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OS DIREITOS DE PERSONALIDADE ANTES DO “INÍCIO” E APÓS O “FIM”

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OS DIREITOS DE PERSONALIDADE ANTES DO “INÍCIO” E APÓS O “FIM” DO SUJEITO DE DIREITO

Marcos Luiz Lovato1 Universidade Vale dos Sinos – UNISINOS – RS RESUMO

Neste trabalho procuramos analisar de que forma os direitos de personalidade da pessoa humana são tratados na cadeia normativa civil-constitucional brasileira, colocando-se em pauta a crise de identificação dos sujeitos de direito. Para tanto, abordaremos a possibilidade de reconhecimento de direitos de personalidade do nascituro e do morto, entes estes que necessitam ter seus direitos individuais de personalidade revistos frente às aceleradas mudanças fenomenológicas e tecnológicas de nossa sociedade.

PALAVRAS – CHAVE: direitos de personalidade; sujeito de direito; nascituro; morto; sociedade.

THE RIGHTS OF PERSONALITY BEFORE THE “BEGINNING” AND AFTER THE “END” OF THE RIGHT CITIZEN

ABSTRACT

The guideline of this essay is to analyze the way that rights of personality of the human being are treated by the brazilian civil and constitutional law, focusing on the identification crisis of the subject of rights. To achieve this purpose, we will analyze the possibilities of acknowledgement of the rights of personality of the unborn and the deceased, who need to have their individual rights of personality reviewed in the face of the rapid phenomenological and technological changes in our society.

KEY-WORDS: rights of personality; subject of rights; unborn child; deceased; society

1 Advogado. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Católica do Rio Grande do

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INTRODUÇÃO

Os direitos de personalidade compõem um conjunto de bens que perfazem o ser humano, formando e externando os valores que caracterizam o seu ente em seu meio, seja através de seus atributos físicos ou psicológicos, como sua honra e moral. Para o sistema jurídico, são o conteúdo do sujeito de direito por ele reconhecido. Estariam os direitos de personalidade acompanhando o homem somente enquanto este é reconhecido pelo seu sistema normativo, ou fariam eles parte de um ser humano antes mesmo de seu nascimento e depois de sua morte?

O sistema normativo brasileiro buscou guarnecer os direitos de personalidade do cidadão de forma uma tanto quanto abrangente. No entanto, é notável que a previsão normativa, por mais vasta que tente ser, e as conceituações do Direito clássico nem sempre conseguem acompanhar o desenvolvimento da sociedade. Tal cenário fica explícito, principalmente, quando se põe em questão os direitos de personalidade daqueles que não podem ser considerados sujeitos de direito por nosso sistema normativo atual: aquele que ainda não adquiriu personalidade jurídica segundo o código civil (o nascituro), e aquele que perdera sua característica de sujeito de direito (o morto).

Neste trabalho procuramos analisar de que forma os direitos de personalidade da pessoa humana são tratada em nossa cadeia normativa civil-constitucional, colocando-se em pauta a crise de identificação dos sujeitos de direito que podem exercer a titularidade desses direitos. Mais do que obter respostas, objetivamos demonstrar que a inflexibilidade da norma e a limitação dos conceitualismos clássicos merecem ser revistos, uma vez que os mesmos não comportam as aceleradas mudanças fenomenológicas ocorridas em nossa sociedade. Para tanto, abordaremos a possibilidade de reconhecimento de direitos de personalidade de dois entes que, por motivos quase que meramente cronológicos, se encontram excluídos

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de proteção de sua individualidade em nosso atual sistema jurídico: O nascituro e o morto.

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2 DIREITOS DE PERSONALIDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM

A Constituição Federal Brasileira de 1988 consagrou em seu texto as garantias e direitos fundamentais do cidadão, visando perpetuá-los em nosso sistema jurídico. São direitos que protegem o indivíduo, para que este não tenha suas liberdades suprimidas, lhe garantindo a assistência do Estado e a igualdade perante a lei, seu direito a voto, e que preservam sua incolumidade física e moral, como sua intimidade, honra e imagem, entre outros bens que formam o foro íntimo do ser humano.

A doutrina moderna divide os direitos fundamentais em três gerações, conforme a ordem histórico-cronológica que estes começaram a ser abrangidos pelos sistemas jurídicos. Fazendo um apanhado geral, podemos definir que a primeira geração dos direitos fundamentais realça o princípio da liberdade do homem, garantindo-lhe direitos civis, políticos e da personalidade do homem. A segunda geração traz a categoria dos direitos sociais, econômicos e culturais do cidadão, onde se consagrou o direito do homem em ter um Estado que lhe propicie uma assistência adequada (bem estar social). E, por fim, temos os direitos fundamentais de terceiras geração, que visam a manutenção da paz, o progresso, um meio ambiente equilibrado, dentre outros direitos também chamados de direitos de solidariedade ou fraternidade, que abrangem de uma maneira geral interesses difusos, acabando por atingir cada cidadão em particular.

Os direitos fundamentais de primeira geração advieram do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de cunho individualista, visando a proteção do homem perante o Estado, estando neles abrangidos os chamados direitos de personalidade do cidadão.2 Estes, segundo a Escola do Direito Natural, seriam aqueles

2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. atual. amp. Porto Alegre:

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direitos inerentes a cada ser humano, existindo em seu âmago antes e independentemente ao direito positivo. Eles constituem o mínimo existencial do homem, sem os quais o mesmo não se realiza. Tem tanto um caráter relativo ao âmbito corpóreo (direito à vida, à integridade física), quanto psíquico e moral (direito à imagem, privacidade, à honra) do ser humano.3

É nos direitos de personalidade que reside a esfera íntima e particular do sujeito de direito. É particular, íntimo da pessoa humana o seu corpo, a imagem sobre o mesmo, a sua honra, privacidade, dentro outros bens que constituem sua individualidade. Esta série de bens e valores acabam por dar conteúdo à personalidade do homem, sendo imprescindíveis para a constituição do ente como ser humano.4

Mais do que fazer parte essencial da individualidade do sujeito de direito, os direitos de personalidade possuem uma conexão direta com o conceito de dignidade da pessoa humana:

A proteção à pessoa humana através do reconhecimento de uma gama de direitos chamados direitos da personalidade é recente e toma grande impulso após as grandes guerras dês século. O ponto mais importante do enfrentamento desta questão não vincula-se apenas à “redescoberta” da pessoa do direito, mas principalmente à ligação da proteção da pessoa humana aos valores que lhe são inerentes como garantia e fundamento do seu devir.

A pessoa humana não é, como dito antes, apenas um ente ontológico, mas traz encerrada em si uma série de valores lhe são imanentes. A dignidade da pessoa humana é o centro da personalidade, e, portanto merece a maior proteção possível. Aliás a conjugação personalidade-dignidade é tão forte que boa parte dos autores que tratam do tema referem-se diretamente à proteção da dignidade do homem. Essa ligação é, assim, indissolúvel.5 3 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 6. ed. rev. atual. amp. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2003. p. 6-8.

4 “Por outras palavras, existem certos direitos sem os quais a personalidade restaria uma

susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto: direitos sem os quais todos outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo – o que equivale dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal. São esses os chamados “direitos essenciais”, com os quais se identificam precisamente os direitos de personalidade. Que a denominação de direitos da personalidade seja reservada aos direito essenciais justifica-se plenamente pela razão de que eles constituem a medula da personalidade.” DE CUPIS, Adriano. Os

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Este liame que a doutrina estabelece entre o conceito de dignidade da pessoa humana e direitos de personalidade é totalmente compreensível quando analisamos o quanto a dignidade do homem pode ser maculada mediante o desrespeito ao direito de sua personalidade. Um dano à honra, à imagem, à intimidade ou ao físico de alguém atinge o âmago de seu ente, tendo o poder de distorcer perniciosamente a maneira de como esse ser se vê e como o mesmo infere que os demais o observam, externa e internamente.

Observando esta intrínseca relação, podemos melhor analisar o cenário em que se encontram os direitos da personalidade em nosso sistema jurídico, onde questões problemáticas insurgentes em nossa atual sociedade parecem não serem abrangidas pelas conceituações tradicionais do Direito a respeito do tema. Questões que dizem respeito, primeiramente, ao sujeito que pode exercer a titularidade sobre esses direitos.

5 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. “Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da

personalidade”. In: FACHIN, Luiz Edson: Repensando fundamentos do direito civil brasileiro

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3 OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E O SUJEITO DE DIREITO NO TRADICIONAL SISTEMA JURÍDICO

Importante frisar que o atual código civil brasileiro dedicou um capítulo inteiro (artigos 11 a 21) aos direitos da personalidade. Trata-se de uma evolução de grande valia, que demonstrou a preocupação do legislador em sanar as questões relativas ao tema, que sempre permearam nosso sistema jurídico, recepcionando explicitamente determinados direitos que antes só se encontravam expostos na norma constitucional. Porém, esta necessária constitucionalização do direito civil não se dá pela simples recepção das normas constitucionais pela lei civil. Mais do que isso, é de vital importância a reflexão dos efeitos deste fenômeno6.

No caso dos direitos da personalidade, deve-se analisar, primeiramente, como nosso sistema jurídico trata o sujeito de direito que exerce (ou que deveria exercer) a titularidade sobre os mesmos. A conceituação de direito de personalidade se encontrará apenas em seu âmbito preliminar se não fizermos uma análise sobre quem, segundo nosso sistema tradicional, pode ser o seu titular, em contraste com que deveria poder exercer este direito.

A sociedade e as relações estabelecidas entre seus entes se encontram em um processo de constante desenvolvimento, mutação, transformação. As ciências jurídicas, por mais que se possa tentar dinamizá-las, inevitavelmente tende a esbarrar em concepções clássicas e limitadoras, de modo a não acompanhar as transformações fenomenológicas da sociedade, não reconhecendo direitos e sujeitos de direito que, por algum motivo, não venham a estar previstos nas regras previamente positivadas. Somente o real reconhecimento da característica mutante da sociedade e dos sujeitos 6 Luiz Edson Fachin, sobre o processo de constitucionalização do direito civil, assevera: “Cabem,

hoje, não apenas a recepção da constitucionalização do Direito civil, mas uma análise de quais são as conseqüências práticas por ela trazidas, bem como possíveis críticas a serem dirigidas a esse fenomeno. Não é um convite à sua cega adesão, mas, sobretudo, à sua reflexão.” Fachin, Luiz Edson.

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nela contidos pode expandir o conhecimento do Direito sobre as atuais relações dos homens entre si. 7

E os direitos de personalidade não se excluem desta situação. Nosso sistema jurídico civil, a começar, vê o sujeito de direito (e, por conseqüência, também o titular de determinado direito de personalidade) cada vez mais inserido em um processo de patrimonialização:

A crescente descorporificação do ser humano possibilita, na atualidade, a maior fluidez dos controles sociais, pois, além de abstraí-lo, torna-o mais apto para sofrer considerações quantitativas, menos sensíveis, com pretensão à objetividade e estatuto da verdade. O sujeito de direitos de nosso código civil é a expressão mais acabada dessa visão. Não mais o cidadão e seus dramas e demandas, não mais a sociedade clivada por assimetrias de todos os gêneros, mas o particular desencarnado, anônimo, que chega a se confundir, apesar da separação, com as pessoas jurídicas. 8

Este caráter patrimonial trazido pelo sistema jurídico tradicional acaba por ocasionar uma exclusão daquele (ou seria daquilo?) que o sistema normativo não se dispôs a proteger, ou daquela relação jurídica que o Direito não se pôs a prever. Ocorre, pois, uma mensuração da personalidade jurídica através da centralização patrimonial de nosso direito civil, engessamentos legislativos e não reconhecimento da evolução das relações jurídicas.

Este não reconhecimento de novas relações jurídicas insurgentes em nossa sociedade e de determinados sujeitos que não são de direito segundo a inflexibilidade normativa tradicional acabar por atingir, também, os direitos de personalidade. Aqueles direitos que constituem o conteúdo da personalidade de uma pessoa que não é sujeito de direito, segundo as conceituações tradicionais do Direito,por certo não se perfazem no mundo dos fatos.

7 Neste sentido, oportuno trazer as palavras de Luiz Edson Fachin: “O direito é um fenômeno

profundamente social, o que revela a impossibilidade de se estudar o Direito Civil sem que se conheça a sociedade na qual ele se integra, bem como a imbricação entre suas categorias e essa sociedade” Fachin, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 79.

8 AGUIAR. Roberto A.R. de. “Alteridade e rede no direito”. In: Veredas do Direito. v.1. Belo

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O autor argentino Ricardo Luis Lorenzetti traça um parecer deste cenário de maneira muito oportuna, demonstrando que, por óbvio, as dificuldades que o desenvolvimento da sociedade impõe sobre o direito não é privilegio do sistema jurídico privado brasileiro:

Durante a vida da pessoa, o Direito Privado ocupou-se tradicionalmente de regular o que ela dá à sociedade, como produtora de bens. Contrariamente, agora preocupa o que ela recebe da sociedade, como receptor de bens e serviços, e protegendo suas decisões pessoais. Quando estas decisões atingem o próprio corpo ou a vida surgem problemas de grande complexidade para definir os limites.9

Muito embora a detalhada explicitação legislativa seja um grande passo em favor do reconhecimento de direitos e relações jurídicas, ela não pode resolver todas as problemáticas advindas da complexa evolução da sociedade. Está nem é sua principal função, diga-se.

No que concerne aos direitos de personalidade, a constante evolução das tecnologias e o crescimento dos meios de comunicação faz com que fatos, fotos, filmagens, enfim, informações a respeito de determinada pessoa circulem sem sua autorização, ocasionando danos à sua imagem, honra, ou ao seu direito à intimidade. De outra ponta, o direito à integridade física se depara com a acelerada evolução das tecnologias médicas, além de polêmicas questões como aborto, manipulação genética e eutanásia.

Se, conforme exposto, facilmente constatáveis são os problemas relativos às violações dos direitos de personalidade daqueles sujeitos de direito previamente reconhecidos em nosso ordenamento jurídico, ainda pior é a situação cuja relevância existencial ainda pouco reflete nos moldes das tradicionais conceituações do Direito.

9 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos

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4 OS DIREITOS DE PERSONALIDADE ANTES DO “INÍCIO” E APÓS O “FIM” FIM DO SUJEITO DE DIREITO

Nosso código civil dispõe, em seu artigo 2°, que a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Esta ressalva dos direitos daquele que ainda não nasceu, no entanto, também se encontra envolta na concepção patrimonialista de nosso sistema normativo. Isto porque as posteriores normas vieram a prever, basicamente, os direitos sucessórios do nascituro (art. 1798 do CC10). No entanto, rasa é a abordagem, seja pela lei, jurisprudência ou doutrina, dos direitos que perfazem a personalidade daquele que ainda não nasceu.

A primeira questão relativa ao tema que provavelmente nos vem à mente é o direito à integridade física do nascituro. A engenharia genética, experiências com células tronco de fetos, bem como os danos físicos ocorridos a um feto por uso de medicamento prejudicial, são apenas algumas das complexas polêmicas que dizem respeito ao corpo daquele que foi concebido, mas que ainda não completou o processo natalista que nosso sistema exige para que o mesmo adquira uma personalidade civil plena.

Se permeada de dúvidas é a tutela da propriedade física do nascituro, o que dizer, então, da sua personalidade subjetiva? A honra, imagem, moral de um feto, existe? Aqui, apelaremos para a casuística para demonstrar que o universo do direito da personalidade é um labirinto de extrema complexidade e trabalhosos percursos.

Em recente e, diga-se, sábia decisão da Comissão Estadual de Ex-Presos Políticos de São Paulo, restou reconhecido, pela primeira vez, um feto como preso político e vítima de tortura pela ditadura militar, bem como os danos morais causados ainda quando se encontrava na barriga de sua mãe:

10 Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da

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Trata-se de João Carlos Grabois, filho da ex-guerrilheira Criméia Grabois. Em dezembro de 1972, depois de voltar da região do Araguaia, grávida de sete meses, Criméia foi presa e levada para o DOI-Codi, em São Paulo. Segundo relatos de testemunhas e dela própria, foi torturada. Em janeiro, foi transferida para Brasília.

[...]

Entendo que o fruto do concepto de sete meses de gestação deve ser reconhecido como preso político da ditadura militar e pelas torturas

sofridas no período de sua vida intra-útero que lhe resultaram transtornos psicológicos (grifo nosso)", diz trecho do parecer de 2004, de autoria de

Henrique Carlos Gonçalves, representante do Conselho Regional de Medicina de São Paulo na comissão estadual.11

Nota-se aqui o reconhecimento de danos a direitos da personalidade de um ente que, segundo a lei civil, não seria dotado de personalidade. No entanto, se buscarmos em outras fontes do saber como as ciências médicas, é de conhecimento pleno que os sofrimentos infligidos a uma gestante têm reflexão direta no ser que carrega em seu ventre.

No caso em tela, os danos causados à mãe se deram pelo uso da tortura, ação que causa não apenas sofrimento físico, mas que molesta o psíquico de quem o sofre. Não houve uma ação externa diretamente direcionada ao feto, como por exemplo, ministrar substância que lhe causasse alguma alteração. Porém, não resta duvida que aquele ente que se encontrava no interior desta mãe passou por situações de extremo abalo psíquico e moral. Como, então, não reconhecer esses direitos somente porque as tradicionais concepções do Direito não prevêem o resguardo da personalidade do mesmo?

O abandono da teoria natalista que se encontra incrustada em nossas normas, em boa parte da doutrina, e que se reflete na jurisprudência brasileira não é mera questão de abraçar esta ou aquela ideologia ou concepção teórica. Há, sim, uma necessidade de reconhecer a necessidade de uma proteção àquele que já pertence, sim, ao “nosso” mundo, pois sofre as conseqüências de atos de terceiros. Reconhecer 11 “Comissão de SP reconhece feto como preso político”. Instituto Brasileiro de Direito de Família.

08/02/2007. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?noticias&noticia=1290>. Acesso em: 18 dez. 2007.

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estes direitos é admitir também a responsabilidade daqueles que o violam das mais variadas formas, como o marido que maltrata a mulher ainda grávida, a própria mãe que é negligente em seu período de gravidez, ou do Estado que um dia torturou e manteve presa uma gestante por questões políticas. Em todos os casos, o que temos em comum são atos que atingem um direito de personalidade de alguém que ainda está para exercer esta personalidade, que já a detém, e que apenas não pode externá-la, ainda. No entanto, os danos aos seus direitos de personalidade já podem ocorrer. Isto serve para qualquer que seja a natureza deste bem, seja física ou psíquica.

Em posição cronológica extrema ao do nascituro, temos os direitos de personalidade daquele que foi sujeito de direito, mas que, segundo algumas concepções normativas, não mais o é, ou seja, o morto. Mais do que gerar curiosidade, as questões relativas ao tema são de grande significado para a preponderância desses direitos essenciais ao ser. Importante a ponto de ter havido uma grande evolução em nosso ordenamento normativo civil. O capítulo II do título das pessoas naturais do atual código civil foi inteiramente dedicado aos direitos de personalidade, tendo o mesmo assegurado ao morto a proteção desses direitos. 12 No entanto, esta abrangente positivação, embora de extrema validade para a concretização de direitos, não cobre todas as problemáticas que o tema nos apresenta.

A tutela sobre os direitos de personalidade da pessoa após seu óbito reflete esta situação paradigmática. Um exemplo estaria na voluntariedade da doação de órgãos e tecidos post mortem. Vale lembrar, aqui, da Lei n° 9.434, de 1997, e frustrada sua tentativa regulamentar sobre o assunto, ao dispor que, na falta de manifestação 12 Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas

e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

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em contrário, presumir-se-ia autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem13. Ocorre que a precoce positivação do tema resultou na revogação deste dispositivo, numa clara demonstração que a explicitação legislativa não tem o poder de pôr fim na complexidade que envolve os problemas resultantes da rápida e fluida evolução da sociedade.

De mesma maneira, embora expressamente vedada pela legislação brasileira14, outra questão relativa aos direitos de personalidade da pessoa a qual veio constatar o seu óbito é a comercialização dos órgãos humanos. Se algum tempo isto fosse verossímil apenas aos olhos da ficção científica, atualmente já podemos encarar o fato como parte da realidade. O atual cenário mundial das ciências médicas vem demonstrando o nascimento de algumas poucas, mas existentes, visões direcionadas a tornar o mercado de órgãos humanos um fato legalmente existente e eticamente aceitável em nossa sociedade. 15

13 Art. 4º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a

doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem.

14 Artigo 14, do Código Civil Brasileiro: “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição

gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”.

15 Volnei Garrafa, em esclarecedor e visionário artigo, nos trás a evolução das teorizações a favor da

comercialização de órgãos: “A questão adquiriu novas nuanças em 1987, quando o cirurgião indiano C. T. Patel apresentou suas idéias em um simpósio realizado em Pittsburgh. Neste trabalho, cujo conteúdo foi posteriormente publicado pela revista Transplantation Proceedings, defende-se pela primeira vez de forma clara e aberta a compra e venda de rins entre pessoas vivas e sem grau de parentesco. O artigo de Patel dizia que a "doação de um rim é um ato de bondade. Ele é o presente da vida. (It is a gift of life). O incentivo financeiro para promover tal ato bondoso é moral e justificável... Gratificar financeiramente uma pessoa que presenteia um rim não diminui a nobreza do presente. (Financial reward for a gift of a kidney does not diminish the nobility of the gift)". Esta audaciosa comunicação, de apenas três páginas, introduziu no léxico médico - econômico a expressão remordeu donors ou rewarded gifting (doadores recompensados ou pagos; presentes gratificados), abrindo desta forma um vasto campo de especulação para aqueles pesquisadores do Ocidente que por inibição ético-moral ou por vergonha científica e social, não se atreviam a defender abertamente esta linha concreta de pensamento e de ação.

[...]

outras sugestões foram surgindo na mesma linha de estímulo à venda dos órgãos em vida, para entrega dos mesmos após o falecimento do doador-vendedor. Na maior parte delas, os argumentos relacionavam-se diretamente a teorias econômicas e à compra de saúde pelas pessoas, com abstração propositada de todos os fatores ético-morais e político-sociais naturalmente envolvidos com este tipo de questão. Um destes autores, L. R. Cohen, chegou a dizer que "no mercado de cadáveres, os

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Analisando este assustador cenário, fica claro que mais uma vez nos deparamos diante de um ser humano reificado, e mais do que nunca, patrimonializado:

Aparentemente, basta, à partida, pôr o corpo, em pormenor, em equivalência com todas as outras mercadorias. Mas esta metamorfose de aparência puramente formal, onde alguns não vêem qualquer mal, desqualifica, com um só golpe, a óptica Kantiana onde a inavaliável dignidade do ser humano proíbe absolutamente que sê de um preço. Mesmo antes de as conseqüências terem tido tempo para se desenvolver, a ética do respeito está já afastada em princípio, pois aquilo que se troca contra um um equivalente pode ser tratado como puro meio. O valor econômico suplanta o valor ético. No lugar do ser humano, é o dinheiro que vai desempenhar o papel piloto de fim em si: personificação desta coisa e coisificação da pessoa são os corolários.16

De mesma forma, outros direitos de personalidade que não o plano físico daquele que atingiu o óbito também sem encontram em um momento crítico. Não são raros os casos em que biografias de pessoas que morreram, bem como fatos de sua particularidade são vinculados e comercializados em nosso meio com o único intuito de lucro de terceiros. Desse modo, a honra, imagem, privacidade, dentre tantos outros bens que perfazem um ente são esquecidos quando este deixa de participar de nosso plano físico.

Estas questões que se apresentam em aberto em nosso sistema jurídico nos levam ao repensar sobre fenômenos e elementos que são tratados de modo limitado vendedores não são ricos nem pobres, são simplesmente mortos". Estas fórmulas, as quais o filósofo T. Tomlinson, mesmo sendo contrário, denominou brandamente de "formas de incentivo", passaram a receber diferentes denominações e entre elas destacaram-se duas: cash death benefit e cash benefit for

binding consent to donation. Em outras palavras, a primeira significa,de modo um tanto macabro, uma

espécie de "benefício pago pela morte", ou seja, dá a entender que é vantajoso morrer, pois o candidato a cadáver recebe um bom pagamento à vista e antecipado, que entre outras vantagens poderá cobrir até mesmo as despesas do seu funeral. A segunda vai um pouco mais longe e preocupa-se com o fato de que algumas pessoas vendem seus órgãos em vida, mas depois da morte as famílias neguem-se a entregá-los. Esta fórmula antecipa-se a possíveis problemas, através de um "consentimento obrigatório e irrevocável" previamente assinado pelo futuro doador. GARRAFA, Volnei. O Mercado de Estruturas Humanas.[online] Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio2v1/mercado.html>. Acesso em: 15 nov. 2007.

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nas conceituações tradicionais do Direito. Nota-se que somente se pôde reconhecer a existência de direitos de personalidade quando relevada, em primeiro lugar, a pessoa humana17.

Depara-se, em verdade, com um “enclausuramento” do sujeito no direito civil: Ou o sujeito está inserido na tradicional e rija moldura conceitual do Direito ou ele não é sujeito de direito. Ou aquela relação é composta pelos requisitos necessários exigidos pela engessada positivação normativa ou então ela não será jurídica.18

E esta clausura se reflete nos direitos de personalidade. Isto fica aparente ao confrontarmos as possibilidades de existência desses direitos para aqueles entes cujas concepções clássicas do direito não reconhecem como dotados de personalidade jurídica por critérios meramente cronológicos. Ou seja, aqueles sujeitos antes do nascimento com vida, e após a sua morte, como nos exemplos trazidos em tela. São casos que demonstram, explicitamente, como o sistema jurídico não comporta o desenvolvimento e novas descobertas de nossa sociedade. Repensar como, e a partir de quando a ciência jurídica reconhece o sujeito como sendo de direito, como se nota, se faz mais do que necessário e urgente.

17 “Restaurar a primazia da pessoa é assim o dever número um de uma teoria do direito que se

apresente como teoria do direito civil [...] é esta centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do direito civil o foyer da pessoa, do cidadão mediano, do cidadão puro e simples.” CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra: Centelha, 1981. p.53-54.

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5 CONCLUSÃO

Este trabalho visou abordar os direitos de personalidade do sujeito de direito justamente a partir daqueles entes que, pelas concepções clássicas do sistema normativo, muitas vezes não reconhecidos são sujeitos de direito, como o nascituro e o falecido. Não se objetivou, aqui, trazer respostas sobre as situações fáticas em que os mesmos devem, ou quando devem, ter reconhecida sua titularidade sobre direitos de personalidade. Se procurou, sim, demonstrar que tais situações existem, e que necessitam ser debatidas à luz de uma repersonalização do sujeito de direito.

Chegou-se a um ponto em que se discute o momento do reconhecimento de uma pessoa jurídica, através de conceituações como morte, vida, atividade cerebral, formação intra-uterina, etc. Não se procura, no entanto, analisar que o ser humano não cabe em idealizações rasas, e que muitas vezes estas limitações deixam de reconhecer direitos e bens de uma pessoa humana que existe no mundo dos fatos, mas que não é reconhecida por meros conceitualismos clássicos.

O resultado que advém deste tratamento hermético da pessoa humana é a criação de um processo de “coisificação” cada vez maior do homem. Tratá-lo como objeto e propriedade acaba por simplificar, também, as problemáticas que o ser humano se depara em decorrência do seu desenvolvimento. Um processo de reificação que, conforme exposto, chega até mesmo a agregar um valor para o ser humano e seus direitos.

No entanto, o ser humano e as suas relações estabelecidas na atual sociedade não mais são compreendidos por conceitos retos. Situações como as trazidas em tela, como os direitos de personalidade do feto, do morto, os transplantes e a comercialização de órgãos nos forçam a repensar que os direitos que perfazem o ente homem devem ser analisados fora das concepções de coisa e, conforme visto, até

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mesmo de mercadoria. Os direitos de personalidade não pertencem a nenhum outro âmbito de observação que não o próprio ser humano.

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6 REFERÊNCIAS

AGUIAR. Roberto A.R. de. Alteridade e rede no direito. In: Veredas do Direito. v.1. Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara, 2005.

BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 6. ed. rev. atual. amp. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

BRASIL. Constituição Federal, Código Civil e Código de Processo Civil. 7 ed. Nylson Paim de Abreu Filho (organizador). Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.

CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra: Centelha, 1981.

“Comissão de SP reconhece feto como preso político”. Instituto Brasileiro de Direito de Família. 08/02/2007. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/? noticias&noticia=1290>. Acesso em: 18 dez. 2007.

DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Campinas: Romana Jurídica, 2004.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

_____. Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998,

GARRAFA, Volnei. O Mercado de Estruturas Humanas.[online] Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio2v1/mercado.html>. Acesso em: 15 nov. 2007.

LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. atual. amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SÉVE, Lucien. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

Enviado: 26/08/08 Aceito: 23/12/08 Publicado: 31/12/08

Referências

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