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Bordaduras na Arte Contemporânea Brasileira

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Academic year: 2021

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Texto

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B

ordaduras na Arte Contemporânea Brasileira

E d i t h D e r d y k , L i a M e n n a B a r r e t o e L e o n i l s o n

Ana Beatriz Bahiae-mail

Resumo:

O texto aborda, primeiramente, alguns aspectos que contextualizam historicamente a presença de práticas de tradição doméstica na produção artística brasileira das últimas duas décadas - especificamente, detém-se na costura e no bordado. Em seguida, pontua algumas facetas da poética de tais práticas para, desde aí, relacionar sua recorrência no ambiente artístico atual com a busca de identidade do sujeito contemporâneo.

Abstract:

First, the paper aproaches some historical contextual aspects of domestic tradition practices in brazilian art on the last two decades - the study mainly observes sewing and embroidery practice. After that, the text poinst out some poetic faces on those two practices. Concluding, the paper makes a connection between sewing and embroidery in contemporary art and the search for na identity on contemporary person.

Palavras Chave:

Arte Contemporânea, Costura/Bordado,

Crítica das Artes Plásticas

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Tanto o bordado como a costura são práticas que, em nossa cultura, estiveram restritas durante séculos ao ambiente familiar, ou seja, à casa, às mulheres e crianças (nota 1). Em um estudo que remonta os caminhos da mulher na história da arte ocidental, Whitney CHADWICK (1992) relaciona a penetração de tais práticas em atividades externas ao Lar com a introdução da mulher no campo profissional: quando a mulher saiu às ruas, levou consigo a tradição doméstica sobre a qual houvera se dedicado por tantos séculos. Essa penetração aconteceu através das escolas de artes decorativas, no século XIX, em meio à disseminação nostálgica do modelo de produção medieval

(artesanal). O Romantismo contrapôs-se, dessa forma, à falta de humanidade do ideal trazido pela revolução industrial e ao anonimato dos objetos

produzidos em longa escala. Esse contexto foi propício para a eclosão de um grande número de oficinas de práticas de tradição doméstica, compostas tanto por homens como por mulheres. Foi o início da re-significação de práticas como a costura e o bordado, em fina expressão artística. Anunciou-se aqui um longo processo de assimilação, pelo circuito artístico, das práticas de tradição doméstica em suas complexidades. No deslanchar desse caminho, alguns artistas serviram-se da técnica da costura descomprometidamente, ou seja, restringiram-se ao uso da plasticidade e praticidade desses recursos. Outros, adentraram os meandros da tradição de tais práticas: da memória que foi e continua sendo construída de mão em mão. Costurando alguns momentos desse caminho, intento contextualizar determinadas obras recentes da arte brasileira e destacar aquelas em que a prática da costura (ou do bordado) mostra-se em sua plenitude, como um corpo complexo, latente de uma memória particular.

Continuando pelo fio do Romantismo..., não localizo nesse momento histórico as transformações estéticas determinantes para a penetração da costura e do bordado no circuito da arte erudita. Pois, mesmo com toda a exacerbação das práticas artesanais pelo Romantismo, nas galerias e museus daquela época predominaram obras executadas desde as técnicas artísticas tradicionais, seguidoras dos padrões estéticos acadêmicos. O enraizamento da estética vigente, mantinha à margem todas as novas pesquisas plásticas que tentavam penetrar o circuito artístico erudito - como a estética impressionista, por exemplo. Teixeira COELHO (1986: 125) comenta a deflagração pelo Romantismo de um estado de emergência das artes plásticas: uma situação onde a seriedade da produção artística estivera ameaçada pelo

crescente relaxamento dos padrões estéticos nas camadas mais elevadas da sociedade. Mais que isso, os artistas estiveram acreditando em demasiado na qualidade dos padrões estéticos utilizados e na eficácia visual da maestria técnica. Esse foi justamente o ponto questionado pelo Modernismo artístico - então sua eficácia, enquanto movimento, para aquela época. O Modernismo, em toda sua pesquisa dita "formalista" revisou e redefiniu o fazer nas artes

plásticas. Ao romper com a rigidez dos cânones artísticos, ele permitiu a

incorporação de uma infinidade de novas técnicas e materiais.

A Obra moderna, segundo Clemente GREENBERG, em Pintura

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novas formas de construção de uma imagem artística. O autor defende, em diversos artigos, que esse foi um momento da arte essencialmente pragmático. Ele usa termos como "pragmatismo" e "artesanal" - a fim de evitar o termo "formalismo" (nota 2) - para comentar apreocupação com o processo de elaboração da obra entre os modernistas. Foi uma preocupação que abriu novas possibilidades para a criação nas artes plásticas.

Essa abertura no processo criativo conquistada ali foi - e continua sendo - desfrutada na contemporaneidade (nota 3). Só para citar um exemplo, entendo que a presença de práticas de tradição doméstica no ambiente artístico contemporâneo mostra-se como sintomatologia daquele passado

transformador. Mais do que apenas desfrutar da grande flexibilidade (quase inexistência) de padrões estéticos, o artista de nossa época vive um processo criativo povoado por incertezas e questionamentos decorrentes daquela liberdade no fazer.

O que percebo como curiosa, em uma visão bastante geral sobre as mega-exposições, galerias e museus de prestígio internacional de hoje, é a "multiplicidade" como elemento próprio das artes plásticas deste tempo. Essa opinião aparece no discurso de críticos de nossa época. Suzi GABLIK (1987: 13) marca a multiplicidade contemporânea, como diferença fundamental entre os artistas deste século e os anteriores historicamente: antes existia algum consenso quanto às técnicas, visão de mundo e convicções religiosas. Melhor dizendo, as divergências eram sutis, comparadas às do século XX. Ronaldo BRITO também reflete sobre esse assunto:

Quem desaparece diante da produção contemporânea é a nitidez da instância genealógica da História da Arte e multiplica-se a densidade e complexidade da instância teórica. Não pode existir uma Teoria de Contemporaneidade. O próprio desta contemporaneidade é ser um 'amontoado' de teorias coexistindo em tensão, ora convergente, ora divergente. (1988: 07).

Parar em tal constatação acerca da contemporaneidade não nos ajuda em muito para o desfrute e análise da arte produzida agora. Então, como pensá-la? Entendo que as inúmeras particularidades, que compõem a diversidade de nossa época, são pontuáveis. Mas se, por um lado, querer abarcar todas essas particularidades parece-me uma empreitada digna de forças supra-humanas, por outro, vejo a possibilidade de destacar algumas delas, a fim de que se possa construir uma reflexão acerca do assunto.

Em meio à diversidade contemporânea interessa-me um aspecto

particular: a recorrência de práticas de tradição doméstica, como a cestaria, o trabalho com a agulha e linha e a cerâmica, nas artes plásticas brasileira das duas últimas décadas.

Tadeu CHIARELLI (1997: 08) constata, na arte brasileira dos anos 80-90, uma nova atitude dos artistas em seu processo - isso como reflexo de influências nacionais (Neoconcretismo) e internacionais (Pós-mínimal). Ele vê

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a incorporação das práticas de tradição cultural não hegemônica (costura, cestaria, marcenaria) como um dos reflexos dessa nova atitude. É partindo de tal informação que teço algumas considerações sobre essas influências em suas relações históricas, culturais e/ou individuais, que envolvem o trabalho com agulha e linha de alguns artistas brasileiros das décadas de 80-90.

Para pensar essa questão, dois pontos me parecem singularmente relevantes: primeiro, como já introduzi, é a relação existente entre a abertura que se deu no processo criativo desde o Modernismo e a incorporação de procedimentos como o bordado e a costura pelo circuito artístico internacional. Do Modernismo em diante, são vários os momentos da história da arte que podem ser entendidos como predecessores (estéticos e/ou conceituais) dessa redefinição dos limites da arte erudita. Segundo, é a vinculação que percebo existir entre o bordado/costura com questões poéticas marcantes na arte

contemporânea. Devido ao seu historial doméstico, essas práticas estão ligadas a uma memória coletiva de ambiente familiar, da infância e do lar. Essa

memória mostra-se como transfiguração de uma questão recorrente na arte de hoje: a intimidade do indivíduo. Percebo esse intuito poético como expressão da necessidade do indivíduo de nossa época em firmar sua identidade (nota 4). Mostrar origens é um eficaz modo de falar das nossas raízes.

Um outro lado de Duchamp

O Modernismo marcou as artes plásticas como tendência à

especialização das disciplinas artísticas (pintura, escultura, desenho); definindo as questões pertinentes à serem discutidas por cada uma delas, delimitou fronteiras entre elas. Uma das conseqüências de tal atitude, é o aspecto rigoroso, sóbrio, "frio" que marca a obra de algumas investidas modernistas, como as do Construtivismo, Cubismo Sintético e do grupo De Stijl. Mas, como coloca GREENBERG (op.cit.: 128), esse foi seu mal necessário. Tal

sobriedade reflete questões que contagiaram nossa cultura no início deste século, externas a própria arte, como o cientificismo e o criticismo. O autor apoia-se em Kant para comentar a tendência ao auto-exame, à crítica de si mesmo, presente na sociedade Moderna: "Identifico o modernismo com a intensificação, a quase exacerbação dessa tendência autocrítica que teve início em Kant. Por ter sido o primeiro a criticar os próprios meios da crítica,

considero Kant o primeiro verdadeiro modernista" (ibid.: 101).

Para Greenberg, a autocrítica, provinda da filosofia, fez-se necessária já desde fins do século XIX para consolidar - ou preservar a reputação de - diversas instâncias de nossa cultura. A Arte adotou tal postura; por isso o intuito crítico dos ismos modernistas - sobre a Arte e/ou História da Arte. A postura extremada de Duchamp é um exemplo marcante desse criticismo na arte Moderna.

Duchamp não se deteve em aspectos estéticos da arte para fazer sua crítica, intentou sim atacar a própria instituição Arte - e nesse aspecto suas investidas foram mal sucedidas (nota 5). No entanto, essas atitudes

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repercutiram além de suas intenções. Mesmo sem planejar, Duchamp trouxe uma série de ganhos para arte do século XX. Por um lado, mais específico, ele é o responsável maior pela inauguração de uma vertente artística que privilegia o caráter objetivo da arte (em detrimento do intuitivo), onde o artista adota uma postura bastante racional em seu processo (menos subjetiva e auto-expressiva). Se partimos dos seus Readymades, podemos rastear essa tradição e chegarmos na Arte Conceitual e Mínimal. Por outro lado, as atitudes

duchampianas instituíram questões que contagiam de forma mais abrangente a arte posterior a ele: em primeiro, o desmonte da idéia de que uma nova

linguagem artística deve reavaliar as linguagens que a precederam. Em

segundo, a indiferença total, por parte do artista, aos códigos hegemônicos

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Eva Hesse, (sem título), 1970

Esse entendimento fragmentado das atitudes Duchampianas, faz com que possamos reconhecê-lo em boa parte da produção artística atual. Entendo que alguns artistas brasileiros - como Edith Derdyk, Leonilson e Lia Menna Barreto - têm débito para com Duchamp (nota 6), principalmente, pela postura descomprometida que adotam em relação à tradição erudita da arte (nota 7). Não quero dizer com isso que eles adotaram/adotam a postura anárquica daquele artista em relação à Arte, nem mesmo que intentam se portar como herdeiros dele. Defendo sim que a

postura flexibilizada de E. Derdyk e Leonilson diante da criação plástica só é possível, hoje, pelas

transformações encabeçadas nas pesquisas modernas e, mais especificamente, pela atitude decisiva de Duchamp.

"Inteligência Artesanal"

(nota 8)

Uma série de artistas das décadas de 50 a 70 (nota 9) que, no desfrute da já conquistada abertura para uso de métodos e materiais diversos nas artes plásticas, adotaram firmemente a postura de 'artista explorador de materiais'. Foram os chamados "artistas do processo". Vertente cujofazer destacava-se pela diversidade e complexidade de elementos. Todos os materiais que se encontravam próximos do artista, assim como todas as ações que o mesmo tinha condições de executar, eram materiais/práticas artísticos em potencial. Um processo que fez surgir um grande número de obras, cuja forma

(predominantemente tridimensional) e plasticidade destacavam-se em relação a visualidade artística predominante na época.

Mais do que a diversidade plástica, o que singularizou a obra desses artistas na história da arte foi a "lógica" particular que regia as suas criações: "os processos de criação [fazer] eram tratados como assunto"; ali "os meios se transformavam em fins" (WALKER, 1977: 37). Eram formas exóticas para a época, que brotavam do manuseio do material escolhido, em um processo que se definia no exato momento em que era executado. O resultado plástico, decorrente desse processo intuitivo, sempre era bem recebido, sem levar muito em conta seu valor visual.

O ato do fazer, pela importância que adquiriu para esses artistas, nunca era encoberto, mas evidenciado na visualidade da obra. Esse fazeraparente é o registro da vivência intensa do um processo artístico (nota 10). Tal

característica está presente na obra de Eva Hesse. O gosto da artista pelo fazer está expresso nas obras que nos deixou, na escolha que fez por métodos repetitivos e minuciosos (costura, trabalho com as rendas e bandagens) de construção de cada obra. Suas formas tridimensionais

(geralmente designadas pela crítica como esculturas), construídas a partir de materiais provindos de contextos diferentes, possibilitaram-lhe diálogos

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bastante interessantes entre visualidades e materialidades diversas.

Alguns críticos caracterizam os procedimentos de Hesse como pós-minimalista, ou seja, como uma artista que foi, ao mesmo tempo, descendente e oposta ao seu antecessor histórico Mínimal. Agrupada dessa forma, a artista em questão - juntamente com outros artistas norte-americanos da década de 70, cujos processos de criação davam-se pelo relacionamento direto e intenso com a matéria natural e/ou pré-industrial - é tida como referência maior de uma vertente significativa nas artes plásticas das últimas décadas.

Tadeu CHIARELLI (1996) mostra a influência dos pós-minimalistas na arte brasileira desde a década de 70 e pontua que, aqui, ela foi digerida de uma forma particular. O caráter amplo da proposta dessa tendência - de trabalhar a

partir da Matéria (material/método escolhidos) - é propício para leituras

diversas: o que se entende por Matéria? Uma massa anônima, amorfa, ou um corpo mais complexo? E então, que corpo é esse? Qual sua lógica interna?. Para os pós-mínimalistas norte-americanos, a concepção industrial de manuseio da Matéria foi a que predominou. Já no Brasil, a concretização daquelas idéias, passou pela lógica pré-industrial de interação com a Matéria. É conduzindo-nos por essa linha de pensamento que Chiarelli justifica a intensificação e revalorização das práticas manuais básicas - como o trabalho com a madeira, a costura e a cestaria - na arte brasileira das últimas décadas. A relação entre a postura dos "artistas do processo" e/ou dos pós-mínimalistas com a arte brasileira contemporânea envolvida com

procedimentos da tradição cultural não hegemônica, não está expressa apenas no discurso crítico daquele autor, mas em depoimentos dos próprios artistas. Leonilson é um exemplo (nota 11). Ele, em entrevista concedida a Lisette LAGNADO (1998: 87), denunciou sua admiração por Hesse. Comentou também, baseado em visitas que havia feito a uma série de exposições do eixo Rio-São Paulo no final dos anos 80, a forte e silenciosa influência dessa artista na arte brasileira da época. Em seu discurso, ficou evidente a indignação pelo fato de que tais resultados plásticos (provenientes do uso da costura e de panos já curtidos) estavam ali apresentados como novidade.

Lia Menna Barreto, Boneca Dorminhoca

Quanto a esta última colocação de Leonilson, talvez isso não se tenha dado por má intenção dos artistas que expunham; talvez eles não se

percebessem tão próximos assim de Hesse, como fazia Leonilson em sua leitura. Entendo que já eram visíveis as diferenças entre a arte brasileira produzida por volta dos anos 80 e a Obra de Hesse. Refiro-me àquela singularidade, pontuada por Chiarelli, na arte brasileira influenciada pelos pós-mínimalistas. Falo da lógica pré-industrial que foi adotada pelos artistas brasileiros em sua relação com a Matéria. Nem todas as obras de Hesse apresentam práticas artesanais básicas, como a costura. A manufatura com materiais pesados, que exigem o uso de ferramentas mais complexas, também fizeram parte da "paleta" da

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artista.

Os artistas brasileiros, desde os anos 70, vêm percebendo a rica

possibilidade das práticas e materiais de uma tradição cultural (dita) "popular". Essa situação só se intensificou nos anos 80 e 90. Isso - aliado à busca da "lei interna" da Matéria - trouxe para o circuito artístico brasileiro erudito a própria tradição dessas práticas/materiais. Ou seja, junto com o conjunto tecido-linha-agulha foi incorporada a tradição doméstica da costura; com o vime e a corda trançados, a tradição da cestaria; com a madeira semi-bruta, a tradição da marcenaria (dos santeiros principalmente). Os trabalhos de artistas como Leonilson e Lia Menna Barreto explicitam isso. Eles não se apoiaram descomprometidamente na técnica da costura, pois suas obras manifestam o interesse de adentrar a lógica interna de tal prática: de um modo

de fazer repetitivo, quase que compulsivo, que exige paciência, e com um acabamento digno de uma 'boa costureira'. Tais artistas, compreenderam (intuitivamente ou não) quecada matéria/prática é um corpo complexo, que se apresenta com códigos e possibilidades próprias, e que isso deve ser

considerado.

CHIARELLI (1996: 03) aponta essa questão quando comenta a existência de uma "inteligência interna" nos procedimentos da "tradição popular", que foi incorporada por muitos artistas daquelas décadas juntamente com as práticas não-eruditas:

Agindo mais no mundo e com o mundo doa que propriamente sobre o mundo, esses artistas (nota 12) igualmente estão se apropriando de uma inteligência ou de uma racionalidade que é anterior a eles, e da qual não apenas se apropriam, mas a ela se integram. Suas produções incorporam à arte brasileira contemporânea justamente uma tradição artesanal não-erudita existente no país, uma tradição ainda não extinta, apesar (ou por causa) do processo de industrialização descontínuo e cheio de vácuos pelo qual vem passando o Brasil há décadas.

Percebo que essa incorporação da lógica interna da prática da costura, deu-se de forma diferenciada de artista para artista - fato que não valoriza o processo de um em detrimento do de outro, apenas pontua interesses diversos. Por exemplo, nos bichos de pano e bonecas de Lia Menna Barreto (nota 13) é visível a intenção de uma costura bem construída enquanto costura: que não fiquem buracos, que os pontos dados a mão tenham uma certa uniformidade, que os restos de linha não fiquem de sobra para fora, que o zíper empregado seja bem colocado, que a costura mantenha o tecido bem esticado, que não apareçam "papadas" e assim por diante. Olhando essas peças, a preocupação de um tipo de acabamento característico da costura é explícito. Já na obra de Edith Derdyk o acabamento não está dado segundo os parâmetros da tradição da costura. Mesmo servindo-se dessa técnica o processo da artista investiga especificamente as possibilidades da linha: de uma linha que perfura superfícies de plástico através da agulha (nota 14). Percebo nessa artista a influência das pesquisas modernas sobre o desenho (desde a idéia de

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desenho-expandido). Logo, em sua obra, a linha (de costura, arame e lã) percorre caminhos determinados em locais diversos (plásticos, outros materiais e no próprio espaço físico) no intuito de dividir espaços e marcar matérias. Quando a artista expõe seu entendimento de Linha, tanto fica clara a relação de sua Obra com a idéia de "desenho expandido", como fica explícito o entendimento que tem da costura como processo condutor da linha:

A linha é uma divisória incerta. Mede e potencializa a sutileza do limite, prevê um ponto de partida e um ponto de chegada que às vezes pode nunca mais chegar. (...) A linha ocupa um espaço entre. A linha não é pertinente. Desvenda a relação entre os objetos sem ser totalmente algum deles. (...) A linha empresta contorno ao mundo, caminha pela superfície das coisas E quando isso acontece a linha se estende infinitamente. (DERDYK, 1997)

A diferença que aqui me interessa apontar entre essas duas artistas reside nas suas intenções (que repercutem em atuações) diversas. Edith Derdyk apropria-se da "costura" como um instrumento. Como ela mesma coloca (id., 1998), desde 88 que a costura foi incorporada ao seu processo como um "procedimento construtivo" apenas. A costura entrou na obra de Edith Derdyk para atender às necessidades de seus questionamentos

artísticos, comprometidos com questões específicas da arte erudita (nota 15). Lia Menna Barreto, dedica-se à prática da costura para construir uma obra na qual pulsam tradições diversas. Sua obra se processa num entrelaçamento de vozes diversas: a tradição da costura que fala junto com a poética da

infância e da família expressa no bicho de pano, que entra em diálogo com um espaço artístico erudito (considerando a obra vista desde galerias e museus de arte) onde o objeto se insere na tradição artística, tudo isso convergindo para questões bastante particulares que compõem a poética da artista.

Edith Derdyk, Suturas, 1993

No processo de incorporação de práticas como a costura, o reconhecimento da estética particular de cada uma delas é determinante para compreensão de sua "inteligência interna". A estética da "boa costura", está no detalhamento e acabamento das peças de Lia Menna Barreto. A estética da cultura nordestina está presente nas cores de Leonilson e até mesmo em vários esquemas representativos que ele adotou. As preocupações que Leonilson tinha em construir ponto a ponto os seus bordados, de que cada ponto fosse bem feito - caso contrário ele o desmancharia e refazê-lo-ia - e de dispor de uma variedade de pontos, são preocupações dignas de um bom bordadeiro de toalhas e lençóis.

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Ao incorporar a costura/bordado, esses artistas a entenderam como algo a mais do que uma mera técnica, adentraram em sua estética

particular, calcada em uma tradição (dita)

"popular".

Entendo que as distinções entre padrões de arte erudita e "popular" não são tão claras assim. Determinadas questões estão em constante trânsito entre uma e outra tradição artística - variando por épocas, de acordo com o contexto sócio-cultural (nota 16).

Leonilson, O Templo, 1993

A idéia da beleza como aquilo que agrada ao olho de quem vê, é um exemplo. Questão tão característica da tradição artística, a partir do início deste século foi questionada na produção erudita. Já na contemporaneidade, uma série de artistas - como Beatriz Milhares, Tunga e Élida Tessler - não adotam mais a postura modernista que desmerece tal concepção de beleza. Tadeu CHIARELLI (1997) chama a atenção para o fato de que, na obra dos artistas que adotaram práticas de uma tradição cultural não hegemônica, é recorrente a presença de tal concepção de beleza. Este fato, em grande medida, é o que caracteriza o valor contemporâneo na obra destes artistas na medida que atualizam a ruptura duchampiana.

As Relações do Fazer

(nota 17)

A idéia de um fazer regido pela matéria, retoma um tipo de processo criativo mais intuitivo, pautado pelos entraves e descobertas do manuseio do material. Segundo Annateresa Fabris (MAC-USP, 1994) o impasse criativo do artista que parte da matéria - ou daquele que remodela suas intenções no manuseio dela - é saber percebê-la: "libertar as possibilidades formativas da matéria e de interpretá-la em sua natureza intrínseca". Tal idéia entra em concordância com a busca de uma "inteligência interna" das práticas

artesanais, referida por Chiarelli: na busca danatureza intrínseca de materiais como o tecido, a linha, a madeira bruta, etc., o artista acabou adentrando à lógica de manuseio particular de cada uma dessas matérias.

Ronaldo REIS (1998) comenta que o retorno ao processo criativo mais artesanal não se manifestou apenas no advento das práticas de tradição não-hegemônica. Uma transfiguração mundial desse retorno ao fazer artesanal foi o fenômeno de retorno à pintura da década de 80. Segundo ele, essa foi uma reação das artes plásticas às conseqüências dos avanços tecnológicos deste século: ao maior distanciamento entre os indivíduos, ao mascaramento das identidades e ao desencadeamento do crescente processo de individualização. A pintura respondeu a isso estampando, em imponentes dimensões -

considerando a predominância de telas gigantescas nessa época -, uma vivência intensamente subjetiva do artista com o ato de pintar.

Referências

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