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O FENÔMENO DA ABERTURA COMO MODO DE MANIFESTAÇÃO DO SER

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Academic year: 2021

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Agência financiadora: MEC/SESu

Resumo: Este estudo visa compreender o fenômeno da abertura dentro do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger através da relação que se estabelece entre as noções de disposição e compreensão. Nossa principal meta é evidenciar através da análise desses fenômenos como se dá o fenômeno de determinação de ser.

Palavras-Chave: Abertura, Disposição, Compreensão.

ara Heidegger, a questão fundamental da filosofia é a questão acerca do ser enquanto tal. Segundo ele, ao longo do desenvolvimento da filosofia como metafísica essa questão ficou esquecida porque o ser passou a ser visto desde a perspectiva do ente. No lugar de se perguntar pelo ser enquanto tal, a metafísica perguntou pelo ente enquanto ente, pelo ser do ente. Ora, a questão capital para Heidegger, em Ser e Tempo (1927), é recolocar a questão sobre o sentido do ser. Para isso nosso autor irá eleger um ente privilegiado por ser, dentre todos os entes, o único capaz de pôr para si mesmo a questão sobre seu ser. O ente em questão é o Dasein (pre-sença). O método de elaboração da questão acerca do sentido do ser assumirá a forma de uma analítica existencial, na qual esse ente privilegiado é examinado (analisado) em seus índices existenciais. Pois bem, o fenômeno da abertura é de fundamental importância dentro dessa analítica porque é desde esse fenômeno que se torna possível ao Dasein determinar-se em seu ser. Pergunta-se então: o que é isso, a abertura? O que é que se abre? Por que esse fenômeno sagra-se tão importante para a ontologia de Heidegger?

Antes de enveredarmos em tais questões, deve-se destacar que o pensador compreende o homem desde o fenômeno da existência chamando-o de Dasein (termo esse que se traduz no Brasil ora por ser-aí ora por pre-sença1 e seguindo a tradução utilizada por nós2, optamos por adotar esse último – pre-sença), cuja estrutura básica é ser-no-mundo. Segundo Heidegger, existência é, fundamentalmente, ser-no-mundo; ser que está sempre lançado, projetado no mundo, se realizando junto aos entes que lhe vêm ao

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O professor Ernildo Stein, em suas traduções referentes a algumas conferências de Heidegger – tais como as reunidas em Conferências e Escritos Filosóficos (constante no volume Heidegger da coleção Os

Pensadores, 1996) – e em suas próprias obras, dentre elas Seis Estudos sobre “Ser e Tempo” (Editora

Vozes, 1988) optou por traduzir Dasein por Ser-aí. Já a professora Márcia Sá Cavalcante Schuback, que traduz Ser e Tempo (Editora Vozes, 2005) para o português, elegeu o termo Pre-sença para traduzir Dasein. 2

Utilizamos à edição de Ser e Tempo (15° ed. Petrópolis: Vozes, 2005 – Coleção Pensamento Humano), na qual a professora Márcia Sá Cavalcante Schuback é a tradutora. Para nos mantermos fiel à edição – e assim a tradução – utilizada, preferimos, quando for necessário falar do Dasein, utilizar o termo pre-sença.

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encontro nesse mundo no qual se projeta. Ora, existência é projeto à medida que está sempre lançada em suas próprias possibilidades de ser, realizando-as num fazer (numa ocupação). Projetada em suas próprias possibilidades de ser no mundo, a existência se mostra num contínuo processo de fazer-se estando sempre em falta, em débito em relação ao ser (que deverá sempre ser realizado em cada ato cotidiano da existência). Já por mundo nos é dado compreender o horizonte no qual o homem, enquanto existente, se projeta. Horizonte esse que se constitui nas possibilidades de ser do próprio homem. Possibilidades que podem ser consideradas no contexto de Ser e Tempo como poder-ser-junto-as-coisas que vem ao encontro no mundo, de ser-com-os-outros que possuem o mesmo modo de ser da pre-sença e de ser em função de si mesmo. Por conseguinte, mundo não é algo físico, não se confundindo com um “lugar” geográfico, mas é aquilo que se realiza junto ao homem na dinâmica cotidiana do existir. Por isso, pre-sença e mundo se co-pertencem na medida em que se constroem e se determinam inseparavelmente um do outro de forma a compartilharem um mesmo e único ser. Não há, portanto, uma contraposição de um ente chamado “pre-sença” a outro ente chamado “mundo”. Eles se co-pertencem; um não existe sem o outro.

Mas como pre-sença e mundo vigoram num mesmo e único ser? De que maneira eles se determinam? Mundo e pre-sença se determinam a partir da estrutura ontológico-existencial que compõe primordialmente o ser-no-mundo, a saber, a abertura. É aberto que o mundo se apresenta enquanto dimensão existencial da própria pre-sença. Esse fenômeno não é um mero ato físico, automático ou maquinal de abrir ou rasgar algo, mas é o acontecimento que permite que homem e mundo possam vir a se instaurar. Ou melhor: a abertura evidencia-se como o fenômeno desde o qual a pre-sença se põe desde o mundo do qual ela mesma é partícipe, ou melhor, que ela mesma se descobre em suas relações de ser. Essa descoberta assume a forma de uma pré-compreensão. Ou seja, quando se dá a abertura na qual o ser (homem/mundo) se determina, essa determinação traduz-se, de modo imediato, na forma de uma pré-compreensão que temos acerca do ser que constitui tanto a nós mesmos quanto as coisas que no mundo nos vem ao encontro. Este caráter do pré (do prévio) não indica uma anterioridade no tempo, mas nos remete para aquilo que constitui a presença – ou seja, nos remete para o poder-ser (as possibilidades de ser) si mesma. Pois bem, o caráter prévio da compreensão se plasma no modo mesmo como realizamos essas possibilidades de ser, num fazer, numa ocupação. Sendo assim, quando se dá a abertura na qual o ser irrompe, essa irrupção deixa e faz ver essas possibilidades no ato mesmo em que elas se realizam. Por exemplo: no dia-a-dia de um jardineiro esse se faz (e assim ganha o direito

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de ser) jardineiro à medida que se dispõe a zelar por seu jardim: é no podar, irrigar, semear ou mesmo em adubar os canteiros que ele se realiza em seu ser-jardineiro. Ele se faz aberto para todas as necessidades de que o jardim possa carecer. Se esse jardineiro se colocar disposto em cuidar do jardim, de “fazer” o jardim, ele conseqüentemente se faz – constrói – a si mesmo como homem (existente) e como jardineiro. Um conto de Carlos Drummond de Andrade chamado Maneira de Amar talvez ajude a visualizar o nosso exemplo:

O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.

Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na ocasião devida.

O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.

Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram muito tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. “Você o tratava mal, agora está arrependido?” “Não”, respondeu, “estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava” 3. Esse pequeno conto mostra de maneira simples como se dá a relação que se verifica entre homem e mundo. O jardineiro que descreve o poeta (descrição que caberia a todo aquele que se dedica a um fazer de forma radical), no seu ofício (no desempenho da tarefa de ser isto o que ele é) sempre está disposto a “compreender” as necessidades do jardim. “Escuta” todos seus dizeres e nessa obediência executa o seu ofício na medida exata em que se abandona ao jardim (que nesse universo de relações se descobre como o seu mundo). É nesse abandono que ele aprende a medida certa de água para irrigar as suas plantas; aprende o momento oportuno para semear o solo e o tempo devido para retirar as ervas daninhas que aí nascem; aprende que, se quiser ter borboletas, não poderá mais matar as lagartas. Esse homem está aberto para o fazer do jardim e, conseqüentemente, para o seu fazer-se mais próprio. Ele entende a dinâmica do jardim: ele é jardineiro.

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Em tais relações, o jardim se apresenta como a necessidade do jardineiro. Não há separação entre eles: jardim e jardineiro comungam da mesma dinâmica, de um mesmo “mundo”. A jardinagem se constitui na relação entre ambos. Não existe uma autonomia: a necessidade da jardinagem é ofício vital para todo aquele que se descobre nessa lida, e é através desse ofício que se dá a preservação da vida das plantas e flores que ali estão. Contudo, nessa lida ou ofício, o jardineiro não pode, de fato, dominar o processo; mas, é a circunstância que lhe dita o que é possível ser feito. Ele apenas é obediente a essa dinâmica e não se vê fora dela.

Nessa passagem falamos do jardineiro estar disposto, além de ter uma “compreensão” de sua relação com o jardim. Disposição e compreensão não têm aqui um sentido qualquer. Se formos examinar esses fenômenos desde a ocular aberta pelo pensamento de Heidegger, observaremos que esses fenômenos são estruturas fundamentais do ser da abertura. Podemos de imediato dizer que a disposição e a compreensão não nascem de um movimento da vontade humana, tampouco se colocam numa esfera reflexiva. Retomando o nosso exemplo, podemos observar que o jardineiro compreende o jardim a partir do momento em que ele (enquanto jardineiro) se ocupa de seu objeto de trabalho. O jardim se mostra à medida exata em que o jardineiro se dedica a cultivá-lo e, nesse cultivo, ele mesmo (jardineiro) se determina como isso que ele é. Mas como se dá essa determinação? Embora o jardineiro compreenda o seu ser no desempenho de seu ofício, ele já possui previamente a compreensão do que esse ser implica. Ou seja, ele possui uma pré-compreensão do ser (do jardim e do jardineiro). Contudo, o caráter prévio dessa compreensão não se explica, como já foi aludido acima, por uma anterioridade no tempo. Por exemplo, mesmo que o nosso jardineiro fosse descendente uma família de homens que foram dedicados a esse ofício e, que lhe tivessem passado de geração em geração todos os conhecimentos inerentes a esse fazer, isso de nada lhe adiantaria se ele não realizar esse ofício por si mesmo. E, para isto, esse homem deve ter esse ofício como uma possibilidade (sua) de ser – ou melhor: deve desempenhá-la no e como um fazer e, nesse desempenho se abre a um só tempo todas as dimensões do que seja “ser jardineiro”. Essa abertura assume de imediato a forma de uma disposição – ou seja, o ser (do jardim e do jardineiro) se abrem a medida exata em que o homem é tomado, tocado pela possibilidade de ser no e desde o fazer da jardinagem. Mas em que medida a disposição e compreensão estão ligados à abertura? Que importância esses fenômenos adquirem e de que forma se apresentam na problemática da pre-sença?

Segundo Heidegger, a disposição é um existentivo básico e fundamental da pre-sença porque ela “alicerça” o ser de sua abertura a fim de que essa possa permanentemente se

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abandonar ao mundo desde o qual deve vir a se realizar. A disposição é um modo fundamental da pre-sença porque a expõe ao mundo de forma que ela (pre-sença) seja lançada em suas próprias possibilidades de ser. Por outro lado, a disposição é básica por permitir aberturas na lida mais habitual da pre-sença. A todo o momento estamos dispostos no mundo: temor, solidão, espanto, angústia, enfim, são todos modos de ser possíveis na disposição.

Pelo fenômeno da disposição, o mundo se manifesta como uma dimensão da pre-sença, e, ainda, é por esse mesmo fenômeno que se instaura toda e qualquer relação com os entes. Ora, a disposição revela a dinâmica essencial da existência da pre-sença ao apresentar o mundo como parte integrante de seu próprio ser. Na figura daquele jardineiro, desde o momento em que está desempenhando o seu trabalho, toda relação com o jardim se dá como uma possibilidade inteiramente sua – e de mais ninguém. Por isso não lhe faltava disposição na conquista cotidiana do girassol, que aparentemente nunca cedia aos seus cuidados. Aparentemente, porque no fundo essa flor amava toda dedicação que lhe era concedida. Não era orgulho da flor e nem a pouca beleza do jardineiro que a fazia o tratar mal. Esse era o seu modo de ser e “ele sabia disso, e gostava”. A disposição é isso que vigora nessa lida que libera o jardineiro para isso que se apresenta em seu próprio ofício.

A disposição revela, igualmente, o modo como a pre-sença está na lida com o “seu mundo”. Tal disposição Heidegger chamou de humor. Deve-se destacar que como todo modo de disposição, o humor não tem uma acepção psicológica. Não se trata de um estado de ânimo, mas de um fenômeno que nos remete a índices existenciais fundamentais. O humor evidencia o modo como o homem estabelece suas relações com o mundo. Ou melhor, mostra como esse homem “é” nessas relações: como está no desempenho disso ou daquilo. Se mal humorados, por exemplo, todas as relações se predispõem a se revelar de forma “obscura”. Se serenos, as coisas já tendem a fluir melhor. Isso não diz mais que a maneira na qual o homem se abre em seu ser num fazer. Afinal, sempre estamos dispostos a desempenhar certas atividades e outras não. Ora, nesse fazer o humor revela diferentes modos de ser da pre-sença: qualquer um pode se sentir irritado, sereno, pesado, solitário, enfim, existem inúmeras formas de sentir-se “humano”!

Pelo fenômeno da disposição nos é dado perceber que, pensado radicalmente, todo ofício (todo fazer) é ofício de solidão. A solidão manifesta o mundo de uma forma radical. No conto para nós em questão, conversar com as flores não era um atributo do patrão.

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Entender o que se passava com elas, tratá-las com aquele cuidado e dedicação, enfim, tudo isso é fruto de um saber do que ali se passa. Saber que nasce após anos de aprendizagem, repetição, suor e de “conversa”. É essa a solidão do jardineiro. Solidão não significa aqui uma “indisposição” de se relacionar com o mundo, nem mesmo em ficar simplesmente sozinho num canto, a parte do que se passa no jardim. Pelo contrário, a solidão não deve ser entendida como um fardo a ser carregado, mas um modo de ser e de se relacionar consigo mesmo de forma radical. Visto que o mundo nunca está pronto e acabado, o homem deve dia após dia deixar de lado à familiaridade com que esse mundo rapidamente se reveste. Esse homem torna-se então um “estrangeiro” em sua própria terra de modo que tenha que abandonar o feito para sempre re-começar toda e qualquer relação, assim como se vê naquela relação de conquista do girassol e das demais flores. O mundo (como o ofício da jardinagem) se apresenta como algo a ser conquistado diariamente. Assim, a solidão na qual o jardineiro se vê aprisionado (ou melhor, a solidão que ele mesmo é) o faz ficar órfão das verdades e desprovido das certezas do cotidiano – certezas essas que são a morada tranqüila do patrão. Da mesma forma que uma criança, a realidade, para o solitário, sempre se mostra como algo novo, inusitado. Ele está sempre entregue a uma relação totalmente sua. À medida que esse homem se dedica diariamente a cuidar do jardim, ele já se dispõe para todas as possibilidades que podem vir a se apresentar. Ele não se preocupa em ter que refazer aqueles canteiros e nem ter de regar as plantas cotidianamente: essas tarefas nascem do cerne de seu próprio ofício. No entanto, não se entrega a tais ocupações apenas como um meio de ganhar o pão, mas se projeta nessas tarefas como se fossem uma atividade vital. Essa necessidade é exatamente o que o jardineiro não sabe de antemão. É o que escapa aos seus cuidados e previsões. Disposto nessa dinâmica, o jardineiro acaba por sentir-se tomado por seu ofício. Ele não busca nada, apenas obedece ao processo da jardinagem, e nessa obediência percebe que o jardim “retribui” todo o seu zelo à medida que floresce. Se o jardim não “pulsasse em suas veias”, ele não se prestaria a fazer sempre as mesmas coisas. Afinal, o jardim já está pronto e não precisa mais de tanta dedicação. Dessa forma, o jardineiro cria e re-cria diariamente sua relação com seu objeto de trabalho. Maneira de amar, portanto, não diz respeito apenas ao girassol (que ama as escondidas!), mas principalmente ao jardineiro que demonstra seu amor pelo jardim cotidianamente em seu ofício.

Ao dizer que estar aberto é o mesmo que disposto numa ocupação cotidiana, podemos afirmar que o homem está sempre lançado no mundo que se mostra cotidianamente como dimensão de seu próprio ser. Ser-no-mundo é estar-lançado em algo que deve ser

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realizado ou não. Isso porque mundo não é nada mais que essa “potencialidade”, isso que está sempre por se determinar. Estar-lançado refere-se ao modo no qual estamos cotidianamente jogados no desempenho de uma tarefa, o fato de estarmos imersos em uma determinada ocupação e nela nos empenharmos. Contudo, no seu modo de ser cotidiano, a pre-sença fica disposta e aberta para isso e fechada para aquilo. Isto porque toda abertura trás em si sua própria fechadura; ou melhor: a pre-sença ao estar aberta num fazer estará conseqüentemente fechada para vários outros. Podemos ver esse movimento na figura do jardineiro: ao passo que cuidava do jardim e conversava com as flores ele esqueceu que o patrão o observava. O “patrão” aludido no conto é o típico homem de nosso tempo, pragmático, rápido, onde “perda de tempo” é algo que lhe é desconhecido. De modo oposto a esse, quer dizer, atento as flores o jardineiro acabou por esquecer esse fator. Ele não se lembrou do patrão porque estava tomado pelo mundo da jardinagem que se descobria em seu ser. Nessa descoberta, o jardineiro se entregou a ele pelo simples fato de ser jardineiro – e isso não é uma escolha, mas é um modo vital, que o possui por completo. É desse mesmo modo que a disposição fundamenta a abertura da pre-sença em seu estar-lançado. Heidegger nos diz:

A disposição não apenas abre a pre-sença em seu estar-lançado e dependência do mundo já descoberto em seu ser, mas ela própria é o modo de ser existencial em que a pre-sença permanentemente se abandona ao “mundo” e por ele se deixa tocar (...). 4

“Deixar-se tocar” pelo mundo é ser tomado por ele de forma que não nos percebemos senão em seu domínio. Afinal, não podemos nunca estar fora de uma relação com o mundo. A disposição assim se constitui num modo básico de abertura de mundo, de co-presença e existência, como se vê no cotidiano daquele jardineiro à medida que ele se presta a “escutar” o seu jardim (as coisas que não possuem o mesmo modo de ser que o dele), a lidar com o patrão (o outro, que marca a co-presença daqueles que possuem o mesmo modo de ser da presença) e a estar em consonância consigo mesmo. Nesse contexto o pensador escreve: “Dis-posé significa aqui literalmente: ex-posto, iluminado e com isso entregue ao serviço daquilo que é. O ente enquanto tal dis-põe de tal maneira o falar que o dizer se harmoniza como o ser do ente” 5. Portanto, disposto no mundo quer dizer: estar posto dentro, jogado na possibilidade de se ocupar com o mundo, relacionando com os outros e de ser em função de si mesmo.

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 194 5

HEIDEGGER, Martin. Que é isto – A Filosofia? In: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1996, P. 37

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Pois bem. Falamos acima que a compreensão (assim como a disposição) é um dos modos que estruturam a abertura da pre-sença para o mundo. Mas o que é e o que está em jogo na compreensão?

Habitualmente compreendemos todas as coisas que estão ao nosso redor. No entanto, raramente perguntamos como se dá o nosso fazer ou qual a natureza das coisas com as quais lidamos cotidianamente. Em nossa existência cotidiana transitamos livremente numa pré-compreensão acerca das coisas e dos outros que compartilham conosco o mesmo mundo – nessa existência nós “sabemos e entendemos tudo.” Por sua vez, tal compreensão não advém de uma reflexão ou tematização explicita acerca das coisas. Ela é anterior a toda reflexão. Compreender, para Heidegger, não é estar na “posse” de um determinado conhecimento ou “por cima” de alguma situação. Ao possibilitar esse modo de “saber e entender tudo”, a compreensão abre a pre-sença para o seu poder-ser-no-mundo. O poder-ser se manifesta à medida que lança a pre-sença aos diferentes modos e formas de empenhar-se numa ou noutra ocupação. Ou melhor, a compreensão caracteriza-se por mostrar como “primariamente, ela (a pre-sença) é possibilidade de ser” 6. A possibilidade assim apreendida não deve ser encarada como algo meramente dado e vazio de significado, mas como a forma na qual a pre-sença se determina e se concretiza.

Fundado no ser da compreensão, o poder-ser refere-se antes de tudo que a pre-sença se constitui primordialmente em algo que está sempre por se realizar, de modo que esteja sempre lançada em suas possibilidades de ser. Ao ser nessa condição, a pre-sença vai compreender as coisas com as quais lida sempre de uma determinada maneira, pelo fato de que essas possibilidades (que se abrem nessa mesma lida) se manifestarem de modo previamente determinado. Prévio, como já foi dito acima, não faz referência ao caráter de algo que se encontra dentro do tempo cronológico indicando alguma coisa que é anterior, mas, refere-se àquilo que sempre esteve na pre-sença fazendo-a interagir com todas às coisas ao seu redor. Valendo-se novamente da jardinagem como exemplo, vemos que o jardineiro ao ter que podar algumas plantas já sabe de antemão que para desempenhar essa tarefa deverá usar de determinado jeito o tesourão; ele “sabe” o modo correto de manusear os galhos das árvores, os cuidados que deve tomar consigo e com as plantas. A compreensão que ele tem de seu trabalho se dá na própria execução do mesmo. Ele se compreende como jardineiro a partir do próprio mundo da jardinagem.

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Enquanto modo de ser da abertura, a compreensão é o fenômeno que libera a pre-sença para o seu poder-ser no mundo. Como modo de abertura a compreensão sempre projeta a pre-sença para as suas possibilidades. Desse modo, o projeto se realiza à medida que abandona a pre-sença ao mundo descortinando o horizonte de suas possibilidades a fim de que essa (a pre-sença) possa se compreender em ato de ser. O ser-no-mundo só é enquanto projeto. Entendamos, no entanto, que “compreender em ato de ser” não é um fenômeno derivado de uma reflexão, mas como na ação do jardineiro, é algo que se descobre na própria ocupação, no manuseio das coisas que se mostram nesse desempenho. Como afirmou Heidegger, “(...) como pre-sença, ela já sempre se projetou e só é na medida em que se projeta. Na medida em que é, a pre-sença já se compreendeu e sempre se compreenderá a partir de possibilidades” 7.

Concluindo, temos que a compreensão, assim como a disposição, são fenômenos que “estruturam” a abertura da pre-sença para “o seu” mundo. A determinação da pre-sença e do mundo, isto é, o modo como ambos compartilham de um mesmo e único ser (ser-no-mundo) se faz evidente na abertura que é por si mesma a dinâmica que funda tal co-pertencimento. Mesmo se “fechada” para alguma coisa, a pre-sença está em seu ser disposta a esse não envolvimento. Porém, não podemos perder de vista que esse fechamento é um caráter somente possível no seu contrário, isto é, no fenômeno da abertura. Por fim, entende-se que a disposição e a compreensão são modos básicos de sustentação do ser da abertura da pre-sença para o mundo. Abertura que desempenha na existência cotidiana do homem um papel fundamental, já que nela se funda toda e qualquer relação no mundo. Conforme Heidegger, disposição e compreensão são “(...) caracteres ontológicos da pre-sença. Isso significa: os caracteres não são propriedades de algo simplesmente dado, mas modos de ser essencialmente existências” 8. Assim, disposição e compreensão são duplamente originais porque mostram o modo no qual a pre-sença se realiza num projeto sempre lançado nas próprias possibilidades e modos de ser-no-mundo. Por esse motivo, tais fenômenos desempenham um papel fundamental na dinâmica desde a qual acontecem as relações entre homem e mundo. Relações essas instauradas sempre por meio de uma abertura que, por si só, se constitui em um modo primordial na existência do homem.

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Histórias para o Rei. 2° ed. Rio de Janeiro: Record. FÖGEL, Gilvan Luiz. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. 1° ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 201 8

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15° ed. Petrópolis: Vozes, 2005 (Pensamento Humano). ________________. Que é isto – A Filosofia? In: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Os Pensadores).

________________. Que é Metafísica? In: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Os Pensadores).

NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1986.

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. 31° ed. São Paulo: Globo.

________________ Sonetos a Orfeu; Elegias de Duíno. 4° ed. Petrópolis: Vozes, 2005 (Pensamento Humano).

Referências

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