A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA : ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO
PROCESSOS REGIONALIZADORES COTIDIANOS:
ESTUDO COMPARATIVO ENTRE QUILOMBOLAS DE SÃO JOÃO E SANTA CRUZ-PR
Processes of regionalization in everyday life
A comparative study of quilombola communities in São João, PR e Santa Cruz, PR, Brazil
TANIZE TOMASI ALVES
1Resumo: Nesta pesquisa, as regionalizações das comunidades quilombolas de São João
(Adrianópolis-PR) e Santa Cruz (Ponta Grossa-PR) são investigadas a partir de uma perspectiva centrada exclusivamente na ação cotidiana dos sujeitos quilombolas (WERLEN, 2000). Tal regionalização capta-se através da manifestação concreta das práticas de construção social (HAESBAERT, 2010), descartando tanto o espaço como um elemento ontológico em si, como também as construções discursivas deste espaço pelo Estado, mercado e pesquisas classificadoras/tipificadoras. Consequentemente, nega-se a existência de unidades territoriais que homogeneízam o fenômeno social. O estudo comparativo proposto entende a diferenciação espacial (HAESBAERT, 2010) como produto da ação e, assim, a regionalização como produto do contato interativo (MASSEY, 2008), apontando as diferenças nas teias sociais de cada quilombo.
Palavras-chave: Regionalizações; Cotidiano; Redes Sociais; Comunidades Quilombolas.
Abstract: This research investigates the regionalization of the quilombola
(maroon) communities of São João (Adrianópolis-Paraná) and Santa Cruz (Ponta Grossa-Paraná) based on an exclusively action-centered approach that focuses on the every actions of quilombolas as social actors (WERLEN, 2000). Such an understanding of regionalization refers to the concrete manifestations of practices that do construct social realities (HAESBAERT, 2010), and rejects any ontology of space in itself, but also any discursive construction of space through actors like the state, the market economy and researchers who are interested in classification and typologies. Therefore, there is no way to confirm the existence of social phenomena that homogenize territorial entities. This comparative research understands spatial differentiation (HAESBAERT, 2010) as a product of action and, thus, regionalization as a product of interactive contact (MASSEY, 2008) highlighting the differences between the social networks of each community.
Key-words: Regionalization, Everyday Life, Social Networks, Quilombola Comunities.
1 – Introdução
A partir de 2005, com a criação do Grupo de Trabalho Clóvis Moura no Paraná, amparado no Decreto n.º 4.887/2003, reconhece-se a existência das comunidades quilombolas neste estado e inicia-se um trabalho de campo para sua identificação. Adotando o princípio da autoatribuição, 37 comunidades são então certificadas pela Fundação Cultural Palmares com inscrição no Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombos.
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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná. E-
mail de contato: mauricioetanize@hotmail.com
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As comunidades quilombolas paranaenses de Santa Cruz e São João, foco desta investigação, estão localizadas na zona rural de Ponta Grossa e Adrianópolis respectivamente. Elas receberam a Certidão de Autoreconhecimento em 2005 e 2006, momento em que passaram a existir oficialmente enquanto grupo étnico-racial pela sua “história afrodescendente” ou pela “resistência” ao exterior (TOMASI;
LÖWEN SAHR; SAHR, 2015). A experiência social cotidiana destes grupos quilombolas, todavia, os enquadram como “impuros” ou “desproporcionalizados” ao discurso político e científico em função da pluralidade identificada em seus processos de construção social. Como exemplos disso, podemos citar a miscigenação e branqueamento dos quilombolas de Santa Cruz há três gerações com indivíduos dos grupos étnicos dos russo-alemães, ou, a residência fixada de quilombolas de São João em centros urbanos, como Barra do Turvo e Boituva-SP e a adesão a religião evangélica.
Povos tradicionais, como os quilombolas, revelam uma regionalização que se desdobra a partir do momento em que, dotados de voz e visibilidade, são providos também do poder de mapearem e representarem efetivamente seus espaços, até então considerados excluídos e/ou vazios. Trata-se de uma regionalização “a partir de baixo”, projetando novas articulações (tanto intra como inter) regionais. (HAESBAERT, 2010).
A autonomia destes espaços de vida transpõe-se, conforme Tomasi, Löwen Sahr e Sahr (2015), ao enquadramento de certos elementos socioculturais apontados nas políticas públicas brasileiras de integração social e racial. A condensação social dos dois grupos quilombolas precisa ser considerada não apenas pelas relações internas, mas diante dos vínculos com indivíduos externos em suas redes sociais, como parentes, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e instituições. Estes vínculos revelam a regionalização não mais numa escala intermediária entre o local e o estadual, ou local e nacional, ou ainda o nacional e o internacional, mas numa projeção escalar em rede, que articula espaços contínuos/descontínuos, próximos e distantes.
Buscando apontar elementos cotidianos da regionalização, compara-se,
através dos comportamentos relacionais, os laços sociais e a interação na
efetivação de redes sociais. Informações sobre os eventos esporádicos e ordinários,
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assim como comentários tecidos pelos quilombolas sobre suas relações sociais, são coletados em São João a partir de 2009 e em Santa Cruz desde 2011.
Para um estudo comparativo da articulação espacial quilombola propõem-se a junção com o regional. Sabendo-se que se compara implicitamente e, com frequência, de maneira inconsciente na vida cotidiana, destaca-se neste artigo a importância da comparação de viés regional. Compara-se não apenas pela escolha pura e simples de dois ou mais entes geográficos similares - regiões política e territorialmente estabelecidas do Vale do Ribeira e Campos Gerais Paranaenses em que estão inseridas as respectivas comunidades -, mas na imbricação do artifício metodológico e fato concreto/vivido. (HAESBAERT, 2010).
Na tentativa de fugir de abarcar a realidade quilombola em uma leitura generalizante de que a região/regionalização já está determinada e estabilizada, assim como, todos os espaços são da mesma forma articulados, ao método comparativo exalta-se a perspectiva regional de caráter geográfico proposta por Haesbaert (2010). Nesta, a região adquire um duplo papel, como “arte-fato”, isto é, tomada na imbricação entre “artifício” (analítico) e “fato” (realidade efetivamente construída e/ou vivida).
Logo, a análise comparativa aqui não representa uma técnica de levantamento e classificação de dados empíricos, mas uma perspectiva de análise social a partir dos eventos interacionais cotidianos quilombolas, que permite romper com a singularidade dos eventos para enaltecer as distintas combinações que ocorrem pela ação concreta dos diversos sujeitos que de fato constroem a diferenciação espacial.
2 – Comparação regional pela experiência social cotidiana
A comparação regional pela padronização espacial de aspectos semelhantes contribuiria para o forjar de espaços oficialmente denominados para os
“povos tradicionais”, supostamente mais fechados, estáveis e “conservadores”.
Todavia, nem por isso, obviamente na sua vivência, se construiriam espaços
também “tradicionais”. (HAESBAERT, 2014).
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Em contrapartida, a experiência social cotidiana destes sujeitos quilombolas apresenta espaços, na perspectiva que propõe Massey (2008), tidos como a dimensão do social: coexistência contemporânea de outros, que incorpora, concomitantemente, a esfera do múltiplo, tanto no sentido de sua “contabilidade”
quantitativa, quanto de sua mudança qualitativa. (MASSEY, 2008).
Uma abordagem alternativa de espaço se fundamenta em três proposições.
A primeira reconhece-o como “[...] produto de inter-relações, como sendo constituído através de interações [...]”. (MASSEY, 2008, p. 29). A segunda é a esfera da possibilidade da existência da multiplicidade dinâmica, na qual distintas trajetórias coexistem simultaneamente, fazendo presente a heterogeneidade e a pluralidade humana. A terceira destaca que o espaço está sempre em construção, visto que é um produto entre relações que estão sempre por serem efetivadas, por isso, o espaço não é algo acabado, fechado, um corte no tempo, e sim “[...] uma produção aberta contínua” (idem, p. 89), sujeita a novas conexões, um espaço-tempo sempre por se fazer, portanto, como uma “eventualidade”.
A “condensação social” que leva a articulação espacial se exprime em qualquer encontro mediado ou imediado, visto que este quando se inicia já reflete algum tipo de relação social do indivíduo com os outros em questão. Este indivíduo espera estar numa dada relação com os outros quando este encontro em particular terminar. É a efetivação de um relacionamento que faz com que a atividade de um encontro seja concebida como um esforço da parte de todos para atravessar a ocasião e eventos imprevistos e não intencionais que podem desacreditá-los, sem perturbar as relações dos participantes. (GOFFMAN, 2011, p. 46).
Goffman (2011, ver p. 39) destaca que em qualquer sociedade sempre que
surge a possibilidade física da interação falada, ou mesmo uma ocasião de fala ou
episódio de interação, um sistema de práticas, convenções e regras de
procedimentos entra em jogo, funcionando como um meio de orientar e organizar o
fluxo de mensagens. Portanto, “tudo que está ocorrendo numa interação é
governado por regras ou princípios em geral não declarados, estabelecidos mais ou
menos implicitamente pela natureza de alguma entidade maior, embora talvez
invisível dentro da qual ocorre a interação”. (GOFFMAN, 2012, p. 18).
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Quando os encontros permitem o contato dos quilombolas com outros indivíduos, têm-se as relações sociais na sua projeção em “redes sociais”. Esta, para Bott (1976, p. 299), “é definida como todas ou algumas unidades sociais (indivíduos ou grupos) com os quais um indivíduo particular ou um grupo está em contato”. Compreende-se que nem todos os componentes da rede são mobilizados em todas as situações de interação, embora se constituam em membros possíveis de entrarem em contato.
O que é imposto como impuro para tais grupos tradicionais, na verdade mostra-se como o permanente entrecruzar de trajetórias, que fazem de espaços
“estrategicamente” abertos (ou de “clausura relativa”) “o verdadeiro campo para, ao mesmo tempo, promover a batalha pela menor desigualdade e o embate de diferenças na eventualidade dos encontros, condição sine qua non para a emergência do efetivamente novo”. (HAESBAERT, 2014, s/p.)
Em trabalho recente, Alves (2015) defende a tese de que as populações quilombolas, suas organizações sociais ou modos de vida, estão mais diretamente conectados a uma dimensão espacial, que é a comunidade. No entanto, queremos aqui demonstrar que o comportamento cotidiano dos sujeitos quilombolas de Santa Cruz e São João revela, com maior sustentação, que a condensação/construção social se projeta nas redes sociais como dimensão espacial.
A experiência social é inerente à conduta quilombola durante os eventos de interação social, na qual se observa a aplicação de esquemas sociais ou naturais para os acontecimentos. Revelam-se padrões sociais ordinários, ou seja, certos acontecimentos fazem os indivíduos enquadrarem suas atividades dentro de esquemas sociais (regras e conveniências sociais) ou naturais (elementos físicos e biológicos). (GOFFMAN, 2012, p. 244-245).
Os quadros/enquadramentos referem-se, segundo Goffman (2012, p. 17), a
essa dimensão inevitavelmente relacional do significado, em que uma pessoa
determina como deve se comportar durante uma ocasião de conversa testando o
significado potencialmente simbólico de seus atos em relação às imagens que estão
sendo mantidas por outros indivíduos. Entretanto, ao fazer isto, ele incidentalmente
sujeita seu comportamento a ordem expressiva que prevalece e contribui para o
fluxo bem ordenado de mensagens. (idem, 2011, p. 44).
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No caso da Comunidade Quilombola de São João, apesar da sua aparente ideia de isolamento - por estar incrustada num fundo de vale, entre córregos e serras, sem estradas de acesso, e, infraestrutura mínima -, pode-se observar certa espontaneidade na efetivação de eventos sociais. De pequeno e grande porte, estes, no geral, caracterizam-se pelo improviso, destacando-se como unidade básica de interação para os quilombolas de São João, os “ajuntamentos”. Referem- se a qualquer conjunto de dois ou mais indivíduos que em determinado momento estão na presença imediata uns dos outros. (GOFFMAN, 2011, p. 138).
Isso inclui as conversas casuais com amigos, parentes e vizinhos (inclusive fazendeiros, sitiantes e assentados) nas casas dos quilombolas, nas trilhas, na guarita (entrada da comunidade) ou na praça central de Barra do Turvo-SP. Mas também as visitas aos quilombolas que migraram aos municípios paulistas de Boituva, Tatuí, Cajati e Sorocaba e seus vizinhos; e as reuniões e atividades intensificadas em 2009-2010 com representantes estatais (Incra, Copel, Cohapar, Prefeitura Municipal, Emater) e a ativação de encontros da associação regional das comunidades quilombolas e da federação estadual quilombola a partir 2011, entre outros eventos.
Todavia, a interação pode ser do tipo “ocasião social”, que segundo Goffman (2011, p. 138) representa um evento que é planejado e recordado como uma unidade, tem um horário e local de ocorrência e estabelece o tom para aquilo que acontece durante e dentro dele. A Festa do Biju, costumeiramente realizada na colheita da mandioca em São João, apresenta-se dentro deste tipo de interação, embora com algumas particularidades, como a de não ter grandes preparos prévios com designações das funções durante o evento. (LÖWEN SAHR et al., 2011, p. 122- 125). Também não se efetivou convites e confirmação de presença, tanto é que participantes inesperados fizeram-se presentes, como uma família de um sítio vizinho e representantes da Prefeitura Municipal de Adrianópolis-PR. Apesar de ter local fixo, a casa de farinha, não designou-se horário para seu início e término. Mas, toda a estrutura e a conduta quilombola apresentava o que se podia esperar do evento.
No entanto, quando se trata de festividades como aniversários e casamentos,
eventos casuais realizados em ambientes externos, e os cultos evangélicos,
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realizados semanalmente até 2010 na casa do antigo líder quilombola e posteriormente nas Igrejas da Barra do Turvo-SP, estes podem ser enquadrados fidedignamente na descrição de Goffman (2011) para a unidade básica de “ocasião social”. Eles são revestidos de formalidade e oficialidade.
Nos acontecimentos sociais ocorridos na Comunidade Quilombola de Santa Cruz, que está alocada numa área de multiplicidade de grupos étnicos, observou-se uma formalidade implícita nas conveniências sociais, pois tanto os eventos internos quanto os externos, que colocaram os quilombolas em contato com outros indivíduos, de modo geral foram eventos de grande porte, planejados com bastante antecedência e convite prévio, integrando o que Goffman (2011) denomina de
“ocasião social”. Dentro desta unidade básica de interação observaram-se festividades em Santa Cruz, como a Festa do Padroeiro Senhor Bom Jesus e a Festa de Aniversário de Quinze Anos, bem como a Festa do Pastel em Santa Cruz.
Observou-se ainda Festa do Padroeiro São Benedito e a Festa de Integração, na vizinha Comunidade Quilombola do Sutil. Todavia, também foram acompanhados eventos ordinários, como os cultos em Santa Cruz.
Instituições religiosas externas, como o Terreiro de Candomblé e Umbanda, em bairro periurbano de Ponta Grossa-PR, e, Igrejas Luteranas na Colônia Quero- Quero e Colônia do Lago, são frequentadas por alguns quilombolas de Santa Cruz.
A Federação Estadual Quilombola foi apontada na participação de eventos de instituições políticas, mas apenas pela família do antigo líder quilombola.
Foram observados “ajuntamentos” em atividades laborais de Santa Cruz como preparativos para as festas citadas anteriormente, após os cultos e em finais de semana, quando recebiam visitas em casa. Também em uma reunião na comunidade, em 2011, com representantes estatais do Incra.
O enquadramento das regras de conduta dos quilombolas de São João
reflete o contexto de sua inserção, por viverem em uma área de terras devolutas que
está constantemente sendo alvo de ocupação por fazendeiros, sitiantes, assentados,
palmiteiros, além de ter uma unidade de conservação permanente com a criação do
Parque Estadual das Lauráceas em 1970. Juntamente com a adesão a identidade
quilombola e o início do processo administrativo de Regularização Fundiária junto ao
Incra, acentuou ainda mais a conduta de comportamento pacífico dos quilombolas
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de São João para com outros indivíduos. Mesmo quando expostos a comportamentos adversos e repreensivos por parte dos indivíduos da circunvizinhança, como a colocação de cercas nos pontos de acesso, animais soltos nas plantações e queima de casas, eles buscam um comportamento retrativo preservando a boa convivência.
Na ocasião social da Festa do Biju, evento interno voltado aos costumes étnicos, teve-se a participação inesperada da família de um sitiante vizinho, no entanto, o comportamento relacional dos quilombolas de São João acolheu-os e integrou-os as atividades do evento realçando o trato social politizado que destinam principalmente a indivíduos com potencial conflituoso. Em outro momento, quando foram informados da morte da filha primogênita deste, mostraram-se bastante consternados com a fatalidade.
A Comunidade Quilombola de São João a partir de 1979 passou a conviver com o reassentamento temporário de famílias que viviam no Parque das Lauráceas.
(LÖWEN SAHR et al., 2011, p. 110). Todavia, duas delas passaram a ser reconhecidas como quilombolas, por laços matrimoniais, e outras duas, que ainda permanecem, deixam evidente no comportamento quilombola que nem sempre correspondem as regras da boa convivência em vizinhança adotada por eles. Estes os incluem nas reuniões na comunidade, nos cultos e na distribuição do livro publicado sobre a comunidade, mas os assentados em alguns eventos têm comportamento repressivo para com eles, como quando precisam passar por suas propriedades acompanhando as atividades de representantes estatais e encontraram as porteiras fechadas.
Quando se trata do comportamento quilombola em relação as instituições religiosas evangélicas, tem-se a participação de todo o grupo nos eventos na comunidade, realizados até 2010 na casa do antigo líder quilombola, que é também colaborador da Igreja Congregação Cristã do Brasil. Alguns seguem fielmente as regras religiosas, como vestimenta, não consumo de bebidas alcoólicas, etc. Outros não se julgam evangélicos, apenas participam dos momentos religiosos coletivos, já que não possuem na comunidade outro ambiente para expressar sua religiosidade.
Mas percebe-se que o vínculo religioso afeta principalmente a história oral através
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dos contos e causos que sofrem uma releitura no contexto evangélico. (LÖWEN SAHR et al., 2011, p. 98-107).
O líder quilombola em 2009, foi pressionado a deixar o cargo religioso pela Igreja (chefiada pelos fiéis fazendeiros e sitiantes) por seu vínculo com a identidade quilombola. Ele preferiu deixar de realizar cultos na comunidade do que deixar as questões quilombolas de lado. E novamente, em 2011, quando já estava há um ano viúvo, foi pressionado a casar-se para continuar realizando suas atividades religiosas. Cedeu ao vínculo matrimonial, o que o fez mudar temporariamente para Cajati-SP, onde tem participado dos eventos religiosos locais, no entanto, também mantém sua participação semanal nas Igrejas de Barra do Turvo-SP e contato esporádico com a comunidade. Sua residência na comunidade tem sido mantida com a ajuda de um amigo da Barra do Turvo-SP.
Os relacionamentos desta população se ampliam com as migrações de jovens e idosos quilombolas para áreas urbanas. O destino destes dois grupos é bastante regular, os jovens migram para dois bairros urbanos periféricos de Boituva- SP, onde está localizado o parque industrial da cidade. Existe um sistema de camaradagem entre eles para hospedagem, conseguir empregos, apresentar amigos, mostrar a cidade, e de pequenos favores com os vizinhos, que também tornam-se parte da família extensa, auxiliando-os no cotidiano com caronas, conversas, cuidado com as crianças e acompanhando-os nas visitas a comunidade.
Alguns quilombolas reemigraram para Tatuí-SP e Sorocaba-SP, cidades vizinhas que permitem o contato contínuo e os vínculos como as caronas para a comunidade e as excursões coletivas anuais para o Santuário de Aparecida do Norte-SP.
O destino dos idosos é migrar para a área urbana de Barra do Turvo-SP, onde conseguem melhor qualidade de vida e atendimento médico. No entanto, o restante da população que permanece na comunidade, na sua maioria, também está vinculada aos indivíduos da Barra do Turvo-SP, pois mantém lá uma segunda residência para ocasiões diversas em que precisam pernoitar naquele local.
A dimensão espacial das redes sociais vincula os quilombolas de São João a indivíduos externos urbanos e rurais ampliam significativamente a vivência social.
Os processos regionalizadores articulam a comunidade a espaços contínuos como o
município paulista limítrofe, Barra do Turvo, e a espaços descontínuos e
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significativamente distantes, como Boituva, Cajati, Tatuí e Sorocaba-SP. Apenas os vínculos com instituições políticas os articulam a espaços paranaenses, nem mesmo a sede municipal de Adrianópolis-PR é conhecida por todos.
O quadro de experiência dos quilombolas de Santa Cruz também projeta o contexto do ambiente social de sua inserção. Localizada na zona rural do município de Ponta Grossa-PR, a área é contemplada por rodovia estadual asfaltada de fácil acesso, cuja ocupação se deu a partir de 1875 por diferentes grupos de imigrantes incentivados pela política de colonização do interior paranaense. Estes se juntaram a uma população cabocla (luso-brasileira) e negra (afrodescendente) fixada na região durante os séculos XVII, XVIII e XIX. (TOMASI, 2013, p. 102).
Em 1878, alemães que viviam na região do Volga, na Rússia, estabeleceram- se entre Ponta Grossa e Palmeira-PR, fundando a Colônia do Lago, em 1920, outro grupo daquela mesma região estabeleceu-se próxima a este, fundando a Colônia Quero-Quero. Em 1958, russos da região siberiana asiática fixaram-se na área imediata a comunidade, fundando as Colônias Russas I, II e III. Entre essa época constituiu-se a Comunidade do Tabuleiro, entre duas comunidades quilombolas, Sutil e Santa Cruz, com uma população luso-brasileira, italiana e polonesa.
(TOMASI, 2013, p. 106-107).
Os eventos religiosos coletivos e tradicionais, como os cultos nas manhãs de domingo, ou as festas do Padroeiro Bom Jesus, realizadas todos os anos no mês de agosto, representam uma ocasião social, com grande quantidade de pessoas, o que revela o comportamento quilombola aplicado a esquemas sociais compartilhados com vizinhos do Tabuleiro, do Sutil
2e do Faxinal dos Polacos
3. Práticas e normas são aplicadas pelos quilombolas e vizinhos na manutenção destes eventos, abertos ao público em geral. Inclusive algumas atividades são de inteira responsabilidade dos vizinhos. Tem-se também a efetivação de um sistema de regras e normas para colaborar e contemplar a participação nas festas de padroeiros da vizinhança.
Anunciam categorias de participantes para a festividade, como a Comissão Organizadora, o Tríduo e os Festeiros. (TOMASI, 2013).
2 Comunidade Quilombola certificada em 2006, mesma data de Santa Cruz, a qual partilhada do mesmo passado histórico-escravista. Ambas descendem do mesmo grupo de escravos.
3 Segundo os moradores é composta por populações caboclas.