TEREZINHA DE JESUS LOPES BARBOSA GEROLOMO
A PRESENÇA FEMININA DE ASCENDÊNCIA
PORTUGUESA NA CIDADE DE SÃO PAULO:
TRABALHO, SONHOS E ESPERANÇAS (1925-1945)
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História Social, sob a orientação da Prof. Dr. Maria Angélica Victória Miguela Careaga Sóler.
À memória de Dinorah e Laurinda,
matriarcas, que me deram a possibilidade de
“Defender, acima de tudo, os interesses da Mulher perante a vida social: para isso recordar-lhe-á o papel que tem a desempenhar na Família, na Sociedade, na Política, na Civilização em geral; evidenciará a sua poderosíssima influência educativa na alma das crianças que serão as mulheres e os homens d’amanhã; examinará tudo quanto represente um progresso na vida e na acção sociais da mulher em geral e da portuguesa em especial.”
AGRADECIMENTOS
Na minha trajetória, diversas pessoas tornaram a realização dessa pesquisa
possível, seja por meio de informações pertinentes ao tema, seja pela amizade e
companheirismo. Agradeço a todas e em especial:
Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduação em História, pelas
contribuições ao trabalho.
Aos colegas do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, que, com suas
pesquisas, me permitiram conhecer tantos aspectos do cotidiano português em
nosso país.
À professora Maria Angélica Victória Miguela Careaga Soler, pela orientação
segura, bem-humorada e aberta ao diálogo. O seu encorajamento foi
fundamental nas horas difíceis, fazendo desse meu o nosso trabalho.
Às professoras Maria Aparecida de Macedo Pascal e Maria Izilda dos Santos
Matos, pelas sugestões e críticas por ocasião do exame de qualificação.
Às senhoras mães, tias e avós que ajudaram a construir esse trabalho, sempre
dispostas a cooperar.
Ao meu amigo e companheiro Amilton Carlos, pelo estímulo constante, desde a
elaboração do projeto até a conclusão da pesquisa, compreendendo assim a
minha falta de atenção.
Aos meus pais, Antonio e Clara, pelo exemplo de luta e determinação,
fundamentais em minha trajetória.
RESUMO
Neste estudo ressalta-se a importância da presença feminina e a sua condição ao
longo das gerações, desde as raízes portuguesas até as filhas brasileiras. Busca
-se contextualizar econômica, política e socialmente Portugal, a terra natal dos
pais e avós, a partir do momento da sua emigração para o Brasil, particularmente
para a cidade de São Paulo. Em seguida, percorre-se toda a trajetória vivida
nesta cidade. Após a abordagem acerca do nascimento de cinco filhas de
famílias distintas, realiza-se uma pesquisa no movimento descrito por elas como
a história de suas vidas, desde o seu nascimento até a atualidade. Tais
abordagens tornaram-se possíveis por meio de consulta bibliográfica e
entrevistas, cujo roteiro incluía tópicos direcionados à procedência dos pais, à
moradia, à escola, à religiosidade, às núpcias, ao trabalho extradoméstico, ao
lazer, às relações e à mobilidade social. No entanto, observou-se que tais
entrevistas foram caracterizadas pela espontaneidade das entrevistadas. Assim,
utilizou-se a fonte oral como suporte, do mesmo jeito que a historiografia como
pano de fundo. Trabalha-se, então, com a memória e as lembranças dessas
senhoras, investigando-se suas trajetórias descritas e buscando-se, por
intermédio do diálogo, a substância social da memória tanto individual quanto
coletiva. Conclui-se que muitas indagações não foram atendidas, ficando para
um próximo trabalho; porém, acredita-se que a presente dissertação contribui
para os estudos sobre a imigração portuguesa e as gerações brasileiras, a
tradição e a cultura, bem como que as figuras femininas não ficaram silenciadas
ou excluídas, já que contaram a história de suas vidas, possibilitando dar
significado aos fatos que inicialmente poderiam parecer insignificantes, mas que
possuem uma importante significação para o historiador, a quem cabe abstrair
sobre eles, revelando um cenário de vida que a historiografia não poderia deixar
ABSTRACT
In this study, the importance of the feminine presence is highlighted along with
her condition during the generations, from the Portuguese roots to the Brazilian
daughters. It is sought to bring Portugal, the homeland of the parents and
grandparents, into the context, economically, politically and socially, as of the
moment of her emigration to Brazil, and particularly to the city of São Paulo.
Next, the whole trajectory lived in this city is traced. After considering the birth
of five daughters of different families, a survey is made on the movement
described by them as the history of their lives, since their birth up to the present
days. Such approach became possible by means of bibliographic survey and
interviews, whose routine included topics related to the parents’ antecedence,
the housing, the school, the religiosity, the wedding, the extra-home work, the
leisure, the relations and the social mobility. However, it was observed that such
interviews were characterized by the spontaneity of the interviewed women.
Thus, the verbal source was used as support, as well as the historiography as
background. It is then worked with the memories and recollections of these
ladies, investigating her lines described, and seeking, by means of dialogue, the
social substance of memory, both individual and collective. It is concluded that
many inquiries were not met, remaining for another work; however, it is
believed that this present dissertation contributes to the studies on the
Portuguese immigration and the Brazilian generations, the tradition and culture,
as well as that the feminine figures did not remain in silence or excluded, since
they told the story of their lives, making it possible to bring meaning to facts that
initially could seem insignificant, but which have an important meaning to the
historian, who is responsible for abstracting from them, revealing a life scenario
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS...11
I – LÁ (EM PORTUGAL)...26
1.1 A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA PORTUGUESA...27
1.2 CONTEXTO SÓCIO-ECONÔMICO DE PORTUGAL, À ÉPOCA DA EMIGRAÇÃO PARA O BRASIL...34
1.2.1 Organização política de Portugal...42
1.2.2 A partida...45
1.3 MULHERES EM PORTUGAL...50
II – CÁ (BRASIL)...56
2.1 A CHEGADA DOS ANTECESSORES...57
2.2 SÃO PAULO DOS ANTECESSORES...63
2.3 TRABALHO...68
2.4 TRABALHO FEMININO...76
2.5 PERCURSO DE RESIDÊNCIAS DOS ANTECESSORES...79
2.6 RELIGIOSIDADE E LAZER...83
III – DA CASA À ESCOLA...86
3.1 DAS CASAS ÀS RUAS...87
3.2 A IMPORTÂNCIA DOS BAIRROS PARA AS DEPOENTES...98
3.3 DEPOIS DO NASCIMENTO E DA INFÂNCIA, INICIA-SE O PROCESSO DA EDUCAÇÃO FORMAL – A ESCOLA...107
3.3.1 O Conhecimento que adquiriram na escola e que recordam, saudosas (A Instrução Formal)...112
IV – DOS PRIMEIROS TRABALHOS EXTRADOMÉSTICOS ÀS TECELAGENS...127
4.1 O PRIMEIRO TRABALHO EXTRADOMICÍLIO...128
4.2 CRUZANDO OS FIOS – AS TECELÃS...137
V – O VÍNCULO DAS GERAÇÕES...169
5.1.1 Ser descendente de português /Ser filha de português...173
5.2 SISTEMATIZANDO AS RELAÇÕES...177
5.2.1 Lazer...177
5.2.2 Religiosidade, Casamento e Celibato...181
5.2.2.1 Religiosidade...181
5.2.2.2 Casamento...186
5.2.2.3 Celibato...199
5.3 MOBILIDADE SOCIAL ENTRE AS GERAÇÕES...201
CONSIDERAÇÕES FINAIS...207
LISTA DE FIGURAS E TABELAS
FIGURA 1...12
FIGURA 2...33
FIGURA 3...44
FIGURA 4...56
FIGURA 5...106
FIGURA 6...137
FIGURA 7...185
TABELA 1...60
A presença feminina de ascendência portuguesa na cidade de São Paulo: trabalho, sonhos e esperanças, este título propõe a temática gênero feminino e imigração portuguesa.
Este mote me levou a rememorar os meus antepassados portugueses,
suas lutas e conquistas, e sua exploração talvez seja movida pelo imaginário que
povoa os meus pensamentos e desafios acadêmicos.
Um tema, para ser minuciosamente analisado, precisa ser de cunho
pessoal ou envolver interesses notórios. Como pesquisadora, sinto-me desafiada,
em particular, por assuntos que destacam a mulher como objeto principal e que
se referem à imigração portuguesa. Passei, então, a me dedicar ao seu estudo. As
análises, no entanto, simplesmente conduziram minha reflexão para outro
campo, o das peculiaridades das filhas desses imigrantes nascidas no Brasil.
A realidade encontrada em terras brasileiras pelos seus genitores foi bem
diferente da sonhada. Os imigrantes deveriam trabalhar longas horas, ficando à
mercê de seus patrícios melhor posicionados social e economicamente.
Os avós das personagens, que inspiraram o presente estudo, chegaram ao
Brasil durante o início da primeira década, enquanto os seus pais vieram no
decorrer desta e da segunda década do século XX. A bisavó materna esteve no
Brasil por um período breve, em torno de três anos, retornando em seguida para
a terra natal, enquanto os bisavós paternos não saíram de Portugal, vindo ao
Brasil quando a progenitora de três das entrevistadas não se aclimatou e retornou
imediatamente à “terrinha”, na qual vieram a falecer dezoito anos mais tarde.
Todavia, os avós das outras duas entrevistadas estiveram muitas vezes no
Brasil, em visitas, mas também faleceram na terra natal, a qual, segundo as
entrevistadas, era motivo de orgulho e felicidade, apesar dos “altos e baixos”
financeiros. Ao casarem-se entre si, esses imigrantes geraram figuras femininas,
as quais, ocultas até o momento, nesta dissertação serão estudadas.
Muitas indagações remoem os meus interesses quanto a essas
personagens e me fazem buscar uma abordagem inicial sobre os seus
ascendentes. Nesse sentido, investigar-se-á: Quais seriam os tipos de atividades
impulsionaram a aqui chegar? Tiveram de dispor de quantas economias e
esforços? E o mito do retorno, sempre se fez presente?
Em relação às jovens, pretende-se descobrir: Quais eram os seus sonhos?
O futuro acenava cheio de esperanças para uma “vida melhor”? Como foram
educadas? Quais foram os valores a elas transmitidos? Como eram os locais que
habitaram? Quantas alegrias e tristezas tiveram? Casaram-se e tiveram filhos? E
a cultura transmitida aos seus filhos foi a mesma que receberam dos pais?
Em meio a tantos questionamentos, esta temática foi aprofundada a tal
ponto que a segunda geração de portugueses no Brasil, representada por suas
filhas, revelou um traço genuíno da importância desse audaz emigrante de
ontem, de hoje e de amanhã.
A preferência pelo gênero feminino justifica-se por se tratar de uma
análise que busca favorecer a representação desse universo, quer no espaço
privado, em domicílio, quer no espaço público, em locais de trabalho ou onde
circula a sua presença, como em instituições religiosas, educacionais e em áreas
de lazer. Explica-se, ainda, por ser um público que recentemente passou a ser
explorado por historiadores, sociólogos e outros pesquisadores.
A respeito dos emigrantes, estes contavam com a lealdade da família1,
que os auxiliava na viagem, e estavam em busca de ascensão social e
conhecimento pessoal. Procuravam, ainda, estabilidade, alimentação, vestuário e
moradia, pois estavam fugindo da fome e procurando suprir suas necessidades
básicas, uma vez que o país de origem não lhes dava condições para poderem se
manter.
1
Todavia, para se analisar as razões que envolvem esse drama nacional da
emigração portuguesa, presente desde longa data, seria necessária uma discussão
muito densa, o que me afastaria da peculiaridade do gênero feminino e da
primeira geração nascida em solo brasileiro nesta primeira metade do século
XX. Assim, estabelece-se como ponto inicial da análise os anos dos nascimentos
das luso-brasileiras, que envolve o período de 1925 a 1945, sendo que este se
amplia conforme as recordações e histórias de vida comentadas pelas
entrevistadas.
A escolha do período não foi aleatória, mas proposital, pois se percebeu
que antes deste recorte temporal muitos emigrantes portugueses vieram para o
Brasil já com algum ofício, mas com pouco estudo. Vinham em busca de
trabalho, fama e fortuna e sonhavam em retornar para a terra natal bem
sucedidos.
Nos trabalhos acadêmicos, muito se tem abordado a respeito da
emigração portuguesa para o Brasil. Entre eles, vale destacar o estudo de Laura
Leitão Esteves2, intitulado “Entre duas pátrias, o mito do retorno: memórias e
imaginário de mulheres portuguesas em São Paulo”, que enfoca a pesquisa com
mulheres portuguesas que estão vivendo no Brasil há no mínimo quarenta anos.
Nesta pesquisa, as imigrantes relataram que se sentem “em casa” vivendo no
Brasil, mas que o desejo de retornar ao seu local de origem nunca deixou de
existir.
Outra pesquisa de destaque é a de Maria Aparecida Macedo Pascal3,
intitulada “Trajetórias e memórias de portugueses: gênero, trabalho e cotidiano.
São Paulo 1890-1930”. Este estudo também retrata o perfil de mulheres
imigrantes portuguesas em São Paulo, suas experiências, estratégias de
2
ESTEVES, Laura Leitão. Entre duas pátrias, o mito do retorno (memória e imaginário de mulheres portuguesas em São Paulo). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC-SP, 2000.
3
sobrevivência, novas possibilidades econômicas e mudanças no cotidiano de
vida.
Estes estudos, que muito favoreceram o desenvolvimento da presente
pesquisa, não beneficiaram em suas análises a primeira geração de mulheres de
ascendência portuguesa nascidas no Brasil. É esta abordagem que se pretende
examinar minuciosamente por intermédio dos depoimentos das entrevistadas.
Acredita-se, portanto, na necessidade de se saber mais acerca das
experiências e da vivência numa cidade em expansão que acolheu os
predecessores das entrevistadas, São Paulo. Como gostam de recordar os
saudosistas, São Paulo da garoa, das novidades, de muito trabalho e alguma
diversão. Uma cidade que ainda hoje ostenta ser uma das mais importantes do
Brasil, com seu ritmo desenfreado que mistura o trágico e o cômico, deixando
devanear os que não a conhecem.
São Paulo, a cidade das oportunidades, durante as primeiras décadas do
século XX, revelava duas faces: uma de desenvolvimento político, econômico e
social que favorecia as elites; e outra das camadas populares, compostas
principalmente por italianos, portugueses, espanhóis e brasileiros, que, devido
ao contínuo aumento do custo de vida e aos salários baixos, dentre outros
fatores, foram os geradores das crescentes manifestações operárias, destacando
-se as greves de 1917 e 1920.4
Em conseqüência desse burburinho social, ocorreram revoltas militares,
o Movimento Tenentista, os Anarquistas e os Comunistas. Entre tantos fracassos
e êxitos, a representatividade do operariado no Brasil foi sendo transformada
num sistema burocratizado, em que o sindicato não era mais que um escritório
dirigido com o propósito de estabelecer um controle sobre os operários.
A própria arte, a partir da Primeira Guerra Mundial, promovera uma
vigorosa crítica ao impressionismo, resultando numa mudança radical da
4
tendência artística no Brasil. Particularmente, o rompimento com a estética
tradicional revelou-se em 1922, com a Semana da Arte Moderna. Então, o
movimento modernista correspondeu às profundas transformações pelas quais
passava a sociedade brasileira, na qual a tradicional oligarquia agrária era
dominante, apesar do surto industrial e urbano.5
No decorrer de tantas mudanças, entre as quais as ligadas à linguagem, à
literatura e à arte, demonstram grande importância a memória e os mitos6 que
são transmitidos e difundidos de geração a geração, influenciando movimentos
operários e trabalhistas, particularidades familiares, bem como a formação de
bairros e associações. Assim, presencia-se o confronto do moderno e, ao mesmo
tempo, convive-se com o antigo, com os que resistem à mudança e relutam em
aceitá-la.
A memória é significativa porque reconstrói lembranças de lugares,
pessoas e práticas sociais que precisam ser investigadas para revelarem histórias
privadas, que irão constituir a história coletiva desse grupo de mulheres que
aguardam o momento de serem chamadas a falarem sobre si e externarem suas
próprias reflexões.
O modo como esses sujeitos pesquisados vivem no presente impulsionou
a busca de significados das maneiras de viver e trabalhar, bem como das
tradições e conflitos que constituíram a essência da vida das filhas de
portugueses e definiram o “ser filha de português”. Dessa maneira, procura-se,
ao ouvir as depoentes, vestígios da forma feminina ao se relacionar com o fato
de serem filhas de imigrantes portugueses. Apropriando-se ou não desse fator,
que não pode ser negado, essas personagens marcaram a presença desses
imigrantes nas ruas, nas cidades, nas escolas, na economia, na rotina doméstica e
nos hábitos familiares e culturais.
5
GOTLIB, Nádia Battella. TARSILA do Amaral. São Paulo: Brasiliense, 1983. 6
Cabe, então, apresentar as entrevistadas, para que se possa compreender
o porquê do trabalho de pesquisa, em um misto de mistério, tradição, cultura,
desejos, sonhos e esperanças.
Clara da Conceição Gonçalves tem cabelos grisalhos, curtos e geralmente presos por uma tiara.
Apresenta poucas rugas, expressão alegre e olhos em
um tom castanho-acinzentado. Aos seus 72 anos, é a
mais velha de doze irmãos. Está casada com o senhor
que conheceu quando freqüentavam a Igreja de Santa
Terezinha. O marido hoje é aposentado, cursou e
concluiu o Curso de Direito. O casal tem cinco filhos,
todos casados, três homens e duas mulheres, e dez netos, sendo sete rapazes e
três moças, com idades que variam entre dez e vinte e cinco anos. Ela nasceu no
bairro do Pari, na capital paulista, e ele nasceu no interior na cidade de
Avanhandava. Os pais de ambos eram portugueses, oriundos das regiões de
Helena Lopes Barbosa tem 79 anos, é religiosa e possui cabelos alvos encobertos por um
véu de pala branca e cinza. Seus olhos são castanho
-esverdeados e seu semblante revela severidade, mas
também bondade. Pertence à Congregação das Irmãs
Passionistas do Sagrado Coração de Jesus. Nasceu no
bairro da Saúde e é proveniente de uma família
composta de seis filhos, sendo a terceira filha do
casal. Ingressou no convento por vocação e chamado, aos vinte e quatro anos.
Quando concedeu a entrevista residia em São Roque e atualmente mora em
Taboão da Serra, ambos em São Paulo. Quando jovem, freqüentava a mesma
igreja que Clara. Seus pais eram portugueses, assim como seus avós, mas estes
só estiveram no Brasil em visita. O pai era natural de Vila Nova de Gaia,
batizado na paróquia de Lival, e a mãe da cidade do Porto, na paróquia de Garxi.
A história do enlace matrimonial deles não foi diferente da maioria de sua
época, o noivo foi escolhido pelos pais da jovem. Sua família era composta de
quatro irmãs e um irmão, o caçula, orgulho do pai, o “pequeno varão”. Seu pai
era um exímio carpinteiro, oficio aprendido em Portugal, e fazedor de vinho na
Maria de Fátima Costa tem 61 anos. Seus cabelos são grisalhos, de corte moderno, e sua face traz
alguns sinais da idade. É muito emotiva e apresenta um
sorriso amigável e jovial. Pertence a uma família de
quinze filhos, oito já falecidos, o que é por ela
lamentado até os dias de hoje. Sua atual profissão é
dona-de-casa. Casada, não tem filhos, mas é muito
estimada pelos sobrinhos, sendo considerada como
tia-avó pelos pequenos, motivo de orgulho e vaidade. Reside em Guarulhos, onde
os vizinhos a tratam com muita estima. O marido também é descendente de
português e italiano; ela o conheceu durante uma sessão de cinema, assistindo ao
filme “As aventuras de Omar Kayan”, estrelado por Cornel O’Nell, seu ator
predileto. Os pais de Fátima também são originários de Trás-os-Montes,
provenientes de quintas agrícolas e de comércio. Sua bisavó possuía uma
espécie de hospedaria, onde acolhia e alimentava os viajantes, que, em seguida,
Glória Gonçalves tem 69 anos, é esbelta e possui cabelos crespos, curtos e totalmente brancos;
seus óculos escondem um par de olhos fundos e negros
que transparecem muita tristeza. É a terceira dos irmãos
mais velhos de um total de doze. É mãe de duas moças,
sendo que uma vive na França e a outra mora na Zona
Norte. Rompeu com a família quando passou a viver
com um senhor militar quatorze anos mais velho que
ela. Seu companheiro era negro, militar e vivia com ela maritalmente, o que era
considerado por seu pai e seus irmãos como uma afronta moral e religiosa.
Contudo, hoje, depois de três anos da morte do marido, os irmãos a tratam sem
desdém. Ela é uma senhora reservada e que demonstra muita emoção quando
menciona o sofrimento da mãe no Brasil. Os avós, bem como os pais, são
oriundos da região de Trás os Montes. Glorinha, embora tivesse uma profissão,
Benigna de Lourdes Carminhati é mais conhecida como Viga e tem 72 anos; nasceu em Avanhandava e aos quatro meses veio para a capital
paulista. É a caçula da família, do total de seis
irmãos. Viúva, dona-de-casa, mãe de três filhos,
dois senhores e uma senhora, e avó de seis
adolescentes do sexo feminino, entre elas uma
adotada, e de dois rapazes, cujas idades variam de
quatorze a vinte e oito anos. É também bisavó de uma “linda” menina. A sua
aparência é de uma senhora robusta; seus olhos são verdes, seus cabelos
anelados e tingidos de loiro e seu sorriso é farto e muito amável; fala baixo e
ouve com dificuldade. Filha de imigrantes portugueses, provenientes das regiões
do Porto e Vila Nova de Gaia, casou-se com Augusto, filho de italianos da
região de Milão. Viveram bons anos em São Paulo, Capital, onde tiveram os
filhos e os netos. Quando veio a aposentadoria do marido, que era aeroviário,
foram viver em Descalvado, no interior. Na juventude, freqüentava a mesma
As entrevistadas apresentaram transformações quanto ao trabalho
doméstico e à educação dos filhos. Tais mudanças foram construídas
vagarosamente como representações sociais, que permitiram alterar as práticas
domésticas tradicionais, ou seja, os reflexos do status profissional do chefe, do
homem da família que a sustenta, sofrendo mudanças devido ao desenrolar das
relações sociais, embora não perca de todo o seu caráter significativo para elas.
Nessa estrutura familiar, a mulher tem o papel de “dona-de-casa”, subsidiária às
atividades do homem, porém busca práticas distintas para representar uma
alteração nesse ciclo tradicional.
Conforme a conjuntura social, a mulher era “chamada” a participar do
mercado de trabalho, mas as atividades que exercia fora de casa eram similares
às que executava em seu interior.7 Além disso, embora desempenhasse
atividades remuneradas, a mulher continuava sendo a responsável pelo
desempenho das tarefas domésticas.
As entrevistadas foram tecelãs e, como tais, passaram pela seguinte
trajetória: iniciaram pelo cargo de aprendiz, em seguida passaram a
desempenhar tarefas mais complexas e, à medida que adquiriram prática no
serviço, foram sendo sucessivamente transferidas, até atingirem tarefas que
demarcavam a produtividade, ou seja, o trabalho nos teares propriamente dito.
Portanto, a vida dessas mulheres foi em parte diferente da trajetória das
suas avós e mães, porque vivenciaram atividades remuneradas, em locais
próprios, com horários fixos ou acrescidos de horas-extras, ao mesmo tempo em
que trabalhavam em casa, exercendo as atividades domésticas e também
executando “pequenos” serviços para fora, tais como lavar, engomar, bordar,
costurar, engarrafar leite, preparar os cortes de carne de cabrito ou leitão,
organizar os feixes de flores ou verduras e cuidar de “rebentos” alheios. Com
isso, embora as avós e as mães também tenham exercido atividades
7
remuneradas, as filhas o fizeram em locais próprios, o que estabelece uma
distinção entre elas.
Seus rostos expressam, em cada ruga, não o acúmulo de perdas ou de
desejos nunca conquistados, mas, ao contrário, sorrisos e olhares repletos de
saudades das ilusões que só quem é jovem sonha conquistar. Em seus cabelos
alvos como nuvens brancas em dias de sol se escondem as desilusões e as
tristezas, mas também a contínua transformação. Lembram do relógio da fábrica
que controlava o tempo do capital, mas nunca o dos sonhos de cada ser humano.
Percebe-se, portanto, que essas mulheres têm muito a contar. Por isso,
torna-se indispensável uma busca detalhada sobre a cultura, as tradições, o
cotidiano, a educação, os estudos, as opções de casamento e a vida profissional
das personagens envolvidas nesta pesquisa. Para se transitar por esta proposta, é
necessário analisar o procedimento que as famílias adotaram quanto à emigração
para o Brasil, seja de um membro ou de todos em conjunto.
O corpus documental será empregado como “pano de fundo” para
registrar a história de vida das entrevistadas, bem como todos os acontecimentos
que eclodiram durante as suas trajetórias.
O presente estudo está constituído em vários capítulos. Pretende-se fazer
com que cada capítulo complemente-se e articule-se, viabilizando a
reconstituição do conjunto de possibilidades, sujeitos e fatores que
condicionaram um grupo de mulheres ao acesso a um tipo de trabalho externo,
fora do lar.
Inicialmente, explora-se o sentido do cotidiano português, as condições
sócio-econômicas, a família portuguesa, a mulher portuguesa e a trajetória dos
seus antecessores até o momento do embarque para o Brasil. Em seguida,
permeia-se pelos conceitos de emigração e imigração, fenômenos que, segundo
Serrão8, atingiram o seu auge para o Brasil nas primeiras décadas do século XX.
8
Depois, procura-se alinhavar a trajetória de vida dos pais das entrevistadas,
abordando-se questões como: Por que vieram para o Brasil? Como vieram?
Onde se estabeleceram? Consideravam a religião importante? Tinham
momentos de lazer?
Busca-se, ainda, entender os laços familiares, os trabalhos e as relações
de gênero que permearam a vida das filhas de imigrantes portugueses. Em
continuidade, investiga-se a história de vida das depoentes e as imagens que
guardam da casa, da rua, do bairro, da escola, do trabalho, do casamento e de
outros aspectos que marcaram sua trajetória, procurando-se explorar as relações
1.1 A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA PORTUGUESA
“São os vivos e os mortos são o presente e o passado.”9
Ao longo de várias gerações de uma determinada família, os casamentos
acontecem e são registradas variações de idade entre os nubentes, sugerindo
relações entre propriedade, idade, emigração, celibato feminino e agregados
familiares múltiplos.
Os estudos apontam que o homem português se casa, hoje, com idade
mais avançada que a mulher, por volta dos trinta anos. Nas primeiras décadas do
século XX, no entanto, ela casava-se mais “madura” que o homem, o que,
porém, não era uma norma. O número de casamentos entre mulheres solteiras e
homens viúvos também era elevado.
Ao contrário do que se imagina, não foi somente entre 1700 e 1749 que
as mulheres casadas tinham menos de dezenove anos. Nessa época, muitos
casais apresentavam diferença de idade de até sete anos, casando-se desde que
ocorresse a aprovação dos pais. Este foi o caso dos pais de Viga, fato talvez
isolado, já que na década de 1960 não ocorria com freqüência.10 Viga relata: “Os
meus pais vieram casados de Portugal, o meu pai era sete anos mais velho que a
minha mãe [...]. Ele natural de Vila Nova de Gaia e ela do Porto.”11
9
António Guedes de Campos, Poeta-engenheiro-português. 10
BRETTELL, Caroline B. Homens que Partem, Mulheres que Esperam. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991. p.120.
11
Paulatinamente, foi sendo introduzido o modelo de casamento
“mediterrânico”, caracterizado pelo matrimônio tardio dos homens, conjugado
com o casamento precoce das mulheres. Neste caso, a diferença de idades é
grande, em geral de dez anos ou mais. Já no modelo ocidental clássico, há,
comumente, uma pequena diferença de idades entre os cônjuges, com muitos
casamentos em que a esposa é até seis anos mais velha que seu marido.
As idades elevadas no casamento, em relação tanto aos homens quanto
às mulheres, não são exclusividades da sociedade rural do Norte de Portugal,
uma vez que fazem parte do “modelo de casamento da Europa ocidental”. Aliás,
por vezes, o matrimônio não acontece, elevando os índices de celibato
definitivo.
A prática dos casamentos, arranjados ou não, estava ligada aos interesses
das famílias, que procuravam a certeza de que a filha seria cuidada e de que a ela
e à sua prole não faltaria sustento. No que se refere ao filho, esperava-se que se
tornasse responsável pelos negócios da família, que buscasse fortuna em terras
de além mar ou, ao menos, que duplicasse o que possuía.
O casamento poderia acontecer tardiamente em função do sistema de
herança indivisa, segundo o qual apenas um filho era favorecido e herdava o
patrimônio da família, enquanto os seus irmãos eram obrigados a emigrar ou a
trabalhar como assalariados agrícolas, o que, por conseguinte, os levava a se
casarem mais tarde ou a não se casarem, já que suas condições financeiras
poderiam impedir o sustento familiar. Em contrapartida, o sistema de herança
divisa estabelecia que todos os irmãos deveriam receber uma parte do
patrimônio e, assim, ter uma fonte de apoio econômico. Este segundo sistema
sugeria casamentos mais cedo e em maior número. Contudo, a questão da
herança não interferia quando os pais possuíam pouca ou nenhuma terra, como
era o caso dos lavradores-rendeiros, dos caseiros e dos jornaleiros.
Enquanto o pai estava vivo, o adiamento dos casamentos era motivado
trabalho ou o rendimento potencial dos filhos e filhas solteiros(as), já que estes,
quando trabalhavam em atividades remuneradas, entregavam grande parte do
que ganhavam aos pais, procedimento comum no norte de Portugal. Parte desse
dinheiro deveria ser guardada para, no futuro, ser investida num presente de
casamento ou no enxoval, prática freqüente mesmo no período posterior à II
Guerra Mundial.12
Refletindo-se sobre a questão da herança, os filhos de famílias abastadas
ou sem posses significativas que se tornassem padres ou seguissem vida
religiosa também eram beneficiados com uma parte do legado dos pais.
Portanto, havia famílias com tendências para o celibato feminino ou masculino.
Este assunto referente à partilha de posses, desde o desdobramento das
terras até a divisão de bens de cunho afetivo, foi sempre gerador de tensões
familiares, conforme explica Clarinha:
Quando as terras foram vendidas, a partilha foi feita igualmente entre todos os irmãos e irmãs, somente um tio ficou em Portugal [precisamente na região de Chaves], vivendo em suas terras com os filhos, os demais receberam a sua parte e investiram em seus negócios no Brasil [...], mas ele [o pai] sempre dizia que fora passado para trás e não gostava de falar sobre isto.13
A região do Norte de Portugal caracterizava-se por abrigar famílias
extensas, como era o caso das famílias de três das entrevistadas deste estudo.
Com muitos agregados, a parentela vivia em função da lavoura, da caça e da
pesca nas regiões ribeirinhas. Já no Sul de Portugal prevaleciam as famílias
nucleares, que eram predominantes nos setores populares do campo e das
cidades, onde as famílias com tendências patriarcais eram mais freqüentes entre
os médios e pequenos proprietários e as classes médias urbanas.
12
BRETTELL, Caroline B. Op. cit., 1991. 13
O meu pai tinha muitos irmãos e irmãs, vários sobrinhos, tios e tias, todos ajudavam na lavoura, a tratarem do gado, mas também havia muita necessidade, muito sofrimento lá em Portugal, ele [o pai] não gostava de comentar mais nada de lá... Ficava muito triste.14
Os rapazes mais novos e arrojados, para se casarem, eram
freqüentemente obrigados a procurar fontes alternativas de rendimento. Uma vez
que na região onde moravam as oportunidades de trabalho não-agrícola bem
pago eram limitadas, a emigração constituía a melhor saída para tais jovens.
Se os homens adiavam os seus casamentos, as mulheres também o
faziam. No entanto, muitos jovens partiam de suas aldeias já casados e com
filhos pequenos em busca de melhores condições, conforme confirma Clarinha:
“Os meus avós partiram de Portugal, por volta do mês de outubro, porque aqui
chegaram em novembro de 1911, com uma filha recém-nascida, estavam com
mais ou menos uns vinte e poucos anos.”15
Os avós de Clarinha poderiam também ter colaborado para elevar o
número das migrações sazonais, que ocorriam no final do outono e nos meses de
inverno, períodos em que o trabalho agrícola em Portugal era menos intenso. Por
conseguinte, os casamentos ocorriam mais freqüentemente durante os meses das
colheitas, ou seja, no verão, época em que os trabalhadores portugueses tinham
melhores condições financeiras.
Até as primeiras décadas do século XX, entre as pessoas que se casavam
e continuavam a viver com a família dos pais o matrimônio ocorria mais cedo.
14
Fátima, 61 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 23/12/2004. 15
Já entre aquelas que optavam por formar o seu próprio núcleo familiar, o
casamento ocorria mais tarde. Com o passar dos anos, a preferência pela família
nuclear, embora fosse uma tendência cultural antiga, também sofreu
modificações e se adaptou às novas realidades. Os casais, então, passavam a ter
como agregados uma irmã solteira, um neto ilegítimo ou um progenitor viúvo.
Afirma-se que a preferência pela família nuclear tem de ser vista no
contexto da “esperança” que culturalmente se definiu de que os filhos cuidassem
dos pais idosos e os membros da família cuidassem uns dos outros. Quando isto
não acontecia naturalmente, os testamentos apresentavam promessas de
transmissão de bens àqueles que assim agissem.16
A norma contida na família nuclear de zelar uns pelos outros era flexível,
permitindo que os indivíduos se adaptassem às oportunidades ou necessidades
em vários momentos da vida cotidiana. Contudo, esta norma era um ideal
aspirado por muitos casais, mas, para ser alcançada, dependia de cada
experiência de vida. Ainda que a nuclearidade fosse conseguida, isto não
impedia a total independência social, emocional ou econômica em relação aos
outros membros da família.
A economia rural era caracterizada pelo minifúndio extremo e pela
sucessão de tarefas agrícolas ao longo do ano. As famílias nucleares que
trocavam serviços mútuos com base nos laços de parentesco ou até de
16
vizinhança eram igualmente eficazes. Até mesmo atualmente, essa forma de
troca de serviços é mantida, permitindo fazer uma distinção entre família e
agregado.
Em épocas de crises econômicas, demográficas e políticas, a idade no
casamento e o celibato feminino definitivo são fatores que contribuem para
elevar os índices de emigração. Na Europa Ocidental, particularmente em
Portugal, o controle da natalidade é a resposta mais direta à mudança de
condições econômicas nas primeiras fases da transição demográfica.
Justificando a existência e a relação entre esses fenômenos, Balbi afirma:
Os jovens de ambos os sexos, em vez de cederem à tendência natural para se unirem pelos laços sagrados do casamento, entregam-se a uma vida de libertinagem; outros esperam até fazer fortuna para casar; na espera, as raparigas envelhecem e em cada uma que espera até aos trinta e cinco anos para casar o estado perde dois terços da sua fecundidade.17
Porém, não se pode deixar de inferir sobre as condições econômicas e
físicas no que se refere à formação de um novo agregado familiar. Talvez essas
condições sejam mais determinantes do que a decisão consciente de se limitar o
tamanho da família.
Depois de abordar a movimentação em Portugal sobre o casamento, o
celibato, espontâneo ou não, as dificuldades financeiras e as parcas oscilações de
ofícios, o presente estudo refletirá acerca da situação política e social de
Portugal no período em que os progenitores das mulheres que contribuíram para
esta pesquisa com seus depoimentos emigraram de Portugal.
17
1.2 CONTEXTO SÓCIO-ECONÔMICO DE PORTUGAL, À ÉPOCA DA
EMIGRAÇÃO PARA O BRASIL
Neste item, pretende-se caracterizar o contexto português no período em
que os avós e os pais das mulheres entrevistadas neste estudo emigraram.
Na virada do século XIX para o XX e nas primeiras décadas deste, nas
zonas rurais do Noroeste de Portugal, as difíceis condições de vida geraram a
proletarização, que não só engrossou as fileiras dos que não possuíam terras,
como também promoveu a emigração maciça.
O meu avô [materno] comentava que veio para o Brasil para melhorar as suas condições de vida, ele era proveniente de Vinhais.18
Sei que comentavam que ela [a sua mãe] veio em definitivo para o Brasil com mais ou menos 13 anos, em companhia da tia, aliás, a irmã do meu avô, a tia Liberata, que era muito querida [...] a sua cidade natal era Macedo de Cavaleiros, lá colhiam muitas frutas, que eram gostosas e bonitas.19
Vinhais é uma freguesia do Conselho de Macedo de Cavaleiros, distrito
e diocese de Bragança, província de Trás-os-Montes. A povoação, após o
Decreto de 24 de outubro de 1855, passou a Macedo de Cavaleiros, a comarca
de Mirandela. Em 1863, a vila de Macedo de Cavaleiros foi elevada à categoria
de sede de comarca, pertencente ao Conselho e Comarca de Macedo de
Cavaleiros.
Vinhais foi grande produtora de cereais, castanhas, cortiça, batatas,
azeite, vinho, ervas e frutas, mas no início do século XX foi acometida por
várias pestes agrícolas, que aniquilaram os vinhedos de quase toda a província.
18
Clarinha, 72 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 08/01/2005. 19
Esta freguesia se destacava também pela produção de lã e pela criação de uma
variedade de gado: o ovelhum, o muar, o vacum e o suíno. Na região, podia-se
observar, ainda, a pesca nos ribeirões e a caça de lebres, coelhos, perdizes, lobos
e raposas. Porém, a necessidade de abertura de várias vias de acesso pelos
arredores da área, entre outros fatores, levou a caça e a criação de gado à
escassez, contribuiu para o aumento do número de assaltos no povoado e limitou
o comércio local por falta de comunicação.
Vinhais contava com magníficos prados e amplos vales, os quais, depois,
foram subdivididos pelos moradores. Outrora, o povoado se erguia no cimo dos
vales, de onde dominava toda a extensão no horizonte. No entanto, em função da
necessidade de sobrevivência e de fuga dos maus tratos e das violências
impingidas, muitos decidiram partir para outro país. Aos que ficaram na região
restaram poucas ocupações, como a função de jornaleiro, exercida, em geral,
pelos antigos pequenos lavradores. Os jornaleiros também haviam adiado o
casamento, na esperança de juntarem dinheiro para comprar terras e voltarem a
pertencer ao grupo dos detentores de bens.
A tia-avó de Clarinha, nascida em Vinhais, mudou de aldeia em busca de
melhores oportunidades, trabalhou duramente, mas morreu sem retornar à aldeia
natal, conforme demonstra seu depoimento: “A minha tia saiu do campo, da
aldeia de Vinhais, para vender peixe no Porto, ela era ‘varina’, cantarolava e
salgava o peixe como ninguém, mas morreu pobre, na miséria mesmo.”20
20
Portanto:
A migração sazonal não era uma fuga da família de agricultores, mas sim uma condição da sobrevivência da mesma. Os camponeses partiam não para conseguirem uma nova ocupação numa sociedade diferente, mas sim para melhorarem a sua posição na própria sociedade a que pertenciam.21
A emigração, deste modo, caracterizou o cenário no Noroeste de
Portugal, reforçando a elevação das idades no casamento, relacionada com a
fragmentação da terra e da pequena propriedade, que, por sua vez, estava
associada ao cultivo de terras arrendadas.
Assim, os herdeiros eram levados a emigrar para constituírem agregados
independentes, como ocorreu com os familiares de Clarinha, que relata: “As
minhas tias comentavam que a região [Trás-os-Montes] foi uma das que, nos
últimos anos, foi e talvez continuaria a ser a que mais perdeu a sua população,
porque todos partiam.”22
A alteração do modo de vida dos habitantes da região de Trás-os-Montes
é, em grande parte, responsável pelo fato desta região se apresentar, atualmente,
como uma das áreas com mais baixa densidade populacional.23
A fragmentação das terras e o agravamento geral das condições
econômicas foram fatores muitas vezes decisórios para a emigração. Estas
correntes migratórias tinham a expectativa de retornarem à terra natal, mas
muitos que partiram nunca regressaram, como foi o caso da mãe de Glorinha.
21
HABAKKUK, H. G. Apud BRETTELL, Caroline B. Op. cit., 1991. 22
Clarinha, 72 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 08/01/2005. 23
A minha mãe contava que, lá em Portugal, é que se vivia, corria pelas pastagens, ajudava a moer o trigo, para fazer farinha, auxiliava nos afazeres domésticos. Os seus tios já eram adultos e a tratavam como uma verdadeira princesa, a cobriam de mimos e carinhos. É que minha avó possuía uma hospedaria, onde os viajantes paravam para se alimentar, passar a noite e prosseguir o seu caminho. Ela tinha horta, uma pequena criação de cabras, porcos, galinhas e patos, para poder sustentar os viajantes e a se manterem também, pois tudo era produzido ali, o pão, as carnes, a banha, o leite para as crianças, era sempre “fresquinho”, tirado na hora mesmo.24
Em geral, era quando a mulher se via obrigada a deixar a “terrinha” que
percebia como era rico aquele Portugal, país onde formara sua identidade e
firmara laços afetivos. No entanto, bastava uma carta de chamada dos pais para
separá-la da terra natal, do lar que conhecia, daquela paisagem e dos seus
afazeres.
A tradição, a honra e a palavra proferida e cumprida eram códigos de
uma identidade que fora gerada nos braços de uma cultura, talvez onde as
pessoas não possuíam outros bens senão aqueles mantidos por sua cepa. Nesse
sentido, Fátima relata:
O meu avô trouxe o seguinte aprendizado de Portugal, um homem vale pela sua palavra, porque a dele era mantida e todos o respeitavam por isso. A palavra de um homem tem o mesmo valor que a sua própria família.25
Já a família de Helena viveu uma experiência diferente. Seu avô era um
próspero comerciante e negociante com estudos. Seu pai emigrou para o Brasil,
engrossando as fileiras dos que buscavam a “árvore das patacas”, o
enriquecimento e o retorno glorioso ao lado da jovem mulher. Dessa forma,
reforçava o mito do retorno, do enriquecimento rápido. Mas teria tido êxito na
sua aventura? Talvez, mais adiante teremos esta resposta.
24
Glorinha, 70 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 02/02/2005. 25
Os meus pais pouco falavam de Portugal, a minha mãe contava que o pai dela era um próspero comerciante, e fez muitas viagens para o Brasil para visitá-la, ela viveu lá até os dezessete anos. Já o meu pai aprendeu o ofício de carpinteiro e estudou até o primário, sabia fazer vinho, remédios caseiros, era meio inventor, vivia elaborando máquinas, mas nunca deu certo, veio para o Brasil com mais ou menos vinte e poucos anos, eu já não me recordo direito.26
O depoimento de Viga, apresentado a seguir, sugere uma reflexão sobre
a influência da imagem dos pais sobre os filhos e a própria família. Além disso,
expressa o despertar de sentimentos de admiração e orgulho que as múltiplas
formas de trabalho motivam, bem como a necessidade de sobrevivência em um
local onde as condições de existência se tornam difíceis, seja pela política
empregada, pelos apelos econômicos ou pelas próprias exigências do
desenvolvimento e da modernização do país.
A minha mãe vivia no litoral e vendia peixe, cantava e salgava os peixes para vender no porto. Contava que era um movimento só, havia muitas pessoas e, às vezes, ocorriam algumas brigas. Ela aprendeu a salgar peixe com os pais, que também comercializavam outros produtos. Quanto ao meu pai, só sei que ele sabia fazer muitas coisas que aprendeu em Portugal, como serviços de carpintaria, consertar panelas, colocar alças em latas para usar como medidor, comprar uvas selecionadas para fazer vinho. Papai era muito inteligente.27
A tia de uma das entrevistadas neste estudo também pôde contribuir para
esta análise, e relembrou algumas experiências de seus pais e avós:
Os meus pais são de aldeias em Portugal, Vinhas e Macedo de Cavalheiros, são da região de Trás-os-Montes, quando eles nasceram eu não sei, mas eles vieram para o Brasil mais ou menos com seus vinte anos. A minha avó, mãe do meu pai, era cigana, também era louca por dinheiro. Ela ficou no Brasil, por volta de três anos, veio junto com o meu pai. Ela montou uma hospedaria, uma pensão para rapazes, porque eles pagavam. Ela não queria saber de “calcinhas”, só de “ciroulas”, porque eles
26
Helena, 80 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 23/11/2005. 27
pagavam. O local era pelos lados da Frei Caneca, não recordo o nome do bairro, será Luz, Val Paraíso, Consolação ou Liberdade?
A minha avó gostava muito de ouro, veio para cá atrás de ouro, mas não encontrou nada, então voltou para lá e não voltou mais aqui. Voltou para Macedo de Cavalheiros, para a aldeia, não para o Porto, porque quem vivia no Porto era quem tinha dinheiro, comércio, ela não, voltou para a aldeia, para o interior mesmo. A irmã dela era “varina”, vendia peixe na rua, dizia que fazia bons negócios.
Porém, a mãe da minha mãe nunca veio para cá, só a mãe de meu pai. Ela era mais quieta, sossegada mesmo, cuidava da lavoura, dos filhos, da casa, nunca quis saber de se aventurar.28
Neste depoimento, destacam-se duas idéias: a primeira se refere à
valorização dos bens adquiridos ou herdados e à necessidade de mantê-los,
mesmo que para isso seja preciso passar por privações, sendo o mais importante
manter a terra, este vínculo com os antepassados; e a segunda diz respeito à
necessidade de se manter o “mito do retorno”29, indo-se em busca do
enriquecimento rápido no Brasil, visto como terra do ouro, do eldorado, mas
retornando-se à terra natal para gozar das glórias alcançadas.30
28
Guilherma, 82 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 27/04/2006. 29
A respeito da manutenção do mito do retorno, consultar: ESTEVES, Laura Leitão. Entre duas pátrias, o mito do retorno (Memórias e Imaginário de Mulheres Portuguesas em São Paulo). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC-SP, 2000.
30
“A denominação de brasileiro adquiriu para nós uma significação singular e desconhecida para o resto do mundo. Em Portugal, a primeira idéia talvez que suscite este vocábulo é de um indivíduo cujas características principais e quase exclusivas são viver com maior ou menor largueza, e não ter nascido no Brasil; ser um homem que partiu de Portugal na puerícia ou na mocidade mais ou menos pobre e que, anos depois, voltou mais ou menos rico. Escrito por Alexandre Herculano, em carta dirigida ao conselheiro José Bento da Silva, em 1873. O facto de em Portugal ser apelidado de ‘Brasileiro’ um emigrante que do Brasil regressa em situação de afluência económica e não uma categoria genérica de emigrantes retornados do Brasil em situação económica indefinida. Portanto, ‘Brasileiros’ são os ricos e poderosos socialmente visíveis, que deixam a sua marca na paisagem social que os envolve, asejaa nas residências ou nas obras de benemeritas. A tendência para a ostentação torna-se, deste modo, uma afirmação de poder por parte de quem provavelmente partiu no anonimato da pobreza e que, pelo fruto do seu trabalho e sacrifício, entendia afirmar então o seu nome e a sua posição.” TRINDADE, Maria Beatriz Rocha. Portugal-Brasil, Migrações e Migrantes, 1850-1930. Lisboa, s/d. p.85.
No entanto, nem todos os imigrantes enriqueceram, mas a sua maioria
teve que enfrentar as saudades da família e da terra natal. Aqueles que
retornaram a Portugal sem as glórias esperadas frustraram-se, mas retomaram
sua vida cotidiana. Em pior situação ficaram aqueles que não conseguiram
economizar o dinheiro suficiente para a compra da passagem a Portugal. Os que
retornaram, mesmo sem dinheiro, levaram consigo, ao menos, a certeza de que
poderiam falecer e ser sepultados na terra dos seus antepassados. Nesse sentido,
vale destacar uma frase de António Campos: “Todos somos, de algum modo,
emigrantes da vida e apelamos dentro do nosso coração, pelo retorno a um
paraíso (talvez) perdido [...].”31
As questões que envolvem o retorno, a ausência de recursos para a
“viagem de visita” e o não-enriquecimento são abordadas também em outros
depoimentos, como se pode verificar nas próximas linhas, nas quais o relato de
Clarinha sobre a experiência de seus pais é reproduzido:
O meu pai nunca teve a oportunidade de retornar à terra natal [...] por um lado porque trabalhava na prefeitura, não recebia muito, por outro porque tinha os filhos para cuidar e educar [...] a minha mãe não queria voltar mais para Portugal porque, perto do casamento dela, veio uma carta avisando que a minha bisavó falecera. Isto a deixou muito amargurada, porque o sonho dela era um dia voltar para Portugal para rever a mãe, porque ela tratava a avó assim. Assim, ela nunca teve a oportunidade de retornar para lá.32
Como se sabe, o salário do funcionário público nunca foi considerado
alto, principalmente no que se refere àqueles que ocupavam as funções que
exigiam pouco ou nenhum estudo. Além disso, o pai de Clarinha fixou suas
raízes no Brasil, onde se casou com uma conterrânea e teve filhos, os quais
31
Adaptado do autor António Campos, natural de Lisboa, nascido em 1933. 32
deveria educar, alimentar e vestir. Para sua mãe, Portugal era uma vaga
lembrança, uma vez que o elo afetivo que a atava à sua “terra natal” já havia
falecido, longe dos seus cuidados e carinhos. Tais fatores, então, os impediram
de retornar a Portugal.
Já Fátima comenta:
Ele [o pai] nunca voltou para Portugal, porque ele tinha medo de não morrer no Brasil, porque era a terra que ele amava mesmo... Ela [a mãe] não mantinha vínculo com a terra natal, nunca voltou para lá e também não queria. Nenhum dos dois queria voltar para lá. Não era o sonho deles.33
Quando rapazote, o pai de Fátima trabalhou intensamente nos vales
rochosos de Portugal e presenciou a perda da pequena propriedade paterna,
assim como o desgosto dos pais. Então, quando surgiu a oportunidade de
emigrar para o Brasil, após juntar algum dinheiro e conseguir a carta de
chamada de uma tia, abandonou tudo aquilo que lhe transmitia sofrimento e
viajou para o “paraíso”. A mãe de Fátima, após ter sido trazida ao Brasil por um
tutor, que a conduziu aos familiares instalados em São Paulo, os quais, de
alguma forma, haviam prosperado em seus pequenos negócios, foi se
distanciando das lembranças portuguesas e se integrando à comunidade
brasileira.
33
Helena, por sua vez, diz:
Ele [o pai] mantinha vínculo com a terra natal, sempre sabia o que estava acontecendo lá, isto via carta e lá sabiam o que acontecia aqui, mas que ele voltou para lá não [...]. Ela [a mãe] mantinha vínculo com a terra natal através dos pais dela, que sempre vinham visitá-la, mas que eu saiba ela nunca voltou à terra natal. Ele [o pai] sempre me dizia que o maior tesouro dele foi ter se casado com a minha mãe, e viver no Brasil, se ele nunca enricou foi porque não era para ser e, portanto, não deveria retornar à Portugal.34
Este depoimento deixa transparecer o mito do “brasileiro”, português
que vêm ao Brasil, vence, faz fortuna e retorna à terra natal. Como isto não
aconteceu com o pai de Helena, este patrício se consola em dizer que seu maior
tesouro foi ter se casado com a mãe desta entrevistada (que, por sinal, era sua
conterrânea) e ter decidido viver no Brasil.
1.2.1 Organização política de Portugal
Portugal, em meados de 1890, passava por revoltas que pretendiam
desmantelar o sistema monárquico-constitucional, o que ocorreria com a
Revolução de 1910, quando uma ação civil e militar forçou o jovem Dom
Manoel II a fugir para a Inglaterra, enquanto os revolucionários buscavam
restaurar ou recomeçar o liberalismo. O novo regime se comprometia a melhorar
as condições das classes populares e da média e pequena burguesia.
Apesar dos esforços dos novos dirigentes e forças partidárias, das
propostas de várias reformas e da criação das Faculdades de Letras e Direito, em
1911 e 1913, em Lisboa e Coimbra, respectivamente, a constante instabilidade
34
governamental, o agravamento nos campos econômico e financeiro e os
conflitos da sociedade civil com a Igreja Católica acabaram fragilizando a
República.
[...] teria momentos dramáticos em 1912 (declaração do estado de sítio em Lisboa, prisões em massa de sindicalistas, metidos em porões de navios surtos no Tejo, encerramento da União Operária Nacional, deportações de sindicalistas para presídios alentejanos...), 1913 (encerramento da Casa Sindical, repressão violenta contra os “anarquistas”, expulsão de Pinto Quartim para o Brasil), 1917, 1918, etc.35
O próprio exército se afastaria da República, também hostilizando o
catolicismo. No intento de expulsar as ordens religiosas e laicizar a vida do país,
o Ministro da Justiça, Afonso Costa, em 1911, propôs eliminar o catolicismo em
duas gerações.
As “aparições” de Fátima em 1917, em pleno governo de Afonso Costa,
não tinham nada de casuais. Era a manifestação de um país que cultuava o
mariânico36 e o milagrismo em plena Primeira Guerra Mundial.
Foi nesse período conturbado de Portugal que os pais de Fátima e Helena
emigraram para o Brasil: “Ele [o pai] veio para cá procurando uma vida melhor,
porque ele dizia que sofria muito lá. Ele deixou Portugal em 1917.”37 “O meu
pai era imigrante, porque ele não era brasileiro, veio de Portugal para cá [...], ele
nasceu em 1887 [...], a região do Porto [...] ele tinha uns vinte anos quando veio
para o Brasil.”38
O exército tomaria o poder em 1926. Dois anos depois, os militares
procurariam estabelecer uma ditadura, e Antônio de Oliveira Salazar seria o
novo ditador.
35
MEDINA, João. “A democracia frágil: A primeira república portuguesa (1910-1926).” In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. São Paulo: UNESP, 2001. p.384.
36
Mariânico, indivíduo pertencente a uma congregação religiosa de devotos à Virgem Maria. 37
Fátima, 61 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 22/04/2005. 38
1.2.2 A partida
Houve um intenso movimento imigratório estrangeiro para a cidade de
São Paulo, principalmente no período de 1872 a 1940, predominando as
correntes de italianos, portugueses, japoneses, espanhóis e alemães.39 Dentre
estes, chegaram os pais das entrevistadas, conforme relata Viga em relação ao
seu pai: “Eu tinha uns quinze anos, era mocinha, o meu pai contava que já fazia
uns quarenta anos que ele tinha vindo de Portugal, mas o sotaque era bem
carregado. Ele nasceu no ano de 1887.”40
No período de 1911 a 1927, Portugal passou por instabilidade política,
perseguições, mortes e deportações. Para fugir dessa situação, vieram para o
Brasil os avós, os pais e as mães das depoentes que fazem parte desta pesquisa.
O percurso que fizeram até chegarem aos portos foi bem diferente,
variando em grau de dificuldade de acordo com a província de onde partiam. Os
que residiam na região de Trás-os-Montes (Vinhais, Chaves) percorreram o
caminho para o porto de Leixões, onde embarcaram no navio a vapor “CAP.
VERDE”, em direção ao Brasil, percorrendo o mesmo caminho que muitas
outras pessoas.
[...] centenas que partiam, desciam dos casais ensombrados e puros das encostas da serrania; vendiam a courela, o moinho junto ao ribeiro onde a água muito límpida espadanava em espuma de neve; abandonavam a aldeia branca como os lírios, e chegavam aos bandos aos cais de Lisboa.41
Já os que procediam das regiões de Vila Nova de Gaia e da cidade do
Porto – cidades separadas por uma ponte –, ao se lançarem na aventura de além
39
VERÁS, Maura Pardini Bicudo. Diversidade: territórios estrangeiros como topografia da alteridade em São Paulo. São Paulo: EDUC, 2003.
40
Viga, 72 anos, filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 22/04/2005. 41
mar, contavam com maiores facilidades quanto à distância e ao percurso para o
embarque.
Na cidade do Porto, embora as ruas fossem íngremes, os telhados das
casas eram imensos e em cascata. Vistos a partir de Gaia, os vários riachos
formavam mananciais de água vindos de Salgueiros, de Paranhos e de
Germalde. Podia-se observar um contraste entre vendedeiras, aposentados,
burgueses, prostitutas, caixeiras, comerciantes, desempregados e jornaleiros,
entre outros. O resultado era um misto entre o feitio da cidade e a feição dos
seus habitantes, misturando intransigência e generosidade.
As dificuldades para se embarcar rumo ao Brasil eram imensas para os
provenientes das regiões distantes dos portos (ver figura 2, p.33). Os meios mais
eficientes de transporte eram a besta e o carro de tração animal. Muitos, no
entanto, seguiam a pé. Partia-se da terra para uma estação de caminho-de-ferro,
por meio da qual se atingia, após uma viagem mais ou menos demorada, um dos
portos de embarque transatlântico: Leixões, Porto ou Lisboa.
Leixões era o porto que levaria os avós e os pais de algumas das
entrevistadas para a terra dos sonhos e da esperança de uma vida sem tantas
necessidades e, ainda, com a possibilidade de enriquecimento rápido e seguro,
conforme relata Clarinha: “A mãe foi trazida para o Brasil por um senhor
responsável, com uma carta de chamada de meu avô. Ela partiu do porto de
Leixões, após ter deixado a aldeia em Trás-os-Montes. Minha bisavó se
despediu com muita dor [...].”42 Fátima, por sua vez, lembra: “O meu avô partiu
de Portugal e desembarcou em Santos, porque geralmente eles desembarcavam
lá [...].”43
Ao desembarcarem em Santos, os imigrantes eram encaminhados para as
hospedarias e os alojamentos, onde ficavam à espera – por vezes longa – do dia
da partida. Em outras situações, o responsável pelo encaminhamento dos
42
Clarinha, 72 anos filha de imigrante português. Entrevista realizada pela autora em 08/01/2005. 43
imigrantes já os aguardava no porto para recebê-los, como fora o caso do avô de
Clarinha. Já a mãe de Fátima, no dia de sua chegada, era aguardada pelos seus
familiares e, em especial, pelo seu pai.
Nessa época, a via utilizada para se percorrer o trajeto entre Portugal e o
Brasil era a marítima, entre o porto de embarque português ou espanhol e os
seus correspondentes brasileiros: Belém do Pará (com ligação para Manaus),
São Luís do Maranhão, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos (servindo São
Paulo) e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.44 O tempo de viagem era de 16 a
20 dias para os vapores.
Para os que viajavam pela Companhia Armadora, a diferença entre os
passageiros de 3.ª classe e os que viajavam nas categorias mais luxuosas se
manifestava pela qualidade da alimentação e do alojamento. Na camarata havia
um conjunto de leitos, distribuídos em um só local. Nela viajavam,
normalmente, os passageiros de poucas posses, ou de 3.ª classe. Os visitantes, os
“turistas” e os comerciantes viajavam em camarote coletivo ou em cabine
privada, conforme o status do passageiro.
Os avós das entrevistadas vieram para o Brasil, em sua maioria, de 3.ª
classe, conforme registra suas Certidões de Desembarque. Quem viajava nesta
categoria era considerado emigrante. A este era exigido passaporte, ao qual
deveria estar anexada uma carta de chamada ou um contrato-promessa, como
colono ou como trabalhador, por parte do governo local ou de uma entidade
empregadora, como, por exemplo, a Fazenda do Coronel José Ferreira de
Figueiredo, em Bauru.
Já os passageiros de 1.ª e 2.ª classes tinham o estatuto de viajantes ou de
visitantes, sendo o único pressuposto do seu direito a esta condição a capacidade
de pagar o título de transporte. Este era o caso dos avós de Helena45, que eram
comerciantes e constantemente vinham visitar a filha casada, como ela própria
44
CÂNCIO, Francisco. Op. cit., 1938. p.21. 45