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Neste mundo é mais rico, o que mais rapa e Ode ao burguês : uma crítica ferrenha à sociedade

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Academic year: 2021

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“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês”: uma crítica ferrenha à sociedade

Natalia A. C. BISIO1 Raquel de Lima TURCI2

Resumo

Este trabalho tratará dos poemas “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, de Gregório de Matos, e “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, com o principal objetivo de demonstrar como dois textos de diferentes épocas tratam de um assunto universal, porém de maneiras distintas. O intuito é comparar esses poemas, observando as diferenças e semelhanças existentes na abordagem do tema, a partir da análise de aspectos formais e semânticos, enfim, compreender o fazer poético de um texto mais distante da contemporaneidade e outro mais próximo.

Palavras-chave: Barroco. Modernismo. Literatura comparada. Análise de poemas.

Abstract

This study presents the poems "Neste mundo é mais rico, o que mais rapa" by Gregorio de Matos, and "Ode ao burguês", by Mário de Andrade, in which the main objective is to demonstrate how two texts from different periods address a universal subject, but in different ways. The aim is to compare these poems, noting the differences and similarities in approach to the subject, based on the analysis of formal and semantic aspects, finally, understand the the poetic creation in a text distant from contemporaneity and a modern text.

Keywords: Baroque. Modernism. Comparative literature. Analysis of poems.

1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara – (UNESP), orientanda da Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite. CEP: 14800-721, Araraquara, São Paulo; e-mail: natalia-bisio@hotmail.com

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1. A comparação entre textos

A literatura está em perigo, como afirmou Todorov (2009) em seu trabalho do início do século XX, pois lhe foi tirado o poder de participar da formação cultural dos indivíduos da sociedade. Em meio à problemática que envolve o ensino dos estudos literários, como o trabalho privilegiado da crítica e das teorias, o ensaísta búlgaro também comenta o fato de a literatura ser apresentada aos alunos por meio da história literária, e não dos textos artísticos propriamente ditos. Além disso, tal concepção de história é marcada pela lógica de linearidade e causalidade, de modo que os movimentos literários se sucedem uns aos outros, seguindo a ideia de antes e depois, em uma concepção progressista, como se os textos ficassem ilhados em cada período literário, sem relação uns com os outros.

Leyla Perrone-Moisés (1990) coloca-se contra o conceito de uma história linear e causalista para os estudos da literatura: “Em arte não há progresso, não há avanço, em termos de valor. [...] a arte, e em particular a literatura, não tende a produzir um concerto harmonioso, [...] mas uma função crítica, contestadora, e uma função dilacerada em todos os níveis” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 93). A partir dessa ideia, a estudiosa discute a essência da literatura comparada, partindo das teorias do dialogismo de Bakhtin e da intertextualidade de Júlia Kristeva, em que ambos veem a literatura como um sistema de trocas; dos estudos de Tiniánov e de Borges sobre a evolução literária e a tradição; e das ideias da Antropofagia cultural de Oswald de Andrade. Assim, Leyla Perrone-Moisés chega à seguinte afirmação:

A literatura comparada não só se produz num constante diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da literatura; cada obra nova é uma continuação, das obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é pois dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94).

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a falsidade e a futilidade –, é trabalhado segundo as características próprias de seu contexto histórico e literário, porém sem perder sua universalidade.

Além da semelhança temática entre ambos os textos, pode-se também encontrar pontos de intersecção no fazer poético de duas épocas tão distantes historicamente, como o florescer de uma literatura brasileira mais autônoma, que, embora, nos dois casos, tenha se inspirado em movimentos advindos da Europa, fala de assuntos de sua própria pátria e demonstra por meio de seus processos formais o surgimento de uma consciência criadora nacional.

2. “Boca do Inferno”

A obra de Gregório de Matos (1636-1696) tornou-se um dos grandes paradigmas da poesia barroca no Brasil e, segundo Massaud Moisés (2001), a literatura brasileira floresce com a estética barroca. Ecos do Barroco europeu vieram para o Brasil nos séculos XVII e XVIII representados não só por Gregório de Matos, mas também Botelho de Oliveira, Frei Itaparica, entre outros. “O atrito entre os valores importados e as sugestões libertárias oriundas de um solo ainda inóspito, onde começava a florescer uma sociedade com pruridos de autonomia, constitui a grande marca da nossa literatura colonial” (MOISÉS, 2001, p. 80). Em um período muito importante na história da formação não só de uma literatura, mas de uma consciência nacional, eis a importância de um poeta de alto nível artístico como Gregório de Matos.

Os contrastes de sua produção literária são muito acentuados: desde a sátira mais irreverente até o pesar do poeta devoto. De acordo com Bosi (2006), tais contradições ocorrem devido à ambiguidade da vida moral existente como pano de fundo da educação ibero-jesuítica, em que a retórica nobre e moralizante mascarava o desejo pela riqueza e pelo gozo. É por isto que, em sua sátira, Gregório de Matos faz uso de um vocabulário popular e, muitas vezes chulo, sendo chamado de “Boca de Inferno” por conta da sua língua viperina que visava atingir autoridades da colônia, escravos, além de direcionar-se a todas as classes da nova sociedade, de preferência aos fidalgos “caramurus” – referindo-se à mestiçagem –, aos senhores de engenho e ao novo mercador lusitano, ávido por lucro.

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poemas que podem ser considerados as suas obras-primas no gênero, quer como denúncia social, quer como invenção poética” (MOISÉS, 2001, p. 97), como por exemplo o soneto “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, que será analisado mais adiante. A respeito da sua poesia sacra, Gregório era tão religioso quanto libertino. Tal paradoxo representa o estilo barroco. Já na poesia lírica, escreve peças de amor, também consideradas como obras-primas por Massaud Moisés (2001), sendo muito influenciado por Camões quanto à descrição de seus sentimentos amorosos. A força artesanal em Gregório é evidente. “Alguns de seus sonetos sacros e amorosos transpõem com brilho esquemas de Góngora e de Quevedo e valem como exemplo do gosto seiscentista de compor símiles e contrastes para enfunar imagens e destrinçar conceitos” (BOSI, 2006, p. 39).

Segundo Moisés (2001), a poesia gregoriana possui um arsenal metafórico, porém usado com discrição, e um jogo de palavras, ambas características típicas do Barroco. o autor utilizou-se também de trocadilhos, de rupturas de palavras no fim dos versos, “de um recurso formal que consiste em compor o poema com palavras terminadas em idêntico fonema” (MOISÉS, 2001, p. 94). Um novo recurso utilizado pelo poeta nesses anos de triunfo do cultismo ibérico foi a miscigenação da língua tupi – e, em menor escala, da língua africana – com sua dicção barroca.

Apesar de serem exemplos formais, Gregório não deixa de demonstrar uma temática que apresentava sua visão de mundo e da vida e suas vinculações conceptistas. Por tratar da experiência cotidiana, “os poemas gregorianos equivalem a páginas dum diário, nada íntimo, levando em consideração a vida libertina do poeta e o teor histórico e social das confidências” (MOISÉS, 2001, p. 95).

Segundo Bosi (2006),

Em toda sua poesia o achincalhe e a denúncia encorpam-se e movem-se à força de jogos sonoros, de rimas burlescas, de uma sintaxe apertada e ardida, de um léxico incisivo, quando não retalhante; tudo o que dá ao estilo de Gregório de Matos uma verve não igualada em toda a história da sátira brasileira posterior (BOSI, 2006, p.40).

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Enquanto Gregório viveu, seus poemas circulavam de mão em mão, de forma manuscrita, ou de maneira oral. Suas obras foram publicadas apenas no século XX, entre 1923 e 1933, pela Academia Brasileira de Letras, nos seis volumes a seguir: Sacra, referente aos poemas religiosos; Lírica, reunindo os poemas lírico-amorosos; Graciosa, com os poemas que exploram o humor; Satírica, contendo os poemas que exploram a sátira (portanto, é aqui que se encontra o soneto em análise); Última, em que há poemas de várias temáticas. A publicação da coletânea da Academia assim se organiza devido às várias configurações poéticas gregorianas, como a lírica, a sacra e a satírica. Posteriormente, os poemas gregorianos foram publicados em outras obras de reunião de poemas, como por exemplo, Poemas escolhidos, organizado por José Miguel Wisnik.

3. A flor baixa se inculca por Tulipa: a crítica à sociedade colonial

“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” Neste mundo é mais rico, o que mais rapa: Quem mais limpo se faz, tem mais carepa: Com sua língua ao nobre o vil decepa: O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa: Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa; Quem menos falar pode, mais increpa: Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa; Bengala hoje na mão, ontem garlopa: Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa, E mais não digo, porque a Musa topa Em apa, epa, ipa, opa, upa.

(MATOS, 1984. p. 42).

O poema “Neste mundo é mais rico o que mais rapa”, de Gregório de Matos, já deixa evidente, mesmo em uma primeira leitura desavisada, tanto a forma bem trabalhada que apresenta, quanto a crítica mordaz feita à sociedade de sua época: a do Brasil colônia no século XVII.

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apresentada pelo autor também é rígida, pois o soneto todo é composto em versos decassílabos.

Além disso, Gregório de Matos não deixa por menos ao compor as rimas de seu poema. Observam-se, nas duas primeiras estrofes, rimas soantes interpoladas e emparelhadas ABBA, como é percebido em “rapa”, “carepa”, “decepa”, “capa” e “mapa”, “trepa”, “increpa” e “Papa”. E, nos dois últimos tercetos, pode-se verificar que as rimas são soantes e intercaladas CDECDE, com “Tulipa”, “tripa”; “garlopa”, “topa” e “chupa”, “upa”.

Além dessas rimas verificadas ao fim de cada verso, o poema é extremamente trabalhado do ponto de vista sonoro ao apresentar também: rimas toantes, como as encontradas em “língua” e “limpo”; um vasto número de aliterações com a consoante p – “patife”, “pode”, “Papa” – ou com o som tr – “tropa”, “trapo”, “tripa” –, por exemplo; assonâncias como em “trepo”, “trapo” e “dinheiro”, “ligeiro”; e uma anáfora, encontrada na segunda estrofe com o termo “Quem”.

Como ocorre em todo bom poema, os aspectos formais até agora apresentados são estruturados de tal forma que contribuem para a construção do sentido do texto. Os sons de que o poeta mais se utiliza para construir o estrato sonoro de sua poesia são secos, travados e fortes, constituídos principalmente pelas vogais orais /a/ e /ε/, e por consoantes oclusivas, bilabiais surdas e alveolares vibrantes antecedidas por oclusivas, repetindo, desse modo, várias vezes os /p/, /t/, /k/, /t/, /bɾ/, /tɾ/.

Tal uso denota rigor, severidade e intensidade na fala do eu lírico, além de transmitir a sensação da presença de afirmações incisivas e de ideias fortes, definidas e persistentes, dando ao estrato sonoro, desse modo, o tom agressivo utilizado pelo autor no poema todo.

A linguagem adotada pelo poeta é satírica, portanto, também agressiva. Com um vocabulário chulo – no qual são encontrados termos como “chupa”, “tripa” e “patife” – que contém somente artigos definidos, tudo é bem claro e determinado, não ficando nas entrelinhas a quem o ataque dirige-se, fazendo com que o poema seja curto e grosso, sem cuidados ou delicadezas.

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A engenhosidade é também percebida na incorporação de antíteses como nobre/vil, limpo/sujo e elevado/baixo, que perpassam todo o poema a fim de representar a contradição existente entre aparência e realidade, e na apresentação de uma sintaxe apertada, ardida, repleta de correlações, verificadas, por exemplo, nos 2º e 6º versos, “Quem mais limpo se faz, tem mais carepa”, “Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa”.

Tudo isto é feito pelo autor a fim de que formalmente se consiga construir e reforçar aquilo que também transmite com maestria ao leitor no plano dos sentidos: a crítica ferina de sua sociedade.

Assim, é possível notar que, de maneira ácida, agressiva e bem construída, o poema fala sobre a encenação social e a forma questionável de enriquecimento encontrada no país, principalmente na sociedade baiana, à qual pertencia o poeta. Logo na primeira estrofe, já é dito que os mais ricos são os que roubam: “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e que o “Velhaco” sempre tem proteção, “capa”.

A crítica à encenação social é encontrada também nessa primeira estrofe, pois aquele que se apresenta como alguém muito limpo, que fala nobremente, em realidade, é sujo e “vil”, tendo inclusive mais “carepa”, ou seja, caspa. Ao observar-se com atenção essa estrofe, é possível reparar que a sujeira nela explicitada pode ser de caráter tanto físico quanto moral, quando se pensa em alguém muito preocupado com a aparência e com a vida social, mas que tem pouca moralidade.

A partir do que é apresentado nessa primeira estrofe, o ataque à sociedade persiste durante todo o soneto, sempre em tom intenso e agressivo por meio da sátira construída com seu vocabulário chulo e sua sonoridade seca. Percebe-se que a crítica sobre o enriquecimento questionável dos colonos é reafirmada na segunda estrofe, enquanto que na terceira é a encenação social que protagoniza. Já o último terceto fecha o soneto retomando de modo inteligente e sintético tudo o que já foi dito, ao utilizar-se da estratégia de expor as rimas que perpassaram o poema inteiro: “apa, epa, ipa, opa, upa”.

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corrompido e voltado às aparências da sociedade quando, nessa estrofe, é afirmado que aquele que tem o dinheiro conseguido por meio da “trepa” consegue até ser “Papa”.

No primeiro terceto, é evidenciado o fato de as aparências serem o que realmente importa a esta sociedade, pois até “A flor baixa se inculca por Tulipa”. Ademais, esse verso, juntamente com o que vem em seguida, leva o leitor a pensar também no quão questionável é a ascensão social da população colonial, sendo que essa aparente “tulipa”, em seu íntimo, é desonesta e imoral “flor baixa”.

Por fim, o poema é encerrado confirmando e reforçando tudo o que foi dito para a parcela repulsiva desta sociedade, principalmente quando, em uma grande manifestação de desprezo pela “tropa do trapo”, o eu-lírico vaza “a tripa”, expressão que tem o sentido de defecar. Sem contar que ele só não diz mais porque a “Musa” vai acabar topando novamente com as mesmas situações já descritas, aquelas que o interessante eco “apa, epa, ipa, opa e upa” retoma na última linha do poema ao utilizar-se do recurso de quebrar as últimas palavras de cada verso e dispô-las utilizar-sequencialmente.

Torna-se importante salientar que, nessa última estrofe, é estabelecido também um jogo com o elevado da épica e o rebaixado da sátira justamente quando é feita alusão à Musa: inspiração clássica dos poetas para que sejam capazes de cantar a poesia. Isso se compõe no texto como mais um reforçador das contradições que o perpassam desde seu início.

Um último fato interessante a ser observado no texto de Gregório de Matos é que somente as palavras “Velhaco”, “Papa”, “Tulipa” e “Musa” encontram-se escritas em letra maiúscula no meio dos versos, estabelecendo uma inevitável correlação entre esses quatro vocábulos. Escritos nessa ordem, um em cada estrofe, permitem o estabelecimento de mais um reforço engenhoso às ideias desenvolvidas no poema. Sendo as duas primeiras palavras masculinas e as duas últimas femininas, a relação entre as duplas formadas é evidente, colocando-as em um mesmo nível, tanto os velhacos e o papa, quanto a tulipa e a musa. Igualação que faz todo o sentido no texto, já que os que enriqueceram por meio da velhacaria conseguiriam tranquilamente ser papa, e a tulipa, flor rara e bela, é da mesma sublimidade da musa, aquela que inspira o poeta.

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Mário Raul de Andrade nasceu em São Paulo, em 9 de outubro de 1893. Formou-se no Conservatório Dramático e Musicale, em 1917, estreou com um volume de poesias chamado Há uma gota de sangue em cada poema, sob o pseudônimo de Mário Sobral.

Pôs-se à frente da geração que inaugurou o modernismo no Brasil e, com sua poética, seus “desvairismos” e “antropofagismos”, exerceu grande atividade em favor dessas ideias – sobretudo no início de tal movimento literário. Quando os anos de 1920-1921 viviam intensa campanha em favor dos ideais modernistas, Mário de Andrade escreveu Paulicéia Desvairada, obra que viria a público dois anos depois, após a Semana de Arte de Moderna, que pode ser considerada como uma “histórica virada de 1922”, segundo Massaud Moisés (2001).

O período anterior a 1922 era chamado de heróico por Mário de Andrade e, junto a Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, entre outros artistas, sabiam contra que, ou contra quem se rebelavam “[...] contra o status quo literário reinante no país [...]” (MOISÉS, 2001, p. 22, grifos do autor).

[...] pode-se perfeitamente localizar em 1922 um divisor de águas: invadíamos a história moderna, com todas as suas implicações. Parecia que despertávamos de secular hibernação, em que o nosso provincianismo ia de mãos dadas com o nosso subdesenvolvimento, para ingressar na modernidade. [...] Evidentemente, o atraso cultural não desaparecia como por milagre, mas a partir de 1922 acelera-se o processo da nossa identidade histórica [...] (MOISÉS, 2001, p. 18).

Como um “homem de 22”, Mário de Andrade viveu com “[...] dramaticidade uma consciência dividida entre a sedução da ‘cultura ocidental’ e as exigências do seu povo, múltiplo nas raízes históricas e na dispersão geográfica”. (BOSI, 2006, p.306). Ainda provou em sua ficção que, felizmente, conseguiu explorar essa multiplicidade.

Ensaísta e ficcionista, crítico de literatura e de música, tratadista e pesquisador de folclore, poeta e teórico de arte, homem de gabinete nas suas criações e homem de ação nas batalhas literárias, Mário de Andrade é um escritor que, na sua múltipla fragmentação, resiste, entretanto, a ser mutilado (MARTINS, 2002, p.259).

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contos a ensaios. Destaca-se de todas Paulicéia Desvairada, obra na qual se encontra o poema tema de nossa análise, “Ode ao burguês”. Lançada em 1922, deu, assim, “[...] o arranco inicial nos domínios da criação literária [...]” (MOISÉS, 2001, p. 52).

Segundo Benedito Nunes, em seu trabalho Mário de Andrade: Enfibriaturas do Modernismo (1984), Pauliceia desvairada foi um grande marco na história da literatura brasileira, pois “[...] pela primeira vez, frutificou, e até com certo atraso, em nossas letras e artes, ‘o estado de espírito universal, cujas manifestações mais clamorosas, cubismo e futurismo, deram seus primeiros vagidos europeus por 1909’” 3 (NUNES, 1984, p. 64). O próprio Mário de Andrade atesta esse atraso quanto às inovações advindas com os movimentos de vanguarda europeus em seu Prefácio Interessantíssimo – verdadeiro texto teórico sobre a poesia modernista, em que introduz seu novo “lirismo desvairado”:

E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem. (ANDRADE, M., 1966, p.14).

Mário de Andrade também revela em seu prefácio: “Não sou futurista (de Marinetti) [...] Tenho pontos de contato com o futurismo” (ANDRADE, 1966, p.16). Assim, o poeta demonstra sua leitura e aplicação dos movimentos vanguardistas europeus, porém reinterpretando-os segundo sua formação como poeta e criando uma poesia moderna totalmente brasileira.

Pauliceia Desvairada

[...] teria o destino de fixar não somente os rumos do Modernismo, em sua primeira fase, mas, também, os estais da carreira literária de Mário de Andrade: o experimentalismo e o individualismo, que, de resto, ele compartilhava com todos os seus companheiros de geração (MARTINS, 2002, p.191).

Tratando-se ainda de sua poesia, São Paulo constitui o ponto de partida de sua obra poética em Paulicéia Desvairada, e o seu ponto final, em Lira Paulistana. É nessa última obra, por sua vez, que se encontravam seus poemas mais maduros do ponto de

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vista estético. Talvez, foi o momento em que o autor pode ser ele mesmo, e como disse em 1942, fazendo um balanço melancólico do Modernismo, abandonar a ficção em favor de um homem-de-estudo, que, por natureza, não era.

Com vasta contribuição no cenário artístico e da crítica nacionais, Mário de Andrade morreu em 1945, deixando para trás sua complexa personalidade literária, longe de ter nos revelado todos os seus segredos.

5. Ódio ao burguês

“Ode ao burguês”

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros! que vivem dentro de muros sem pulos;

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais

o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!

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Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano! "– Ai, filha, que te darei pelos teus anos? – Um colar... – Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma! Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!... (ANDRADE, 1987. p. 88-89)

Vaias. É assim que o poema “Ode ao Burguês” foi recebido na semana de Arte Moderna, quando declamado pelo seu autor, Mário de Andrade. Tal ode tinha o objetivo de atingir uma classe, a burguesia, que se sentia gloriosa por seus grandes lucros. O poema irritou muitos industriais e fazendeiros de café.

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realmente ocorre é o contrário do que esse tipo de composição possibilita: a ode caracteriza-se por um poema que possui um tom alegre e entusiástico, e trata-se de uma composição de tom elevado. Assim, ao ler o título do poema, pode-se pensar que se trata de algo que vai elevar o burguês. Porém, Mário de Andrade é bastante irônico, pois, na verdade, a figura a qual dedica a ode será totalmente escandalizada. Com isso, é possível afirmar que o poeta joga com o som da palavra ode, que, lido na frase “ode ao burguês”, torna-se ódio, vocábulo que se repete várias vezes no texto.

Esse sentimento de raiva espalha-se por todo o poema, que tem um ar de manifesto. A presença constante de exclamações dá ao texto um tom eufórico e agressivo, que chega a se parecer com um discurso marxista dirigido a essa classe, a burguesia. “Ódio vermelho! Ódio fecundo [...]”, um sentimento da cor da bandeira comunista. Pode-se dizer que a rebeldia também é encontrada nesse texto não somente no plano temático, mas também no plano teórico: ao expressar uma forma inovadora, contra a rigidez das composições anteriores. Esse desejo de ruptura com o tradicional já começa, pode-se observar, no emprego de versos livres e brancos: a liberdade plena da forma.

Há, desse modo, um ritmo livre de uniformidades, que surge da exploração da potencialidade musical das orações. Sendo assim, nesse poema, não existe o trabalho com o metro. O que acontece é que todo o texto se constitui como um conjunto rítmico, totalmente sensorial. Essa liberdade dos ritmos ainda imprime uma significação estreita com o campo semântico, como se comprova na grande repetição do som /ↄ/, encontrado principalmente na palavra ódio, sobretudo na última estrofe, que expressa a intensidade emocional do eu-lírico quando expõe suas impressões sobre o burguês. O som /S/ também aparece várias vezes, assim como a palavra burguês, contribuindo também para o ritmo e a sonoridade do texto.

A expressividade dos fonemas também é obtida pelo seu posicionamento e sua iteração. Essa variação relacional se constrói nesse poema por meio das figuras fônicas, como a anáfora e o polissíndeto, em que ambos podem ser exemplificados com o verso “Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!” (ANDRADE, 1987, p. 89). É importante salientar que a anáfora é a figura fônica mais explorada no poema, dando, com a repetição dos vocábulos, uma sonoridade maior aos versos.

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estrofes: “Eu insulto o burguês! [...]”; “Eu insulto as aristocracias cautelosas!”; “Eu insulto o burguês-funesto!”. Além disso, os versos “Morte à gordura! /Morte às adiposidades cerebrais!/ Morte ao burguês-mensal!”, também podem exemplificar esses conjuntos semelhantes.

Todo o furor dirigido ao burguês expressa características do movimento futurista, sobretudo pela agressividade, uma das principais teses de Marinetti, italiano redator do primeiro manifesto futurista, Fondation et Manifeste du Futurisme (1909). A violência aparece praticamente nas 11 teses apresentadas por Marinetti. Para o futurista, na literatura, a intenção é romper com as tradições que exaltavam “[...] a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono [...] [e] exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco” (MARINETTI, 1926 apud TELES, 2009, p.115). Eis o modo como o poeta agride tanto ao burguês quanto à velha forma.

Nesse poema, do ponto de vista gramatical, é evidente também a relação com as ideias futuristas. A ordenação paratática, como por exemplo no verso “Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!” (ANDRADE, 1987, p. 89), que faz as orações semelhantes estruturalmente pela sua formação definida em um substantivo – que é sempre o mesmo: ódio – e um adjetivo. Trata-se do recurso chamado “palavras em liberdade”, em que as frases substantivas estão em aposição.

Com esse uso inovador da sintaxe, as imagens libertam-se. No Manifesto técnico da literatura futurista (1912), Marinetti já via a necessidade de libertação das imagens: “A poesia deve ser uma sequência ininterrupta de imagens novas [...]” (MARINETTI, 1968 apud TELES, 2009, p.120). Essa ideia das imagens dispostas em série acaba por lembrar também o princípio da simultaneidade dos futuristas, em que a arte deveria mostrar concomitantemente os vários estados da mente e a representação de estágios sucessivos de movimento. Em Mário de Andrade, portanto, a enumeração caótica, como outro emprego sintático utilizado nesse poema, está intimamente relacionada com a ideia de simultaneidade futurista.

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Além de toda essa expressividade da sintaxe, o poder sugestivo do poema é enriquecido com o emprego de determinadas classes de palavras, que têm uma importante funcionalidade literária. Há, por exemplo, o predomínio de artigos definidos, que indicam o interesse de revelar a essência do objeto referido no texto poético. Na maioria das vezes, esses artigos são ligados ao burguês, deixando claro que se fala desse tipo social.

Há também o uso recorrente de adjetivos unidos a um substantivo por um hífen, processo no qual o poeta utiliza uma espécie de “imagem-síntese” e cria palavras, relacionando o conteúdo conceitual dos dois vocábulos e formando um sentido novo. Trata-se de outro recurso criativo próximo ao conceito das palavras em liberdade. A criação desses compostos também imprime a ideia de simultaneidade e de fragmentação ao texto. É assim que surgem o “burguês- níquel”, o “burguês-burguês”, o “homem-curva”, o “homem-nádegas” dentre muitos outros. Pode-se dizer que esses neologismos concebem uma imagem metafórica, em que há uma relação binária entre as palavras, uma aproximação de dois termos em busca de uma nova significação. Tudo para falar de alguém extremamente ganancioso, que tem todas as características negativas: o burguês, homem estático e preguiçoso.

O poema, em sua crítica voraz a tal classe da sociedade, considera o burguês um homem que nunca muda, independentemente até de sua nacionalidade, sendo uma pessoa extremamente cautelosa, temerosa, comedida com o dinheiro e que tenta prever, medir e planejar tudo, sempre em busca do seu lucro. São aqueles que “algarismam os amanhãs”. Vê-se essa caracterização nos versos: “O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, / É sempre um cauteloso pouco a pouco” (ANDRADE, 1987, p. 88).

No poema, o burguês é a figura que quer a ascensão social e busca sempre as aparências: como se vê na segunda estrofe, as moças devem falar francês e tocar piano, pois é sinônimo de nobreza, de boa educação, e também na quarta estrofe, quando é transposta a fala do burguês e da filha, que quer um colar caro, para ostentar seu status. O retrato criado pelo eu lírico é de um homem que não nasceu nobre, mas que pode comprar títulos de nobreza –“Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros” (ANDRADE, 1987, p. 88). Toda essa classe está inserida em seu “mundinho”, numa vida regrada –“vivem dentro de muros sem pulos” (ANDRADE, 1987, p. 88).

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referência explícita ao hábito dessas pessoas de irem ao cinema e andarem nessa espécie de carroça – sendo relevante o fato de eles não andarem a pé. A justaposição dos substantivos cinema e tílburi a burguês, contudo, faz com que funcionem como adjetivos, o que nos permite pensar não apenas naquilo que está explícito, mas também em outros traços semânticos transferidos de um elemento a outro ao realizar-se a justaposição.

O termo “burguês-cinema” pode-nos remeter, por exemplo, ao grande valor que a burguesia dá às aparências, procurando copiar o modo de ser – tanto dos atores quanto dos personagens representados – importado pelo cinema, e exibindo futilmente a seu “público” o quão cinematográfica sua vida parece. Ao mesmo tempo, “burguês-tílburi” ressalta novamente os aspectos da preguiça e do ócio que constituem o burguês que não anda a pé, algo possível de ser relacionado, novamente, a um modo de vida repleto de glamour e ócio divulgado pelo cinema.

Esses termos, portanto, chamam a atenção para o aspecto do status: o burguês procura aparentar alguém bem sucedido, educado e culto perante a sociedade, e, como seu objetivo é, sobretudo, parecer tudo isso, não é necessário muito esforço de sua parte, realizando o suficiente para sustentar sua(s) máscara(s).

Algumas construções do poema levam-nos, ainda, a pensar em uma burguesia gulosa, com a mania da comilança, por fazer caracterizações utilizando-se de palavras referentes à comida, como: “o indigesto feijão com toucinho”; “gelatina pasma”; “purée de batatas morais”. “Come! Come-te a ti mesmo [...]” (ANDRADE, 1987, p. 89), conclui o eu-lírico. Há a referência intertextual com a conhecida frase filosófica de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Ao invés de conhecer seu interior em todos os aspectos e cuidar de seu intelectual, o burguês faz o contrário e não possui firmeza moral, é fútil e só pensa em dinheiro, cultivando suas “adiposidades cerebrais”.

Em seu mundinho de ganâncias, de luxos e de comilança, acrescenta-se ainda ao burguês a falsa religiosidade. É a figura de um homem que vai à igreja, mostra-se cristão, mas na verdade tudo isso é para manter as aparências. Para o eu-lírico é o burguês “cheirando religião e que não crê em Deus!” (ANDRADE, 1987, p. 89).

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Andrade: As enfibraturas do Modernismo, afirma que essa ode hostiliza a vida medíocre e o pouco desenvolvimento moral e mental dos burgueses,

Censurando-lhe o arrivismo, a pseudo cultura, o falso tradicionalismo e a falta de religiosidade autentica, o poeta arlequinal, dissidente dos hábitos da camada intelectual a que pertencia, achou-se igualmente em desacordo com a sua própria classe, mas sem dela divergir politicamente, muito embora rejeitasse o aparato da vida politica, relegada a categoria do grotesco (NUNES, 1984, p.68).

Todo esse ódio pela burguesia se dá, na última estrofe, com o trabalho de uma imagem visual bem sugestiva, na qual os burgueses marcham como soldados, no comando do general, o eu-lírico, rumo ao seu “rancor inebriante” – “De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!/ Dois a dois! Primeira posição! Marcha!”. Com essa marcha da burguesia, o eu-lírico termina o poema expressando toda sua raiva, seu ódio, parecendo expelir todo o seu sentimento em gritos, em um ar manifestante. “Fora! Fu! Fora o bom burguês!...”.

6. Ódio à tropa do trapo: a crítica agressiva em “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês”

Após as análises apresentadas dos poemas de Gregório de Matos e Mário de Andrade, é possível estabelecer pontos comuns e divergentes entre os textos, pois, como perceberemos no transcorrer deste tópico, mesmo com a distância temporal existente entre eles, suas aproximações são relevantes e aquilo que os diferencia constitui informação importante para melhor compreender-se o fazer poético de épocas distintas.

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exatamente estabelecidas e determinadas, sendo a sociedade dividida basicamente entre senhores de engenho, homens livres e escravos, algo bem diferente daquilo que se passava no Brasil do século XX de Mário de Andrade, em que o poeta criticará especialmente a burguesia.

Além disso, a abordagem de Gregório de Matos, por pertencer ao estilo barroco, é muito mais preocupada com uma forma mais rígida do que a abordagem feita por Mário de Andrade, um dos que iniciou o modernismo no Brasil. Enquanto no soneto tem-se uma forma poética fixa, de estrutura e métrica rijas, cheia de rimas e dotada de uma preocupação muito grande com as estruturas e os jogos sonoros; na poesia modernista encontra-se um texto em versos livres e brancos que trabalha com o aspecto sonoro de forma mais livre por meio de paralelismos e repetições de fonemas, utilizando-se mais da potencialidade musical da oração, do que de rimas. Contudo, em ambos os textos a sonoridade consegue intensificar o caráter agressivo e crítico dos poemas.

Outro aspecto a ser observado é o de que Mário de Andrade explora o léxico criando novas palavras e utilizando-as de forma não habitual, como quando diz “homem-nádegas” ou “barões lampiões”; já Gregório de Matos, no poema analisado, não cria neologismos, nem explora o léxico do mesmo modo que o vanguardista, porém abusa de metáforas e antíteses, construindo, também, por meio de uma sonoridade marcada e travada, repleta de sons oclusivos e vibrantes, sua crítica ferrenha.

Tais características formais e semânticas acima destacadas, apesar de serem próprias de seu contexto histórico e literário, marcam o florescer de uma literatura brasileira mais autônoma, que se apropria de assuntos nacionais, e o surgimento de uma consciência criadora nacional.

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Com efeito, não será difícil constatar que o discurso poético gregoriano difere em muitos aspectos do discurso padrão da poesia lusa do mesmo período, quer pela temperatura semântica, mais quente em sua referencialidade imediata, quer pela própria índole da dicção, menos solene e afetada. Para o acaloramento semântico do verso concorrem, sem dúvida, o aproveitamento de um novo material significante, retirado ao vivo de uma fala de nítida feição popular ou nativa, e o recurso frequente a um repertório temático de predominância prosaica. [...] Através da leitura digamos linguística da poesia de Gregório de Matos, o especialista poderá rastrear o fenômeno emergente de uma entonação brasileira da língua, que não será outro senão um modo já específico de sentir, de mentar e exprimir o choque entre as formas de herança e os estímulos e sugestões da peculiaridade tropical do país. Assim, a sua obra poética, aberta tanto estética quanto semanticamente e voltada sempre para a urgência comunicativa, traduz exemplarmente um processo de apropriação da linguagem e da realidade, que é o próprio processo do barroco brasileiro. (AVILA, 1977, p. 30).

Veem-se tais características apontadas acima pelo poeta e estudioso mineiro ao se observar que Gregório faz sua critica, em “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, de forma ferina, com um vocabulário chulo e popular – como já foi mostrado em nossa análise –, o que dá ao seu poema um tom tipicamente nacional.

Ainda no mesmo artigo, Ávila (1977) analisa o modernismo como um processo de reflexão sobre a linguagem e a realidade, retomando o elo da primitiva apropriação barroca e representando o grande vetor do processo literário brasileiro. Referente à linguagem poética, o modernismo instaura a liberdade formal e uma moderna criatividade estética:

Esse princípio valorizador da experimentação exerce-se em nível de reflexão, com o escritor voltado de início para a inerência linguística imediata – a palavra, a frase, o sintagma –, daí evoluindo para operações mais complexas que abarcam toda a problemática estrutural de seu texto. Entretanto, o que passa a ser questionado e reflexionado não é tão só uma linguagem literária brasileira que se precisa rever e reformular, mas a própria modernidade da escrita naquilo que as correntes internacionais do momento impõem então como força renovadora do pensamento criador. (AVILA, 1977, p. 34, grifos do autor).

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[...] o processo da reflexão modernista, como um grande leque de arejamento crítico, primeiro se abre ao sopro novo da viração universal, para depois fechar-se sobre nossa própria perplexidade e repensá-la já não apenas em termos de linguagem, mas sobretudo de realidade. O pêndulo linguagem/realidade, experimentação/construção ritmará o desenvolvimento do projeto literário brasileiro ao longo de uma vigência cíclica em que viremos, afinal, a conhecer a nossa opção maior de originalidade. (AVILA, 1977, p. 34, grifos do autor).

Tais características previstas por Ávila (1977) encontram-se em “Ode ao burguês” em seus versos livres e brancos, em seu trabalho por meio de paralelismos e repetições de fonemas e em sua exploração do léxico criando novas palavras. Todo esse trabalho criativo e muito original em termos literários é aplicado para refletir sobre o contexto de sua época, voltado para a contestação de uma casta social de seu tempo, a burguesia, preocupada somente com o seu status.

Assim, em “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês” não observamos somente a coincidência temática – a crítica a uma camada social hipócrita, fútil e de pouca moralidade – mas também o florescer de uma literatura preocupada em falar da realidade de seu tempo e criar uma expressão mais nacional.

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