this,
some elements such as house, memory, purity and suffering are important because they are
conected, giving us means to widen our understanding of the notion of person among the
Pankararu.
LISTA DE MAPAS
Mapa 1. Localização dos estados e municípios com presença Pankararu no Brasil.. 26
Mapa 2. Localização da TI Pankararu e TI Entre Serras ... 27
Mapa 3. Vista aérea do Real Parque ... 73
LISTA DE CROQUIS
Croqui 1. Croqui da organização espacial da família Pereira ... 34
Croqui 2. Croqui da genealogia da família Pereira ... 41
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Desmontando a feira de domingo, em frente à Igreja Santo Antônio ... 45
Figura 2. Terreiro do Poente .. ... 49
Figura 3. Imagem da Igreja de São José, Santo Antônio e praiá em São Paulo ... 49
Figura 4. Bino em sua roça ... 52
Figura 5. Bino colhendo mandioca ... 52
Figura 6. Mulher carregando alimento ... 53
Figura 7. Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Dona Ninha ... 54
Figura 8. Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Dona Ninha ... 54
Figura 9. Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Dona Ninha ... 54
Figura 10. Polo Base Pankararu ... 61
Figura 11. Dora, Ingrid e Mathäws na varanda ... 62
Figura 12. A “dança dos praiás” no Real Parque... 77
Figura 13. Praiá de artesanato ... 81
Figura 14. Praiá de artesanato ... 81
Figura 15. Camiseta “Ser Pankararu” ... 94
Figura 16. Praiá segurando uma maracá e um penacho na Corrida do Imbu ... 98
Figura 18. Pintura ritual no corpo feminino e masculino ... 101
Figura 19. Pintura ritual no corpo feminino e masculino ... 101
Abreviaturas
AS Agente de Saúde
AIS Agente Indígena de Saúde
AMIP Associação Movimento Indígena Pankararu
CASAI Casa do Índio
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CIP Comunidade Indígena Pankararu
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNASA Fundação Nacional de Saúde
SPI Serviço de Proteção aos Índios
PSFI Programa de Saúde da Família Indígena
UBS Unidade Básica de Saúde
UNIFESP Universidade Federal de São Paulo
UFSCAR Universidade Federal de São Carlos
TI Terra Indígena
SUMÁRIO
Introdução
O “caminho” da pesquisa de campo ... 15
Os Pankararu ... 25
Apresentação dos capítulos ... 32
Capítulo I
Modos de ser e habitar
1.1 A família Pereira: troncos, ramas e “caminhos” ... 33
1.2 A casa: produção de afeto, pessoa e memória ... 43
1.2.1 Cozinha, varanda e “salão de trabalho”: relação, afeto e cura ... 46
1.2.2 O quintal: o lugar do fogo e do sagrado ... 53
1.3 Nascer e crescer sendo pankararu ... 58
1.3.1 Aprendendo pelo sentir: sendo parteira “por acaso” ... 63
1.4 Algumas considerações ... 65
Capítulo II
Modos de caminhar
2.1 “Caminha!”: mobilidade e produção de conhecimento ... 67
2.1.1 O movimento até a cidade ... 71
2.2 Paisagens e “passagens” no Real Parque ... 72
2.3 Narrativas e memórias em “trânsito” ... 78
2.3.1 Bino Pankararu ... 78
2.3.2 Dora Pankararu ... 82
2.3.3 Dona Ninha ... 86
2.3.4 Roziani Pankararu ... 88
Capítulo III
Modos de curar
3.1 O sagrado Pankararu ... 92
3.1.1 A Queima do cansanção ... 95
3.1.2 A Penitência ... 102
3.1.3 Rezas e “mesas” de cura... 106
3.2 Entre corpos e cruzes: o corpo se “fechando” ... 112
3.3 O santuário: casa, corpo e memória ... 121
Considerações Finais ... 124
Referências Bibliográficas ... 128
Introdução
O “caminho” da pesquisa de campo
Os caminhos que conduziram este presente trabalho fazem parte das questões e
indagações que foram surgindo durante o seu percurso no período em que cursei o Mestrado
em Antropologia Social na Unicamp, e, sobretudo, depois da minha estadia em campo, na
aldeia Brejo dos Padres
1, em Pernambuco, e no Real Parque
2, em São Paulo
3.
Logo no início, quando o projeto ainda estava se desenhando, buscava-se compreender
as mudanças de organização social e cosmológica no percurso da mobilidade pankararu entre
aldeia e cidade, dando especial destaque à memória do grupo e a sua noção de pessoa,
analisando de que forma os mais velhos atualizam a história e a memória pankararu aos mais
jovens. Considerando que os avós são os responsáveis por uma primeira fase educacional dos
mais jovens, como será explicado no capítulo 1, me questionava como essa interação poderia
ser afetada entre aqueles que estão vivendo e morando na cidade de São Paulo, muitas vezes
longe dos seus familiares da aldeia. Outros questionamentos eram acerca das implicações e
tensões cosmológicas e sociais que o casamento com os não indígenas, na cidade, poderia
trazer. Embora não haja prescrições e restrições matrimoniais entre os Pankararu, o acesso às
esferas políticas e rituais é proibido entre os não indígenas que se casam com o grupo.
Buscava também analisar as transformações formais a que os principais rituais do grupo,
como o Toré, estavam submetidos em contexto urbano, assim como suas consequências sobre
as concepções de caráter cosmológico, em especial as noções de doença e cura.
No entanto, depois da minha estadia na aldeia
4, deparei-me com novos problemas que
o próprio campo colocava à pesquisa. Noções sobre a saúde e a corporalidade pankararu
1 A aldeia Brejo dos Padres está localizada na Terra Indígena Pankararu (TI Pankararu), entre os municípios de
Tacaratu, Jatobá e Petrolândia, no estado de Pernambuco. Nela se encontram 25 aldeias, entre as quais a aldeia Brejo dos Padres, onde o centro político e administrativo é mais organizado.
2 O Real Parque é um bairro localizado na zona sul da cidade de São Paulo, onde residem, aproximadamente,
160 famílias Pankararu, totalizando cerca de 600 pessoas. Além do Real Parque, os Pankararu vivem nos bairros de Panorama, Paraisópolis, Capão Redondo, Parque Santo Antônio, Jardim Ângela, Jardim Elba e Mogi Mirim, todos da região metropolitana de São Paulo.
3 Será utilizada, neste trabalho, a palavra “aldeia” toda vez que me referir à aldeia Brejo dos Padres, e a palavra
“cidade” toda vez que me referir à cidade de São Paulo, especificamente ao Real Parque, local onde realizei meu trabalho de campo. Faço essa especificação apenas para melhorar a fluidez do texto, não precisando recorrer ao nome destas duas localidades quando quiser me referir a elas.
4 Realizei trabalho de campo na aldeia Brejo dos Padres entre os meses de fevereiro a março de 2015, totalizando
trinta dias, momento no qual ocorria os rituais Corrida do Imbu, Noite dos Passos e a Penitência. Nesse período há a presença de muitos pesquisadores na TI Pankararu, como antropólogos, historiadores, bem como a presença de familiares do grupo Pankararu que vem a aldeia para acompanhar e/ou participar desses rituais.
foram ganhando destaque em meu trabalho depois das entrevistas, convivências e
experiências pessoais que tive com algumas interlocutoras importantes, como as rezadeiras e
parteiras tradicionais que moram na aldeia e no Real Parque.
Numa dessas entrevistas, a rezadeira Josivete
5contou sua trajetória de vida e como ela
foi marcada por embates de forças espirituais até se tornar xamã. Um de seus filhos, Moécio,
hoje também um líder espiritual na aldeia, teve a mesma trajetória. Aos 14 anos foi
diagnosticado pelos médicos como “louco” e, depois de algum tempo, foi enviado a um xamã
para que ele desfizesse o mal que lhe haviam feito. Segundo Josivete, seu corpo “exalava um
mau cheiro terrível”. Essa loucura relatada por Josivete, está associada à trajetória pessoal
daqueles que são escolhidos para serem xamãs. O mau cheiro que exalava do corpo de seu
filho pode indicar também uma fase do processo do desenvolvimento da trajetória do xamã,
estando associado a algum estado de liminariedade que a pessoa passa até se curar totalmente
e se tornar um rezador. Como o asseio do corpo é algo extremamente importante aos
Pankararu, tanto em banhos domésticos como rituais, o caso sugeria a hipótese de que a
oposição “mau cheiro”/“asseio corporal” estaria relacionada a um dispositivo de proteção
contra espíritos ameaçadores, cuja ruptura revela ou provoca consequências sobre a vida e o
corpo da pessoa. Assim, elementos como nascimento, limpeza do corpo, alimentação, doença
e cura foram ganhando destaque ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
Josivete também contou sobre uma de suas filhas, que foi “flechada no imbigo”
6e
morreu aos oito meses de idade. Ela me disse que estava numa “mesa” de cura
7, cantando,
quando teve “uma visão”. Fechou seus olhos e viu uma pessoa lhe dizer “você acha que sua
filha vai crescer para vestir esse vestido de noiva?”
8. Assim que abriu os olhos, Josivete me
disse “que já sabia, que tinha tido a visão”. Quando ela chegou em casa, viu sua filha deitada
no chão, passando muito mal e quando foi levá-la para dar-lhe um banho viu “uma rodela
preta em volta do imbigo, ela tinha levado a flechada”. Ela conta que enterrou a filha com
“um vestido branco, lindo, de tiara e tudo”. Segundo Josivete, essas visões que lhe acometem
podem se dar em estado de vigília ou mesmo em sonhos, “sinto na hora, às vezes de aviso.
5 Josivete é uma rezadeira Pankararu que mora na aldeia Brejo dos Padres e realiza práticas de cura, como rezas
e benzimentos, como será apresentado no capítulo 3.
6 O flechamento é um feitiço lançado a pessoa e que pode ser fatal caso ela não seja socorrida a tempo.
Geralmente a pessoa é flechada no umbigo, causando uma mancha preta ao redor do local atingido; falaremos mais sobre isso no capítulo 3.
7 “Mesa” de cura é um ritual de cura realizado na casa do xamã ou da pessoa enferma.
8 Faço uso, nessa dissertação, das seguintes classificações gráficas: i) as aspas se referem a frases de entrevistas
no corpo do texto, conceitos e categorias e ii) termos nativos ou em língua estrangeira serão apresentados em itálicos, sem aspas.
Sento no sofá, com os olhos fechados e vejo, com o corpo dominado. Aí faço o rosário, com o
corpo sustentado na oração”.
Aos poucos, o sofrimento, a “loucura” e o asseio ao corpo foram surgindo como
elementos importantes, pois estavam presentes tanto na cosmologia do grupo quanto na sua
vida cotidiana. Ao mesmo tempo, a pesquisa se voltou a uma observação da vida cotidiana,
focada nos aspectos domésticos da vida social, como os cuidados com a roça e a cozinha, o
modo de preparação dos alimentos, os cuidados com o corpo etc. Percebi que existia uma
diferenciação sexual nos espaços da casa, pois na cozinha e no quintal, por exemplo, havia
uma circulação maior entre as mulheres, enquanto na varanda e no interior da casa homens
circulavam com mais frequência. Assim, a casa foi surgindo como um local significativo da
cosmologia Pankararu, pois evidenciava modos de organização social e modos de habitar e
viver do grupo. A distribuição espacial das casas das famílias extensas, na aldeia, ora em linha
reta, ora em forma circular ao redor da casa do patriarca, também encontrava semelhança com
a maneira como o grupo habita na cidade. Em ambos os casos indicam que os laços parentais
são mantidos e reavaliados pela proximidade, bem como com o afeto e a comida, como
veremos no capítulo 1.
Tanto na aldeia quanto na cidade, nota-se um protagonismo de mulheres xamãs que é
fundamental para a manutenção da saúde da pessoa. Líderes espirituais importantes, como
Josivete e Lídia, são chamadas diariamente para desfazer algum feitiço ou curar um mal do
corpo e espírito do indivíduo. Como ressalta Mura (2012), a dicotomia entre corpo
aberto/corpo fechado, nos mostra que a saúde Pankararu encontra-se constantemente
ameaçada, e o desvio ou não de condutas moralmente estabelecidas, bem como a realização
dos resguardos alimentares e sexuais durante as práticas rituais do grupo, é fundamental para
o corpo do indivíduo não ser alvo dessas ameaças.
Noções sobre nascimento, amamentação, pré-natal, parto e pós-parto também me
foram dados pela parteira Maria das Dores. Durante as visitas que fiz ao Polo Base pude
acompanhar a realização da campanha de vacinação de HPV às meninas de 9 a 12 anos, feita
pelo Ministério da Saúde. Ela me relatou que antigamente, muitas crianças morriam de “mal
dos setes dias” (conhecida também como tétano, uma infecção grave causada por uma toxina
do bacilo tetânico), mas como a incorporação do saber médico ao saber Pankararu, eles
passaram a utilizar novos cuidados específicos com o corpo para que tal mal não acontecesse.
As práticas de cura, assim como relatado por Lopes (2011), conferem uma espécie de
complementariedade ao sistema médico do grupo. Algumas doenças como flechamento, corpo
entaboado, quebranto, sereno, vento-caído
9, entre outras, me foram relatadas como algumas
das doenças que acometem os Pankararu. Dessa forma, penso que, apesar da biomedicina se
configurar como um complemento na busca da cura dos sintomas acometidos no corpo do
indivíduo, a causa da doença está atrelada ao seu sistema cosmológico, pois a explicação que
me foi dada era que tal corpo fora flechado, entaboado etc. O uso de medicamentos é
importante para a cura do corpo, mas quem realiza a cura do espírito são os encantados
10,
sendo que a causa da doença pode ser um feitiço lançado por pessoas, espíritos ou outras
entidades que habitam o cosmos Pankararu.
Nesse sentido, as rezadeiras se constituem como figuras centrais, pois são elas que
mantêm uma maior intercomunicabilidade com o mundo humano e sobre-humano, apontando
noções sobre doença e cura, que são fundamentais para a compreensão da noção de pessoa
pankararu.
Quando voltei do trabalho de campo realizado na aldeia, depois de um período de um
mês, minha pesquisa passou por um período de longa reflexão. Reli partes do caderno de
campo e das entrevistas que me foram concedidas. Sistematizei os dados etnográficos obtidos
entre aldeia e cidade e fomos percebendo que um estudo mais aprofundado sobre isso
ofereceria subsídios para compreender melhor as práticas xamânicas do grupo. Por conta
disso, continuei, entre março a abril de 2016, a realizar visitas monitoradas por uma equipe
médica na UBS (Unidade Básica de Saúde) do Real Parque, em São Paulo, nas quais pude
estabelecer vínculos importantes com os Pankararu.
11A equipe é composta por uma médica,
uma enfermeira, uma AS (Agente de Saúde) e uma AIS (Agente Indígena de Saúde), que
também é Pankararu e rezadeira.
9 Corpo entaboado indica que o corpo está aberto, e pode, portanto, sofrer ameaças de entidades malignas.
Vento-caído ou vento é um feitiço geralmente trazido pelo vento. Quebranto é quando uma pessoa tem sintomas de moleza, vômito, cansaço, causado pelo olhar de uma pessoa. Sereno é um mal-estar que pode acometer a pessoa se ela ficar no sereno, principalmente se ela estiver menstruada, com o corpo aberto, causando dor de cabeça e mal-estar.
10 Segundo Arruti (1996), os encantados são os índios que se encantaram porque descobriram o segredo de se
encantar e alcançar sua imortalidade, vivendo em locais sagrados, como as nascentes, cachoeiras, serras e serrotes. Eles se manifestam no mundo terrestre por meio dos praiás, que são os dançadores vestidos com as indumentárias rituais, denominada de “roupões” ou “terno”, que são feitas de caroá, uma semente endêmica da região nordeste. Cabe ressaltar, porém, que embora a produção dos encantados esteja associada a um ambiente natural, há relatos de que eles “voam” e se manifestam em outras localidades, como em São Paulo. Assim, é necessária uma investigação mais aprofundada para averiguar se eles também “nascem” em ambientes considerados não naturais.
11 Agradeço a Lídia, AIS, rezadeira Pankararu, por ter aceito meu pedido para poder acompanhar as visitas da
No entanto, depois de realizar a segunda etapa do trabalho de campo na cidade
12, me
recolhi, focando nas minhas anotações e na minha escrita, e, durante esse processo, alguns
elementos foram emergindo e se relacionando, dando uma substância maior ao meu objeto
teórico. Percebemos que havia uma relação significativa entre casa, sacrifício, memória,
pessoa e asseio no modo de vida pankararu.
Neste trabalho, como será melhor desenvolvido nos próximos capítulos, a noção de
casa é também compreendida como um local de afeto e memória. Nesse sentido, tal noção se
assemelha a ideia de casa utilizada por Viegas (2007), no qual alguns lugares, como a roça e o
quintal, por exemplo, se interconectam pela memória afetiva e pelas práticas alimentares. A
territorialidade do grupo é também pensada como um “território fluído”, que se interconecta
com outras localidades e é formada por seres humanos e não-humanos, como linhas que se
entrelaçam e se emaranham num campo relacional.
A casa também se configura como um santuário, tal qual o corpo, abrigando objetos
materiais e imateriais que dão subsídios para se pensar sobre o cosmos Pankararu, mas
também sobre corporalidade. O sofrimento e o sacrifício são elementos presentes na vida
social do grupo, nos principais rituais Pankararu, como a Queima do Cansanção, -uma das
fases do ritual da Corrida do Embu-, e o ritual da Penitência
13. Nestes rituais, o sofrimento
aparece como um elemento importante que compõe a pessoa Pankararu, pois é através dele
que se estabelece o sistema de prestação e contraprestação.
* * *
Meu primeiro contato com os Pankararu foi em 2013, através da Maria Roziani
Aureliano, conhecida como Roziani Pankararu, filha do Manoel Alexandre Sobrinho, o Bino,
e ex-presidente da Associação Indígena Comunidade Indígena Pankararu – SOS-CIP. Por
meio da literatura pankararu, eu já sabia da existência dessa Associação, que atuava no Real
Parque para auxiliar social e juridicamente o grupo na cidade de São Paulo
14. Quando cheguei
12 Fiz um trabalho de campo mais intensivo no Real Parque por quinze dias, no mês de Julho de 2015, e por mais
quinze dias, entre Abril e Maio de 2016, com visitas constantes ao bairro, pernoitando algumas vezes na casa dos Pankararu. Cabe ressaltar que, embora eu não tenha me fixado no local, minhas visitas sempre foram frequentes e tiveram início em 2013, se estendendo até os dias atuais.
13 A Penitência é um ritual pankararu que tem início na Quarta-feira de Cinzas, no período da Quaresma e
termina na Semana Santa. Nesse período, homens e mulheres penitentes visitam as cruzes dos mortos e as casas de pessoas importantes na aldeia, homenageando-as. Assim, penitentes pankararu são aqueles que acreditam na Santa Cruz e rezam para os santos e para os encantados. Falaremos mais sobre esse ritual no capítulo 3.
14 Entre alguns dos principais objetivos da Associação está auxiliar a mediação e participar da negociação
política dos interesses do grupo Pankararu, além de ter sido uma das entidades responsáveis pela implantação do Programa de Saúde da Família Indígena (PSFI) na UBS Real Parque, facilitar o aceso às “carteirinhas” de
ao bairro, perguntei a alguns moradores se eles conheciam essa Associação, mas não obtive
sucesso. Como uma “bola de pingue-pongue” fui “pingando” entre as casas, subindo e
descendo morros, becos e vielas (naquela época o processo de “urbanização” realizado pela
prefeitura ainda não estava totalmente finalizado), procurando por alguém que pudesse me dar
alguma informação importante. Logo me foi dada a notícia de que Bino havia retornado à
aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco, mas que uma de suas filhas, Roziani, trabalhava
como AIS na UBS local. Cheguei no posto de saúde, mas ela estava fazendo “visita” e esperei
até ela retornar. No encontro, ela se mostrou bastante receptiva em me ajudar na pesquisa e
sugeriu que eu também conversasse com sua irmã, Dora Pankararu, que, na época, era a
presidenta da Associação.
A partir de então, comecei a fazer visitas quinzenais ao bairro, tentando estreitar e
criar vínculos com o grupo. Numa dessas visitas, em julho de 2014, Roziani me apresentou a
seu pai, Bino, que se encontrava de “passagem” pelo Real Parque para fazer exames médicos.
Na ocasião, conversamos sobre meu projeto e a possibilidade de fazer um trabalho de campo
na aldeia, e se haveria possibilidade de ficar um período de um mês em sua casa. Bino se
mostrou receptivo e foi generoso, dizendo que seria um prazer me contar sobre a “história do
seu povo”. Depois desse contato, comecei a planejar a viagem até o Brejo dos Padres, ao
mesmo tempo em que cursava as disciplinas obrigatórias do Mestrado na Unicamp. No mês
de janeiro, depois de uma intensa comunicação e negociação com o período da vigência do
trabalho de campo na aldeia, resolvi viajar em fevereiro, momento de intensa festividade ao
grupo e no qual estaria acontecendo o ritual Corrida do Imbu.
Portanto, minha entrada na aldeia Brejo dos Padres, diferentemente do que, num
primeiro momento, estava disposta a fazer no Real Parque, não se deu via Posto Indígena,
mas foi facilitada pela relação que estabeleci com Roziani em São Paulo. Na aldeia, percebi
que o fato da pesquisa estar focalizada na trajetória de uma família marcada por
deslocamentos entre aldeia e cidade, provocou algumas situações de tensão entre alguns
atores sociais. Alguns dos questionamentos apresentados por eles estava no fato da família de
Bino ter morado durante trinta anos “fora da aldeia”. Este fato mostra que, se existe uma
aprovação e incentivo para que as famílias busquem conhecimento “fora da aldeia”, também
existe certa resistência entre aqueles que acreditam que a “cultura” pankararu não pode ser
identificação de indígenas emitidas pela FUNAI (Fundação Nacional Indígena) e identificar e atestar àqueles que queiram participar do processo de seleção ao Programa Pindorama – PUC/SP, que concede bolsas de estudos para alunos indígenas.
disseminada fora da TI Pankararu. Isso pode estar associado à disputa simbólica do saber
local, defendida por alguns líderes espirituais e lideranças políticas da aldeia.
Durante todo o meu período na aldeia fiquei hospedada na casa de Bino. Pude
presenciar o ritual Corrida do Imbu, que é considerado um dos mais importantes para o grupo
e acontece no mesmo período da Quaresma, tendo início na mesma semana que começa o
carnaval, estendendo-se pelas quatro semanas seguintes, sempre aos sábados e domingos. Em
2015, as danças tiveram início no dia 14/02 e como cheguei na aldeia dia 26/02, pude
acompanhar a terceira e a quarta fase da Corrida, que aconteceram entre os dias 28/02 e 1º/03
e nos dias 7/03 e 8/03.
* * *
Essa dissertação tem como objetivo analisar a noção de pessoa, memória e mobilidade
entre os Pankararu que estão localizados na aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco e na
favela Real Parque, em São Paulo. Buscarei demonstrar que esse deslocamento entre aldeia e
cidade pode ser compreendido como “um modo de produção de vida” (Ingold, 2010), ou seja,
um modo específico de viver e habitar. Nesse sentido, os termos dicotômicos aldeia/cidade
perdem ênfase e compreensão analítica, uma vez que os espaços por onde os Pankararu
circulam e habitam correspondem a diferentes localidades, e entre eles há os “caminhos” que
interconectam estes lugares, que não estão fragmentados ou isolados, mas fazem parte de uma
territorialidade que é reproduzida diariamente pelo grupo.
Para isso, privilegio a história de uma família em movimento, que morou durante
trinta anos na cidade de São Paulo, buscando analisar, através de suas narrativas e memórias,
os sentidos entre esse “ir e vir”. A mobilidade da família aciona diferentes agentes (Estado,
indígenas, não indígenas) e “agências”
15(encantados, espíritos, alimento, bens, memória,
sofrimento, saberes, relação). Ao mesmo tempo, apresento como a casa, o corpo, o sacrifício,
o asseio e a memória são elementos que se encontram interligados e nos ajudam a
compreender a noção de pessoa pankararu. Para isso, analiso os rituais A queima do
Cansanção, a Penitência e os rituais de cura realizados pelas rezadeiras, onde o corpo aparece
15 O conceito de “agência” é aqui compreendido nos termos proposto por Ingold (2012), no qual o autor defende
a ideia de que o mundo é habitado por “coisas”. Se contrapondo a “teoria do ator-rede” (actor-network theory) de Bruno Latour, Ingold afirma que, para ele, não há distinção metafísica entre objeto e sujeito. Logo, a agência não está nos objetos. Aquilo que Latour chama de agência, para Ingold, é vida. Humanos e não-humanos são “coisas”, ou seja, são organismos que estão num campo relacional com o ambiente, como num emaranhado de linhas, o qual o autor chama de “malha” (meshwork). Assim, a agência pode ser compreendida como o fluxo de vida que movimenta as “coisas” no mundo.
como um sacrifício a ser ofertado aos encantados. O sacrifício oferece a purificação e o
“fechamento” do corpo, livrando-o das ameaças de entidades malignas que queiram se
apossar dele. A casa surge como um santuário da pessoa, como uma extensão corporal que é
formada por humanos e não humanos, como espíritos, mortos, encantados etc. Todos os
espaços que ela conecta, como a roça, os “caminhos” da aldeia e os espaços coextensivos a
ela, como o Real Parque, estão ligados por afeto e memória.
* * *
A abordagem teórica escolhida neste trabalho apresenta alguns autores que foram
surgindo no decorrer do meu processo de formação e analítico, conforme o campo ia me
revelando suas particularidades. Um desses autores foi Tim Ingold, que apareceu como um fio
condutor das minhas análises. A teoria ingoldiana propõe uma ruptura entre as fronteiras da
Ciências Humanas e Ciências Naturais, estabelecendo uma abordagem alternativa, “mais
devedora às perspectivas fenomenológicas, ecológicas e “prático-teóricas” sobre percepção e
cognição” (Ingold, 2010: 7). Seus pressupostos epistemológicos, juntos com autores como
Viveiros de Castro, Latour e Descola, fazem parte daquilo que se convencionou chamar
“virada ontológica”, momento no qual se começa a repensar, dentro do pensamento ocidental
contemporâneo, o dualismo existente entre natureza e cultura e outros conceitos dicotômicos.
Partindo de uma análise próxima à ecologia, fenomenologia e biologia, Ingold
concebe a cognoscibilidade humana através de uma noção das habilidades (skill), onde o
conhecimento consiste em habilidades específicas, e não na transmissão de representações,
onde o processo de aprendizado do indivíduo se dá pela imitação e internalização do
conhecimento. É o que ele chama de “educação pela atenção” (Ingold, 2010), onde a pessoa
aprende ao “olhar, ouvir e sentir”. Ele nega o entendimento de que o conhecimento ou a
habilidade estejam “impressos” num gene, com informações “repassadas” de geração a
geração. Diferentemente, o conhecimento é adquirido por um “redescobrimento dirigido” pela
noção de mostrar. Mostrar algo a alguém é tornar presente essa coisa para a pessoa, fazendo
com que ela aprenda no campo da prática, ouvindo, olhando ou sentindo. Dessa forma, o ato
de mostrar e, consequentemente, de copiar, está também associado à memória, pois copiar
algo é recordar daquilo que ficou “lembrado” ou “registrado” na pessoa:
O conhecer, então, não reside nas relações entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas é imanente à vida e consciência do conhecedor, pois desabrocha dentro
do campo de prática – a taskscape – estabelecido através de sua presença enquanto ser-no-mundo. A cognição, neste sentido, é um processo em tempo real (Ingold, 2010: 21).
Nesse sentido, o mundo social é apreendido a partir das relações e das experiências
vividas, uma vez que o indivíduo é concebido como uma “potência” capaz de conhecer seu
meio através da sua própria relação intersubjetiva com ele. Nessa visão, o sujeito não é
compreendido como expressão de unidade que lhe é anterior e que lhe ultrapassa, como se
fosse epifenômeno das leis sociais. Ele já possui dentro de si uma agência que lhe permite
conhecer e apreender seu meio social.
Seus conceitos sobre linhas e meshwork também me ajudam a pensar na mobilidade
pankararu como “um modo de produção de vida” (Ingold, 2011), ou seja, uma forma
específica de habitar no mundo. A sua crítica ao termo espaço, enquanto um conceito
analítico que define um lugar delimitado geograficamente no ambiente, nos ajuda a ampliar
nossa concepção de migração, por exemplo. Para ele, as pessoas estão constantemente se
movimentando de um local a outro. Nesse deslocamento, elas não habitam em localidades
específicas, mas também nos “caminhos”. “O caminho, e não o lugar, é a condição primordial
do ser, ou melhor, do tornar-se”, sendo o caminhar um modo fundamental como os seres
habitam o mundo, devendo ser imaginado “como a linha do seu próprio movimento ou -mais
realisticamente- como um feixe de linhas” (Ingold, 2011: 12-13). É neste sentindo que
acredito que sua teoria ilumina a dinâmica da mobilidade entre os Pankararu, uma vez que o
grupo possui um histórico de deslocamento entre a TI Pankararu a outras localidades como os
estados de Minas Gerais e São Paulo. Nesse “trânsito” entre aldeia e cidade, muitas famílias
se movem, fazendo circular saberes, cura, não-humanos, memória, afetos etc.
Em abordagens etnológicas mais recentes a criança é concebida como um agente
autônomo que constrói suas habilidades e conhecimento a partir da sua ligação intersubjetiva
com o mundo. Autores como Cristina Toren (2010) e Marilyn Strathern (2006) privilegiam a
agência do indivíduo como sujeito ativo de sua história, que não está no mundo apenas para
receber conhecimento, mas para produzir cultura e construir relações sociais. Nesse sentido,
tanto o aspecto socializador, como família ou grupo, quanto o indivíduo, são compreendidos
como agentes ativos da sua história.
Para Cristina Toren (2010), os indivíduos são seres autopoiéticos, ou seja,
autocriadores e autoprodutores, possuindo uma autonomia que se relaciona com o ambiente e
as pessoas ao seu redor. A autora busca romper com as dicotomias natureza/cultura e
indivíduo/sociedade porque elas prejudicam uma teoria antropológica da mente. Assim como
a pessoa, a mente está em constante transformação. Portanto, o conhecimento é adquirido
através da atuação intersubjetiva do homem nesse tempo/espaço. Valendo-se dessas mesmas
preocupações, Strathern (2006) também busca romper com tais pressupostos. Em seus estudos
entre os Hagen, a autora afirma que as pessoas são entendidas como “divíduos”, ou seja,
divisíveis, pois contém dentro de si uma socialidade generalizada, uma vez que “a pessoa
singular pode ser imaginada como um microcosmo social” (Strathern, 2006: 40). Para a
autora, as crianças são o resultado das interações dos outros. Elas também são compósitas,
pois recebem, no ato do seu nascimento, substâncias maternas e paternas que serão
fundamentais tanto na sua formação corporal quanto na sua construção de pessoa. Dessa
forma, a filiação não é compreendida na chave da reprodução biológica, mas por uma relação
de substâncias, que é fornecida tanto por homens quanto mulheres. No entanto, seu
crescimento não depende apenas do incremento dessa massa material, mas, principalmente,
pela interação das pessoas. Sendo assim, “o corpo aparece como o resultado das ações das
pessoas”, sendo habitado “pela ativação de relações sociais” (Strathern, 2006: 311).
Esse trabalho também se insere num debate antropológico sobre casa, noção de pessoa
e memória. Entre os Pankararu, há uma relação significativa entre esses três elementos. Na
etnologia, os estudos sobre o tema casa tiveram suas primeiras investigações com os trabalhos
de Lévi-Strauss (1979), no qual o autor define casa como uma “pessoa moral”, que centraliza
e organiza as relações familiares. Posteriormente, Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones (1995),
na coletânea About the house: Lévi-Strauss and Beyond, apresentaram outros questionamentos
sobre casa e organização social, propondo novas visões sobre o tema e indo além do conceito
lévistraussiano. A casa e o corpo se encontram intimamente relacionados, sendo a casa uma
extensão da pessoa, como nos sugere Vanessa Lea, com seus estudos entre os Mebengokre.
Nesse sentido, podemos tomar os conceitos “casa” e “corpo” como partes de um mesmo polo
de significado, não apenas relacionando-os, mas interligando suas semelhanças e possíveis
variações. A casa, entre os Pankararu, também é percebida como o lugar da memória, um
santuário onde rezas, cura, encantados, espíritos e outros seres habitam, sendo também um
local onde lembranças são reativadas.
O tema território é também importante neste trabalho. Apesar de não se estabelecer um
diálogo intenso em relação a isso, ele intersecta noções pertinentes à pesquisa, como
mobilidade e territorialidade. No debate antropológico, diferentes abordagens teóricas têm
dado destaque a noções como território e territorialidade. O trabalho de Gallois (2004) nos
chama atenção ao tensionamento que surge desses diferentes termos. Enquanto a Terra
Indígena é compreendida como uma categoria estatal e jurídica, a noção de territorialidade,
por sua vez, é utilizada na Antropologia para definir processos de ocupação dos espaços pelas
populações indígenas. A autora também afirma que nem todo grupo compreende o território
como uma categoria político-administrativa, uma vez que a mobilidade espacial é uma forma
de viver para muitos povos.
Oliveira Filho (1999) compreende a “territorialização” como um processo
político-administrativo de reorganização social, onde o Estado, com seu aparato jurídico e tutelar,
possibilita, entre outras coisas, a criação de uma nova unidade territorial e a reelaboração da
cultura (Oliveira Filho, 1999: 56). Outros estudos sinalizam para o entendimento do território
como um campo relacional no qual diferentes elementos circulam, como a memória, a família
e os saberes, como os trabalhos de Arruti (1996), Nogueira (2010), Testa (2012), Estanislau
(2014). Estes autores assinalados, nos quais nos deteremos nos capítulos a seguir, são
importantes pois nos ajudam a pensar a dinâmica da mobilidade Pankararu e os diferentes
sentidos que o deslocamento pode adquirir.
Os Pankararu
Os Pankararu habitam diferentes localidades do território brasileiro. Em Pernambuco,
eles estão localizados entre as cidades circunvizinhas de Jatobá, Tacaratu e Petrolândia, na TI
Pankararu e TI Entre Serras (cf. Mapa 2). Geograficamente, neste local, estão situados na
depressão sertaneja que acompanha o planalto da Borborema, próximos às margens do rio São
Francisco, numa região cujas terras são úmidas e férteis, apesar do clima seco e árido
característico da região do sertão pernambucano. Segundo dados da FUNASA de 2010,
nessas duas TI’s eles somam uma população de 8.477. Em Minas Gerais, eles habitam na TI
Dominial Indígena Pankararu de Araçuaí, na região de Coronel Murta, com cerca de 258
pessoas
16(cf. Mapa 1). Há relatos de que na Bahia eles habitem na Reserva Indígena
Pankararu, no município de Muquém de São Francisco
17. Em São Paulo, o grupo está
localizado na região metropolitana, concentrados, em sua maior parte, na favela Real Parque
(cf. Mapa 1). Eles também se encontram em outros bairros, como já mencionado, Panorama,
Paraisópolis, Capão Redondo, Jardim Elba, Parque Santo Antônio, Jardim Ângela, Jardim
Elba e Mogi Mirim.
16 Ver: Albuquerque (2011).
17 Notícia encontrada nesse sítio de internet: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/5424. Último
Pela história que os Pankararu contam, uma légua de 14.290 ha foi doada pela coroa
imperial no século XVIII ao grupo (Arruti, 1996). No entanto, a primeira homologação dessas
terras só ocorreu em 1987, com a TI Pankararu, com 8.100 ha. Em 2007, se deu a
homologação da TI Entre Serras, depois de um longo processo jurídico, somando a
quantidade territorial restante. Nessas duas TI’s, há 25 aldeias: Lagoinha, Mundo Novo, Pau
Branco, Pedra Muda, Baixo do Lero, Folha Branca, Olho D’Água do Julião e Salgadinho (TI
Entre Serras); Barricuda, Logradouro, Brejinho dos Correias, Barracão, Espinheiro, Macaco,
Serrinha, Agreste, Jitó, Tapera, Saco dos Barros, Bem Querer de Cima, Bem Querer de Baixo,
Caxiado, Caldeirão, Carrapateira e Brejo dos Padres (TI Pankararu).
A primeira vez que os Pankararu apareceram na literatura etnográfica foi através dos
registros de Curt Nimuendajú, datados já no início do século XX, quando o autor faz menção
aos oitenta diferentes etnônimos concentrados no vale do submédio São Francisco
(Nimuendaju, 1981). Localizados numa região caracterizada pela caatinga e pelo clima
semiárido, os diversos povos que habitaram e habitam essa região do Nordeste brasileiro são
marcados, étnica e historicamente, pelos aldeamentos missionários e pelas frentes pastoris dos
séculos XVII e XVIII (Dantas; Sampaio; Carvalho, 1992, p. 433). Os aldeamentos são
mecanismos de controle político e cultural do Estado e que tem como objetivo controlar e
pacificar diferentes grupos num mesmo espaço territorial.
Outras contribuições se deram com os trabalhos de Estevão Pinto (1938) e Carlos
Estevão Oliveira (1942), que, à luz das teorias raciais, apresentam os Pankararu numa ideia de
“degeneração”, voltados a uma noção de cultura baseada na “etnologia das perdas” (Oliveira
Filho, 1999). Dessa forma, acreditava-se que os “índios do Nordeste” se encontravam em
crescente “deterioração” cultural, uma vez que não apresentavam mais os traços culturais de
outrora. Na década de 1970, os trabalhos de Amorim (1970) e Silva (1978) mostram o grupo
numa outra perspectiva, influenciados pelas ideias de “assimilação” e “aculturação”. Naquele
momento, acreditava-se que as populações indígenas estariam em vias de desaparecer, devido
ao intenso contato sofrido com a sociedade envolvente.
Todos esses trabalhos apresentam os Pankararu pelo viés culturalista ou
assimilacionista. Cabe ressaltar que eles são fruto do pensamento corrente na época, mas
deixaram de perceber as particularidades que o grupo possui. O trabalho de Arruti (1996) se
destaca dos estudos entre os Pankararu por apresentar uma pesquisa centrada nas
“emergências étnicas” a partir dos “rearranjos territoriais” pelos quais o grupo foi submetido
durante todo o processo histórico. Valendo-se de uma abordagem teórica da antropologia e da
história, o autor analisa como os processos de “territorialização” e “reterritorialização”
marcaram a organização social e simbólica do grupo, evidenciando as disputas entre
diferentes atores sociais, sobretudo aqueles ligados aos órgãos indigenistas. O território é por
ele compreendido como um campo relacional que conjuga diferentes agentes e agências, em
especial, a memória, e que está em constante produção de etnicidade. Ele também evidencia
como o grupo está em constante redescoberta do seu “segredo”.
18Outros trabalhos são os de Mura (2012) e de Matta (2005), com quem estabeleço um
diálogo importante nesta pesquisa. No primeiro, a autora analisa a tradição de conhecimento,
os processos rituais e os aspectos políticos associados a eles entre os Pankararu. Mura possui
uma abordagem processual que oferece uma dimensão histórica aos eventos sociais. Segundo
a autora, os Pankararu compreendem o mundo a partir dessa elaboração cultural que se
configurou a partir de uma adaptação de um contexto específico, onde diferentes esferas
sociais (políticas, jurídicas, culturais) estavam atuando. Um dos argumentos centrais da autora
é a de que antes desse “processo de territorialização”, ou seja, antes da implementação do SPI
(Sistema de Proteção aos Índios), em 1930, as famílias possuíam também uma autoridade
significativa na resolução e mediação de conflitos.
Dando especial atenção às famílias, ela analisa os circuitos e as performances rituais,
destacando a presença de diferentes atores sociais envolvidos (especialistas rituais, lideranças
mágico-religiosas, conselheiros etc.). Mura privilegia uma análise da vida cotidiana familiar
(famílias e troncos), destacando a importância que estas possuem enquanto unidades sociais e
políticas, e também como protagonistas da tradição do conhecimento. A família é
compreendida pela autora como uma unidade social política fundamental, mediadora de
conflitos com outras entidades, como, por exemplo, o conflito entre posseiros, Funai, não
indígenas etc. A autora também analisa os diferentes “fluxos culturais” (penitentes e praiás)
existentes entre o grupo, verificando de que forma os atores sociais envolvidos nesses fluxos
orientam moral, espiritual e religiosamente o grupo.
18 O “segredo” expressa as particularidades culturais que um grupo possui ou que está em vias de descobrir.
Segundo Arruti (1999), o “segredo” está associado a “fragmentação identitária” que o grupo Pankararu vem sofrendo desde a década de 1940. No período das emergências étnicas do Nordeste, grupos indígenas ensinavam o Toré a outros grupos emergentes, para que estes descobrissem o seu próprio “segredo”. Segundo o autor, “a transmissão do Toré não implica no simples ensino de uma coreografia, nem se trata do "resgate" de uma tradição, por motivos de preservação cultural, mas fundamentalmente na transmissão de uma força de natureza mágica. "Ensinar Toré", implica na transmissão da "semente", "ensinar o caminho até os Encantados", que o grupo emergente, do seu lugar de ponta de rama, perdeu ao longo das sucessivas misturas a que foi submetido. Depois de recebida a semente, de transmitir o Toré e os toantes, cabe ao grupo emergente descobrir o segredo de sua relação com os Encantados, segredo que ao final passa a ser o fulcro da identidade do grupo” (Arruti, 1996: 65).
Ao mesmo tempo, a autora nos dá alguns subsídios para se pensar a noção de pessoa
entre o grupo. Mesmo esse tema não sendo o objetivo de sua pesquisa, ela chama a atenção
para o quadro de moralidade que orienta o grupo, como os resguardos alimentares e sexuais.
Ela também aponta uma diferenciação de comportamento entre os gêneros, cabendo aos
homens a “valentia, a brabeza e a coragem”, e às mulheres, “o sacrifício, o sofrimento e a
paciência”. Concordo com a autora nesse aspecto, mas acredito que o sofrimento seja um
sentimento presente na vida social do grupo sem distinção de sexo ou gênero, uma vez que ele
é um dos elementos centrais que compõe a pessoa Pankararu. Tanto nos rituais da Penitência
quanto na Corrida do Imbu ele está presente, evidenciando aspectos cosmológicos do grupo.
Já o trabalho de Matta (2005) faz uma etnografia dos rituais Penitência e Corrida do
Imbu entre os Pankararu, analisando os processos de promessas e cura atrelados a eles. Sua
análise apresenta uma descrição detalhada de como cada ritual ocorre, os atores sociais
envolvidos e a importância que eles possuem para o sistema mágico-religioso do grupo.
Segundo a autora, em ambos rituais há uma relação de cooperação e aliança entre humanos e
não-humanos, onde os homens e mulheres oferecem sacrifícios em troca de proteção e cura,
garantindo, assim, o elo de comunicação entre esses dois mundos. A autora parte de uma
abordagem durkheimiana, ou seja, uma análise na qual o sistema de representação do mundo
tem origem na religião, operando dentro de um mundo sagrado e um mundo profano. Nesse
sentido, para ela, as manifestações dos rituais são representações coletivas que exprimem a
vida social pankararu.
Segundo a autora, a penitência entre os Pankararu é diferente daquela feita pelos
católicos cristãos, uma vez que neste dogma o espírito da pessoa que morre vai para o céu ou
para o inferno. Para os penitentes indígenas, aqueles que morrem continuam vivendo entre os
vivos, cumprindo penitência nos cruzeiros das serras, nos quintais de casa ou em beiras de
estrada, sempre ao redor de uma cruz. A Penitência pankararu é diferente também porque eles
realizam, junto aos encantados, homenagens a pessoas que já faleceram ou pessoas que
possuem uma importância para o grupo. Matta enfatiza que o grupo possui um sistema
mágico-religioso complexo, composto por diferentes entidades, entre elas os encantados (que
podem ser bons ou ruins), os espíritos, os mortos, os exus, entre outros. Ao final de sua tese,
ela conclui que esses rituais são como “duas correntes”, pois estão vinculados à corrente dos
encantados e a corrente da Santa Cruz, sendo as pessoas e os saberes envolvidos nessas
correntes que garantem a perpetuação da comunidade pankararu.
19
Entre os trabalhos que analisam os Pankararu em contexto urbano, destacam-se os
trabalhos de Albuquerque (2011), Nakashima (2009) e Lopes (2011). No primeiro, o autor
centraliza sua análise na “dança dos praiás”
20realizadas na cidade de São Paulo, rituais que
são por ele compreendidos como uma “tradução intercultural contra hegemônica” a qual dota
os Pankararu de “capital simbólico” frente ao preconceito que sofrem na capital paulista. Já o
segundo trabalho, analisa a inserção de alunos Pankararu numa escola pública do bairro do
Real Parque. Segundo o autor, a escola possui um processo de marginalização e exclusão da
cultura Pankararu dentro “da ordem hegemônica da cultura escolar”. Nesse processo, há um
nível de negação de identidade étnica por parte desses alunos por eles não se sentirem parte da
população indígena ou por medo de sofreram discriminação pela comunidade escolar. Ambos
autores concebem a “dança dos praiás” na cidade de São Paulo como uma performance, ou
seja, um ato político e ritual que promove a visibilidade social do grupo na capital paulista.
Em relação à saúde Pankararu, destacam-se os trabalhos de Athias (2006) e Lopes
(2011). No primeiro, o autor analisa aspectos da sexualidade do grupo. Sua atenção está
voltada às formas de reprodução sexual e das doenças associadas às reproduções biológicas,
considerando a interação entre população e ecossistema como fatores importantes na
reprodução social. Ele também evidencia a participação das rezadeiras no processo de cura
dos indivíduos, mostrando como a biomedicina atua como uma complementação dos saberes
tradicionais.
Já o trabalho de Lopes (2011) busca compreender a integração das formas tradicionais
de cura com a biomedicina, enfatizando as tensões e os processos de “tradução” e
ressignificação que os elementos rituais passam no contexto urbano. O autor nos apresenta um
momento bastante importante do grupo, que foi a criação do PSFI (Programa de Saúde da
Família Indígena) na UBS do Real Parque, evidenciando os processos políticos envolvidos e a
demanda reivindicatória do próprio grupo. Ao mesmo tempo, ele apresenta como o trabalho
das rezadeiras, na cidade de São Paulo, assumo um papel fundamental como manutenção da
sua identidade étnica.
20 A “dança dos praiás” ou Toré é o ritual no qual se manifestam os encantados pelos dançadores, os praiás. Esse
ritual pode ter um caráter doméstico ou público, sendo realizado em eventos, escolas, celebrações etc. podendo ter a participação de não indígenas.
Apresentação dos capítulos
Esse presente trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No primeiro, “Modos de
ser e habitar”, apresento a família Pereira, e como a casa, no desenvolvimento dessa pesquisa,
apareceu como um elemento importante para compreendermos a organização social
Pankararu, se constituindo como um lugar de produção de afetos, relação e memória do
grupo. Nos espaços domésticos como cozinha, quintal e “salão de trabalho”, procuro
demonstrar como a noção de pessoa e a produção da memória encontra-se relacionada com a
casa, sendo ativada ou mantida a partir dos eventos cotidianos estabelecidos. Em seguida,
apresento aspectos da corporalidade Pankararu, como a relação entre mãe e filho, mostrando
como o afeto e a proximidade constroem os laços de parentalidade entre o grupo.
No segundo capítulo, “Modos de caminhar”, apresento a mobilidade pankararu como
um modo de produção de vida, demonstrando como o deslocamento entre um lugar a outro
surge como modos diferentes de habitar e construir relações. Apresento também a
particularidade da trajetória da família de Bino, marcada pela tensão entre aldeia e cidade. A
partir da história de vida de quatro membros de sua família, Bino, Ninha, Dora e Roziani,
estabeleço conexões que nos ajudam a pensar essa família como uma personagem social
dotada de significados importantes, uma vez que nos revelam aspectos importantes da vida
social do grupo.
No último capítulo, “Modos de curar”, mostro as várias formas de cura entre os
Pankararu. Apresento o ritual a Queima do cansanção, que compõe o ritual a Corrida do
Embu, a Penitência e os rituais de cura realizados pelas rezadeiras, mostrando como eles nos
revelam aspectos da cosmologia e que estão presentes também na vida cotidiana do grupo. O
sacrifício corporal, o sofrimento e o asseio são aspectos fundamentais para o processo de cura
do indivíduo. Analisado como uma purificação e consagração, esses rituais são importantes
pois ajudam na manutenção da saúde da pessoa, evidenciando o protagonismo das rezadeiras
nesse processo.
Capítulo I
Modos de ser e habitar
Neste capítulo serão analisados os modos de ser e habitar da família Pereira, cuja
trajetória é marcada pela experiência da mobilidade entre a aldeia Brejo dos Padres (TI
Pankararu, PE) e a cidade de São Paulo. Apresentaremos como a proximidade e a
comensalidade, bem como afetos e memória, constroem e mantem, em meio a mobilidade
geográfica, os laços de parentesco e, por meio deles, a condição indígena e a pertença étnica
pankararu. A casa aparecerá como um elemento importante na constituição da pessoa
Pankararu, sendo compreendida como um lócus de memória e de afetos, possuindo uma
analogia com o corpo. Em seguida, abordaremos também como a mobilidade aldeia-cidade se
associa a aspectos do ciclo de vida da pessoa pankararu, como o nascimento, formas de
aprendizagem entre as crianças e a passagem para a vida adulta.
1.1 A família Pereira: caminhos, troncos e ramas
Considerando que uma história de família é um método de análise sócio-antropológica
que objetiva dar conta da trajetória de vida de um sujeito social (Lins de Barros, 1989),
pretendemos apresentar alguns aspectos da vida cotidiana da família Pereira, elucidando,
porém, fatores importantes da vida social Pankararu. A escolha desta família é significativa
pois carrega particularidades importantes, uma vez que ela esteve, durante trinta anos, no
trânsito entre aldeia e cidade. Nesse deslocamento, muito da aldeia foi trazido à cidade e
muito da cidade à aldeia. Há um fluxo constante de mercadorias, bens, comida, memória,
cura, pessoas etc. que circulam entre esses lugares, movimentando e produzindo cultura e
vida. A experiência Pankararu na mobilidade, em especial dessa família, revela as tensões
entre esse ir e vir, pois sair da aldeia implica tanto numa reorganização social do grupo como
num modo de produção de conhecimento.
A família Pereira
21é composta pelo núcleo familiar formado pelo casal Bino e Ninha e
seu neto Ítalo, e pelos demais que compõem a rede de relações formada pelos familiares
ascendentes (pais, tios, avós) e laterais (família dos irmãos de Ninha e Bino, podendo incluir
21 Por conta da descendência agnática, adotaremos o sobrenome da família de Bino, Pereira, para nos referirmos
a sua família nuclear e família ampliada/extensa, assim como é feito entre as famílias Pankararu. Considero a família como uma rede de relações que se expande para além da sua unidade residencial e que mantem vínculos afetivos e de ajuda mútua entre si, como já ressaltado por Arruti (1996).
também agregados). Eles vivem atualmente na aldeia Brejo dos Padres, com exceção de duas
filhas e um filho de Bino, que moram no Real Parque. Na aldeia, a organização espacial da
família Pereira se dá em linha reta (cf. Croqui 1). Bino mora em frente à Igreja de Santo
Antônio. Na mesma rua dele, a alguns metros, no sentido da aldeia Tapera, moram seu irmão
Moisés, sua irmã Maria do Carmo e sua filha Dora. Sua outra filha, Cida, mora em outra rua,
perpendicular à sua.
Croqui 1 – Croqui da organização espacial da família Pereira.