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O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL

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O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL

MESTRADO EM DIREITO

PUC/SP São Paulo

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ADRIANE REIS DE ARAUJO

O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito (Direito das Relações Sociais), sob a orientação do professor doutor Paulo Sérgio João.

PUC/SP São Paulo

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Banca Examinadora

__________________________________________

__________________________________________

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Agradecimentos

Ao Professor Paulo Sérgio João, meus sinceros agradecimentos pelo inestimável apoio e críticas no curso do trabalho, as quais certamente

contribuiram imensamente à reflexão e aprimoramento do tema. Agradeço ao Professor Menelick de Carvalho Netto, pelos valiosos ensinamentos na área de hermenêutica jurídica, que foram decisivos à

conclusão da dissertação no tratamento proporcionado pelo Direito. Agradeço a todos os membros do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho, em especial à Procuradora-Geral do Trabalho, Drª Sandra Lia Simon, e aos Subprocuradores-Gerais do Trabalho, Dr.

Edson Braz e Dr. Luiz Antonio Camargo, a concessão de licença para elaboração da dissertação. Aos servidores da biblioteca do Ministério Público do Trabalho, Rosana, Vanessa, Andréia, André e Rosa, meus agradecimentos pelo resgate de obras decisivas ao desenvolvimento do trabalho. Aos amigos, Ana Luisa, Ana Paula Mendes, André Luiz

Ardens, André Nardelli, Alexandre Bernardino Costa, Berenice Paixão, Cristiano Paixão, Cristina Zackseski, Estela, Fernanda Paixão, Francisco Leocádio Pinto, Leila Cuéllar, Maurício Correa de

Melo e Zélia Luiza Pierdoná, em nome dos quais estendo o agradecimento a todos que de alguma forma contribuíram nesta trajetória acadêmica. E, à minha família, Roberto, Dionira, Cezar,

Luiz, Bianca, Lívia e meus filhos, Otávio e Helena, agradeço a compreensão e apoio durante esse período em que se fez necessária a

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RESUMO

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ABSTRACT

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SUMÁRIO

Introdução ...09

Capítulo I – O controle na empresa 1. O Panóptico e o poder ...22

2. O poder... .28

2.1. Sobreposição de modelos sociais de exercício de poder no século XVIII...30

2.2. O estabelecimento disciplinar...32

2.2.1.O olhar hierárquico ...36

2.2.2.Sanção normalizadora...37

2.2.3. O exame ...39

2.3. A sociedade de controle ...41

3. Os modelos de gestão empresarial ...43

4. Os discursos empresariais da guerra e do mercado ...65

5. A organização produtiva no Brasil ...70

Capítulo II - O assédio moral organizacional 1. Identificação do problema ...77

1.1. Revisão das pesquisas ...79

1.2. Critérios para identificação do assédio moral organizacional ...84

1.2.1. Critério biológico ...85

1.2.2. Critério temporal ...86

1.2.3. Critério material ...89

1.2.4. Critério teleológico ...94

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2.Conceito de assédio moral organizacional ...106

3. Discriminação e assédio sexual...119

3.1.Discriminação...120

3.2 Assédio sexual ...123

4. Conseqüências do assédio moral organizacional ...125

Capítulo III – O poder diretivo do empregador e os riscos para o trabalhador 1. O Direito do Trabalho, o contrato de trabalho e o poder diretivo: uma história complexa...132

1.1 A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado Liberal...142

1.2A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado de Bem-Estar Social ... 151

1.3A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado Democrático de Direito ...160

2. Assédio moral e os limites do poder diretivo do empregador ...170

2.1 Princípio da integridade...188

2.2 O assédio moral no direito do trabalho brasileiro: regulamentação legal, resistência e coerção...197

Conclusão...214

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INTRODUÇÃO

Muitos estudiosos reconhecem no assédio moral um problema estrutural da empresa contemporânea. O presente trabalho, a fim de possibilitar uma resposta eficiente do Direito, toma a sério essa assertiva e pretende a identificação das circunstâncias em que a conduta abusiva se produz de forma coletiva com vistas a proporcionar certa utilidade para a organização produtiva. Dessa maneira, nada melhor do que a reflexão aprofundada do cotidiano por intermédio de uma alegoria: a obra cinematográfica (considerada um dos clássicos do cinema), dirigida por Ridley Scott e roteiro de Hampton Fancher, intitulada Blade Runner, o caçador de andróides (1980).

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mão-de-obra escrava em trabalhos perigosos e na colonização de outros planetas. Com o desenrolar de suas atividades, observa-se neles a capacidade de desenvolverem emoções por meio de suas experiências de vida processadas por uma memória própria e recente. Agora eles querem melhores condições de vida e mais tempo ...

Após a rebelião de um grupo de replicantes NEXUS 6, em uma colônia do Mundo Periférico, a lei estabelece a pena de morte para esses trabalhadores encontrados no planeta Terra. Seis unidades NEXUS 6 seqüestram uma nave, chacinam a tripulação e passageiros e voltam à Terra em busca da reversão de sua programação genética. Esse grupo rebelde é caçado por Deckard, antigo membro do destacamento policial especial -Unidade Blade Runner. Um a um, eles são executados, ou melhor, conforme a terminologia empregada: “aposentados”. Ao final restam apenas dois replicantes, Roy e Pris. Quando Roy, o líder, consegue forçar o seu acesso ao idealizador Tyrell, este lhe nega qualquer possibilidade de alteração da data de morte e diz que a brevidade de sua vida se compensa pela maior intensidade ao vivê-la (“Aproveite, uma chama que queima com dupla intensidade vive a metade do tempo”). Roy, num misto de raiva e resignação, o beija e a seguir esmaga sua cabeça e olhos.

A fábula do Blade Runner reflete as relações socio-econômicas em formação na década de 1980, em que se destaca a globalização da economia, a redução do papel do Estado, a invasão de modelos orientais (toyotismo e métodos de qualidade total), precarização da mão-de-obra e a acumulação flexível, expressa na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, produtos e padrões de consumo. David Harvey observa que os replicantes, no filme:

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perfeito de um trabalhador que possua todas as qualidades necessárias à adaptação a condições de acumulação flexível).1

Tal qual na obra mencionada, a empresa atual exige do trabalhador a dedicação integral tanto no aspecto físico e intelectivo quanto emocional para o desempenho de suas atividades. Na fábula, os replicantes de última geração, na tentativa de se evitar os riscos verificados na geração dos NEXUS 6, possuem uma memória implantada. As emoções são relevantes e devem ser moldadas segundo os interesses da empresa. De maneira geral, o trabalhador é valorizado pela organização não somente enquanto lhe é útil, produtivo, cordato e materialmente feliz, mas quando se sente parte fundamental da gestão empresarial, acreditando-se criativo e responsável pelo sucesso ou pelo fracasso do empreendimento como um todo. O ideal é que, na execução contínua de atividades, o trabalhador abandone suas expectativas individualistas passadas ou futuras, viva apenas o presente, assumindo os interesses da empresa como os seus próprios. Como o replicante, quando o trabalhador se insurge, discorda ou exige respeito a seus direitos individuais, deve ser eliminado (da organização). O método utilizado não é mais a violência física (embora ainda se encontre vestígios dessa prática no trabalho escravo contemporâneo), mas sim táticas mais apuradas que visam deixar o trabalhador marcado de forma indelével mas sem vestígios. Lança-se mão da violência psicológica, a violência invisível: o assédio moral.

A questão do assédio moral no trabalho vem sendo amplamente debatida, com a proliferação de estudos, de soluções jurisprudenciais e de associações de defesa das vítimas, bem como propostas de lei para tratar da matéria em diversos pontos do globo, algumas já aprovadas. O interesse em torno do tema é tamanho a ponto de a obra da

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psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen se tornar um best seller internacional, computando a venda de mais de 500.000 exemplares somente na França. No Congresso Nacional brasileiro temos atualmente nada menos do que sete2 projetos de lei em tramitação na Câmara do Deputados, dos quais um institui o Dia Nacional de Luta contra o Assédio Moral3, três criminalizam essa prática4, dois regulam a questão para os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho e um para os servidores públicos federais5. Já foram promulgadas diversas normas estaduais e municipais6 no âmbito do serviço público local, regulando a conduta dos servidores públicos e de terceiros.

O problema já é sentido há algumas décadas. Os estudos do assédio moral se iniciaram com os trabalhos do médico sueco Peter-Paul Heinemann, realizado na década de 60, sobre o comportamento hostil de um grupo de crianças em relação à outra isolada. Ele batizou esse comportamento de “mobbing” tomando como exemplo o comportamento hostil de alguns animais para expulsar eventual intruso de seu grupo. O termo “mobbing” vem do verbo inglês “to mob”, que significa maltratar, atacar, perseguir, sitiar. O substantivo “mob” significa multidão, turba. Quando utilizado com a inicial maiúscula (Mob), esse substantivo batiza a máfia,.

predominância de traços asiáticos), ou seja a invasão do Terceiro Mundo, e a mistura cultural expressa no “cidadês”, língua falada na cidade que mistura diversos idiomas: espanhol, alemão, japonês, inglês.

2 Número de projetos apurados em 02.06.2005. São eles: PL 4591/2001, PL 2369/2003, PL 2593/2003, PL 326/2004, PL 5887/2001, PL 4742/2001 e PL 4960/2001.

3 Projeto de lei da deputada Maninha do PT/DF –nº 4326/2004. O dia selecionado é 2 de maio. 4 PL 5887/2001, PL 4742/2001 e PL 4960/2001.

5 O Ministério do Planejamento regulamentou a questão para os servidores federais, no capítulo IV da Norma Regulamentadora da Seguridade Social do Servidor.

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Em 1976, Caroll Brodsky, psiquiatra americano, estudando acidentes de trabalho, estresse psicológico e esgotamento físico, intitulou sua obra com a imagem do trabalhador submetido a essas condições: “The harassed worker”, que pode ser traduzido com o trabalhador perseguido ou assediado. Para ele, o trabalhador assediado é vítima de ataques repetidos e voluntários de outra pessoa, cuja finalidade é atormentá-lo, miná-lo, provocá-lo.7 Seu estudo, porém, tratou do problema de forma tangencial, pois o foco eram as condições estressantes de trabalho.8

Com a promulgação da lei sueca sobre as condições de trabalho e criação de um respectivo fundo nacional de investigação (1976), o psicólogo alemão Heinz Leymann centra sua atenção na conduta dos trabalhadores adultos no espaço empresarial. A partir de 1984, ele descreve condutas similares àquelas relatadas por Heinemann. Para ele o mobbing9 consiste em manobras hostis, freqüentes e repetidas no local de trabalho, visando sistematicamente a mesma pessoa. A prática abusiva deve ser reiterada no mínimo a cada semana, pelo período mínimo de seis meses e é fruto de um conflito degenerado. O mobbing configura uma grave forma de estresse psicossocial que resulta em danos psicossomáticos e psicológicos. Leymann propositadamente deixa de utilizar a terminologia dos países de língua inglesa (bullying), pois para ele esse termo remeteria a situações de violência física.10 O trabalho desse estudioso focaliza a zona limítrofe em que

7 HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 81.

8 LEYMANN, Heinz. Research and the Term Mobbing. Disponível em <http://www.leymann.se/English/11120E.HTM> . Acesso em 12.07.2005.

9 Segundo Marie-France Hirigoyen, a legislação sueca define mobbing como “ações repetidas e repreensíveis ou claramente negativas, dirigidas contra empregados de uma maneira ofensiva, e que podem conduzir a seu isolamento do grupo no local de trabalho (HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.78).

10 “I deliberately did not choose the English term "bullying", used by English and Australian researchers (in the USA, the term "mobbing" is also used), as very much of this disastrous communication certainly does not have the characteristics of "bullying", but quite often is carried out in a very sensitive manner, still having highly stigmatizing effects. The connotation of bullying is physical aggression and threat. In fact, bullying at school is strongly characterized by such physically aggressive acts. In contrast, physical violence is very

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o estresse causa enfermidades psicossomáticas ou psicológicas. Em 1990, ele calcula que 3,5% dos assalariados suecos foram vítimas de assédio moral e estima em 15% o percentual dos suicídios derivados dessa violência.

A denominação “assédio moral” foi utilizada em 1998 por Marie-France Hirigoyen, a qual propôs a seguinte definição:

[...] o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho11.

Marie-France é psiquiatra, psicanalista e psicoterapeuta de família. Formada em vitimologia, ela apresenta o debate dessa situação agora reconhecida como algo recorrente no mundo do trabalho sob a ótica da vítima e de seu sofrimento. Descreve o perfil do agressor e da vítima, sem descuidar contudo das características empresariais facilitadoras do assédio moral. Ela sugere formas de prevenção e solução do conflito partindo desse enfoque individual.

Em 29 de junho de 2000, a Comissão Nacional Consultora dos Direitos do Homem, com base em trabalhos realizados dentro do Ministério de Emprego e Solidariedade francês, distingue três formas de assédio moral no trabalho: a) assédio institucional, que faz parte de uma estratégia de gestão de pessoal; b) assédio profissional, apresentado contra um ou mais trabalhadores determinados e destinado a refutar os procedimentos legais de afastamento; e c) assédio individual, praticado com a finalidade gratuita de destruição do outro e de valorização do poder <http://www.leymann.se/English/11120E.HTM>. Acesso em 12.07.2005. As citações em língua estrangeira, em notas de rodapé, serão mantidas na língua original, sem tradução.

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do agressor, seguindo a classificação de Marie-France Hirigoyen como assédio perverso.12

A comissão mencionada reconhece ao menos duas espécies de assédio moral voltado a uma coletividade, ainda que os atos abusivos se dirijam tão-somente a um trabalhador. Entretanto, conforme Michel Debout, inúmeros observadores declaram a sua dificuldade na identificação dessas figuras em face de seu caráter insidioso e da ausência de clareza da integração do assédio moral às estratégias de gestão de pessoal.13

Na realidade o assédio moral, “mobbing” e “bullying” refletem, grosso modo, a mesma situação. O primeiro pode ser considerado mais abrangente porque admite o problema também de forma singularizada, como um conflito restrito a duas pessoas14. Entretanto, os casos individualizados são raros, contando em geral com a participação de diversos níveis hierárquicos da empresa: o assédio do supervisor é seguido da adesão, pelo menos tácita, dos demais subordinados, e o assédio oriundo de colegas ou subordinados, se não reprimido a tempo, conta no mínimo com a complacência da administração da empresa. Para Marie-France Hirigoyen, bullying15 é mais amplo que mobbing, pois abrange desde chacotas e

poder legislativo francês em 2002. O primeiro conceito não incluía a necessidade de repetição e sistematização da conduta abusiva.

12 DEBOUT, Michel. Le harcèlement moral au travail. Paris: Conseil économique et social, 2001, p. 21. 13 DEBOUT, Michel. Le harcèlement moral au travail, p. 22.

14 Noa Davenport distingue mobbing de bullying porque este último “denotes the one-person acts and not what is more often than not a group behavior, particularly when management becomes involved.”(DAVENPORT, Noa. Emotional Abuse in the Workplace: A Silent Epidemic? Disponível em <http://mobbing-usa.com/resources4.html>. Acesso em 21.07.2005.

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isolamento até agressões físicas e condutas sexuais.16 Heinz Leymann os distingue também em relação ao público e local em que se praticam os atos abusivos: se envolve crianças e adolescentes no ambiente escolar, trata-se de bullying, se envolve adultos no local de trabalho, é mobbing17. Todas as denominações acima admitem a possibilidade de violência física leve.

O presente estudo empregará preferencialmente a terminologia “assédio moral” para discorrer sobre o problema. No entanto, as demais nomenclaturas poderão ser empregadas como sinônimos e pontualmente quando sejam da preferência do autor estudado.

Os estudos já desenvolvidos são extremamente importantes e desvendam os efeitos perversos para a vítima de uma situação corriqueira até então descuidada pelo direito. A ausência da violência física por si só não é suficiente para assegurar uma relação jurídica idônea. A violência psicológica se mostrou tão ou mais nefasta do que a primeira, com reflexos nas relações trabalhistas e previdenciárias. No ano de 2002, a Universidade de Brasília constatou que 48,8% dos trabalhadores afastados por mais de 15 dias do trabalho sofria alguma forma de transtorno mental, em geral, de depressão18. Em casos extremos, verifica-se a indução da vítima ao suicídio ou então a sua “morte psicológica” (quandoa pessoa fisicamente sadia se mostra inapta ao trabalho e ao convívio social).

Contudo, ao nosso ver, o tratamento exclusivamente individual da questão pode conduzir à opacidade de aspectos relevantes do problema, como a

16 HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 80.

17 “I suggest keeping the word bullying for activities between children and teenagers at school and reserving the word mobbing for adult behavior at workplaces. ” LEYMAN, Heinz. Psychological terrorization - the problem of terminology. Disponível em <http://www.leymann.se/English/11120E.HTM>. Acesso em 12.07.2005.

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possibilidade de sua instrumentalização (e não apenas facilitação) enquanto uma forma de gestão abusiva no quadro da complexidade de que atualmente se revestem as relações de trabalho. As questões psicológicas, sem dúvida importantes, são isoladas e reforçadas no próprio discurso dos diversos interlocutores, propiciando a restrição do problema ao seu aspecto individual. Como observa Denis Boissard:

A noção está fortemente impregnada de uma concepção psicológica das relações de trabalho, a qual rompe com os modos de pensamento tradicional do sindicalismo. Os promotores dessa abordagem falam de “sofrimento” e de “estresse”, onde habitualmente era denunciada a “exploração” ou “os ritmos infernais”.19

Deixando de lado a noção individualizante do problema, que já vem sendo amplamente estudada pela literatura especializada20, o presente trabalho focaliza uma dimensão da questão reconhecida como relevante pela doutrina e, no entanto, pouco ou nada trabalhada até então: o seu viés coletivo. Trata do assédio moral como algo no mais das vezes vinculado a um determinado desenvolvimento dos modelos de gestão empresarial que, em seu estágio mais sofisticado, busca controlar e empregar em favor de uma gestão eficiente o envolvimento emocional dos empregados com o sucesso da atividade empresarial, compartilhando responsabilidades, passando a denominá-los

19As citações em língua estrangeira serão traduzidas para o português, com o fito de permitir melhor fluência do texto. A responsabilidade pela tradução é inteiramente da autora. Os textos originais serão transcritos nas notas de rodapé com a indicação bibliográfica correspondente. La notion est fortment impregnée d’une conception psychologisante de rapportes de travail, laquelle rompt avec les schémas de pensée traditionnels du syndicalisme. Les promoteurs de cette approche du travail parlent de “souffrance” et de “stress”, là où étaient habituellement dénoncées “l’exploitation” ou “les cadences infernales”. BOISSARD, Denis. La médiatisation de conflits du trabail. De Danone... au harcèlement moral. “In”: Droit Social, nº 6, juin/2003, p. 620, tradução livre.

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“colaboradores”. Somente em um tal cenário torna-se plausível uma gestão abusiva destinada a afetar, a intimidar, todos os empregados de forma difusa e a alguns determinados de modo expresso e direto, viabilizando a redução de custos e o incremento da produção mediante a exposição de toda a coletividade de empregados à situação de risco, com o efetivo desrespeito dos direitos básicos de alguns.

Esse estudo tem por escopo, portanto, destacar o papel que a gestão empresarial hoje pode assumir como motor do assédio moral, bem como a sua utilização como instrumento do exercício de poder dentro da empresa. Para tanto, será aprofundado o estudo do assédio moral organizacional. O termo escolhido, assédio moral organizacional, tem a vantagem de refletir na própria denominação a fonte do assédio moral em apreço. A sua figura abrange o assédio institucional e profissional já citados, não se confundindo especificamente com nenhuma delas.

No intuito de melhor visualizar o cenário em que se situa o problema, no primeiro capítulo se lançará mão do auxílio da história, sociologia e da administração para a compreensão mais ampla das transformações ocorridas nas relações de poder e nos instrumentos de controle social da empresa. Dessa maneira, procurar-se-á evitar o autismo do trabalho científico, denunciado por Alain Supiot, sem descuidar do destaque jurídico da questão, pois como ele diz:

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será tanto mais penoso na medida em que não lhe dote do instrumental necessário para marcar seu rumo.21

Bernardo Sorj22 também enfatiza os benefícios do trabalho interdiciplinar, o qual reúne as reflexões de cada disciplina envolvida sob a sua dimensão específica da matéria em apreço, o que resulta em um trabalho singular, atentando-se ao risco que se corre nessa espécie de trabalho se for desconsiderada a linguagem específica a cada disciplina envolvida, o que poderia resultar em uma espécie de bricolagem.

O presente estudo enfrenta o desafio, com consciência das dificuldades e riscos inerentes, no intuito de proporcionar a visualização e a análise mais completa do problema do assédio moral desenvolvido de forma coletiva nas relações de trabalho, pois do contrário muitos aspectos da questão passariam desapercebidos. No primeiro capítulo serão descritos, sem qualquer pretensão de exaustão, o panoptismo de Jeremy Bentham, a sociedade disciplinar e seus instrumentos de poder, com base na análise desenvolvida por Michel Foucault, e a denominada sociedade de controle de Gilles Deleuze, cujas características não se apresentam de forma separada, mas sim de forma sobreposta. A seguir serão estudados os modelos de gestão de pessoal contemporâneos expressos no taylorismo, fordismo e toyotismo (controle de qualidade total). O objetivo é explicitar os instrumentos e a forma de manifestação do poder - disciplinar, na fábrica e de

21 “!Cuántas cosas sabemos sobre esas mutaciones, especialmente acerca de sus aspectos históricos, económicos, filosóficos y sociológicos! Sin embargo, esa suma de conocimientos no servirá a fin de cuentas para nada si no consigue en un momento u outro guiar la evolución del régimen jurídico atribuido al trabajo en el mundo. De ahí la utilidade del diálogo entre juristas y especialistas de las ciencias sociales, aunque, claro está, esse diálogo sólo puede desempeñar un papel modesto en los cambios históricos regidos fundamentalmente por relaciones de fuerza. El alumbramiento a que estamos asistiendo de un nuevo mundo del trabajo no es un parto sin dolor, pero será tanto más penoso en la medida en que no se le dote del instrumental intelectual necesario para marcar su rumbo.” SUPIOT, Alain. Introducción a las reflexiones sobre el trabajo. In: Revista Internacional del Trabajo, vol. 115, nº 6, 1996, p. 660, tradução nossa.

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controle na empresa contemporânea - e a manipulação da subjetividade do trabalhador como último recurso tecnológico do capitalismo.

No segundo capítulo será esmiuçada a literatura produzida sobre assédio moral, revisando-se os dados estatísticos e critérios para a caracterização dessa violência, para que se possa encontrar um conceito mais adequado ao assédio moral organizacional, com o auxílio de casos descritos na jurisprudência e na mídia nacional e internacional. Nessa ocasião, serão entabuladas as diferenças e semelhanças entre o assédio moral, a discriminação e o assédio sexual, bem como serão descritas as conseqüências do assédio moral organizacional para a vítima, a empresa e a sociedade em geral.

O terceiro capítulo se concentra na tensão entre a liberdade e igualdade das partes signatárias de um contrato de trabalho e sua desigualdade material, explicitando-se o gôzo das liberdades públicas individuais dentro da empresa sob o pano-de-fundo dos paradigmas jurídicos do Estado Moderno. Estabelecidos esses parâmetros, serão explicitados os limites do poder diretivo no ordenamento brasileiro, levando-se em conta o abuso de direito do empregador. A análise da teoria do abuso de direito seguirá a aplicação do princípio da integridade de Ronald Dworkin. Por fim, serão analisados criticamente os meios de prevenção e repressão ao assédio moral apresentados pela literatura e pelo direito do trabalho brasileiro para o combate a essa figura.

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trabalho para a sua sobrevivência. À atuação como membro do Ministério Público do Trabalho devo as questões que nortearam a sua elaboração, tais como: “a) quais são as características do assédio moral organizacional?”, “b) É necessária a comprovação de enfermidade psicossomática ou psicológica pelas vítimas do assédio moral?”, “c) É necessária a comprovação de dolo ou culpa do agressor?”, “d) O assédio moral se confunde com a discriminação?”, “e) É possível se pensar em assédio moral organizacional horizontal e ascendente?”, “f) Quais os limites do poder diretivo do empregador?”, “g) Como se configura o abuso de direito na relação entre empregado e empregador?”.

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CAPÍTULO 1 – O CONTROLE NA EMPRESA

“Os homens, individual e colectivamente, são, antes de tudo, determinados pelas suas heranças e pelas atitudes que adoptam para com essas heranças.” (Jacques Le Goff)23

1. O panóptico e o poder

Em 1786 Jeremy Bentham sonha um modelo de estabelecimento para a reforma de indivíduos, por meio da educação e da disciplina, a ser apresentado como substituto ao sistema penitenciário inglês, cujas péssimas condições foram denunciadas por John Howard, no livro The state of prisons in England and Wales, with preliminary observations and an account of some foreign prisons and hospitals24. John Howard descreve os cárceres e hospícios ingleses da época, apontando a sua superpopulação, sujeira, má ventilação e péssimo estado sanitário. Ele denuncia existência da “febre dos cárceres”, uma variedade mortal de tifo, e a insegurança vigente, com freqüentes fugas de presos. Além do mais, destaca a prisão como um local de privilégios e extorsões que

23 LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa. 1993, p. 103.

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resultam na corrupção do caráter do apenado. Como alternativa, o governo inglês resgata o antigo procedimento de deportação dos condenados para as colônias, que, após a independência americana, agora estava direcionado para Austrália. 25

Contra os partidários da deportação, Bentham opta resolutamente pelo encerramento; contra os apóstolos do confinamento solitário, escolhe as vantagens do trabalho em comum; e, acima de tudo, põe sua confiança na força de um controle em todos os instantes, controle do corpo que se insinua nos movimentos de uma psicologia que não tem como escapar à influência de um ambiente completamente condicionado.26

A idéia do panóptico surge em visita a seu irmão Samuel na cidade de Cretcheff, na Rússia meridional. Samuel era então encarregado da direção de uma instalação fabril, situada em Zadobras, que Potemkine estimava transformar em modelo e ponto de partida para a industrialização russa. Diante da acirrada insubordinação dos trabalhadores, contida muitas vezes somente após a intervenção das tropas governamentais, Samuel idealiza uma unidade industrial, tomando por base a arquitetura da Escola Militar de Paris de 175127, em que prevalece o isolamento e a constante observação dos internos.28 O esboço de Samuel inspira Bentham à criação de um modelo de estabelecimento que, com economia e simplicidade, propiciaria a constante vigilância sobre certo número de indivíduos. Seus princípios são a inspeção central, a vigilância generalizada e uma rigorosa disposição do espaço.

O modelo de Bentham é batizado de Panóptico. Trata-se de um edifício circular, composto por uma torre central com celas individuais ao seu redor, dispostas na forma de anel. A torre central possui grandes janelas voltadas para o interior do anel. Na

25 Em 1786, uma ordem do Conselho decide o envio de navios à Austrália Em 1787, onze navios com 575 homens, 192 mulheres e 18 crianças são enviados para Botany Bay (PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: O Panoptico. SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Belo horizonte: Autêntica, 2000, p.119).

26 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: O Panoptico. SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Belo horizonte: Autêntica, 2000, p. 136.

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construção periférica, cada cela ocupa toda a largura do anel e possui duas janelas: uma voltada para o interior e outra para o exterior, de modo que a luz a atravesse em toda extensão, propiciando a visibilidade de seu interior pelo efeito da contraluz. No interior da torre é colocado um vigia e no interior de cada cela o indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos a ser vigiado, que poderão ser loucos, alunos, trabalhadores ou prisioneiros. Na torre há persianas e divisórias perpendiculares de maneira a obstar a observação dos movimentos do vigia pelos ocupantes das celas. Mesmo as portas são dispensadas para evitar o controle por intermédio do som ou da luz, sem qualquer prejuízo da visibilidade dos indivíduos submetidos ao controle. A torre é isolada por um fosso. Para comunicação, utiliza-se um mecanismo individualizado, composto por tubos de aço, entre o vigia e cada cela. Como alerta Michel Foucault: “inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia.”29 “A visibilidade [então] é uma armadilha”30. E não apenas os indivíduos submetidos ao sistema disciplinar serão vigiados, os auxiliares do vigia igualmente são observados da torre. Não se pode confiar em ninguém! O princípio reitor é de desconfiança de tudo e de todos.

Bentham pensava na utilidade da pena - a eliminação dos crimes - e em seu custo para o Estado. Contrabalançando os dois termos, ele defendia a diminuição do gasto e o aumento da vantagem obtida: a pena econômica. A diminuição do gasto é atingida pelo próprio mecanismo proposto para punição: o olhar; o aumento da vantagem, por meio do trabalho do indivíduo vigiado. É essencial nesse organismo o trabalho a ser executado pelo encarcerado. O trabalho tem não apenas uma função produtiva, como também corretiva e simbólica: “disciplinar pelo trabalho e para o trabalho, pela produção e 28 Nessa unidade educacional, os dormitórios dos alunos eram compostos por celas envidraçadas que permitiam a sua visibilidade durante a noite, sem que houvesse qualquer contato tanto com os outros alunos quanto com os empregados.

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para a produção: tal é o discurso obsessivo de Bentham ...”31. Em vista disso, ele discorda de todo ataque ao corpo, como a pena de morte e mutilações irreversíveis.32

Há a graduação das penalidades, bem como o estabelecimento de marcas nos corpos dos condenados de acordo com o crime praticado. Antes de mais nada, para ele a punição é uma “arte da encenação, feita para suscitar o temor, procedimento essencial de governo, e para, com isso, dissuadir”.33 Em conseqüência, a prisão deve estar em um local central e visível a todos na cidade. As paredes de seu edifício devem conter desenhos aterrorizantes.34

Bentham acreditava em seu modelo como uma máquina revolucionária. Ele “pensou e disse que seu sistema ótico era a grande inovação que permitia exercer bem e facilmente o poder.”35 A meta, durante 20 anos de sua vida, foi exercer a função de vigia, na Inglaterra, sobre mil condenados e para isso gastou toda a sua fortuna. Ao final, ele foi retirado da discussão do sistema penitenciário inglês, que preferiu o modelo da Pensilvânia. Em troca, o governo lhe pagou a quantia de 23.000 libras, como indenização correspondente ao terreno por ele adquirido para seu projeto.

30 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 29ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2004, p. 166.

31 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: O Panoptico. SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Belo horizonte: Autêntica, 2000, p. 142.

32 Entretanto, admite a tortura para certos casos e de forma dosada.

33 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: O Panoptico. SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Belo horizonte: Autêntica, 2000, p. 120.

34 “Os edifício s adaptados a esse uso devem ter um caráter particular, que dê, desde o início, a idéia de enclausuramento, de coação, eliminando qualquer esperança de fuga e como que dizendo: Eis aqui a morada do crime’. O cárcere perpétuo deverá ser pintado de negro. ‘Serão acrescentados diversos emblemas do crime. Um tigre, uma serpente, uma fuinha, representando os instintos malignos, constituiriam, certamente, uma decoração conveniente ... No interior, dois esqueletos, suspensos em ambos os lados de uma porta de ferro, causariam um grande impressão, fazendo acreditar que essa é a terrível mora da morte’(BENTHAM, Théorie des peines ..., t. I, p. 148)”. PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: O Panoptico. SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Belo horizonte: Autêntica, 2000, p. 122.

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Jeremy Bentham morreu sem ver a concretização de seus sonhos, pois os edifícios panópticos mais puros somente foram concretizados no final do século XIX e início do século XX. A França, país com governo revolucionário de defesa da igualdade, liberdade e fraternidade de todos os indivíduos e que já o havia outorgado o título de Cidadão Francês, é o primeiro local a implementá-lo de forma explícita.36

Bentham sugere a utilização de seu modelo para a vigilância da mão-de-obra “livre” ou seja, aquela compostas por pessoas marginalizadas, que não estavam situadas quer no sistema de servidão, quer no sistema corporativo, mas que se encontravam vinculadas a uma localidade. Essas pessoas eram forçadas a prestar trabalhos à comunidade em “oficinas de caridade”37, sob pena de serem condenadas por vadiagem e prestar serviços forçados em piores condições nos “depósitos de mendicância”38. O modelo do Panóptico é revolucionário na medida em que dispensa a coerção física freqüentemente utilizadas no tratamento desses trabalhadores (como exemplo tém-se o relato de Max

36 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: O Panoptico. SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Belo horizonte: Autêntica, 2000, p. 135.

No Brasil, inicia-se o debate do sistema carcerário logo após a abdicação de D. Pedro I. Planeja-se a construção de uma Casa de Correção, seguindo o modelo de Bentham. Cria-se uma comissão encarregada de apresentar um plano de casa de correção e trabalho, em 1831, cuja organização foi incumbida à Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional. A construção dessa prisão somente termina em 1850. Seu modelo se estende por todas as províncias do Império, ainda que subsista o modelo de escravidão, castigos físicos e locais sem oficinas de trabalho (MOTTA, Manoel Barros da. Apresentação. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (org). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.p. XXXI/XXXIII).

37 “A oficina de caridade, como certas oportunidades de trabalho preparadas no âmbito local pelas poor laws inglesas, vias a um espectro mais amplo de indigentes excluídos do emprego e mesmo, em princípio, ao conjunto daqueles que não teriam podido encontrar um trabalho por seus próprios meios. Oportunidades de trabalho seriam, então, em princípio oferecidas pelo poder público”. Como as oportunidades eram insuficientes, nesses trabalhos, os preços eram reduzidos e somente eram admitidos os mais necessitados. (CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p.185)

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Weber de que “no século XVIII, trabalhadores eram acorrentados por coleiras de ferro nas minas de Newcastle”).39

Michel Foucault resgata o panoptismo no trabalho sobre as sociedades disciplinares, analisado na seqüência, e o revela como molde para a composição e exercício do poder na fábrica desde o início da revolução industrial. Embora o panoptismo peque pela ingenuidade em acreditar na força da vigilância como suficiente para a coerção psicológica e indução à prática do bem pelas pessoas, ele é extremamente revolucionário ao reconhecê-la como um dos instrumentos de poder. “A fórmula abstrata do Panoptismo não é mais, então, ‘ver sem ser visto’, mas impor uma conduta qualquer a uma multiplicidade humana qualquer”40 pela simples possibilidade de ser visto. Nesse contexto, a simples imagem da torre central já serve como instrumento de poder, pois como Bentham reconhece, não importa quem esteja no lugar do vigilante (e nem mesmo se o vigilante está ali!). Essa imagem cumpre a mesma função das câmeras, instaladas em pontos estratégicos da empresa, as quais ainda que desligadas ou não monitoradas (até porque quem tem tempo para ver tantas imagens?) servem, segundo as empresas, para prevenir furtos e vigiar o comportamento dos subordinados.

A apresentação do Panóptico, destacada no início do presente capítulo sobre o controle na empresa, tem o condão de chamar a atenção para a necessidade de se estudar o passado como forma de compreensão do presente e modulação do futuro. Como nos ensina Anthony Giddens:

Devemos ser cuidadosos com o modo de entender a historicidade. Ela pode ser definida como o uso do passado para ajudar a moldar o presente, mas não depende de um respeito pelo passado. Pelo contrário,

39 WEBER, Max. Historique economique. Apud CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 207.

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historicidade significa o conhecimento sobre o passado como um meio de romper com ele – ou ao menos, manter apenas o que pode ser justificado de uma maneira proba. A historicidade, na verdade, nos orienta primeiramente para o futuro. O futuro é visto como essencialmente aberto, embora como contrafatualmente condicional sobre linhas de ação assumidas com possibilidades futuras em mente. 41

O distanciamento, obtido com o estudo de formas de controle antigas, permite a análise crítica do presente e exige para a aceitação de dado comportamento que ele seja justificável pelos princípios de nossa sociedade.

No estudo em apreço, ver-se-á como a racionalidade do Panoptico se projetou na sociedade moderna e principalmente nos modelos de gestão empresarial a partir do século XIX.Seguindo a trilha dos acontecimentos, com a atualização dos modelos de controle social, passa-se então à análise das relações de poder desenvolvidas por Michel Foucault em relação à sociedade disciplinar e por Gilles Deleuze no que se refere à sociedade de controle, cujo trabalho é essencial para a visibilidade das possibilidades do assédio moral coletivo na empresa.

2. O poder

Michel Foucault dedicou a sua vida ao estudo das relações de poder em nossa sociedade, articulando-o às, por ele denominadas, experiências fundamentais: como a loucura, a prisão, a sexualidade. Para ele, o poder constitui um componente necessário de

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toda ordem social. “É verdade, parece-me, que o poder ‘já está sempre ali’; que nunca estamos ‘fora’, que não há ‘margens’ para a cambalhota daqueles que estão em ruptura”.42 Trata-se de uma ação relacional, da situação em que a ação de um indivíduo afeta as ações de outro. Ele funciona e se exerce em rede, sem estar centralizado em um titular determinado.O poder não é nem uma estrutura, não é uma potência de que alguns seriam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.”43 Para conhecer o poder, deve-se perguntar o que ocorre quando se exerce o poder? Para que serve? E não, quem o possui ou o que ele é?

Foucault se preocupa com a inter-relação entre poder/saber, poder/verdade.

Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam.44

Essa força não se expressa apenas pela repressão; há também forças construtivas de ação.

O que faz com que o poder se firme, que seja aceito é simplesmente que não age apenas como uma força que diz não, mas também que de fato a atravessa e produz coisas, induz prazer, forma saber, produz discursos; é preciso considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social mais do que uma instância negativa com função repressora.45

UNESP,1991, p. 56.

42 FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (org). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 248.

43 FOUCAULT, Michel. apud MOTTA, Manoel Barros da. Apresentação. In: Estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (org). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. XII.

44 FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (org). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 229.

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O exercício do poder pressupõe a liberdade das pessoas envolvidas, sejam sujeitos individuais ou coletivos. Sendo uma relação de força, ele traz em si o enfrentamento e a resistência. Sempre haverá a possibilidade de reversibilidade da situação. Esta a razão pela qual o poder tenta se “manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência.”46 Se a liberdade entre as partes envolvidas for assimétrica, a liberdade fica limitada, fomando-se uma relação de dominação.

Entretanto, como destaca Michel Foucault, “o poder não é onipotente, onisciente, ao contrário!” [...] ele “sempre foi impotente”,47 o que justifica o desenvolvimento de tantas formas de inquirição, modelos de saber, sistemas de controle e vigilância. O exercício do poder vem se aprimorando pela inserção de diversos instrumentos, utilizados concomitantemente, e pela conjugação de diversos modelos, pensados para situações diferentes e até contraditórias, sobre uma mesma realidade, os quais se perpetuam e encontram espaço na empresa contemporânea. A tecnologia do Panoptico então é associada a outros mecanismos de controle para seu melhor êxito. No trabalho sobre a sociedade disciplinar, Foucault explicita e observa outros modelos e mecanismos de poder vigente nas relações humanas do século XVIII, cuja análise passar-se-á a seguir.

<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/doxa/12471733212570739987891/isonomia10/isonomi a10_14.pdf> . Acesso em 07.03.2005. Tradução nossa.)

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2.1. A sobreposição de modelos de exercício de poder do século XVIII

A sucessão de um modelo social por outro não resulta necessariamente no abandono das antigas fórmulas de exercício de poder, mas a sua adaptação e incorporação de maneira a incrementar ainda mais a sua eficácia conforme a racionalidade vigente no novo modelo. Essa situação é bastante clara na descrição de Michel Foucault a respeito da sobreposição dos poderes exercidos na sociedade disciplinar sobre estabelecimentos sociais pensados na antiga sociedade de soberania48 e na influência do poder exercido nesse modelo social sobre as sociedades disciplinares. Sua conclusão é extraída do estudo dos procedimentos de combate de duas doenças com manifestações e conseqüências diferentes: a lepra e a peste. Antes completamente dissociados, esses modelos são posteriormente fundidos nos espaços sociais da sociedade disciplinar, expressando maior eficiência e aprofundamento do controle social sobre os indivíduos.

Este estudioso começa pela análise das diferenças encontradas no tratamento das epidemias mencionadas. Em face de uma epidemia de lepra, de contágio por contato e sobrevida prolongada do doente, a providência adotada era a exclusão social dos infectados, com o seu confinamento em locais pré-determinados, fora dos muros da cidade. Essa medida era suficiente para se alcançar o intuito geral de purificação social e estancar a proliferação da doença. Já, em face da epidemia de peste, doença fatal em curto prazo e de fácil contágio pelo contato com pessoas e objetos, lançava-se mão de procedimentos disciplinares para organizar e controlar a vida nas cidades. As cidades eram

47 FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (org).Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 274.

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divididas em áreas e para cada área delimitada, havia um síndico. Cabia ao síndico a identificação dos moradores, sem qualquer exceção (nome, sexo, idade), e a chamada individual diária dos habitantes em cada moradia, os quais deveriam se apresentar pessoalmente à janela para atestar sua saúde e vitalidade. Toda a sua atividade era registrada em relatórios enviados aos intendentes e magistrados, que continham tudo: óbitos, doenças, reclamações. Para cada área havia um médico designado. Porém nem os médicos, tampouco os confessores, farmacêuticos, podiam atender os doentes sem autorização dos intendentes e magistrados. Cerca de cinco dias após o início da quarentena, a casa era esvaziada e purificada para que seus moradores pudessem retornar e ali ficar confinados e vigiados até o final.

Essas metodologias, antes opostas, foram associadas posteriormente e aos poucos o método disciplinar também passa a ser aplicado em espaços de exclusão, como hospitais, asilos, penitenciárias, casas de correção, entre outros. O controle individual é estabelecido de um modo duplo: divisão binária e marcação (louco/não-louco, perigoso/inofensivo) e determinação coercitiva e repartição diferencial (quem é, onde deve ficar, como vigiá-lo). Como diz Foucault:

De um lado, “pestilentam-se” os leprosos, impõem-se aos excluídos a tática das disciplinas individualizantes; e de outro lado a universalidade dos controles disciplinares permite marcar quem é “leproso” e fazer funcionar contra ele os mecanismos dualistas da exclusão. A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava. Todos os mecanismos de poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do anormal, para marcá-lo como para modifica-lo, compõem essas duas formas de que longinquamente derivam.49

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2.2. O estabelecimento disciplinar

No livro Vigiar e Punir, Michel Foucault analisa particularmente o funcionamento das relações de poder em estabelecimentos disciplinares, o qual se revela em diversos espaços sociais, como as escolas, as forças armadas, os hospitais, as fábricas e as prisões da sociedade do século XVIII, cenário de formação da sociedade disciplinar. Nesses estabelecimentos, a vigilância sempre se apresenta como valioso instrumento disciplinar. Ela se exerce sobre os corpos dos indivíduos a ela submetidos e tem como finalidade a sua modelagem, mediante o controle e correção, para propiciar a inserção social útil e produtiva. Nesses espaços o interesse tem seu foco central fixado na pessoa do indivíduo submetido, deixando à sombra a motivação para a sua submissão (aprendizagem, trabalho, expiação, saúde). Essa mudança de enfoque é sentida inclusive nos estabelecimentos carcerários, pois a pena abandona a relação direta com o ato criminoso praticado e se dirige para a figura do criminoso, que passa a ser constantemente estudado. O estudo dos desvios do indivíduo, inspirado na análise dos criminosos, se estende a todo o corpo social50 e desprende-se de qualquer finalidade específica, afinal o objetivo primordial é sempre a moralização da pessoa.

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Foucault ressalta a identidade do poder disciplinar exercido nesses organismos:

Creio que é no fundo a estrutura de poder própria destas instituições que é exatamente a mesma. E verdadeiramente, não se pode dizer que haja analogia, há identidade. É o mesmo tipo de poder, exerce-se o mesmo poder. E está claro que este poder, que obedece à mesma estratégia, não persegue ao final o mesmo objetivo.51

As sociedades disciplinares têm como finalidade o adestramento dos homens e a sua transformação em corpos dóceis e alienados, portanto, mudos. Elas se utilizam de instrumentos tecnológicos, como a racionalização do espaço, das atividades e do tempo, com o fim de obter um aparelho eficiente.

Este novo mecanismo de poder apóia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente através da vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais do que a existência física de um soberano. Finalmente, ele se apóia no princípio, que representa uma nova economia do poder, segundo o qual se deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de quem as domina.52

O espaço, em primeiro lugar, é delimitado e os indivíduos a ele subordinados são cercados. Em seguida, há a sua divisão segundo critérios especializados de identificação ou de atividade. Cada indivíduo tem o seu lugar definido conforme sua função. Em cada lugar tem um indivíduo, de modo a facilitar o controle sobre sua presença ou ausência e sobre sua atividade. A unidade se estabelece pela posição na fila, a qual é obtida pela classificação do indivíduo no sistema, e não pelo território (unidade de dominação) ou o local (unidade de residência).

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A atividade é controlada pelo horário e pela garantia do tempo empregado: “controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo o que possa perturbar e distrair”53. O tempo deve ser realmente útil de maneira que há a elaboração temporal do ato em si. Para cada movimento é determinada a posição do corpo e dos membros, sua amplitude, duração e ordem de sucessão. Deve-se buscar a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo para se obter melhor condição de eficácia e rapidez. Há cuidadosa harmonia entre o corpo e o objeto que ele manipula. Estabelece-se um laço coercitivo com o próprio aparelho de produção. Por fim, há a utilização exaustiva do tempo, com a sua utilização teoricamente sempre crescente: “importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis”.54

O efeito da força produtiva deve ser superior à soma das forças que a compõe. O corpo singular é um elemento a ser articulado com os demais, como uma peça de uma máquina. O tempo de uns deve se ajustar ao tempo dos outros. Para tanto, faz-se necessário um sistema preciso de comando. Dessa maneira, teremos a perfeita composição das forças.

Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo) é combinatória (pela composição das forças).55

A função precípua do poder disciplinar não é a apropriação de um bem ou de um sujeito, mas o adestramento do indivíduo para retirar e apropriar ainda mais e término el mismo objetivo. FOUCAULT, Michel. Un dialogo sobre el poder y otras conversaciones. Madrid: Alianza Editoriales. 1981, p. 65, tradução nossa.

52 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979, p. 187/188. 53 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 29ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2004, p. 128.

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melhor. O sucesso desse empreendimento se estabelece, segundo Foucault, por meio do uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e, a sua combinação, o exame.

2.2.1. O olhar hierárquico

No estudo do funcionamento das relações de poder, Foucault destaca inicialmente a modificação da arquitetura dos edifícios do século XVIII em busca de maior funcionalidade, que se expressa na própria moradia dos operários, subdividida a partir de então em diversos cômodos: cozinha/sala de jantar, quarto do casal e quarto das crianças. O estudo da arquitetura dos prédios voltados à normalização ressalta a sua preocupação na utilização do olhar, da constante vigilância, como um dos instrumentos de poder: o panoptismo.

No panopticon, cada um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros; trata-se de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. A perfeição da vigilância é uma soma de malevolências.56

Foucault, ao estudar os problemas da penalidade e reorganização das prisões, percebe a repetição no espaço carcerário da arquitetura encontrada nos hospitais do mesmo período. No hospital, estabelece-se a divisão das áreas para isolar os indivíduos

55 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 29ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2004, p. 141.

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e sua abertura de maneira a permitir a ventilação e a vigilância global e individualizada de cada paciente. Os projetos carcerários da época ali encontram inspiração e os idealizadores da reforma carcerária fazem referência explícita ao modelo de Bentham, cujo objetivo principal é dissuadir o indivíduo à prática do mal. A constante vigilância resultaria não apenas na perda da capacidade de fazer o mal como de querê-lo. Como resume Michelle Perrot: “não poder e não querer”.57

Voltando a atenção para a fábrica, Foucault destaca a adaptação do olhar disciplinar para um modelo piramidal porque, dessa maneira, atende-se melhor a duas exigências: a organização é completa, formando uma rede sem lacunas, e é bastante discreta. Com isso, o poder de vigilância fabril se torna permanente, intenso e contínuo ao longo de todo o processo produtivo e se mantém discreto porque se expressa de forma silenciosa. Quanto maior a complexidade da fábrica e do número de operários necessários, maior a necessidade de especialização dessa função, com a criação de um corpo de operários específico. Embora exista um ápice, este não é a fonte de origem de todo o poder, pois o ápice e a base estão em íntima relação de apoio e de condicionamento recíprocos. O poder se exerce não apenas sobre a produção, mas também sobre os homens, suas atividades, conhecimento técnico, forma de execução do trabalho e comportamento. “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.”58

57 PERROT, Michelle. apud FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979, p. 217.

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2.2.2. Sanção normalizadora

Segundo Michel Foucault, em todas as sociedades disciplinares há um pequeno mecanismo penal. Essas organizações possuem leis e delitos próprios, com formas particulares de sanção e julgamento. Aquelas ações deixadas de lado pelos grandes sistemas normativos, por sua irrelevância, são aqui qualificadas e reprimidas.

Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível – punidora.59

A punição tem como meta precípua a redução dos desvios regulamentares ou naturais60, de modo a atingir a normalização do indivíduo. Como seu objetivo é a “correção” do indivíduo, a punição muitas vezes tem a mesma natureza da obrigação negligenciada: “ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua repetição, sua insistência redobrada”61, ou seja, o exercício, aprendizado multiplicado ou repetição à exaustão da atividade desviada.

59 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 29ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2004, p. 149.

60 Segundo Foucault, a punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência jurídico-natural. É jurídica na medida em que os castigos visam ao respeito de uma lei, um programa ou regulamento. É natural, quando objetiva a adequação a uma ordem aferível por processos naturais e observáveis, tais como, a duração de um aprendizado, o tempo de um exercício, entre outros.

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A disciplina utiliza a punição como um elemento do duplo sistema de gratificação-sanção. Por esse artifício, estabelece-se a qualificação e quantificação dos comportamentos individuais segundo os valores do bem e do mal e obtém-se a diferenciação não apenas dos atos valorados, mas dos próprios indivíduos, permitindo uma hierarquização entre os bons e os maus. A diferenciação é explicitada a todos: a recompensa se expressa por intermédio das promoções, enquanto a punição pode ser feita pelo rebaixamento ou degradação da pessoa. A punição no poder disciplinar é bastante distinta da punição legal, como vemos pela descrição que Foucault faz das duas situações:

[...] a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim, traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal [...].

Opõe-se então termo por termo a uma penalidade judiciária que tem a função essencial de tomar por referência, não um conjunto de fenômenos observáveis, mas um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar; não diferenciar indivíduos, mas especificar atos num certo número de categorias gerais; não hierarquizar mas fazer funcionar pura e simlesmente a oposição binária do permitido e do proibido; não homogeneizar, mas realizar a partilha, adquirida de uma vez por todas, da condenação62.

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Desse modo, conclui Foucault, o observador não pode se deixar iludir pela reprodução de um pequeno tribunal nos estabelecimentos disciplinares porque as disciplinas possuem um sistema punitivo diverso. A sanção normalizadora obriga à homogeneidade ao mesmo tempo em que individualiza e permite medir os desvios, diferenças e especialidades. A repercussão do sistema gratificação-sanção transcende o indivíduo com ela agraciado ou punido e atinge a toda comunidade por meio do exemplo.

2.2.3. O exame

O exame, como instrumento de controle normalizante, combina as técnicas da hierarquia vigilante e as da sanção normalizadora. Nele encontra-se a superposição das relações de poder e de saber.

É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade.63

Ele permite a sanção sobre o indivíduo avaliado e simultaneamente um conhecimento ao avaliador desse mesmo indivíduo. O exame inverte a ordem de visibilidade encontrada antes na sociedade de soberania, em que o poder monárquico se exercia pela exposição do soberano por meio da manifestação de força dos suplícios e

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trabalhos forçados externos.64 O poder disciplinar se exerce de forma invisível e em contrapartida torna o indivíduo analisado visível.

A observação hierárquica é o elemento central do exame. Seu objetivo é tornar a vigilância parte integrante da produção e do controle. O ato de vigiar e ser vigiado será o principal meio pelo qual os indivíduos são reunidos no espaço disciplinar. O controle dos corpos depende de uma ótica do poder. O primeiro modelo deste controle pela vigilância, da eficácia pelo olhar, da ordenação pela estrutura espacial, foi o campo militar.65

Com a inversão da visibilidade na disciplina, será possível o exercício do poder até os níveis mais baixos. O indivíduo é submetido ao poder por intermédio de exames e do olhar do vigia, com o registro da observação. A documentação permite a expressão da singularidade do indivíduo como um todo e igualmente a sua classificação e identificação dentro de uma ordem coletiva. Assim, “o dossie substitui a epopéia”66, pois esta transcrição “das existências reais não é mais um processo de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição.”67

2.3 – A sociedade de controle

64 A primeira parte do livro Vigiar e Punir (Suplício) explana bem essa realidade, seus desgastes e os meios de resistências.

65FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. apud DREYFUS, Hubert. RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 173.

66 DREYFUS, Hubert. RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 176.

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Nos dias atuais o desenvolvimento da tecnologia da informática e das comunicações faz surgir um novo modelo de sociedade e de exercício de poder, o qual é denominada sociedade de controle68. Dessa forma, o panoptismo e os instrumentos da sociedade disciplinar modificam-se para incorporar essa nova realidade à sua prática, propiciando a sua perpetuação sob modalidades ainda mais aperfeiçoadas, sofisticadas, contínuas e difusas. Esse modelo social, iniciado no alvorecer do século XX, distingue-se da sociedade disciplinar por diversos aspectos, acentuando Gilles Deleuze, porém, que a sua expressão mais visível é a crise da delimitação dos espaços de funcionamento:

Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro.69

O desenvolvimento da microeletrônica e das telecomunicações dispensa a arquitetura do Panóptico e a própria necessidade de reunião dos trabalhadores em um edifício comum, permitindo a vigilância à distância, inclusive no próprio domicílio do operário. O controle se faz pela rede interna ou internacional de computadores, pelo correio eletrônico, por meio de câmeras e pelos dados obtidos na realização da própria atividade, os quais ficam registrados no software do processo produtivo, e principalmente pela forma de gestão e participação da mão-de-obra. O operário em face das rapidez do desenvolvimento tecnológico é instigado à constante formação e aperfeiçoamento de sua prática laboral, sob pena de perder a sua empregabilidade ou competência70. Quando antes na sociedade disciplinar sempre se estava iniciando um processo dentro de cada estabelecimento disciplinar, passando-se de um a outro (da casa à escola, da escola à caserna, da caserna à fábrica, eventualmente ao hospital ou à prisão), agora, na sociedade

68 “ ‘Controle’ é o nome que Burroughs [William Seward Burroughs - 1914-1997] propõe para designar o novo mostro, [...]”.DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 220. 69 DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 221.

Referências

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