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Nos bastidores da revolução dos direitos e deveres: a estranha natureza do Estado e das políticas públicas

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Academic year: 2021

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(1)Universidade Federal de Sergipe Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia Social Mestrado em Psicologia Social. MONIQUE DE JESUS BEZERRA DOS SANTOS. Nos Bastidores da Revolução dos Direitos e Deveres:. São Cristóvão – Sergipe 2013.

(2) 1. MONIQUE DE JESUS BEZERRA DOS SANTOS. Nos Bastidores da Revolução dos Direitos e Deveres A estranha natureza do Estado e das Políticas Públicas. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia Social do Centro de Ciências de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de Sergipe como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social. Orientador: Prof. PhD. Manoel Carlos Cavalcanti de Mendonça Filho.. São Cristóvão – Sergipe 2013.

(3) 2. FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE. S237n. Santos, Monique de Jesus Bezerra dos Nos bastidores da revolução dos direitos e deveres: a estranha natureza do Estado e das políticas públicas / Monique de Jesus Bezerra dos Santos; orientador Manoel Carlos Cavalcanti de Mendonça Filho. – São Cristóvão, 2013. 140 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal de Sergipe, 2013.. 1. Psicologia social. 2. Planejamento político. 3. Estado. 4. Intervenção. I. Mendonça Filho, Manoel Carlos Cavalcanti de, orient. II. Título. CDU 316.6.

(4) 3.

(5) 4. Dedico este trabalho a minha avó materna, Dona Maurina, quem nunca me deixou reconhecer em sua figura a chamada lucidez..

(6) 5. AGRADECIMENTOS. Agradecer... Esse é um gesto que tem um enorme significado. Quem agradece cede à tentação de descarregar sua dívida em palavras redentoras; agradecer parece algo banal. Já quem recebe agradecimentos se vê em uma posição ainda mais delicada; é o peso de suas práticas visto nas palavras do outro. Nunca me foi uma tarefa fácil agradecer, ser injusta sempre foi um dos meus maiores medos, muitas vezes optei por não citar nomes, frente à ideia de não cometer injustiças. Mas dessa vez vou fazer diferente. De que adiantaria viajar nessas teorias de agora se não me arriscar a ser injusta, a esquecer. Afinal, não há como NÃO escorregar depois que se reconhece a queda como condição inescapável de todo gesto. Agradeço então a Jomar Lucas, amado e amigo em tempos difíceis; acho que nunca PODEREI recompensá-lo por ter me ensinado que para agradecer não é preciso enfeitar palavras, mas apenas chamar a quem se é grato pelo nome. Entre tantas coisas que aprendi contigo, a melhor delas foi ter “desaprendido” a solidão. Agradeço-te por ter podido transformar poesia em vida ao teu lado, mesmo lutando contra tantos obstáculos que pareciam querer deixar nossa história apenas em imóveis versos do que poderíamos ser. Ao Prof. Marcelo Ferreri, amigo por vocação, dono do silêncio mais sábio que já conheci, um silêncio cortado por palavras marcantes, mas que nunca são as mesmas; ele não as deixa SER. Aos meus colegas de curso, especialmente Adriana, Bia, Isabella e Nedelka, por ouvirem meus problemas e alegrias; nunca esquecerei os momentos que dividimos antes das aulas e durante os almoços entre conversas. Queria que a vida tivesse me dado mais tempo e oportunidade de cultivar nossa amizade. Às pessoas com quem tive A oportunidade de conversar durante as idas e vindas entre Paulo Afonso-BA e Aracaju-SE, suas palavras me inspiraram e deramme forças, fazendo valer essa experiência apenas pelo fato de estar vivendo-a. Às pessoas as quais encontrei nas experiências de trabalho. Sem o choque desses encontros não poderia estar aqui para narrar esses movimentos. Sem sua contribuição não poderia ser a MESMA. Representando-os, quero citar Ana Clara.

(7) 6. Moreira, Dorival Pereira e Edilson Alves, líderes que nunca pouparam palavras de incentivo para me manter na batalha. Agradeço por tudo a minha amiga Járlita Valéria; nunca deixamos de ser uma equipe. Trabalho e estudo nos foram dados como espaços de encontros e desencontros nos últimos tempos, mas espero sinceramente poder compartilhar contigo tantos outros abraços regados a lágrimas de felicidade. Admiro-te muito! Ao meu [des] orientador, algoz e carrasco, Prof. Manoel Mendonça Filho! Sua ternura, brincadeirinhas, olhares, caretas, conselhos e ideias mirabolantes nunca serão esquecidos. Nunca terei pernas para seguir seus passos, deixo então aos outros a honra de serem seus aprendizes. A todos os meus familiares, em especial ao meu primo Marcelo, que foi companhia por muitos dias solitários, em meio a jogos de baralho e conversas fiadas que me faziam lembrar que nunca se deve estar ocupada demais para simplesmente viver. A Tia Maria por todo apoio dado e por ter me emprestado um lar em Paulo Afonso-BA quando eu havia transportado o meu para Aracaju-SE. A Tia Carminha, por ter nos ajudado durante a mudança e adaptação em Aracaju e por fazer companhia e dar a mão à minha mãe quando eu não podia estar por perto. Agradeço a minha mãe que me acompanhou em várias etapas dessa jornada com tanto prazer que até me fazia acreditar que essa era uma estrada bela. Ela sempre acordou nas madrugadas comigo para despedir-se enquanto eu embarcava em mais uma viagem antes do nascer do sol. Ela não hesitou em mudar a vida por completo, deixar amigos e familiares com saudades em Paulo Afonso-BA para morar em Aracaju-SE apenas por causa do nosso sonho. Já em Aracaju ela sempre estava a minha espera na rodoviária, mesmo nas noites mais frias e desertas. Essa mãe aventureira, que estudou apenas até a metade do Ensino Fundamental, aprendeu o que era um Mestrado apenas para poder falar orgulhosa sobre esse aparente triunfo dos seus filhos. De fato não tenho palavras para agradecer-te, elas JAMAIS darão conta disso. Não posso deixar de agradecer a Deus. Sei que sempre foi Ele quem desanuviou minha cabeça, me fazendo mergulhar nas horas de sono que me proporcionaram um acordar cheio de novos devaneios. Durante todo esse tempo em que andei por caminhos sombrios, lugares estranhos e situações perigosas, sei que não estava só. Obrigada por ter me dado o frio assim como os cobertores apropriados..

(8) 7. “Na nova ordem geral de um novo comando, abstinência moral é crime hediondo! Aquela onda de caos que sai varrendo o mar dos que têm poder, pode esquecer! Só procedimentos normais, o mais é injúria. E tudo se liquefaz, num mar de candura. Se alguém tiver que arbitrar só vai poder contar com o delírio de um cantor: o que se passou, passou, prescreveu!...” (Djavan, Música “Pode esquecer”, Álbum “Rua dos Amores”, 2012)..

(9) 8. RESUMO O presente trabalho é reflexo da busca pelo estudo dos problemas encontrados na prática diária de atuação profissional de uma funcionária da Política de Assistência Social em um Município do interior do Nordeste brasileiro. Inicialmente, esta se deu pela via da fundamentação de mais um determinismo, através de uma forma de culpabilização dos usuários da assistência por uma dita falta de iniciativa (ou conformismo) em busca da superação de sua condição de vulnerabilidade, o que entravaria o desenvolvimento social do país. No entanto, ao longo da pesquisa, o que nasceu como mais um relato de práticas de um funcionalismo público distante da lei e em defesa de uma maior intervenção do Estado, nessa trajetória de retomada dos problemas encontrados no campo, passou a ser visto sobre outro prisma. Passou-se a questionar quais significados poderiam emergir para essas práticas da técnica se fossem outros os problemas a observar. Agora, não mais caberia relatar o quanto a prática ou a “realidade” deixava de atender às exigências de uma comemorada lei. A legitimidade, ou seja, a “real validade” das lógicas presentes nesse movimento de normatização das vidas agora eram vistas pela pesquisadora face à intervenção da técnica. Para tornar possível o choque dessas forças aparentemente antagônicas entre pesquisadora e técnica – e porque não objetos de pesquisa – tomamos como proposta uma abordagem etnográfica e etnometodológica da rotina da técnica, registrando em diário de campo meses de sua atuação profissional. No presente documento essa escrita do diário é reaberta e mais uma vez dilacerada, transcorrido mais de um ano de distanciamento dos corpos de ambas (técnica e pesquisadora) com o campo pesquisado. Nessa nova escrita coube uma radicalização desse distanciamento, por assim dizer, onde a pesquisadora termina por buscar não o sentido ou a explicação para as coisas vivenciadas, mas apenas problematizar, sob outras implicações, os recortes dos acontecimentos uma vez descritos pelas mãos da técnica em seu diário de campo. Palavras-chave: Estado. Lei. Política Pública. Intervenção..

(10) 9. ABSTRACT. The present work is a reflection of the search for the study of problems encountered in daily practice of a professional worker of the Social Assistance Policy in a city of the northeastern of Brazil. Initially this study took the path of reckoning another determinism through by blaming the users of social assistance by an actual lack of initiative (or resignation) to try and break their condition of vulnerability, which hold back the social development of the country. However, throughout the research, which was born as an additional reporting practices of a distant civil service law and in defense of a greater state intervention, in this trajectory of recovery of the problems encountered in the field, was seen on the other prism. Started to question what meanings could emerge for these practices of the worker if they were other problems to note. Now, no more fit to report how much practice or "reality" failed to meet the requirements of a celebrated law. The legitimacy or, the "true value" of the logic in this movement of normalization of lives was now seen by the researcher due to the intervention of the worker. To make possible the shock of these seemingly antagonistic forces between researcher and worker - and why not objects of study we propose an approach to ethnographic and ethnomethodological routine of the worker, wringing in a field diary months of your professional performance. In this paper the field diary that was written is reopened and once again lacerated, elapsed over a year of estrangement from both bodies (worker and researcher) with the studied field. This new writing is a radicalization of this distance, where the researcher ends up not searching for the meaning or explanation for the experienced things, but only discuss under other implications, the clippings of the events that was describe by the hands of the worker in his field diary. Keywords: State. Law. Public Policy. Intervention..

(11) 10. SUMÁRIO. INTRODUZINDO AS QUESTÕES ............................................................................ 12. PRIMEIRA PARTE OU “O QUE SE SABERIA” 1 CAPÍTULO I: MEMÓRIAS DE UM VIVER ............................................................. 19. SEGUNDA PARTE OU “O QUE SE SOUBE” 1 CAPÍTULO I: O QUE É UM MÉTODO?................................................................. 24 1.1 O MÉTODO E A TRANSMUTAÇÃO DOS BASTIDORES .................................. 28 1.2 A ETNOGRAFIA E A ETNOMETODOLOGIA COMO CAMINHOS ..................... 30 1.2.1 Procedimentos de inserção no campo: Qual ética sobrevive à pesquisa 34 1.2.2 Procedimentos de coleta de dados: O aparente antagonismo entre pesquisador e objeto pesquisado.......................................................................... 36 1.2.3 Procedimentos de análise dos dados: As implicações do não ver no que foi visto..................................................................................................................... 37 2 CAPÍTULO II: CAMBALEANDO POR ENTRE TEORIAS E REVIVENDO AS SURPRESAS DA ROTINA ....................................................................................... 39 2.1 O ROUBO DO DIÁRIO DE ESCARLATE ............................................................ 42 I Como Ser Estado Lá no Fundo do Curral? ......................................................... 44 II A Alegoria da Cadeira e o Banquete Fora da Lei ............................................... 47 III Por entre Disputas e Embates nos Confins das Relações de Poder .............. 52 IV Da Beleza do Consenso ..................................................................................... 57 V Multidão ................................................................................................................ 58 VI Manual de Fabricação de Motim para Estados Democráticos de Direito em Ascenção ................................................................................................................. 61 VII O Furto do Cartão de Natal ............................................................................... 64.

(12) 11. VIII O Que Será Que é a Política? ........................................................................... 70 IX Das Regras da Vida, o Que Foge às Regras ..................................................... 75 X Recapitulando A Jornada: Últimos Suspiros em Triunfos e Orgulhos de Um Servidor Público em Carta de Demissão............................................................... 78 3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE “O QUE SE SABERIA” A PARTIR DE “O QUE SE SOUBE” ................................................................................................ 81 3.1 PRODUZINDO A FICÇÃO ENTRE A “CONSTATAÇÃO COTIDIANA” E O “ENCAMINHAMENTO INQUIETO” ........................................................................... 87 3.1.1 Outros Desatinos............................................................................................ 90 3.2 QUE POLÍTICA É ESSA, DA QUAL JÁ NÃO CONVÊM FALAR? ....................... 94 OS ÚLTIMO DIAS DE ESCARLATE ........................................................................ 99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E OUTRAS FONTES .................................... 104 APÊNDICE A – ESBOÇO DO EMBASAMENTO TEÓRICO DAS MEMÓRIAS DE ESCARLATE .......................................................................................................... 109.

(13) 12. INTRODUZINDO AS QUESTÕES [...] ninguém ousa fazer muito barulho nos domínios de Poseidon. É como assobiar para o mar. A gente pode dar início a alguma coisa que não previu. (RENAULT, 1958, p. 28). O Teseu1 recriado por Mary Renault (1958) foi um herói cujos atributos físicos não acompanhavam, a um primeiro olhar, a grandeza dos seus feitos. No cenário cortado por um personagem por demais avesso ao mundo que buscava desbravar, a imprevisibilidade dos acontecimentos trazidos pela autora pareciam querer fazer o leitor entender que o inesperado é condição inescapável. Na narrativa de Renault (1958), não há que se nascer de um modo tal para ser de um modo outro. Assim, transportando essa figura para a ideia de pesquisa trazida aqui, mais do que planejar uma relação de causa e consequência aparentemente a ser inevitavelmente encontrada, é preciso abrir um parêntese para reconhecer a instabilidade de cada gesto dentro do ato de pesquisar, para então deixar surpreender-se. O presente trabalho teve, portanto, como causa a busca pelo estudo dos problemas encontrados na prática diária de atuação profissional de uma técnica da Política de Assistência Social em um Município do interior do Nordeste brasileiro. Inicialmente esta busca se deu pela via da fundamentação de mais um determinismo através da culpabilização dos usuários da assistência por uma dita falta de iniciativa (ou conformismo) em busca da superação de sua condição de vulnerabilidade o que, aos olhos da técnica, entravaria o desenvolvimento social do país.. Ainda enquanto técnica, reportando-me aos discursos que permearam minha graduação em Pedagogia ou aos discursos político-partidários, nos movimentos da chamada sociedade civil e nas leis do Estado democrático (em especial no Sistema Único da Assistência Social - SUAS), fui treinada para ser pedagoga social, tendo escutado sobre os benefícios de uma prática profissional que engloba resquícios dos princípios de Marx e Paulo Freire. A educação era o casamento perfeito com a política de assistência social de agora e foi por um longo tempo considerada por 1. Herói da mitologia grega..

(14) 13. mim como a via libertária de uma dita “população em situação de vulnerabilidade e risco social”. Assim, os bastidores que pretendia “desnudar” no início da pesquisa eram aqueles que eu entendia como as práticas de “politicagem” dentro de instituições “públicas” e, com isso, em minhas hipóteses, pretendia ratificar as severas consequências que se pode ter quando “pessoas” aplicam mal o dinheiro público ou “formam” mal os usuários da assistência sob sua tutela, emperrando o desenvolvimento da sociedade democrática de direito. Mas, a exemplo das inesperadas consequências que advêm da leitura de Renault (1958), hoje a inquietação que tenho perpassa por outra lógica. A ideia de tratar dos bastidores, no entanto, me parece ainda bastante pertinente, mas esses não são agora os bastidores que estão atrás das cortinas da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social na qual trabalhava ou de qualquer outra organização (em sentido restrito) do Estado democrático brasileiro. Os bastidores são agora entendidos como o funcionamento das relações dentro de um universo micro, não como se ele fosse inspirar generalizações para um universo macro (como a “psicologia do conformismo”2 que pretendia fundar), mas sim como se o reconhecimento dessa lógica não-sistemática de funcionamento das relações fosse a condição para entender a heterogeneidade que perpassa o funcionamento do poder e o estabelecimento de conceitos de Estado e política pública, por exemplo. Daí a estranha natureza (não genética) do Estado e das políticas públicas. Se me ocupasse de pensar o Estado como um caminho natural das sociedades humanas poderia deparar-me com problemas dualistas (VEYNE, 1995), como os que seguem, por exemplo: Como é possível que mesmo após a revolução mundial em torno do estabelecimento de sociedades mais democráticas haja ainda uma enorme disparidade entre os deveres que nos são cobrados e os direitos a que 2. Desde o primeiro encontro de orientação o Prof. Manoel questiona sobre a “prateleira” da qual retirei esse termo. Mas o que ocorre é que esta expressão usada naquele momento inicial do projeto de pesquisa não partiu de uma inquietação teórica. O conformismo era objeto diário do discurso profissional na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social na qual trabalhava e sempre foi usado como uma forma de defesa dos técnicos da assistência quando confrontados sobre o indeferimento de um benefício eventual (como cestas básicas) ou sobre sua necessidade de comprometer-se com o “projeto nacional” de emancipação econômica e protagonismo das famílias usuárias. É inegável, porém, a filiação marxista e freireana que o uso “político” da crítica ao conformismo abriga..

(15) 14. temos enquanto cidadãos humanos; Como é possível coexistir em uma sociedade democrática como a brasileira a criminalidade e a má fé dos políticos de partido na efetiva aplicação das políticas públicas; Como diante de tantos novos debates a nível mundial sobre o bem público e da publicidade que lhes é dado pela mídia é possível que as políticas públicas no Brasil ainda não sejam para todos; Como, mesmo tendo um aparato de leis tão bem elaboradas, bonitas e modernas, o Brasil ainda conviva com tamanha desigualdade; Como é possível que a lei seja tão distante do que vemos na prática diária do serviço público; etc. Enfim, os problemas são infindáveis. Mas e se eu tivesse em mente problemas outros? Tento então agora problematizar o próprio entendimento que nos guia a ver nesse Estado um monstro, como cita Foucault (2008a, p. 8), questionando a impressão corrente sobre sua origem, naturalidade e genética, que o projeta como se este fosse um vilão sempre em progresso para devorar as práticas dos trabalhadores de boa vontade. Seria necessário, a partir dessa outra ótica e antes de tudo, também questionar o como das noções de direito e deveres, público e privado, sociedade civil e governo, a noção de Estado enfim, visto que tomar estes conceitos como objetos naturais seria agarrar-se às extremidades de que falava Veyne (1995) a propósito dos problemas dualistas. E o que escapa afinal a essa lógica das extremidades? Como abordá-lo? É possível vê-lo quando se nasce dessa lógica? É possível o nãoEstado? É possível estar fora do Estado quando seus limites são cada vez menos imperceptíveis? É possível ou necessária a busca de outra realidade que não o Estado? Nesse tocante, Bobbio (2007, p. 69) resgata a concepção weberiana do Estado moderno a partir de “dois elementos constitutivos: a presença de um aparato administrativo com a função de prover à prestação de serviços públicos e o monopólio legítimo da força”. O desafio então seria não mais ver e explicar as possíveis vicissitudes dessa lógica a partir do entendimento desta enquanto a batalha imemorial entre dominantes e dominados. O que é tomado agora como problema e não como evidência no social, no sentido de Rosane Silva (2005, p. 14), é a observação da cristalização desses dois elementos que Bobbio (2007) traz de.

(16) 15. Weber, que fazem com que a manifestação do Estado nas vidas alcance seu nível mais capilar, tornando o Estado uma abstração, que cada vez mais dá um tom de raridade aos “fatos humanos”, como se entende a partir de Veyne (1995). A partir desse entendimento Veyne (1995) aponta como sendo nosso erro crer no Estado ou Estados em detrimento de estudar as práticas que projetam as objetivações que entendemos por Estado ou por variedades do Estado. Em vez de enfrentar o problema em seu verdadeiro cerne, que é a prática, partimos da extremidade, que é o objeto, de tal modo que as práticas sucessivas parecem reações a um mesmo objeto, "material" ou "racional", que seria dado inicialmente. Então começam os falsos problemas dualistas, assim como os racionalismos. (VEYNE, 1995, p.164). Definitivamente o que virá nas palavras seguintes não pretende atender à lógica de produzir respostas e modelos.. Tento agora fazer um projeto de pesquisa as. avessas, invertendo a lógica que indica que esta deve ter uma pergunta e uma resposta convincente para ter validade científica. De fato, o que tenho de concreto para agarrar-me no momento, é a ideia de que, dessa vez, o problema não pode ser visto como uma grande interrogação bem formulada a qual pretendo responder ao findar o trabalho técnico de pesquisa. Já me foi dito que a pesquisa que propunha não faria sentido enquanto não fizesse o seu campo desaparecer. Essa orientação não foi esquecida, mas o como fazê-lo veio assombrando-me aos poucos... Fazer desaparecer o campo de pesquisa não é uma tarefa fácil, afinal, há um grande apelo afetivo para a ideia de orgulhar-se por ter sido testemunha em um campo privilegiado, em uma posição privilegiada. O diário de campo aí parece entregar na mão do escritor a propriedade dos acontecimentos. É como sentir na pele o que passou o responsável pelo registro da história de “Narradores de Javé”, quando de morador vadio passou a enaltecido cidadão. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social me parece agora ter sido o campo dessa pesquisa por uma questão de necessidade. Quando releio o diário de campo a partícula “de” ganha um significado outro, muito distante de “do”. É no.

(17) 16. choque com o óbvio que contornos impensáveis podem ser tomados. Caso eu fosse pesquisadora/ de-fora/ da-academia teria muito mais dificuldades em desprender-me da necessidade de provar no campo o que se julga na teoria como certo, como verdade. Teria muito mais dificuldades em desprender-me da ideia de que é preciso conceituar o campo para dar-lhe sentido. Adentrando na questão da “arrumação” do presente trabalho, aos leitores muito atentos e/ou desavisados – entre eles e, principalmente, a autora desta pesquisa – cabem algumas considerações. A primeira delas seria a necessidade de apresentar uma personagem sem a qual a pesquisa não aconteceria, trata-se de Escarlate, uma funcionária pública de uma Secretaria Municipal de Assistência Social cuja experiência de trabalho teria a autorizado a fazer pressuposições sobre o universo no. qual. trabalhava,. julgando-as. como. verdade.. Essa. personagem. está. especialmente intrincada em cada palavra da Primeira Parte da pesquisa intitulada de “O que se Saberia”. Nessa parte sua fala é tomada de assalto pela pesquisadora, que não mais pode dizer-se Escarlate. Nessa primeira abordagem, existe/persiste uma tentativa de narrar um modo outro de dizer sobre os rumos que o problema pesquisado poderia tomar, caso a pesquisa estivesse ainda nas mãos de Escarlate e dos seus conceitos. Seria esta parte, portanto, uma ficção que objetivou retratar o modo de dizer o cenário pesquisado por Escarlate através do registro das suas memórias sobre as teorias que pretendia sistematizar caso sobrevivesse à academia. Sobre esse momento do trabalho cabe ainda outra importante consideração: a estranha natureza do Estado e das políticas públicas colocada no título é parcialmente esquecida para dar lugar à simplicidade do reconhecimento de uma extrema aceitação dessa formação social – a saber, o Estado democrático de direito – como um plano ideal, um terreno fértil e um objetivo a ser alcançado por todos, independentemente dos custos. Já na Segunda Parte, intitulada “O que se Soube” a questão Metodológica é abordada como um importante ponto que foi para o abandono da fala de Escarlate. Nesse caminho inesperado, optou-se por problematizar a significação de trabalhar.

(18) 17. com pesquisa para a academia sem fazer uso dos procedimentos por ela normatizados e, ainda, questionando a própria noção de utilidade, efetividade e “veridição” destes. A adoção dos métodos etnográfico e etnometodológico, nesse sentido, é colocada como via de esclarecimento da noção de bastidor proposta nesse novo entendimento, que o traz como a lógica de funcionamento das práticas registradas no diário de campo e não como o fato de este ser o registro de um trabalhador-antiético-pesquisador-clandestino. Seguindo com a proposta de inversão da forma de tratamento dos dados da pesquisa, fragmentos de histórias do Diário de Campo são trazidos de forma não convencional, através de dez pequenas narrativas, formuladas em torno das descrições feitas pela técnica, o que acaba produzindo o novo texto/acontecimento: o da pesquisadora. Para cada micro-história trazida é subentendido algum/alguns tipo/tipos de discussão sabendo-se ser esta uma de tantas vias possíveis de fraturar a experiência, visto que esta já foi cortada por diferentes olhares a partir da adoção de diversas propostas de escrita e interpretação do escrito. Enfim, esse é o local por excelência da produção da ficção desejada nessa nova forma de olhar, visto que nessa parte Escarlate e suas práticas são apresentados enquanto personagem e enredo, respectivamente, e não enquanto uma pesquisadora apresentando os “caros” resultados de seu “estudo científico”. Enfim, nesse momento do texto, a fala de Escarlate (a técnica) é sequestrada por outrem (a pesquisadora). Em seguida, é proposto um certo resgate do que foi dito até o momento, a fim de produzir no leitor (e na pesquisadora) o entendimento de algumas das implicações do que foi dito em “O que se Saberia” a partir do “O que se Soube”, enfatizando especialmente a ideia da produção do acontecimento nas histórias narradas, bem como em algumas temáticas sobre política, poder e Estado. Por fim, como “quem conta um conto, aumenta um ponto”, os últimos dias de Escarlate são contados, com os devidos pontos aumentados..

(19) 18. Primeira Parte ou “O Que Se Saberia”.

(20) 19. CAPÍTULO I MEMÓRIAS DE UM VIVER. 3. Por Escarlate4. Trabalhar com o humano, em tempos em que persiste a desigualdade social e as diversas mazelas dela decorrentes, é considerado por mim um privilégio. Trabalhar com projetos de assistência social me propicia desafios a cada dia de visita às famílias, de intervenção nas comunidades, ou de planejamento de novas ações, mas o prêmio disso tudo é poder dormir tranquila e consciente de que toda e qualquer intervenção no campo social pode sim gerar resultados positivos. Ou seja, nesse campo de atuação profissional – e porque não política – trabalho se confunde com nossa própria existência em um permanente aperfeiçoamento em busca de mudanças positivas na vida de todos ao nosso redor. Apesar de não ter vivido os anos ruins nos quais o direito não era uma realidade, a saúde era privilégio dos que trabalhavam, a inflação trazia uma insegurança diária, a palavra era censurada e onde a democracia não passava de um sonho, sinto uma enorme necessidade de fazer jus a esse legado construído pelos brasileiros e que me proporciona a cada dia mais e mais segurança. É pela luta de tantos outros que vieram antes nós que temos o privilégio de ter férias remuneradas, jornada de trabalho diminuída, políticas públicas de saúde, educação e assistência, fiscalização nas diversas formas de produção das coisas que precisamos para nossa vida, etc. É então para manter e aprimorar esse legado que devemos lutar. Essa luta, no entanto, deve ser feita sempre respeitando os nossos compromissos éticos. No cenário dos municípios, por exemplo, os funcionários das prefeituras devem ser técnicos da execução das políticas por excelência e não apenas por uma questão de privilégio. Não há, portanto, uma razão válida para aventurar-se no 3. Antes de ser feita esta leitura, a depender da preferência do leitor, pode ser consultado o texto do Apêndice A deste trabalho (a partir da p. 109), onde há o esboço do que poderia vir a ser o embasamento teórico das memórias de Escarlate. Ao leitor aventureiro, no entanto, é dada a possibilidade de deixar a leitura do referido apêndice para o final, sabendo que este terá, muito provavelmente, um significado totalmente estranho. 4 Texto construído em memória dos ideais e do pensamento de Escarlate sobre o universo no qual habitava. Este foi resultado do esforço de dar voz a uma personagem que não sabia da “violência” de suas palavras e ações..

(21) 20. campo da política social, por exemplo, sem saber do real compromisso que esse trabalho deve ter na vida das pessoas, sem saber da importância do nosso papel enquanto “conscientizadores” das pessoas. Quando trabalhava com a entrega de cestas básicas eu não me sentia muito bem comigo mesma, por acreditar que sempre há alternativas, fora da simples espera pelo benefício do governo que chega aos beneficiários pelas mãos de tantos colegas de trabalho, de forma até mesmo humilhante, seja pela demora no atendimento, pela necessidade de ficarem em longas filas sob um sol escaldante, ou pela forma “desaforada” como muitos tratam quem se coloca como dependente de tais “ações”. Como forma de amenizar esse mal estar procurava sempre tratar todos da forma mais respeitosa possível, sendo ágil no atendimento e, ainda, me engajando em alguns poucos “projetos-pilotos” que visavam associar a entrega das cestas básicas a algum trabalho de cunho educativo, que tinha como principal norte a formação cidadã. Quando visitava alguém que não precisava da cesta básica, mas que fazia questão de continuar na lista das entregas regulares, sempre os encorajava a sair deliberadamente da lista, informando que a assistência era pra quem dela necessitasse, e explicava que naquele mesmo dia eu poderia visitar muitas outras famílias em situações bem piores. Quando ouvia rumores e notícias de famílias muito vulneráveis que negociavam a cesta básica, trocando-a por coisas como bebidas e drogas, ficava extremamente chateada. Era como um “tapa na cara” e de certa forma a comprovação de que aquele trabalho de atendimento com benefícios eventuais (como se estes fossem eternos) definitivamente não dava certo. Aos poucos, no entanto, o Município vem mudando suas práticas. Grandes entregas que mobilizaram milhares de pessoas agora vão ficando para o passado. A proposta de trabalho educativo do SUAS 5 é muito mais envolvente e atrai cada vez mais recursos financeiros. Até mesmo a minha prática profissional foi sendo desviada para esse novo foco, e foi nele que me senti plenamente realizada profissionalmente. De fato a. 5. Sistema Único de Assistência Social..

(22) 21. territorialidade preconizada pelo SUAS pode ganhar um sentido único quando vemos por experiência própria que, em cada comunidade, um mesmo trabalho educativo pode gerar demandas diferentes, assim como as soluções e alternativas propostas para cada situação podem ser as mais variadas possíveis. De fato não há rotina. Essa mudança, no entanto, não é uma realidade constatada apenas no ambiente no qual trabalho. Quando iniciei minha trajetória no campo da assistência social, no ano de 2005, o SUAS, ainda enquanto norma (mas não lei) abriu um novo horizonte para as práticas profissionais nesse sentido. Agora, em todo o país a população em situação de vulnerabilidade e risco social passa por pelo menos um desses novos aparelhos garantidores de direitos. A realidade dessas intervenções no campo social está mudando nosso país como um todo e gerando um inegável desenvolvimento. Saber que o que se faz de social, para uma comunidade ou para uma família, tem de fato um significado positivo é muito gratificante. E, formar cidadãos que nos ajudem nessa prática desafiadora, e que certamente avançarão ainda mais no seu papel enquanto protagonistas sociais dentro das suas comunidades é ainda mais admirável. Enquanto no trabalho com cestas básicas os resultados quantitativos de aumento do número de entregas não podiam ser comemorados, agora o número de participantes em reuniões, conferências, passeatas, cursos, etc. podem e devem sê-lo. Aqui, nessa nova perspectiva de trabalho, as alternativas de intervenção são inúmeras e cada vez mais importantes, gerando especialmente um impacto social que não pode ser mensurado apenas com números. Esse impacto, por sua vez, é a tomada de consciência por parte dos usuários da assistência, que pode ser vista através da mudança de comportamento frente às diversas demandas que se apresentam nas comunidades, onde eles são agora protagonistas e não apenas dependentes que esperariam pela boa vontade de terceiros. Neste momento, trazer a população para fazer parte da construção da política pública no nosso país é um movimento desejado e, mais que isso, é visto como uma condição para que a democracia na qual vivemos seja cada vez mais consolidada..

(23) 22. Reivindicar por direitos não é mais visto como transgressão, mas sim enquanto ordem; como a ordem e o progresso que a bandeira brasileira finalmente pôde alcançar. Os bons tempos chegaram! É nosso dever vivê-los e preservá-los para as próximas gerações! Apesar desses (ainda poucos) resultados libertadores que encontrei em minha prática profissional, há ainda alguns entraves que persistem para a não efetivação dessas ações. Todos esses entraves, a meu ver, são gerados pelos ranços das políticas partidárias. Entre eles, estaria a questão da descontinuidade, ou seja, da falta de sistematização das ações, dos longos períodos em que as equipes podem permanecer afastadas do campo por questões financeiras ou políticas e do isolamento de cada setor que, por mais que se deva trabalhar em rede, ainda ficam como ilhas, fazendo intervenções de forma isolada e não estabelecendo laços com as comunidades. O grande número de cargos de confiança que não duram mais do que uma gestão municipal e que são colocados na ponta dessas ações junto às famílias e comunidades, é também outro fator negativo, visto que, frente à saída desses funcionários dos seus respectivos campos de atuação, a família deve ser mais uma vez cadastrada e ter as políticas públicas repensadas por novas formas de intervenção profissional, o que gera certa instabilidade e falta de confiança; itens estes que são, em seu antônimo, de grande valia para a manutenção de ações afirmativas de qualidade. Mas, se ficarmos no clima de derrota nada faremos. Eu própria sou uma dessas funcionárias temporárias, mas tento, em minha prática profissional, ser a mais técnica e também humana possível, sem me deixar contaminar pelas possíveis vicissitudes que minha prática de trabalho poderia incorporar. Para tanto, assim como formar o público que depende das minhas intervenções conscientes, é preciso formar a mim mesma, sempre buscando a superação da condição da qual emergi. Se minhas práticas não ganharem o efeito esperado, ao menos a narrativa do que vivi para superar as dificuldades que eu mesma vivenciei servirão de exemplo, tanto para colegas de trabalho que compartilham do mesmo compromisso, quanto para os próprios usuários dos serviços e público-alvo dos projetos que coordenei..

(24) 23. Segunda Parte ou “O Que Se Soube”.

(25) 24. CAPÍTULO I. O QUE É UM MÉTODO? Pensar não é sair da caverna nem substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas, a claridade vacilante da sombra pela luz do verdadeiro Sol. É entrar no Labirinto, mais exatamente fazer ser e aparecer um labirinto ao passo que se poderia ter ficado “estendido entre as flores, voltado para o céu”. É perderse em galerias que só existem porque as cavamos incansavelmente, girar no fundo de um beco cujo acesso se fechou atrás de nossos passos – até que essa rotação, inexplicavelmente, abra, na parede, fendas por onde se possa passar. (CASTORIADIS, 1997, p. 10). Afinal de contas, o que é um método? Até alguns meses atrás a resposta a esta pergunta apareceria facilmente, a despeito da displicência com a qual era formulada. A displicência tratada aqui aparece agora como fruto da ignorância com relação aos custos dos quais Kuhn (2009) alertava nessa defesa do pressuposto de que “a comunidade científica sabe como é o mundo” e tem o dever de explicá-lo por meio da. “ciência. normal”. (que. pode. ser. entendida. aqui. como. a. regra. acadêmico/institucional, como os meios por onde entrar na ordem da produção dos discursos de Verdade). É bastante cômodo posar de pesquisador quando não se sabe ou não se quer problematizar o que está implicado na ideia de pesquisa. Assim, usar a palavra crítica sempre parece ser um álibi suficiente para não soar como alguém que havia sido arrastado para as entranhas de um tal sistema que inventava falsos enunciados os quais, inevitavelmente, mais tarde, um novo paradigma viria certamente a ressignificar. Logo, partindo da citação de Castoriadis usada como prelúdio, quase um ano depois do desafio metodológico proposto para esta pesquisa, nada menos que uma sensação de dor é desperta com a relembrança desta mudança dos ventos. A primeira orientação que tive foi para abandonar um certo recorte de um projeto social que propus investigar e ficar apenas com o debate sobre “Os bastidores da.

(26) 25. revolução dos direitos e deveres”. Fui também convidada a fazer uma pesquisa que fugia. dos. padrões. etnometodológica.. Até. pela. tangente. esse. de. momento. ser eu. de. nunca. inspiração havia. etnográfica. vislumbrado. e. essa. necessidade de tomar-me como um sujeito “outro” nessa relação pesquisadorpesquisa. Além disso, deveria abandonar a ideia de consolidar como provas as respostas desse meio artificial que a formalidade da entrevista produz; deveria entender que esses dados que poderiam ser perfeitamente (e legitimamente) coletados não me serviriam pelo simples fato de que não faz sentido perguntar coisas sobre as quais talvez os entrevistados jamais houvessem se questionado ao longo de suas vidas. Perguntar se o outro era feliz ou se tinha sonhos para o futuro me parecia tão natural! Estava tão certa de que minhas hipóteses seriam provadas que podia até apostar na criação de um novo conceito que provavelmente viria carregado de determinismo. Eu achava que iria conceituar tal “psicologia do conformismo” 6! No início, aquilo tudo me pareceu tão estranho, tão absurdo. Em outras ocasiões pediram-me para restringir o campo da pesquisa a um dado universo temporal ou geográfico, a elaborar um roteiro de entrevista com um número suficiente de perguntas abertas ou de formas diferentes de perguntar a mesma coisa para obter respostas coerentes e fiéis ao que o entrevistado vivenciasse. Ensinaram-me também a nunca ir a campo sem um problema a investigar, ou pior, sem hipóteses a testar. Ensinaram-me a buscar respostas e a vesti-las de criticidade7 dizendo que estas não eram conclusivas apesar de todo o esforço para encontrá-las de acordo com os padrões que a ciência legítima exige. Nas palavras de Latour (2001, p. 16): “Apenas uma mente colocada na estranha posição de contemplar o mundo de dentro para fora e ligada ao exterior unicamente pela tênue conexão do olhar se agitaria no medo constante de perder a realidade [...]”. Eu fui essa mente, eu imaginei contemplar o mundo como se eu não fosse 6. Vide nota de rodapé Nº 1. Quanto a esse ponto Latour (2001, p. 17) chama a atenção de que a tomada dessa abordagem “crítica”, que chamo aqui para designar a ideia de que não se poderia ter certeza de nada, não passa da substituição de um “ kit de sobrevivência ” por outro, quando a própria ciência propaga uma queda das antigas certezas absolutas em nome de um ideal de progresso. 7.

(27) 26. parte intrincada dele, como se minhas palavras não fossem viciadas, como se não fossem cartas marcadas em busca de uma resposta para algo que eu imaginava já saber, bastando apenas uma comprovação fictícia para validar esses tesouros encontrados na prática que certamente inúmeras teorias iam também defender junto a minha. Portanto, era preciso ainda “[...] desviar os olhos dos objetos naturais para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os objetivou [esses supostos tesouros] sob um aspecto datado como ela” (VEYNE, 1995, p. 154). No fim das contas o que a minha ideia de pesquisa apontava era um percurso para que eu encontrasse as respostas que julgava já conhecer de trás para frente em minha prática diária de trabalho e de anos de experiência trabalhando com “o humano” ou com “o social”. Ambas estas categorias estavam dadas/cristalizadas (e com o estudo que pretendia ficariam ainda mais) e o método, nessa fase anterior da pesquisa, poderia ser conceituado facilmente como sendo apenas o caminho mais fácil para se atingir os objetivos previamente traçados na problematização que visava. É justamente quando nos sentimos “científicos” (BECKER, 2007, p. 39) que somos levados pelo desejo de que o mundo seja algo externo ao chamado “eu”; é aí que queremos que o mundo seja uma transparência infinita onde as verdades vão se elevando uma a uma e, como disse Foucault (1996, p. 7), por essas verdades vamos sendo levados, “como um destroço feliz”. É quando nos sentimos científicos que parece natural deitar sob o céu estendidos entre as flores como disse Castoriadis (1997, p. 10), quando, em contrapartida, o que deveria ser notado é que não há luz, e isto se dá em virtude do simples fato de que não podem existir explicações possíveis ou desejáveis quando só há sombras8. É sendo científicos que entramos de bom grado nessa esteira para a qual a formação acadêmica parece guiar inevitavelmente, é nessa esteira que vem a sensação do dever cumprido, do seguimento das normas científicas e o orgulho de obter um título privilegiado. É sendo científicos que terminamos por entrar displicentemente na ordem do discurso hegemônico (FOUCAULT, 1996).. 8. Contribuição do Prof. Dr. Frederico Leão Pinheiro..

(28) 27. No entanto, aceitar cavar um labirinto, como disse Castoriadis (1997) ou aceitar desmontar a história por fatos inconvenientes, como disse Becker (2007) é como nadar contra a maré. É como questionar o próprio fim de estar escrevendo aqui, agora. É tentar contra nossa própria vontade, contra nossa própria “natureza”, natureza esta que foi institucionalizada de mim. Como ouvi em uma das primeiras orientações para essa pesquisa, escolher esse trajeto é saber que não fazemos parte sequer da minoria, pois andaríamos por caminhos clandestinos, utilizando de estratégias bélicas para constranger a máquina do interior de um espaço privilegiado criado por ela9. Assim, numa “releitura selvagem” da genealogia de Foucault, só posso pensar que o método que queria ter aqui fosse o método da não-ciência, o método do não-método e de toda industrialização dos pensamentos e das vidas que ele representa. Nas palavras dele: desinstitucionalizando e desfuncionalizando as relações de poder pode-se estabelecer sua genealogia, isto é, a maneira como elas se formam, se conectam, se desenvolvem, se multiplicam, se transformam a partir de algo totalmente diferente delas mesmas, a partir de processos que são totalmente diferentes das relações de poder (p. 160, 2008b).. Segundo Foucault (2005, p. 14), “as genealogias são muito exatamente, anticiências”. Desse modo, o contrário da genealogia seria o método que funciona, que foi calculado milimetricamente com base no que é aceito em um sistema de organização social embasado nas relações de saber/poder. A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais – “menores”, talvez dissesse Deleuze – contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas. (FOUCAULT, 2005, p. 15).. Na outra margem da desordem resistem avidamente a norma, a ordem, os métodos, enfim, que são tidos como dever de um pesquisador que busca acrescentar mais uma pedra fundamental nesse enorme edifício imaginário da ciência. Então, nesse 9. Ideia do Prof. Manoel Carlos Cavalcanti de Mendonça Filho (orientador desta pesquisa)..

(29) 28. caso não se trata de uma crítica aos conteúdos, aos métodos ou aos conceitos de uma dada ciência, mas sim de uma reviravolta na pesquisa partindo da ideia do “combate” aos efeitos centralizadores que guiam a formação do chamado discurso científico (FOUCAULT, 2005, p. 14). Nessa atividade que se pode, pois, dizer genealógica [...] não se trata de forma alguma de opor à unidade abstrata da teoria a multiplicidade concreta dos fatos; não se trata de forma alguma de desqualificar o especulativo para lhe opor, na forma de um cientificismo qualquer, o rigor dos conhecimentos bem estabelecidos. Portanto, não é um empirismo que perpassa o projeto genealógico; não é tampouco um positivismo, no sentido comum do termo que o segue. Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns (FOUCAULT, 2005, p. 13).. Desse modo, se for o caso conceituar e pretender um método, o escolhido aqui é aquele que não pretende funcionar, que não atende pelo chamado da ciência e de seus produtos, que não pretende ser mantra cedendo à inspiração e à continuidade. A despeito do que traga nossas palavras impiedosamente e independente de vontade para o fosso da ciência, quisera que aqui fosse um método como os dos cursos de Foucault (2005, p. 6-7), que pretende ser nada, não servir a nada e com o que se pode fazer nada ou qualquer outra coisa.. 1.1 O MÉTODO E A TRANSMUTAÇÃO DOS BASTIDORES. O projeto de estudar “Os Bastidores da Revolução dos Direitos e Deveres” assombrava-me há anos e o substantivo BASTIDOR em português – arrumando algumas gavetas desorganizadas, onde encontrei algumas das lembranças da minha adolescência, de quando aprendia a bordar ponto cruz e vagonite –, me veio à mente com dois significados, ou melhor, sendo duas coisas, completamente diferentes uma da outra. Ao pensar essa pesquisa, logo de início, esses bastidores chegaram a ser o que estava por trás do palco onde “o real” acontecia, onde a política [partidária] entrava.

(30) 29. em cena e no qual eu tinha acesso e conhecimento profundo por ter sido permitida por razões institucionais a habitar o ambiente detrás dos veludos, onde a política e a lei se esmiuçavam em práticas. Essa sensação de permissão vinha do fato de ser formalmente contratada pelo Estado, paga para falar e calar ao seu serviço, intimada a ser inventora e algoz de novas políticas públicas. O que não sabia era que essa aparente “malandragem” carregava o esquecimento da outra coisa que esse mesmo substantivo poderia designar: o BASTIDOR que por hora habita meus pensamentos me parece muito mais com aquele objeto feito com dois aros de madeira e que serve para prender o tecido quando ele deve ser bordado. Nesse bastidor que prende, molda, enfim, normatiza o tecido para bordar o que se quer, existe uma rede de relações/fibras que se complexificam, onde a farpa que fere mortalmente é aquela que diz que o pesquisador, como qualquer outro ali a ser bordado, também está intrincado nelas. Esse bastidor não fica eternamente prendendo o tecido e não deixa marcas perenes na superfície que prensa. Ele também não precisa estar presente para que o tecido seja bordado, mas facilita e molda as áreas de mais difícil acesso, tornando as agulhadas mais rápidas e eficientes, otimizando o tempo do pensamento, tornando urgente o término do projeto de bordar o tecido. É como as várias reentrâncias dos exemplos de política econômica descritos por Foucault (2008a), onde a aplicação de uma ação inicial faz movimentar toda uma cadeia de reações de termina por modificar o tecido. Esse bastidor de agora remete ao movimento que Foucault (2008b, p. 157) descreve como “tecnologia do poder” e a abordagem genealógica que ele propõe para leitura desse objeto seria justamente aquele que reconstitui a rede de alianças, de comunicações e pontos de apoio ali intrincados. [...] é perfeitamente possível fazer a genealogia do Estado moderno e dos seus aparelhos, não precisamente a partir de urna, como eles dizem, ontologia circular do Estado que se afirma e cresce como um grande monstro ou urna máquina automática. Podemos fazer a genealogia do Estado moderno e dos seus diferentes aparelhos a partir de urna história da razão governamental. Sociedade, economia, população, segurança, liberdade: são os elementos da nova governamentalidade, cujas formas,.

(31) 30. parece-me, ainda conhecemos em suas modificações contemporâneas. (idem, p. 476, 2008b).. Nessa empreitada, segundo Foucault, é possível fazer a genealogia do Estado a partir de suas micro práticas, onde as ações são cotidianas, cristalizadas, naturalizadas servindo à lógica de funcionamento do poder. Dentre algumas “precauções de método”, Foucault (2005, p. 33) cita que a questão é de não estudar o poder na sua esfera de decisão, mas sim de estudá-lo do lado de sua intenção, no interior de práticas reais e efetivas, ou seja, [...] estudar o poder, de certo modo, do lado de sua face externa, no ponto em que ele está em relação direta e imediata com o que se pode denominar, muito provisoriamente, seu objeto, seu alvo, seu campo de aplicação, no ponto, em outras palavras, em que ele se implanta e produz seus efeitos reais. (idem, ibidem, p. 33). Desse modo, o método deixa de ser a técnica historicamente aprovada da busca de erros de um enorme vilão chamado de Estado ou de um político que aplica mal o dinheiro público ou que faz o mínimo necessário do que lhe foi incumbido em um cargo eletivo baseado em uma tal democracia. Não se trata, portanto, do bastidor/detrás-das-cortinas. Não se trata da continuidade de uma luta marxista. Trata-se, inspirado em Berger e Luckmann (2003) de problematizar a questão do Estado em seu modo de funcionamento, interrogando sua naturalidade e, da mesma forma,. questionando. a. conceituação. dos. direitos. e. deveres. enquanto. coisas/produtos perenes de uma dita democracia.. 1.2 A ETNOGRAFIA E A ETNOMETODOLOGIA COMO CAMINHOS. Ainda quando a transmutação dos bastidores da pesquisa que propunha era tão difusa quanto a opinião que alimentava sobre o ato de pesquisar, me foi apresentado o método etnográfico. Seja por um capricho de um pesquisador que desenha suas orientações de agora sob esse novo cenário, seja pela necessidade de romper com o tradicionalismo da pesquisa chamada de científica, esse método foi vestindo de forma bastante peculiar o problema que foi trazido aqui. Mas ainda.

(32) 31. restavam grandes questões que me perseguiram e assombraram durante meses de registro em diário de campo. Reconhecendo a interferência da subjetividade do observador na coleta dos dados, a cientificidade pretendida por Malinowski (1978) cobrava o empenho do pesquisador no sentido de deixar os fatos falarem para além de sua descrição e cobrava o registro do “esqueleto”, da “carne”, do “sangue” e do “espírito” referindo-se aos degraus da organização e da representação da vida tribal. Nesse aspecto Macedo (2006, p. 96) concordava com Malinowski reconhecendo uma tal falta de neutralidade na pesquisa científica, tendo em vista ser o pesquisador um sujeito inserido também dentro de um contexto e guiado por interesses, sendo o resultado de sua pesquisa produto do intelecto humano, uma pesquisa “contextualizada em sua. inspiração. filosófica,. teórica,. metodológica. e. heurística”. [grifo. meu].. Comparando a pesquisa etnográfica com a “atitude clínica” Macedo (2006, p. 82) dizia da necessidade da descrição da relação dos sujeitos na interpretação dos seus pensamentos, sentimentos e ações. Por tantas outras mediações ao longo da minha formação acadêmica esse ideal de cientificidade era o que me assombrava. Pedagoga que sonhava ter sido psicóloga, nada mais natural do que querer registrar o que observava nos indivíduos que me cercavam e o que eu entendia por suas reações ao que a vida lhes colocava. Dessa vez, ser “cientificamente fiel” ao que registrava não era o caso, esses termos não se completam e não são possíveis quando se tenta, de um espaço institucional privilegiado como um curso de Mestrado em uma instituição de ensino Federal, “constranger a máquina”, para usar as palavras do orientador10. Eu não seria dessa vez o sujeito/pesquisador que leria a ação dos sujeitos/pesquisados, não caberia descrever em uma pesquisa etnográfica o esqueleto, a carne, o sangue e o espírito dos acontecimentos; pelo contrário, eu teria que despir-me do meu próprio esqueleto, carne, sangue e espírito, eu teria que [des]sujeitar-me, teria que entregarme a uma descrição que faria tão objeto quanto a folha de papel onde imprimi o que digitei em meu diário.. 10. Vide nota de rodapé de Nº 4..

(33) 32. Tornar-se objeto da pesquisa, nesse sentido, não corresponde a superar a ordem proposta por Malinowski (1978); esse não é o resultado de uma evolução natural que incluiria uma nova categoria as suas leis de registro das observações no campo. Tornar-se objeto entra aqui no sentido de encarar a ordem do acontecimento, de tentar o empreendimento de entendê-lo enquanto produtor/produto/produção de sentido e não como um indício do que aconteceu verdadeiramente (COULON, 1995, p 46 apud MACHADO, 2000, p. 49). Esse desprezo diante da busca pela verdade científica é da ordem também da etnometodologia proposta por Garfinkel (2006)11 e é nesse sentido que a etnometodologia conversa com a releitura da etnografia aqui proposta; ela pressupõe a inserção no campo; o pesquisador vai a campo sem hipóteses, ele vai a campo para viver a experiência, para entregar-se à ordem dos acontecimentos, sabendo que “[...] seria ilusório [...] procurar escapar a esse círculo no qual ele tem o dever de se encontrar deliberadamente” (LAPLANTINE, 2004, p. 24). Na releitura dos dados registrados em diário de campo trata-se de ver o “como” dessa transformação da escrita em ideia, o “como” da cristalização das práticas de produção de sentido, o “como” do registro de resultados apoiados na “vontade de verdade” cada vez mais imposta pela contemporaneidade (FOUCAULT, 1996). Nesse sentido, é justamente onde as práticas estão mais cristalizadas, onde elas são banais que Garfinkel (2006, p. 9) aponta estar o foco da atenção na etnometodologia; e é ao prestar às atividades comuns a atenção que usualmente se reserva para eventos extraordinários que se apreende delas o que são como fenômenos por direito próprio, afinal, “o extraordinário também faz parte do ordinário” (BLANCHOT, 2005, p. 271). 11. Essa ideia fica notória na apresentação da tradução espanhola de sua obra por Hernaiz. Nela é citado um trecho de uma declaração de Garfinkel de 1968 logo depois de haver publicado os seus “Studies in Ethnomethodology”. Nessa declaração ele cita como foi simples conceituar esse termo e sua noções. Foi folheando os arquivos das áreas culturais de Yale sem nenhuma intenção em mente que Garfinkel deparou-se com seções como a etnobotânica, a etnopsicologia e outras. Nestes arquivos ele viu que os examinadores das pesquisas apontavam a metodologia adequada dizendo que “agora se pode ver, agora não”. Garfinkel então ponderou sobre o nome que ele poderia dar a essa parcela do que era julgado como a forma errada de ver, que nome ele poderia dar a essa seção para que depois pudesse lembrar desse problema com o qual se deparou. Foi assim que ele começou a usar o termo etnometodologia. Nas palavras do autor: “Por etno queria expressar [...] que os membros de uma sociedade têm disponível para seu uso certos conhecimentos que são do senso comum dessa sociedade, conhecimentos sobre „qualquer coisa‟” (GARFINKEL, 2006, p. IX, tradução minha ). Hernaiz então aponta que “a etnometodologia se refere a um método que as pessoas possuem. É um conhecimento dos assuntos cotidianos que pode ser revelado na forma de raciocínios práticos” (idem, ibidem, p. X, tradução minha )..

(34) 33. Quanto à descrição etnográfica, Laplantine aponta que a meta do pesquisador, mesmo a partir da observação de um seguimento de sua própria cultura, deve ser “[...] relatar da maneira mais minuciosa a especificidade das situações, sempre inéditas, às quais estamos confrontados” (2004, p. 10, grifo meu). Laplantine (2004, p. 14-15) aponta na descrição etnográfica a necessidade de uma “revolução epistemológica” que seria da ordem de, para além das convenções de nossa época, perceber o que nos leva a filtrar o que é preciso olhar e como é preciso olhar. Nas considerações de Garfinkel (2006, p. 16, tradução minha) nada autoriza o pesquisador a orientar a investigação da ação prática segundo o princípio de que sua intuição pessoal poderia reconhecer e descobrir o que faz, “jamais se investiga a ação prática para explicar aos participantes seus próprios relatos acerca do que estão fazendo”. Complementando essa “revolução no olhar” que preconiza a descrição etnográfica, trata-se em não ficar apenas atento mas, sobretudo, em “ficar desatento”, deixando-se “abordar pelo inesperado e pelo imprevisto” (AFFERGAN, 1987, p. 143 apud LAPLANTINE, 2004, p. 18). A descrição etnográfica é antes de mais nada, como aponta Laplantine (2004, p. 118-124), a descrição das ciladas que ela nos arma sem cessar. A descrição (e não a explicação), longe de ser o “grau zero do conhecimento” seria, segundo ele, a única coisa que propicia sua elaboração. Ela não foca sua visão em um saber, pelo contrário, ela “introduz uma preocupação naquilo que é visto”. Assim como nos estudos etnometodológicos (GARFINKEL, 2006, p. 2), não é a busca pela formulação de “remédios” para a ação prática observada que está em jogo; a essa atividade de descrição não cabe ceder nem se distrair com discussões teóricas que lhe sirvam de prova, visto que esta busca deve ser compreendida como a “investigação das propriedades racionais das expressões contextuais e outras ações práticas como resultados contínuos e contingentes das práticas engenhosamente organizadas da vida cotidiana” (GARFINKEL, 2006, p. 20, tradução minha), portanto, impassíveis de explicação, visto que estes são da ordem do acontecimento ou, como lê Veyne (1995, p. 151), são “raridades” não instaladas na plenitude da razão..

(35) 34. 1.2.1 Procedimentos de inserção no campo: Qual ética sobrevive à pesquisa?. A primeira coisa com a qual esbarrei quando fui tomada por esse projeto de pesquisa etnográfica e etnometodológica foi a ética. Entre março e dezembro de 2011, nos últimos meses de minha atuação enquanto funcionária de uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, fui intimada a ser “espiã”, a exercer o duplo papel. de. executora. da. política. da. assistência. e,. paradoxalmente,. de. observadora/pesquisadora surpreendida com seus detalhes mais banais. Sempre fui uma “funcionária exemplar”, com mais de cinco anos de atuação profissional na área específica das políticas públicas de assistência social e com uma “reputação a zelar”, a reputação daqueles funcionários técnicos que sempre foram éticos (no sentido de moralizados/moralizadores) e profissionais em sua prestação de serviço, daqueles funcionários a quem muitos colegas recorriam para tirar dúvidas sobre os procedimentos a tomar, daqueles funcionários que têm seu trabalho reconhecido por elogios constantes tanto de colegas de dentro do micro espaço de trabalho, quanto de colegas de fora, de outras organizações que trabalham em rede, de acordo com as normatizações que entraram maciçamente em vigor a nível nacional, inspiradas em ideais cada vez mais planetários de humanização; enfim, era – e sinceramente não sei até que ponto ainda sou –, daquele tipo de funcionário que sente orgulho no que faz, que sente uma satisfação extraordinária em trabalhar em algo que o humaniza, enfim, que sente orgulho de sua função social e que está disposto a fazer sua parte para mudar o mundo. Essa ética/moral que movia – e move? – minha prática profissional era da mesma ordem da necessidade de defender a garantia dos direitos democráticos a partir, principalmente, da defesa de um engajamento político vinculado à noção também democrática de deveres. Até então, a única pista da noção de ética que encontraria nessa pesquisa jazia em uma breve conversa no seriado americano Gilmore Girls entre mãe (Lorelai) e filha.

(36) 35. (Rory). Na cena, elas provavam amostras grátis de bolo de casamento em uma confeitaria, mesmo sabendo que uma amiga delas faria o bolo gratuitamente. O diálogo foi o seguinte: RORY: Can I ask you an ethical question? LORELAI: Mmm. RORY: Is it right to be sampling wedding cakes when Sookie's making ours for free? LORELAI: What is right anyway, you know? Who defines right? And if eating cake is wrong, I don't want to be right. FRAN: [calls] I'm bringing out a mocha crunch cream. LORELAI: So, ethics? RORY: Highly subjective and completely overrated. LORELAI: That's my girl. Provando um de seus bolos prediletos, Rory chega à conclusão de que a ética é altamente subjetiva e completamente superestimada. Mas o que isso representaria para a prática dessa pesquisa viria apenas depois. Foi necessário quase um ano em campo como “espiã” e ainda não posso me dizer liberta. Afinal, a questão que me invade agora não é substituição de uma educação doutrinária por outra. A moral que me guia em minha prática profissional ainda parece a mesma e a narrativa que faço dela e das condutas a ela adjacentes em diário de campo parecem confundir-se, mesmo sentindo não poder mais alcançar sua materialidade, a exemplo do macaco da academia construído na obra Kafka (1999, p. 63), sinto também não poder alcançar esse estado que me parece anterior 12 novamente, a não ser por meio de minha descrição, que sempre será ficcional, que agora vale-se de outros atributos que um novo universo colocou. Nesse contexto, talvez a ética que mais chance teria de sobreviver à pesquisa seria aquela descrita por Spinoza – como contado por Marilena Chauí (1995) – onde esta seria da ordem de um compromisso de afetar e ser afetado de múltiplas maneiras e não visando apenas uma forma correta.. 12. No sentido não cronológico e não evolutivo..

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