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O sol e o sal da zona sul

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Academic year: 2019

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Luiz Roberto Oliveira

ca das letras girava entre tristeza, desengano e amores não correspondidos. Neste estilo impregnado de fumaça de cigar-ros e pileques talvez provenientes do pós-guerra europeu, um estado de espírito cinzento e nebuloso acrescentou ao nosso repertório jóias lindas e inesquecíveis — infelizmente, já um tanto esquecidas.

Ainda na juventude, Vinicius de Moraes começou a dar mostras de suas vocações. Aluno dos padres jesuítas no curso ginasial do colégio Santo Inácio, já era atraído pela palavra e pelo texto. Em 1927, produziu talvez a única edi-ção de um pequeno jornal,“O Planeta”. Aos 15 anos, partici-pava, com os irmãos Paulo, Haroldo e Oswaldo Tapajós de um conjunto musical que se apresentava nas casas dos ami-gos e em festas colegiais. Suas primeiras letras são deste tempo, em parceria com Haroldo e Paulo.

É curioso como alguns fatos da infância podem, até por coincidência, antecipar tendências. Em dezembro de 1937, o Externato Mello e Souza, em Copacabana, promoveu uma festa para comemorar o encerramento do ano letivo. Um dos quadros das apresentações era a Orquestra Maluca, pequeno grupo instrumental formado por alunos do curso de admis-são ao ginásio.A regência da orquestra, cargo da mais alta res-ponsabilidade, foi confiada a ninguém menos que Antonio Carlos Jobim, então com 10 anos.

Em 1953, aos 40 anos, Vinicius de Moraes fez o samba “Quando tu passas por mim”, em que música e letra são, pela primeira vez, de sua autoria. Nas tertúlias do Clube da Chave, em Copacabana, assim chamado porque cada sócio tinha a chave de um escaninho com uma garrafa de whisky individual,Vinicius ficou conhecendo Tom. Não ficaram ínti-mos: a relação manteve-se por algum tempo simplesmente cordial. E a roda que o poeta frequentava — literatos,

críti-O sol e o sal

da zona sul

“Porque o samba nasceu lá na Bahia”. A esta afirmação de Vinicius de Moraes na letra do Samba da Bênção, feito em parceria com Baden Powell, eu acrescentaria, para polemizar: “...e a Bossa Nova também”. Seriam as lavadeiras de Juazeiro possuidoras da fórmula secreta?

O samba veio de uma junção de ingredientes: ritmos da Bahia, com ancestrais africanos, trazidos por negros e mesti-ços para o Rio de Janeiro, foram combinados com as formas melódicas e harmônicas praticadas na capital, de fortes raízes na cultura européia, tais como se ouvia em valsas, polcas e schottisches.

Nas reuniões em casa de Tia Ciata, mãe de santo baiana que morava no centro do Rio de Janeiro, foram ouvidos os primeiros acordes do samba. Naquele começo do século XX, algumas das presenças frequentes eram Hilário Jovino, Sinhô, Germano Lopes da Silva, Pixinguinha, e Donga, que em 1916 teve sua música “Pelo Telefone” gravada em disco pela Odeon. A História acabou consagrando Donga e seu parceiro Mauro de Almeida como autores do primeiro samba gravado, embora “Pelo Telefone” estivesse muito mais para maxixe do que para samba. Ainda por cima, a autoria de Donga também é questionada, sendo mais provável que a música tenha resultado de colaborações improvisadas dos participantes das rodas de samba promovidas por Tia Ciata. Impulsionado pelo compositor Sinhô, o samba começou a ganhar aos poucos sua forma e seus intérpretes. Na década de 30, deixando para trás a influência do maxixe, e com sua identidade caracterizada, passou a fazer jus ao nome.

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cos, artistas, embaixadores — impunha respeito pelo conteú-do e pela idade, e certamente contribuía para manter à distân-cia o músico de 26 anos, que tocava piano nos bares do bair-ro para acertar suas contas de fim de mês.

Vinicius carregou o time nas costas. De alma generosa, corajoso para sorver a vida sem se submeter a limites ou con-venções, o poeta multiplicou-se, emprestando seu talento a uma geração inteira de compositores, muitos dos quais teriam tido uma carreira bem mais difícil não fosse a preciosa parceria. Assim, o primeiro samba de Edu Lobo teve letra de Vinicius. O estilo denso de Baden Powell encontrou seu grande parceiro. Carlos Lyra e o poeta ainda hoje embalam corações apaixonados. Francis Hime ganhou letras lindas e desesperadas. Para Toquinho, Vinicius caiu do céu. Isto, sem falar em Ary Barroso, Capiba, Claudio Santoro, Paulo Soledade, Antonio Maria, Adoniran Barbosa, Pixinguinha, e uma série de outros, de ilustres a humildes — inclusive o autor destas linhas.

E também Vadico, o ignorado companheiro de Noel Rosa em tantos sucessos do calibre de “Feitiço da Vila”.As cir-cunstâncias e a saúde de Vadico fizeram com que ele, sem saber, abrisse caminho para o maior de todos os parceiros de Vinicius. Em 1956, o poeta, recém-chegado da Europa, tra-zendo na algibeira, letra e música, sua Valsa de Eurídice, pro-curava um compositor para as canções da peça teatral Orfeu da Conceição, de texto pronto e premiado — uma adaptação para a favela carioca do mito grego de Orfeu, o músico da Trácia que desce aos infernos em busca de sua amada Eurídice. Vadico, compositor e pianista de mão-cheia, foi o primeiro convidado. Mas não aceitou a tarefa, talvez pesada demais para uma saúde que já inspirava cuidados.

O segundo convidado ouviu pacientemente a longa explanação de Vinicius sobre como deveria ser a música para a peça, durante histórico encontro no Bar Villarino, no centro do Rio. Seu único e famoso comentário ao final da prédica, ainda que de justo fundamento, retrata uma preocupação que o acompanharia durante um bom tempo, mesmo quando já não houvesse razão para tal:“Tem um dinheirinho nisso?”

As músicas de Orfeu da Conceição foram os primeiros trabalhos da dupla Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes. A peça estreou no mesmo ano no Teatro Municipal do Rio, com atores negros, direção de Leo Jusi e cenários de

Oscar Niemeyer. Ficava selado o início de uma grande ami-zade e um raro entendimento entre música e poesia, tendo como conseqüência alguns anos da mais profícua e brilhante parceria da música popular brasileira.

Tom e Vinicius navegavam basicamente em três estilos: o samba (que na época era o sambão, ou samba-batucada), o samba-canção, e a canção de câmara — esta, a meu ver, o ponto mais forte e singular da parceria, sem pretender, no entanto, diminuir-lhes a qualidade nos outros gêneros. Assim foi que, em 1958, os dois parceiros convidaram a cantora Elizete Cardoso para ser a intérprete de uma sele-ção de canções de câmara, sambas, uma valsa, e até uma toada, que seriam reunidas no LP Canção do Amor Demais, da gravadora Festa. Tom Jobim faria os arranjos e a regência da orquestra. Este disco foi um divisor de águas na história do nosso cancioneiro. As músicas e letras, de rara beleza; os arranjos de Tom, delicados e de extremo bom gosto; a qualidade e o porte da cantora; tudo garantia um resultado excelente. Mas, um pouco pela sorte e muito pela visão de Tom, um outro atributo haveria de marcar definiti-vamente a importância do projeto.

Naquela época, alguns jovens compositores cariocas, como Carlos Lyra e Roberto Menescal, insatisfeitos com o ritmo do sambão, que consideravam quadrado e pesado, andavam em busca de uma nova forma para tocar samba no violão. Outros músicos importantes já haviam esboçado caminhos: Dick Farney, Lucio Alves, Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), e o pianista e compositor Johnny Alf, atualmente morando em S. Paulo e em plena forma. Mas foi um baiano desconhecido que conquistou os louros da desco-berta sensacional.Tocando o samba de uma maneira comple-tamente nova, com uma batida mais econômica, num ritmo sincopado, e articulando seu canto em surpreendente entro-samento com o violão, João Gilberto chegou para arrasar. Rapidamente passou a ser assunto nos meios musicais cario-cas, provocando o fascínio de muitos e repúdio de uma mino-ria. Um diretor da gravadora Odeon em S. Paulo, ao ouvir uma gravação de João, quebrou o disco, indignado:“É esta a novidade que o Rio nos manda?”

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disco atentamente, não é difícil perceber o contraste e o encontro de duas vertentes no tempo. De um lado, a voz clás-sica de Elizete; numa linha divisória, as orquestrações de Tom, camerísticas, lindas, mas ainda um pouco envolvidas pelos estilos vigentes; e do lado oposto, nas faixas Chega de Saudade e Outra Vez, a locomotiva que é o violão revolucio-nário de João Gilberto.

Tom e outros compositores mais jovens aderiram sem hesitação ao novo ritmo de samba. É interessante notar que o samba evoluiu também geograficamente, progredindo na esteira da ocupação do Rio de Janeiro: dos subúrbios e do centro, em direção à zona sul. E dos morros para o litoral. O samba do subúrbio cedia a vez à Bossa Nova de Copacabana. Aliás, o nome Bossa Nova, trazido à baila por circunstâncias sem grande relevância, tornou-se mundialmente conhecido, apontando não somente para uma nova maneira de tocar samba, mas refletindo uma atitude característica dos jovens da zona sul, que gostavam de freqüentar a praia e de se reunir para cantar baixinho ao som do violão. As letras deixaram a tristeza de lado, passando a curtir a beleza das garotas, o sol, o mar. Tom Jobim, que volta e meia mudava de residência, seguiu o mesmo movimento: nascido na Tijuca, transferiu-se com a família para Copacabana, e depois para Ipanema, onde, no apartamento da Rua Nascimento Silva, fez alguns de seus maiores sucessos.

Com colaboração e participação de Tom Jobim, João Gilberto gravou na Odeon três LPs históricos: Chega de Saudade em 1959, O Amor, o Sorriso e a Flôr em 1960, e João Gilberto um ano depois. No auge da forma e do gás, João mostra quem é e a que veio. O terceiro LP tem, em cinco faixas, a sensacional participação do conjunto do organista Walter Wanderley. Se você ainda não conhece, ouça depressa antes que acabe.

Quis o destino que a colaboração de Tom Jobim com seus dois companheiros se tornasse rarefeita até quase a interrupção. Vinicius e Tom produziram até meados da década de 60; após isto, pouca ou nenhuma parceria. Embora menos próximos, continuaram grandes amigos. A obra-prima Amparo, gravada em forma instrumental em 1970, teve o nome mudado para Olha Maria quando Vinicius e Chico Buarque lhe deram letra, um ano depois. Em 1977, Tom e Vinicius se juntaram a Miucha e Toquinho

para um show no Canecão, no Rio, que ficou meses em car-taz, antes de temporadas em S. Paulo e no exterior.

João e Tom se afastaram também na década de 60, e anos mais tarde, uma tentativa de reaproximá-los levou-os ao palco, mas nenhum dos dois ficou à vontade. Permaneceram o respeito e a admiração de um pelo outro. Até hoje, João inclui em seu repertório inúmeras composi-ções de Tom.

Numa fase mais madura, Tom Jobim resolveu dar maior vazão a sua veia literária, talvez sentindo a lacuna deixada por Vinicius, ou porque Chico Buarque não tivesse tempo para uma colaboração mais assídua. Criou excelentes letras. Águas de março, Luiza, Falando de amor, Passarim e Gabriela são apenas alguns exemplos. Aliás, Tom sempre se sentiu à vontade nas letras, mesmo em começo de carreira, quando fez Outra Vez, As Praias Desertas, e Corcovado.

Mas o tempo passa, e dois destes três gênios já nos

dei-Vinícius e Toquinho

Ilustração sobre foto de Mario

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xaram. Se me perguntassem por nomes de brasileiros mun-dialmente conhecidos e reconhecidos, sem hesitação citaria Tom Jobim e Pelé. A música de Tom tem dois atributos inquestionáveis: a qualidade, que garante ao compositor a posição de maior entre os maiores da música popular brasilei-ra; e a universalidade, que a faz admirada nos cantos mais remotos do planeta. Outros compatriotas, não menos ilus-tres, não chegam a ter seu nome e seus méritos tão difundi-dos – e globalizadifundi-dos.

João Gilberto, aos 71 anos, mantém seu modelo de per-feição. Influenciou músicos pelo mundo afora. Ainda que em seu país possa, de vez em quando, ser mal compreendido, ou, o que é pior, mal recebido. É demais pretender impôr a um artista de sua dimensão o ônus de ter de se comportar como o resto de nós. Criticá-lo ou até vaiá-lo em suas excentricida-des é não saber respeitar a enormidade de seu talento. João é um dos músicos mais íntegros e mais dedicados ao trabalho

que já vi. Para ele só existe o essencial: canto e violão. Até a forma como apresenta suas interpretações aponta para este núcleo. Prova disto é seu desinteresse por adornos: para mui-tas músicas que canta nem introdução faz. Entra diretamen-te no diretamen-tema, no que importa, repetindo a canção indiretamen-teira várias vezes, como num tremendo esforço para superar o insuperá-vel. Perguntado aonde teria ido buscar sua batida, respondeu: “Aprendi com os requebros das lavadeiras de Juazeiro”.

Poeta e diplomata, erudito, falando várias línguas, Vinicius foi aos poucos procurando uma forma de comunica-ção mais abrangente e popular. Funcionário do Itamaraty, com trânsito livre nos refinados salões da intelectualidade, íntimo de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, pas-sou a fazer canções de grande lirismo com Tom e Carlos Lyra; ao lado de Baden Powell, enfronhou-se no denso uni-verso das heranças negras, criando um dos mais fascinantes conjuntos de peças de nosso cancioneiro, os afro-Sambas; mantendo a trajetória, desaguou na parceria com Toquinho, de melodias e letras bem mais simples, algumas quase ingê-nuas. Interessante é notar que ele também estimulou Tom Jobim a despir-se de maneirismos e meandros da erudição. No texto para a contracapa de Canção do Amor Demais, refere-se com carinho ao parceiro:

“...gostaria de chamar a atenção para a crescente simplici-dade e organicisimplici-dade de suas melodias e harmonias, cada vez mais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. O que mostra a inteligência de sua sensibili-dade, atenta aos dilemas do seu tempo, e a construtividade do seu espírito, voltado para os valores permanentes na relação humana.”

Com Vinicius começamos, e nele encerraremos. A ele dirigimos nosso pensamento e nossas homenagens. O capi-tão do time e do mato Vinicius de Moraes, parceiro de tantos compositores que fizeram de nossa música uma das melhores do mundo, cantou como poucos a beleza da mulher brasilei-ra, fez da vida sua maior poesia, e jamais será esquecido. A bênção, poeta. Saravá.

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Ilustração sobre foto de Mario Thompson

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