• Nenhum resultado encontrado

Cartografias do Silêncio*

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "Cartografias do Silêncio*"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

Cartografias do Silêncio*

Uma conversa começa

com uma mentira. E cada falante da chamada língua comum sente

a fina camada de gelo partir-se, o afastamento como uma perda de poder, como que erguendo-se contra uma força da natureza

Um poema pode começar com uma mentira. E ser desfeito.

Uma conversa tem outras leis carrega-se com a sua própria falsa energia. Não pode ser

desfeita. Infiltra-se no nosso sangue. Repete-se.

Inscreve com o seu estilete irregressível O isolamento que nega.

2.

A estação de música clássica

tocando hora após hora no apartamento O erguer e erguer

e de novo erguer do auscultador O articular de sílabas

o velho texto uma e outra vez A solidão do mentiroso

vivendo na estrutura formal da mentira

*Adrienne Rich (1978), The Dream of a Common Language (Poems 1974-77).New York and Lon- don: W.W. Norton and Company, Inc.

(2)

torcendo os dígitos para afogar o terror debaixo da palavra não dita

3.

A tecnologia do silêncio Os rituais, a etiqueta O confundir dos termos silêncio não ausência

de palavras ou música ou mesmo de sons selvagens

O silêncio pode ser um plano rigorosamente executado o plano para uma vida É uma presença

tem uma história uma forma Não se deve confundir

com uma outra ausência qualquer 4.

Que calmas, que inofensivas estas palavras Me começam a parecer

Embora geradas em mágoa e raiva

Serei capaz de atravessar este filme do abstracto Sem me ferir a mim ou a ti

Há suficiente dor aqui

Será por isso que a estação de música clássica ou de jazz toca?

Para dar uma razão de ser à nossa dor?

5.

O silêncio completamente a nu:

Na Passion of Joan de Dreyer

O rosto de Falconetti, o cabelo rapado, uma fabulosa geografia silenciosamente registada pela câmara

Se houvesse uma poesia onde isto pudesse acontecer não com espaços em branco ou palavras

estiradas como uma pele sobre os sentidos mas como o silêncio que cai no fim de uma noite em que duas pessoas falaram até ao amanhecer

(3)

6.

O grito

de uma voz ilegítima

Deixou de se ouvir a si próprio, por isso se pergunta a si mesmo

Como posso eu existir?

Este era o silêncio que eu queria romper em ti Eu tinha perguntas que tu não querias responder Tinha respostas mas tu não poderias usá-las Isto não tem sentido para ti e talvez para ninguém 7.

Era um velho tema mesmo para mim:

A língua não resolve tudo –

Escreve-o a giz nas paredes onde os poetas mortos jazem nos seus mausoléus

Se pela vontade do poeta o poema se pudesse transformar em coisa

Um flanco de granito a descoberto, uma cabeça erguida brilhante de orvalho

Se simplesmente te pudesse olhar de frente a olhos nus, sem te deixar virar a cara

até que tu, e eu que tanto desejo este momento, finalmente ficássemos esclarecidas pelo seu olhar.

8.

Não. Deixa-me ficar com esta poeira,

Estas pálidas nuvens teimosamente espraiando-se, estas palavras Movendo-se com feroz tenacidade

como os dedos da criança cega ou a boca do recém-nascido violenta de fome

Ninguém mo pode dar, sigo há muito este método

do cereal escorrendo do saco lasso

ou da chama de gás que se tornou ténue e azul Se de tempos a tempos invejo

as anunciações puras ao olhar

(4)

A visio beatifica

se de tempos a tempos eu sonho regressar tal como o hierofante eleusino

segurando uma simples espiga de trigo à eternidade do mundo concreto aquilo que de facto continuo a escolher

são estas palavras, estes sussurros, estas conversas

de onde repetidas vezes a verdade se escapa húmida e verde.

(1975)

(5)

A leoa

O perfume da sua beleza atrai-me até junto dela.

O deserto estira-se de ponta a ponta.

Rocha. Ervas prateadas. Bebedouro.

O céu estrelado.

A leoa suspende

o seu vai e vem incessante nos três metros quadrados e fita-me. Os seus olhos

são autênticos. Têm espelhados rios, orlas do mar, vulcões, mornos promontórios banhados pela lua.

Sob o couro dourado dos seus quadris corre um poder inato, quase abnegado.

O seu caminhar

está confinado. Três metros quadrados limitam os seus passos.

Num país como este,digo,o problema está sempre em não ir demasiado longe, não em permanecer dentro dos limites. Há cavernas,

rochas imensas, que não se podem explorar. Contudo sabemos que elas existem.A sua cabeça orgulhosa e vulnerável

fareja-as. É o seu país, ela sabe que existem.

Aproximo-me dela à luz das estrelas.

Olho-a nos olhos

como quem ama sabe olhar,

mergulhando no espaço por detrás do seu globo ocular, e deixando-me do lado de fora.

Assim, finalmente, através das suas pupilas, vejo aquilo que ela vê:

entre ela e o caudal do rio, e o vulcão envolvido pelo arco-íris,

um cativeiro que mede três metros quadrados.

Grades fustigadas.

A jaula.

A punição.

(1975)

(6)

Referências

Documentos relacionados

Suspiro uma, duas, centenas de vezes… Levo as mãos à cabeça…Bagunço cabelo,  escorre uma lágrima… arrumo o cabelo e o travesseiro leva um tapa.. Estalo os dedos  mordisco

Isso, se “no meio do caminho”, o Governo não mudar a regra do jogo e subir a expectativa da vida, para um número maior, elevando de cara a idade mínima para 70 e 72 anos

“Sim, umas árvores de casca e tronco finos, eucaliptos como você, aos montes, centenas, não, milhares, talvez milhões, tudo igual, mas forçados por HOMO SAPIENS

E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a

A resposta passa por preços maiores para quem estiver disposto a pagar por melhores serviços, e com essa margem adicional financiando o mercado de preços baixos para mais

Foram feitas sete entrevistas pessoalmente (uma com cada personagem) – algumas na própria casa do personagem, outras no ambiente de trabalho. Após a decupagem total dessas

De fato, a aplicação das propriedades da regra variável aos estudos lingüísticos além da fonologia não constitui assunto tranqüilo, seja porque a variável passa a ser

A capa do livro-reportagem “Eu não tinha visto por esse lado” é composta por fotos de pessoas cegas e videntes com a intenção de mostrar que não há