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Mística e Filosofia (Marcus Reis Pinheiro)

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Academic year: 2021

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.Cbam. 21 M678 Título: Mística e filosofia.

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PUC

RIO

Reitor

Pe. Jesus Hortal Sánchez, S.J. Vice-Reitor

Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J. Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. José Ricardo Bergmann

Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Pe. Francisco Ivern Simó, S,J.

Decanos

Profa Maria Clara Lucchetti Bingemer ( CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)

Pro f. Reinaldo Calixto de Campos ( CTC) Pro f. Hilton Augusto Koch ( CCBM)

MÍSTICA E FILOSOFIA

Marcus Reis Pinheiro

Maria Clara Lucchetti Bingemer

organizadores

EDITORA

PUC

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© Editora PUC-Rio

Rua Marquês de S. Vicente, 225- Projeto Comunicar Praça Alceu Amoroso Lima, casa Editora

Gávea- Rio de Janeiro-RJ -CEP 22453-900 Telefax: (21 )3527-1760/1838

Site: www.puc-rio.br/editorapucrio E-mail: edpucrio@puc-rio.br

Conselho Editorial

Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando Sá,

José Ricardo Bergmann, Luiz Roberto Cunha, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Miguel Pereira e Reinaldo Calixto de Campos

Revisão de originais

Tomás Batista

Revisão de provas

Gilberto Scheid

Capa e projeto gráfico

José Antonio de Oliveira

Foto de "O êxtase de Santa Teresa" (1645-1652). de Gian Lorenzo Bernini

©Editora Uapê Espaço Cultural Barra Ltda. Av. Olegário Maciel, 511, sala 303

Barra da Tijuca- Rio de Janeiro- RJ- CEP 22621-01 O

Telefax: (021) 2493 - 9175 Site: www.uape.com.br

E-mail: editorauape@terra.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Mística e filosofia I organização: Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Lucchetti Bingemer.- Rio de Janeiro : PUC-Rio, 201 O.

186 p.;21 em Inclui bibliografia.

ISBN (PUC-Rio) 978-85-87926-98-2 ISBN (Uapê) 978-85-85666-88-0

1. Filosofia e religião. 2. Mística. I. Pinheiro, Marcus Reis. 11. Bingemer, Maria Clara Lucchetti.

CDD:210

SUMÁRIO

7 Apresentação

Filosofia da religião: mística e filosofia

9 A mística de Eckhart em Eckhart

Emmanuel Carneiro Leão

23 Rümi e o canto da unidade

Faustino Teixeira

35 Mística e filosofia: a propósito de Simone Weil

Maria Clara Lucchetti Bingemer

51 Mística secularizada na poesia brasileira contemporânea:

leitura de Noiva, de Renato Rezende

Eduardo Guerreiro Brito Losso

11 A poética como mediação entre filosofia e mística

Eliana Yunes

81 O aprendiz do belo: a arte-ética em Plotino

Marcus Reis Pinheiro

99 O limite do discurso em Plotino

José Carlos Baracat Jr.

117 A experiência mística em Schopenhauer

Leandro Chevitarese

135 A doutrina da predestinação e a filosofia de Schopenhauer

Renato Nogueira Jr.

147 Teologia, ciência ou metafísica?

Júlio Fontana

169 Insondável religião romântica:

filosofia e poesia como linguagem mística

Pedro Duarte de Andrade

181 A espiritualidade da beleza

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Apresentação Filosofia da religião: mística e filosofia

A relação entre mística e filosofia no Ocidente sempre foi bas-tante conturbada. Se, por um lado, a primeira busca o silêncio além de qualquer racionalidade, realizando-se em uma experiên-cia estritamente pessoal, por outro, a segunda sempre quis ser a rainha do logos, da fala e da razão, apresentando juízos universais. O místico procura, na união com o divino, superar a dicotomia entre buscador e buscado. Na medida em que o conhecimento remete a uma divisão entre sujeito e objeto, ele vivenda o sa-grado de uma forma que não pode ser qualificada estritamen-te como conhecimento. Assim, se tomarmos a filosofia em uma acepção clássica como a tentativa, tanto de conhecer o real, como de expressar racionalmente tal conhecimento, a mística se mos-tra sempre na busca de superar a filosofia, tanto em sua ativida-de principal, quanto em sua expressão. Ela se abre, portanto, a outras formas de linguagem - como a poesia e a mitologia- e, na tentativa de expressar sua experiência de união com o sagrado,

coloca de modo especial o problema do estatuto da linguagem. É

neste sentido que os estudos sobre mística ensejam uma reflexão profundamente contemporânea sobre os limites da forma tradi-cional de se fazer filosofia. Em uma época marcada claramente pelo fim da metafísica clássica e dos grandes discursos sistemá-ticos, em que a filosofia se vê confrontada constantemente com o desafio de se abrir a novas tarefas e a formas expressivas con-dizentes, o diálogo com a mística se torna especialmente fértil.

A relação entre filosofia e mística está longe de ser impossível. Neste livro, encontramos alguns artigos - a maioria frutos do

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8 MÍSTICA E FILOSOFIA

colóquio Filosofia da Religião realizado na PUC Rio em 2007 -em que os autores procuram mostrar pontos de convergência entre as duas. Pois, ao se pensar a mística, não se impõe apenas a tarefa de descrever o silêncio do monge em êxtase contempla-tivo, mas também se revelam elementos das mais variadas dis-ciplinas. Os artigos aqui reunidos versam sobre poesia e arte, teologia e cosmologia, linguagem e ciência, e sobre autores tão diversos como Plotino, Schopenhauer, Lévinas, Simone Weil e Schlegel. Neles, o leitor encontrará um constante remetimento a uma totalidade nunca abarcada, mas sempre vislumbrada e desejada: uma unidade tão radical que insufla de força toda e qualquer multiplicidade.

Os organizadores

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A mística de Eckhart em Eckhart, Emmanuel Carneiro Leão'

Aqui e agora, nós nos descobrimos em meio a um desafio. É o desafio de encontrar em Mestre Eckhart a mística de Mestre Eckhart. Trata -se de um desafio que nos convida a deixar ser nos-sa experiência radical de simplesmente viver.

Uma das mulheres mais místicas e eróticas de todos os tempos é marrana, Santa Teresa d'Ávila. Disse, certa feita, que a experiên-cia mística é rara hora et pauca mora: um instante raro e fugaz. Exige o tempo todo de meditação e horas favoráveis de desapego.

E, não obstante, a mística não é questão de tempo, mas de ser "na

espera do inesperado'; nas palavras milenares de Heráclito de Éfe-so. Para tanto, é indispensável muita persistência e pouca impaci-ência. São Paulo diz que é na paciência que se chega ao espírito.

Mística é a força arcaica em todo homem, vigor livre de cria-ção. Não é necessário, para ser místico, pertencer à religião e, muito menos, a uma determinada religião, embora, ao longo da história, as religiões tenham produzido as mais conhecidas expe-riências e construído as maiores antológicas metáforas da mística. É que a mística não constitui uma entre muitas outras possibili-dades da condição humana. Mística é toda a condição humana, em todos os homens. Sem ela, não se dá religiosidade, fenôme-no histórico chamado religião. Por isso, ninguém aprende a ser místico. A mística vive e vivifica todo encontro e/ ou desencontro entre os homens. A mística acontece sempre e para sempre, em

lEste texto foi originalmente publicado como apresentação ao segundo volu-me da edição de Sermões alemães, de M. Eckhart (2008, pp. 9-19). N. do E.: gen-tilmente cedido pela Editora Vozes para publicação neste livro.

*Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg e professor titular emérito de Filosofia da UFRJ.

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cada empenho de ser e em todo desempenho de não ser. Pelo simples fato de termos sido criados, todos nós somos e não so-mos místicos, em nossa vida e existência, em nossa maneira de ser e viver. E o somos e não o somos de modo tão radical que, quase sempre, nem percebemos a presença provocante da mística em tudo que fazemos e/ou deixamos de fazer, em tudo que so-mos e/ ou deixaso-mos de ser. O homem, em cada um de nós, antes de ser e para ser qualquer coisa, antes de entrar e para entrar em qualquer relacionamento, antes de lançar-se e para lançar-se em qualquer empreendimento, já sempre é e tem de ser o que busca e se esforça por obter. Por isso, em qualquer hora, tanto outrora como agora e a toda hora, já soou o instante e a vez da mística.

Mas como é que sabemos de tudo isso?

Ora, nós o sabemos e não sabemos com um "saber só de ex-periência feito': Nós o sabemos e não sabemos no sabor de todo gosto de ser que sentimos. Nós o sabemos e não sabemos em todo desgosto de não ser o que pretendemos. Na doçura e no prazer, na amargura e na dor, um élan incontentável que nos atropela o senso, e domina tanto o que temos e não somos como o que não temos mas somos - como o que nem somos nem temos.

É que realizamos sempre um empenho de viver e morrer a

todo instante. Porque nascemos um dia, nascemos todo dia. Por-que morreremos um dia, morremos a cada dia, a todo instante. Viver, humanamente, consiste, assim, em libertar-se sempre de novo para este esforço de ser e de não ser. Propiciando-nos as condições de possibilidade de viver, a mística se dá, como pe-nhor, o penhor de todos os nossos empenhos e desempenhos. Nela, se concentra todo o desafio de nossa existência de seres fi-nitos, isto é, de seres que têm a graça de receber dos outros e do "não-outro" as virtualidades de sua própria humanidade.

Nesse penhor, encontra-se a unidade da união do mundo com seu princípio, da criatura com o Criador. Trata-se da expe-riência primordial, uma expeexpe-riência íntima, sem intermediários,

entre Deus e o homem, nos próprios vãos e grotões de ser. É que

toda experiência da unidade de uma união já supõe, a priori, se-paração, já inclui pluralidade. Por isso, o três é o número exordial, o numerador de toda relação, a fonte de qualquer numeração.

A mística de Eckhart em Eckhart 1 11

No três, temos, indissolúvel e consubstancialmente conjugados, o um, o dois, e a união do um com o dois. Três, nos diz Mestre

Eckhart, não é a soma de um mais dois. 2

O três é a integração

viva, vital e circularmente simultânea da unidade de um + um

+ um, unidade esta que não sofre, mas viceja e se alegra com e

na Trindade, pela difusão da bondade de sua união. É a

fecun-didade ontológica do bem: Bonum est diffusivum sui (o bem é

difusivo de si mesmo). Não é o bem que é trino. É a Trindade que

é o bem. Assim como se dá circulação da unidade na Trindade, assim também se dá circulação da Trindade na unidade. O Bem da unidade circula eterno e incriado, para dentro, na Trindade,

e se comunica temporal e livremente, para fora, na criação. É na

unidade da Trindade que nos cria. Eckhart nos diz, junto com toda a experiência cristã - ad extra ex tribus: toda atividade para fora é criadora, vem e vive do três.

Para nós, pós-modernos de hoje, cada vez mais próteses da técnica e filhos da razão na ciência, trabalhados sorrateiramente por pulsões inconscientes e movidos por impulsos desconheci-dos, o caminho mais longo e penoso é aquele que nos leva para o ser de nós mesmos, para o que nos é mais íntimo e profundo. Tão íntimo que nós o somos sem, na maioria das vezes, sequer saber que não vem de nós. Santo Agostinho nos lembra, numa

formula-ção lapidar: "Tu eras interior intimo meo et superior summo meo:'3

("O mistério de Deus é para mim o mais íntimo que meu íntimo'; o que Kant chamou de transcendental.) O mistério de Deus está acima de tudo que me transcende, o que, desde Platão, se diz ser "algo que, de longe, excede a essência das coisas, em poder

e majestade:'4

Em nossa caminhada pela vida, experimentamos muita coisa, procuramos em todo vestígio, buscamos sempre o melhor, antes

de nos apercebermos da mística de toda experiência. É que, desde

sempre, já somos sua propriedade e estamos em seus domínios. Somente muito raramente e de modo implícito lhe pressentimos a força de mistério, pois mística só se dá na medida em que se

re-2 Cf. LW IV; sermão 29. 3 Confissões, III 6. 4 República VI, 509b9.

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MiSTICA E FILOSOFIA

tira, só acontece enquanto foge e se retrai. Nem sabemos mesmo o que nos ocorre e se passa conosco. Assim, por exemplo, num grande desespero da alma, quando todo peso desaparece da vida e se obscurece todo sentido, surge, então, a mística em nossa ex-periência. Talvez apenas insinuada numa retração tênue que vi-bra em profusão de sentimentos e bruxuleia numa confusão de percepções, para, logo, se esboroar. Numa grande esperança do coração, quando tudo se transfigura e nos parece atingir pela pri-meira vez, como se fosse mais fácil perceber-lhe a ausência e o não-ser do que lhe sentir a presença e o ser, emerge e se apresen-ta, então, num toque misterioso, a mística da experiência. Numa depressão da vida, quando distamos, igualmente, de esperança e desespero e a banalidade de todo dia estende um vazio onde se nos afigura indiferente, se há ou não há experiência, a mís-tica explode, então, no barulho de um silêncio angustiante. Em qualquer caso, a mística nunca se dá, nem no conteúdo, como um quê, aliquid, nem no processo, como um qua, isto é, como aliquod, um modo de experiência.

Nas Confissões, Santo Agostinho se pergunta: que é que eu

amo, quando digo que amo a Deus? E a resposta é sempre: eu não amo, mas, perdido no amor, eu sou amado pelo amor. Nós raramente nos damos conta de que não somos nós que amamos,

quando amamos. É o amor que nos ama, nos leva e nos faz amar

o que amamos. Esta é a vigência da mística em toda experiência. Tal é também a mística de Eckhart em Eckhart.

Realcemos, aqui e agora, o vigor de sua presença, deixando repercutir, em nosso esforço de pensar, alguns traços místicos de seus Sermões alemães.

Na mística e para a mística de toda experiência, tudo que po-demos fazer é não fazer, em todo nosso fazer. É deixar o fazer nos fazer. Eckhart denominou esta atitude de "deixar ser" ( sein las-sen ), cuja força e poder de vigência ele chamou de Gelaslas-senheit, que, em português, poderíamos invocar com a atitude de sereni-dade e/ou desapego, de disponibilisereni-dade e/ou desprendimento,

de despojamento e/ou tranquilidade. É a partir e dentro dessa

atitude que, originariamente, sempre experimentamos o mundo, o homem, Deus, em nós mesmos e nos outros.

A mística de Eckhart em Eckhart 1 13

Mas como é que o homem, o mundo e Deus se dão e se apre-sentam no deixar ser místico de uma serenidade tranquila e des-pojada, disponível e desprendida? Deixar, deixar de, deixar de ser: que há de mais banal e corriqueiro na vida de todo o dia do que uma atitude dessas?

A mãe diz para a criança arteira: "deixa de brincar com fogo!" O pai diz para a filha adolescente: "deixa de cavilação!" De quem entrou para o mosteiro, ou do anacoreta, que foi para o deser-to, costuma-se dizer que deixou o mundo. Nesses casos, deixar, lassen, é verbo transitivo, e significa renunciar, abandonar. Pre-valece, então, o lado negativo do fenômeno deixar, ao menos aparentemente. Trata-se do aspecto mais claro e evidente, em-bora menos essencial e decisivo na experiência de deixar. Pois esta só se completa e conclui se, implícita ou explicitamente, se acrescentar ser, deixar ser, como no apelo que, muitas vezes, se faz a um adulto invasivo: "deixa a criança ser criança!" Não que o adulto possa impedir a criança de ser criança; é que o adulto se incomoda tanto com ele ser criança que tenta e busca não ser criança na criança.

Deixar ser remete não apenas para uma renúncia, mas para a vigência de ser e não ser, aquém de toda intervenção da parte do sujeito. A renúncia não vive primordialmente de rejeição, mas se alimenta de aceitar transformação. O lema de reformador de Eckhart é ontológico: tendo de reformar-se sempre, o homem deve transformar-se para não se deformar. A mística é, pois, a negação da negação - sem estardalhaço até mesmo no estardalhaço -, mas na serenidade tranquila de deixar ser o ser que se dá no sendo que se é. Deixando ser, a serenidade se torna disponível e, nessa disponibilidade, encontra-se com o mundo, com Deus, com o homem, justamente naquilo que eles mesmos são em si, para si e por si mesmos. Segundo Mestre Eckhart, na mística penetra-mos onde já sempre estapenetra-mos, nos arcanos ônticos, ontológicos e místicos da serenidade, vivendo como "a rosa, sem porquê': Pois, então, vai-se abolindo o sentido transitivo e passivo e apa-recendo o sentido criativo de deixar ser.

No deixar ser radical de Deus, homem e mundo, a pergunta "quem é que deixa ser quem?" é uma pergunta sem sentido, uma

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14 1 MiSTICA E FILOSOFIA

vez que deixar ser inclui em si deixar de agir, pois deixar ser já não é atividade de um sujeito sobre um objeto a partir do inte-resse de um poder. Tudo, portanto, se deixa ser, mas não há nada que pratique o deixar ser. Na raiz mística da experiência, é sem-pre o nada que reina em todo ser. E, no nada, não somente se ultrapassa e supera toda negação pela negação, como também não se nega a negação. Reina radical desprendimento, puro des-pojamento, total disponibilidade. Ser livre de, a independência, e ser livre para, a criação, mergulham ambas e desaparecem na imensidão de uma tranquilidade sem vontade nem desejo de nada, sem imagem nem representação de coisa alguma. Eckhart diz, então, que vigora, completa e perfeita, "a limpidez da sereni-dade" (die Ledigkeit der Gelassenheit).

Na serenidade, toda experiência caminha sempre para ins-crever-se nas peripécias e vicissitudes das ações e reações de nosso comportamento, tanto conosco mesmos, como com tudo o mais. Nessa caminhada, a serenidade atravessa três níveis, in-tegrados, de busca de si mesma em si mesma: o nível ôntico, o nível ontológico e o nível místico. Todavia, não se trata de três níveis separados que se excluíssem e distinguissem um do outro. São três níveis que se incluem e se identificam, em todo fazer e/ ou deixar de fazer dos homens. Compreender e viver essa inte-gração é compreender e viver a mística de Eckhart em Eckhart.

1 o nível: o nível ôntico é o desprendimento com total desapego.

Trata-se do despojamento da pobreza. Eckhart forja a palavra abegescheidenheit, que, no alemão moderno, se diz

Abgeschie-denheit. É uma palavra derivada, por prefixação e sufixação, do

verbo sheiden, cindir, dividir, separar. O prefixo ab designa diva-gero, tanto no sentido de desfazer-se de alguma coisa, abetuon, como no sentido de afastar-se, desviar-se, abekere. O sufixo, heit, designa a condição, o estado e a atitude. No uso transitivo, o verbo, abscheiden significa isolar, e, no uso intransitivo, ir-se embora, morrer. No alemão de hoje, o uso intransitivo significa, quase sempre, morrer. Assim, o poeta Georg Trakl dedicou um famoso poema a um amigo morto com o título de "Gesang des Abgeschiedenen" ("Canto do falecido"). Eckhart consagrou todo um tratado a este nível ôntico da experiência mística de

sereni-A mística de Eckhart em Eckhart 1 15

dade, cujo título é precisamente: Abgeschiedenheit, serenidade, desapego. Num sermão intitulado In diebus suis placuit Deo et

inventus est iustus, 5 prega Eckhart: "Se o espírito conhecesse

a pura serenidade do desprendimento, já não se voltaria para nenhuma coisa, mas inclinar-se-ia e haveria de permanecer no completo desapego da serenidade:'

Tudo que somos em nossos afazeres é puro vir-a-ser vida em realizações. O desapego nos é dado na ordem e como ordem de todo relacionamento conosco e com os outros. Tal despren-dimento de todas as coisas, porém, nem rejeita, nem nega, mas acolhe o ser de Deus em toda criação. Por isso o desprender-se não destrói nada, não rejeita coisa alguma, vem do nada e vai para o nada.

Muito bem! Todavia, como é para se entender concretamente tanto despojamento?

Um poeta japonês do século XVII (1644-1694), Tetsuo Bashô, poderá nos valer. Ele compôs um famoso haiku a partir de uma experiência ôntica da serenidade em quinze sílabas de um verso que o velho Suzuki trouxe para o Ocidente. O haiku fala de Nazuna. Nazuna é uma pequenina flor silvestre que se encontra por toda parte no campo. Diz o verso, na citação de Suzuki:

Yokumireba Nazuna hana saku Kakinekana

Susuki traduziu:

Quando olho atentamente, Vejo florir a nazuna, Ao pé da sebe6

A partir da mística de Eckhart, talvez se pudesse dizer num português tosco e desajeitado:

No desapego do desprendimento, sou e não sou nazuna ao pé da sebe. 5 Ecl44, 16.

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1 16 MÍSTICA E FILOSOFIA

Bashô é poeta e, como todo poeta, é místico dos seres da

na-tureza. É tão desprovido de apego que sente em uníssono com

o ser da natureza e de tudo que é natural. Esta identificação da natureza com a natureza se avivou em Bashô quando descobriu uma pequenina flor, brilhando, sem vontade nem desejo de nada, ao pé de uma velha sebe. O poeta sente o profundo mistério de a vida ser vida, no esplendor insignificante de uma flor silvestre.

É um exemplo da experiência de desapego e desprendimento da

serenidade em que vive a mística de Eckhart.

No século XVII, alguém, na Silésia, fez a mesma experiência mística de Bashô. João Scheffler, doctor philosophiae et medicinae, médico de profissão e místico de vocação, vivia na Silésia uma ge-ração antes de Leibniz (1624-1677). Estudioso de Mestre Eckhart, escreveu uma obra de poesia mística, publicada em 1657 com o título Der Cherubinische Wandersmann. Sinnliche Beschreibung der vier letzten Dinge (O peregrino querubínico. Descrição sensível

dos quatro novíssimos7

), e publicou, com pseudônimo de Angelus

Silesius (Mensageiro da Silésia). O número 289 dos poemas traz o título "Ohne Warum" ("Sem porquê"). O verso diz:

A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer. Não olhar p'ra seu buquê. Nem pergunta se alguém a vê!8

O desapego do desprendimento, no entanto, não aparece por acaso, nem se dá, de quando em vez, nas peripécias de nossa

ex-periência na e com a vida. É o vigor místico de todo ser. Por isso,

ao despojar-se e para poder despojar-se, a serenidade remete para a fonte, donde ela mesma já vem, remete para o ontológico

no próprio seio ôntico dos seres. É o segundo nível.

2° nível: a serenidade ontológica. Como todo bom escolástico, Eckhart desenvolveu grande produção literária. Pretendia escrever

7 Os quatro novís~imos, na experiência cristã: morte, juízo, inferno, paraíso. 8 Die Ros' ist ohn' Warum.

Sie bluhet, weil sie bluhet. Sie acht 'nicht ihrer selbst. Fragt nicht, oh man sie siehet!

A mística de Eckhart em Eckhart 1 17

uma obra monumental em três partes, Opus tripartitum. A primei-ra parte seria o Opus propositionum, a Obprimei-ra das proposições. Dessa parte só se encontrou até agora a Prima propositio: Esse est Deus. A segunda parte seria o Opus quaestionum, a Obra das questões. Dessa parte ainda não se encontrou nenhum manuscrito. A tercei-ra parte seria o Opus expositionum, a Obtercei-ra das exposições. Dessa parte, dispõe-se de grandes comentários aos livros bíblicos do Gê-nesis, do Êxodo e da Sabedoria e ao Quarto Evangelho, bem como de um grande comentário ao Padre-Nosso, junto com esquemas de vários sermões em latim. Pois bem, no Prologus generalis in opus tripartitum, Eckhart discute o ontológico de todo ôntico. Na Primeira Proposição, formula o primeiro integrante de toda sua

mística, com três palavras apenas: Esse est Deus (ser é Deus). É um

dos integrantes fundamentais da mística eckhartiana. O outro in-tegrante é o mesmo e reside na dinâmica inesgotável de realização que todo real recebe, continuamente, de Deus. Eckhart o desen-volveu numa interpretação mística do versículo 21 do capítulo 24 do livro deuterocanônico eclesiástico: "Qui edunt me, adhuc

esu-riunt:' ("Aqueles que se nutrem de mim, ainda têm fome:') Eckhart

resumiu toda a mística de qualquer experiência nesta fórmula pregnante: "Omne ens edit Deum utpote esse:' ("Todo sendo, tudo que é e está sendo, se alimenta de Deus enquanto e na medida em que é e está sendo, isto é, na medida de ser:')

Santo Tomás tinha dito de Eckhart: "Deus est ipsum esse" ("Deus é o próprio ser:') Eckhart inverteu a frase, que, invertida, trai e revela toda a profundidade ontológica do ôntico. Tudo que não é Deus não é. Esta distinção de ser e não ser, deve-se compre-endê-la estritamente, senão não se compreende o ser de nenhum sendo. Ora, a forma mais estrita de compreensão é vivida e aconte-ce sempre na identificação da identidade. Eu só compreendo uma

coisa em profundidade quando me identifico e sou com ela. É a

li-ção mística que nos deixou Parmênides e que está na base de toda e qualquer experiência de vida. Eckhart a expressou nas seguintes palavras: "Todas as criaturas são puro nada. Não digo que sejam insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra coisa assim. Elas são um puro nada'; acentua o sermão "Omne datum optimun et omne donum perfectum dersusum esf' ("Todo dom ótimo e todo

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18 1 MÍSTICA E FILOSOFIA

dado perfeito vem do alto").9 Entre o criado e o incriado, não há

diferença, mas o abismo é total, o abismo do nada. Somente Deus é ser; toda criatura é um sendo que tem de receber o ser de Deus; é alhures, portanto, que lhe vem a vida, a inteligência ou qualquer outra possibilidade. Em si mesma é, pois, nada. Para a metafísica escolástica, a perfeição da criatura é, analogicamente, a mesma do Criador, variando, apenas, o modo de ser e dar-se, que é radical-mente diferente. A identidade de perfeição conota uma diversida-de diversida-de apropriação, segundo a analogia diversida-de atribuição. Mas, aqui, Eckhart não concorda com toda a escolástica, negando, comple-tamente, a analogia de qualquer matiz, de atribuição, de predica-mentação, ou de proporcionalidade. Esse est Deus! Assim, não há para Eckhart nenhum ser próprio dentro do criado. Todo criado é um sendo, algo que é e está sendo, dentro de limites ontológicos. Toda criatura recebe o ser de empréstimo, ze borge, como se

ex-pressa Eckhart no Livro da divina consolação. É que uma criatura

se nutre do ser de Deus e, por isso mesmo, quanto mais absorve, tanto mais carece de ser. Em qualquer sendo, o ser e todos os seus transcendentais não são senão Deus.

Uma das maneiras mais escondidas de se apresentar o vigor dessa tranquilidade serena da mística está na radicalidade de todo perdão. Quem realmente perdoa em todo e qualquer perdão é sempre Deus. Nos atos de perdoar reverbera e repercute a pre-sença de Deus. Em Deus, perdoar não é ato, é ser. Num pequeno ensaio, Jacques Derrida fala de um paradoxo para a lógica e o bom senso: "Parece-me necessário começar com o fato de que sim, o imperdoável existe. Não é essa a única coisa a perdoar? A única coisa que requer perdão? Não se pode, ou melhor, não se deve

per-doá-lo; só existe perdão, se existir e onde existir o imperdoáve1:'10

Para a mística cristã em geral e de Ekchart em especial, dá -se

justa-mente o contrário: só há perdão por não haver o imperdoável. É o

sentido místico do salmo 22 que o Homem de Nazaré rezou, alto e

em bom som, na cruz, antes de entregar o espírito a Deus: "Eli, Eli

lama sabactani?" ("Deus meu, Deus meu, por que és Tu absoluto

abandono?")

9Tg1,17.

10 Derrida, 2001, pp. 30-33.

A mística de Eckhart em Eckhart

1 19

Trata-se do auge de todo empenho de ser e desempenho de

não ser. É a experiência radical na convivência do nada de um

com o outro pelo mistério da iniquidade de que fala São Paulo. Foi também este apelo do nada no mal e na maldade que nos chegou, há pouco tempo, numa declaração atrevida do papa Bento XVI: "Onde estavas, Deus meu, em todos os Auschwitz da miséria humana?" Essa palavra do papa não é uma palavra de dúvida da presença de Deus no mal radical. Na fé não há dúvi-da. Só há fidelidade e/ou infidelidade. Pela infidelidade, o fiel é tentado a escusar-se do mal radical, estornando as ações más de sua conta e transferindo-as para a conta de Deus: quem pecou em Auschwitz não foi o homem, foi Deus, pois Deus se omitiu e permitiu, com sua ausência, que o homem cometesse crimes contra a humanidade. Para a mística, é justamente uma atitude destas, de transferir o homem para Deus, que, ao longo do tem-po, tem possibilitado todos os Auschwitz da história humana. A redenção da desumanidade nos homens está no perdão, que re-toma a dinâmica de futuro. Se houvesse o imperdoável, já não haveria futuro. E, sem futuro, não se daria tempo. O passado te-ria absorvido futuro e presente e destruído, assim, todo o tempo.

Ora tempus Jugit- o tempo não se deixa prender nem congelar.

É a experiência mística que se faz em toda experiência e que T. S.

Elliot formulou, num de seus famosos Quatro quartetos: "Tempo presente e tempo passado estão talvez ambos vigentes em tempo futuro. E tempo futuro contido em tempo passado. Se assim todo tempo está eternamente vigente, todo tempo é irredimívei:'

3° nível: a serenidade mística. O terceiro nível de integração de todo sendo no ser de Deus é a serenidade mística. A mística de Eckhart em Eckhart traz o vigor de união da unidade de Deus, a deidade. Em toda diferença e diferenciação, vive, numa intensi-dade infinita, a deiintensi-dade de Deus, na pluraliintensi-dade sem-fim de to-das as coisas. No sermão 22, ele insiste: "Em sua suprema pureza, a haste tenra e frágil retoma para a unidade do ser de Deus, don-de tudo provém:'

A unidade de todas as coisas tem sua raiz nesta deidade. A unidade é como a deidade, mais fundamental do que o ser e seus transcendentais. A divindade perfeita de Deus reside na unidade.

(11)

I

20

I

MiSTICA E FILOSOFIA

Se assim não fora, Deus não seria Deus. Conclusão do sermão: "Deus está todo inteiro em tudo, no bem e no mal, no ser e no não-ser:'

Para levar-nos até às fronteiras extremas da serenidade, Eckhart a põe no mistério da dinâmica da vida. No Comentário ao Êxodo, ele nos diz: "Viver é uma fervura (exsitio), um borbu-lhar incessante em que o ser fermenta, se agita e transborda, der-ramando-se sobre si mesmo, despejando-se em tudo que a vida é, antes de viver. Por isso é que a vida da Trindade é a criação da vida fora da Trindade:'

Viver está em jorrar livremente a necessidade de ser o que se é. No sermão 5 em latim Eckhart fala a partir da serenida-de mística da vida na vida: "Fosse possível perguntar sem fim à vida 'o que é viver e por que vida?; a resposta seria sempre a unidade da vida no viver, a identidade de vida e viver: vivo por-que vivo, vivo por e para viver:' A vida retira do profundo de seu próprio ser o ser de todo viver. Por isso não é preciso ir procurar

o fundo da vida. Toda sua profundidade é somente viver. É a

ex-periência do viver a vida que levou Nietzsche à ambiguidade de dizer, num jogo de palavras em alemão: "Wer den Grund sucht, geht zu Grunde." A partir da serenidade mística, poder-se-ia tal-vez jogar em português: quem procura o fundo da vida não tem profundidade de viver e afunda. Assim, a mística de Eckhart em Eckhart já antecipou em 200 anos o poema "Sem porquê'; do Mensageiro da Silésia: a vida sem porquê vive por viver sempre em Deus a vida de Deus.

Em 1301, faleceu o rei da Hungria. Só e abandonada, arai-nha Inês conheceu a fome e a necessidade. Descalça e em trapos caminhou a pé até Viena, em busca de auxílio junto ao pai, im-perador da Áustria. Só que logo lhe morre também o pai, assas-sinado, e ela volta para a miséria. Foi para a rainha Inês, na graça do desapego, que Eckhart escreveu uma das joias da literatura mística cristã, livro conhecido como Buch der goetlichen Troes-tung (Livro da divina consolação). Desprendida de todo apego, Inês pode tornar-se agora rainha de um outro reino. No reino da maior de todas as virtudes, no desapego de qualquer ser, por já sempre estar apegada à deidade. No final do tratado, Mestre

A mística de Eckhart em Eckhart

1 21

Eckhart escreve: "Para quem olha uma vara dentro d'água, a vara aparece torta. Fora d'água aparece reta:' A água é um elemento tão grosseiro que só deixa aparecer o visível. O ar, elemento mais

diáfano, mostra também o invisível. É com os olhos do ar que

poderemos ver a mística do ser de Deus em todos os seres.

Referências bibliográficas

DERRIDA, J. On cosmopolitism and forgiveness. Londres & Nova York: Toutledge, 2001.

ECKHART, M. Sermões alemães: sermões 61 a 105. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2008.

SUZUKI, D.; FROMM, E. & MARTINO, R. Zen-budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1960.

(12)

Introdução

1 23

Rümi

e o canto da unidade Faustino Teixeira·

Amigo de doces lábios, chegaste, e se fecharam os bazares de açúcar.

(Rúmi)

Há que registrar, inicialmente, a minha alegria de poder participar do 11 Colóquio de Filosofia da Religião da PUC- Rio, dedicado ao tema da mística e filosofia. Vejo como uma inicia-tiva importante recuperar a discussão desse tema tão singular, mas nem sempre lembrado ou considerado nos debates atuais da área de filosofia. Em clássico livro sobre São João da Cruz, o pensador francês Georges Morei insere no prefácio uma rica re-flexão sobre a relação entre filosofia, teologia e mística. Tanto a filosofia como a mística tratam do tema da realidade, mas a par-tir de experiências que não são da mesma natureza. A mística, enquanto "notícia amorosa de Deus" ou "experiência fruitiva do absoluto'; exerce uma provocação ou desafio permanentes para a filosofia: despertar a "nostalgia do mistério das coisas."1

Ao trabalhar o tema da experiência mística na modernidade ocidental, Henrique Cláudio de Lima Vaz sublinha o processo de "dissolução da inteligência espiritual" ao longo da revolução antropocêntrica que caracterizou a filosofia moderna; essa fi-losofia, ao descaracterizar o centro real da experiência mística, com a inversão antropocêntrica que direciona para o sujeito o vetor ontológico do espírito, acaba provocando "o

desapareci-* Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG, Roma) e professor de Ciências da Religião da UFJF.

1 Morei, 1960, p. 15. Em clássica obra sobre os graus do saber, Jacques Mari-tain (1948, pp. 529-562) assinala que toda grande metafísica vem atravessada por uma "aspiração mística'; mas são dois registros distintos do saber. Ver ainda Borrielo, 2002, pp. 153-176 (em particular pp. 156-157).

(13)

I 24 I MÍSTICA E FILOSOFIA

menta no campo da conceptualidade filosófica, do espaço inte-ligível no qual contemplação metafísica e contemplação mística podem encontrar, do ponto de vista antropológico, os princípios

de sua explicação:'2 Em outro texto de Lima Vaz, em que se

abor-da o tema abor-da religião e moderniabor-dade filosófica, ele lança uma séria questão sobre a capacidade dos saberes da modernidade de conseguir captar a "especificidade do religioso vivido na sua riqueza original': A seu ver, só mediante a "experiência da san-tidade" abre-se o acesso para a correta hermenêutica do vivido

religioso. É essa experiência que faculta a percepção da

"dimen-são de insondável profundidade da vida humana:'3 Ao voltar o

olhar para os místicos e sua linguagem específica, encontramos possibilidades plausíveis de captar dimensões da realidade que escapam ao olhar superficial. Esse é o desafio que acompanha esta breve reflexão sobre o místico persa Rúmi (1207-1273), um dos maiores expoentes da literatura mística de todos os tempos.

Em artigo precioso publicado na revista eletrônica Rever (Re-vista de Estudos da Religião), dedicada ao tema da filosofia da religião, Scott Randall Paine sublinha que os filósofos ocidentais refletem sobre o mundo e sobre ser e conhecimento humanos "sem se 'orientar' sobre o imenso fato que é a realidade étnica, cultural, religiosa e sapiencial do Oriente': Lança em seu artigo o desafio de uma nova sensibilidade para a "família de abordagens sapienciais que não derivam das fontes da racionalidade grega" e que podem auxiliar na ampliação de horizontes para um pensar

filosófico autenticamente global.4

O legado espiritual de Ritmi

Rúmi nasce nas cercanias de Balkh (atual Afeganistão) em 30 de setembro de 1207. Passa boa parte de sua vida na cidade de Kônia (a partir do ano de 1229), que se tornará o berço da Tur-quia otomana, conhecida como a cidade dos santos: pátria das mitologias e cruzamento de grandes culturas. Em Kônia acon-tecerá o encontro de Rúmi com Shamz ud-Din de Tabriz, a

per-2 Vaz, per-2000, p. 19 (ver também p. 42 e p. 78). 3 Idem, 1992, pp. 83-107.

4 Paine, 2007, pp. 68-93.

Rümi e o canto da unidade 1 25

sonalidade avassaladora que transformará o caminho de Rúmi e pontuará de forma extraordinária toda uma tradição mística. Nessa cidade repousam os restos mortais de Rúmi, que morreu em 17 de dezembro de 1273. Em homenagem a esse grande mís-tico da tolerância inter-religiosa, em razão de sua singularidade e importância para o diálogo entre as religiões e as civilizações, a UNES CO resolveu consagrar a ele o ano de 2007.

Entre alguns dos traços que expressam o legado espiritual de Rúmi podem ser elencados os seguintes: a sensibilidade para captar a presença do real no espaço da criação, a sede de uni-dade, a visão do amor, a percepção da generosidade divina, a abertura inter-religiosa e a dinâmica essencial de despojamento para a abertura ao mistério sempre maior.

Primeiramente, vale assinalar o convite que acompanha a reflexão de Rúmi, no sentido da ampliação do olhar para se cap-tar a presença do real que se insinua dentro de tudo o que existe.

É alguém que nos desperta para esse precioso dom, de

presen-ciar o mundo "impermeável às palavras" que habita dentro de nosso mundo:

Dentro deste mundo há outro mundo impermeável às palavras.

Nele, nem a vida teme a morte, nem a primavera dá lugar ao outono.5

Rúmi nos convida a lavar nossas mãos e rosto nas águas desse lugar, uma condição essencial para adentrar na nova paisagem:

Para mudar a paisagem, basta mudar o que sentes;

e se queres passear por esses lugares basta expressar o desejo.6

O que se percebe nos grandes místicos, entre os quais Rúmi e João da Cruz, é a tenaz adesão à beleza cósmica e a cortesia de espírito para ouvir "o canto das coisas': Trata-se de um

gran-5 RU.mi, 1996, p. 54. 6 Ibidem, p. 54.

(14)

I 26 I MiSTICA E FILOSOFIA

de equívoco reduzir a experiência mística ao encontro solitário da alma com Deus ou o mistério. Curiosamente, as coisas reco-bram sua vida e beleza quando conhecidas na sua relação com o mistério. A experiência teopática faculta de forma singular uma nova percepção das coisas.

Uma analogia pode ajudar na compreensão. Assim como as cores não podem ser compreendidas como instâncias indepen-dentes, mas necessitam da luz para acontecer, também as coisas ganham sua beleza quando percebidas na dinâmica do mistério. Como assinala Rum!: "Toda árvore ganha beleza quando tocada

pelo sol."7 Num dos belos gazéis deixados por Hafiz,

conheci-do entre os sutis como o "intérprete conheci-dos segreconheci-dos'; se dizia: "Da mão da Providência é que recebemos a felicidade, a riqueza e a alegria( ... ). Cada rosa que ri sobre a relva, numa alegria de cores,

é sinal da beleza e do perfume da sua generosidade."8

Vale registrar também, na poética de Rum!, o tema da sede de unidade. Para além de um monismo ou panteísmo, o místico persa sonha com comunhão:

Sentados no palácio duas figuras, são dois seres, uma alma, tu e eu. Um canto radioso move os pássaros quando entramos no jardim, tu e eu! Os astros já não dançam e contemplam a lua que formamos, tu e eu!

Enlaçados no amor, sem tu nem eu, livres de palavras vãs, tu e eu! Bebem as aves do céu a água doce de nosso amor, e rimos tu e eu! Estranha maravilha estarmos juntos: estou no Iraque e estás no Khorasan.9 7 Ibidem, p. 81.

8 Hollanda, 1944, p. 83. 9 Lucchesi, 2000, p. 33.

Rümi e o canto da unidade 1 27

Como todo aquele que é "ébrio de amor'; Rumi anseia pela figura e presença do Amado:

Nas tuas águas, nado como um peixe. Percorro teu deserto qual gazela.

Ahl Vem, amado, sopra dentro de mim:

eu sou a tua flauta. 10

Não há vínculos ou nós que o aprisionam. Não se reconhece como alguém do Ocidente ou do Oriente, da terra ou do céu, desta ou daquela religião. Está totalmente domiciliado no Amado. Em poema de rara beleza canta:

O meu lugar é sempre o não-lugar, não sou do corpo, da alma, sou do Amado O mundo é apenas um, venci o dois.

Sigo a cantar e a buscar sempre o Um.11

A razão que domina a sua vida é se integrar Naquele que é, como o musgo na pedra. Não há como escapar do fascínio do Amado:

Se houver passado um dia em minha vida

Sem ti, eu desse dia me arrependo.

Se pudesse passar um só instante

Contigo, eu dançaria nos dois mundos.12

Como um equilibrista que dança nos dois mundos, sabe bem reconhecer o valor e a riqueza do mundo plural, intimamen-te vinculado ao Uno. Sua crença na unidade do ser ( wahdat al wujud) não compromete sua abertura à multiplicidade do cos-mos. O sussurro do mundo plural vem acolhido com delicadeza e generosidade, enquanto percebido na sua íntima ligação com

10 Teixeira & Lucchesi, 2007, p. 32. 11 Lucchesi, 2000, p. 103.

(15)

28 1 MÍSTICA E FILOSOFIA

o Uno. Sabe reconhecer, como poucos, que a multiplicidade tem suas raízes em Deus.

Há um véu que resguarda o mistério da unidade. Mesmo sem poder desvelar seu enigma, o ser humano encontra -se protegi-do em seu regaço. A verdadeira paz encontra-se na sombra protegi-do Amado, como relata Rumi nesta singela história inserida numa de suas cartas:

Um dia, um homem chegou diante de uma árvore. Viu folhas, ramos, frutos estranhos. A cada um per-guntou o que eram essas árvores e esses frutos. Nenhum jardineiro o compreendeu, nem sabia o nome da árvore, nem lhe pôde indicar o que ela poderia ser. O homem disse a si mesmo: se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes.

Vou então me colocar a sua sombra. 13

Igualmente cativante é a visão de amor expressa por Rumi em

suas obras de poesia e prosa. É o amor que inspira a flauta de

bambu (ney) em seu lamento em favor da unidade: Escuta a flauta de bambu, como se queixa, lamentando seu desterro:

desde que me separaram de minha raiz,

minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres. 14

Para Rumi, o amor é a chama ardente que incita os amorosos: é "luz sobre luz'; um "oceano cuja profundidade é invisível': Ao falar sobre o seu mistério e charme o "céu canta': Ele é a flama que "faz o mar ferver como uma chaleira'; "estilhaça a montanha'; "fende o céu" e "faz tremer a terra:'15 É o amor, como expressão da

sede metafísica, que anima a busca do ser humano em direção ao mistério que ignora:

13 Rumi apudVitray-Meyerovitch, 1990, p. 106. 14Rumi, 1992,p.17.

15 Rumi apudTeixeira & Lucchesi, 2007, p. 61.

Rümi e o canto da unidade

A ti entoamos louvores, ó amor, doce loucura!

Tu que curas todas nossas enfermidades! Que és médico de nosso orgulho e presunção! Tu que és nosso Platão e nosso Galena! O amor eleva aos céus nossos corpos terrenos, e faz até os montes dançarem de alegria!

I

29

I

ó

amante, foi o amor que deu vida ao Monte Sinai,

quando "o monte estremeceu e Moisés perdeu os sentidos': Se meu Amado apenas me tocasse com seus lábios,

também eu, como a flauta, romperia em melodias ( ... ).16

Outro traço que marca a visão espiritual de Rumi é a sua per-cepção da generosidade divina. A graça de Deus vem captada como uma realidade que transborda contínua e abundantemente sobre todas as criaturas. O ser humano, em momento algum, sente-se abandonado por Deus, que em sua infinita misericórdia mantém seu olhar debruçado sobre ele. E a pista seguida por Mawlãnã vem do livro do Corão: "Pelo esplendor do dia, e pela noite quan-do serena, teu Senhor não te abanquan-donou nem te odiou:' (C 93) A misericórdia de Deus está sempre à disposição do sedento: "Não busques a água, mostra apenas que estás sedento, e a água jorrará

ao teu redor:'17 O Amado é aquela presença que se avizinha do

humano e se esquece de partir:

Teu amor chegou a meu coração e partiu feliz. Depois retornou e se envolveu com o hábito do amor, mas retirou-se novamente.

Timidamente, eu lhe disse: "Permanece dois ou três dias!" Então veio, assentou -se junto a mim e esqueceu -se de partir .18

É também impressionante sua abertura inter-religiosa. Tudo

parte de sua visão de coração, entendido como "órgão sutil da

percepção mística': É nele que se vê refletido, como num espelho,

o movimento incessante das diversificadas formas de manifesta-ção do Amado:

16 Idem, 1992, pp. 18-19. 17 Ibidem, p. 112. 18 Rumi, 1993, p. 65.

(16)

I 3° I MISTICA E FILOSOFIA

A todo momento, transmito uma nova influência ao coração. A todo instante ponho uma nova marca no coração.19

O coração ( qalb) é o "receptáculo cristalino e proteico capaz

de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus: a inesgotável,

infinita manifestação da divindade na morada da união:'20

Trata-se do órgão que possui uma inesgotável capacidade para acolher formas e imagens diversificadas. Para Rfuni, "na gota de sangue do coração encontra-se o dom de uma joia que Deus não destinou

nem aos mares nem aos céus:' É o canal privilegiado de abertura das

portas da realidade. O coração recebe ininterruptamente o movi-mento dissonante e ardente da presença do mistério que advém. Animado por essa visão do coração como taqallub, que envolve mudança permanente, Rfuni abre perspectivas inusitadas para a acolhida inter-religiosa. Trata-se de uma visão que rompe com o limite do olhar superficial que se prende ao "nó" das crenças e mostra-se capaz de celebrar o Deus de todos os nomes:

O mar é uma coisa, a espuma, outra;

esquece a espuma e contempla o mar com teus olhos. Ondas de espuma erguem-se do mar noite e dia, tu olhas para a ondulação da espuma e não para o poderoso mar.21

Em pelo menos duas histórias do Masnavi, a história de Moisés e o pastor e a árvore da vida, Rúmi sublinha a preponderância do estado do coração sobre as formas religiosas:

Por quanto tempo ainda te prenderás a palavras e superficialidades?

Um coração ardente é tudo o que quero; liga-te ao ardor! Acende em teu coração a chama do amor,

e queima por completo os pensamentos e as belas expressões.

ó

Moisés! Os que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra

( ... ). 19 Idem, 1992, p. 165. 20 López-Baralt, 1999, p. 36. 21 Rumi, 1992, p. 156.

Rúmi e o canto da unidade

Não é preciso virar-se para a Caaba quando se está nela, e mergulhadores não precisam de sapatos. 22

31

A atenção primordial de Rumi volta-se para as qualidades do coração. O segredo da árvore da vida envolve milhares de nomes, e só aquele que tem o coração purificado é capaz de desvendar-lhe o enigma:

Tu correste atrás da forma, ó mal informado! E por isso careces do fruto da árvore da substância. Às vezes ela é chamada árvore, às vezes sol, às vezes lago e às vezes nuvem.

É uma, embora tenha milhares de manifestações( ... ). Passa por cima dos nomes e olha para as qualidades, para que essas te possam levar à essência!

As diferenças das seitas surgem de seus nomes;

quando elas penetram sua essência, encontram sua paz. 23

Mas há que ter o coração purificado para perceber essa pre-sença. Há que polir o coração. Aqueles que assim o fazem, trans-cendem o mundo dos nomes e formas, podendo contemplar sem cessar a beleza a cada instante. O Amado é nosso vizinho mais próximo, nós é que estamos distantes dele, porque estamos também distantes do mistério que nos habita:

Vós que saístes a peregrinar!

Voltai, voltai, que o Amado não partiu! O Amado é nosso vizinho de porta, por que vagar no deserto da Arábia? Olhai o rosto sem rosto do Amado Peregrinos sereis, casa e Kaaba. De casa em casa buscastes resposta. Mas não ousastes subir ao telhado ( ... ).24

22 Ibidem, p. 109. 23 Ibidem, pp. 137-138. 24 Lucchesi, 2000, p. 39.

(17)

1 32 MÍSTICA E FILOSOFIA

O segredo do coração envolve o convite ao permanente des-pojamento. Só um coração despojado é capaz de perceber a dia-fania do mistério. Nada mais fundamental do que a gratuidade, a paciência, o despojamento. Os seguidores desse valor essencial protegem-se contra a hybris e o orgulho, seguindo o exemplo de Ayâz, o favorito do rei Mahmud, que manteve guardados seus velhos sapatos e sua roupa rasgada para resguardar vivamente a memória de sua origem humilde: "a semente de onde provéns é a tua sandália, teu sangue e tua manta de carneiro; todo o resto, ó

meu mestre, é seu dom:'25

Como sublinha Rumi, nada acompanha o ser humano para além da pequena morte, nem os amigos, nem todos os bens da terra, mas somente a "excelência de suas ações': Seguindo uma lógica presente na tradição islâmica, Mawlãnã assinala que é ne-cessário "morrer antes de morrer': Trata-se de condição funda-mental para o renascimento do ser espiritual: aniquilar-se para permanecer (fanã/baqa).

Finalizando, a grande provocação que acompanha esta pre-sença de Rumi para nós, nesses "tempos difíceis'; é o toque sutil da espiritualidade. Há na sede contemporânea de espiritualida-de uma expressão espiritualida-de espiritualida-descontentamento com os caminhos da história, mas também de esperança nas potencialidades do hu-mano. A espiritualidade vem justamente recuperar a dimensão de totalidade da vida humana, uma dimensão que é simultanea-mente essencial e simples: a experiência da vida em profundida-de. Os grandes místicos, como Rumi, são os amigos de Deus que mantêm acesa a nossa mirada para o mistério sempre maior; são os guias essenciais nessa travessia do olhar. Toda poesia tem sua força e vigor. Mas a poética de Rumí é assombrosa e

estupefa-cente: ela nos projeta em horizontes inusitados. É como o Burãq

que nos guia em nossa "viagem noturna" em direção ao "blo-co de santidade impenetravelmente denso" do mistério divino, desse mistério que está diafanizado na simplicidade do real. Em recente livro de poesia, Mariana Ianelli, falava sobre a "falta de uma asa': De forma muito feliz, Antônio Carlos Secchin dizia em apresentação do livro que "a poesia fala dessa falta. E

empresta-25 RU.mi, 1992, pp. 293-294.

Rümi e o canto da unidade I

33 I

nos a asa ausente para que, no sobrevoa lírico, acerquemo-nos

perigosamente da matéria volátil e incandescente da vida:'26

A mística não é nada mais, nada menos, que a experiência da vida, vivida em profundidade.

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VITRAY-MEYEROVITCH, E. Rumí e o sufismo. São Paulo: ECE, 1990.

(18)

1 35

Mística e filosofia: a propósito de Simone Weil

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Quando se põem em confronto e em diálogo mística e filo-sofia, a primeira questão que surge é sobre a pertinência de tal debate. Pois, se a mística é fundamentalmente experiência irre-dutivelmente pessoal, pode ainda ser pensada, universalizada, validada de alguma maneira pelo pensar daqueles que não tive-ram experiência dela? Ou, pelo contrário, deve-se dizer que tal experiência é impensável?

Supondo que se chegue à afirmação que tal experiência pode ser pensada, permanece a questão pelo lugar da hermenêutica no ato de pensá-la. Se a experiência mística se dá em primeira pessoa, por assim dizer "em estado puro'; isso convida a pergun-tar se esse seu caráter absolutamente singular e imprevisível não exclui em princípio uma hermenêutica. Sendo, como é, experi-ência de um contato pessoal com o divino, a experiexperi-ência mística e sua narrativa podem dar aqui a impressão de uma afirmação a receber de maneira absoluta, sem mediação, à qual se dá crédito ou não, em lugar de interpretar.

Aqui procuraremos, em primeiro lugar, contextualizar nossa reflexão procurando perceber o lugar que a experiência toma no momento que vivemos. Em seguida, procuraremos ver como e em que medida a experiência mística pode ser narrada e pensada a partir da tradição especulativa ocidental que inclui a filosofia.

Finalmente, procuraremos aplicar a reflexão até então feita à

pessoa de Simone Weil, filósofa e mística francesa que viveu no

*Doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG, Roma) e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC- Rio.

(19)

MISTICA E FILOSOFIA

século XX e que constitui, com sua pessoa, sua experiência e seu pensar, luminosa síntese daquilo que aqui nos propomos como reflexão.

A volta da experiência

Nossa época é uma época em que a experiência- o conceito e aquilo que ele encerra - encontra-se novamente na linha de frente do pensar. O conhecimento nestes tempos de crise de mo-dernidade e advento da pós-momo-dernidade se dá por experiência antes que por razão refletida e comprovada. O rigor do conceito e a bênção unicamente da razão comprovada e verificada- cami-nho por excelência da filosofia, definida como scientia rerum per altíssimas causas - vai adquirir uma posterioridade em relação

à experiência que, primeiro que tudo, irá tomar o proscênio do

debate hodierno. Aí entra igualmente o ressurgimento da

místi-ca como objeto de interesse do pensar hodierno. Trata-se de um campo onde a experiência ocupa, sem dúvida, o primeiro plano do olhar do sujeito.

Se algo se pode dizer da mística, certamente passa - antes de tudo - pelo caminho da experiência. Não se trata de uma teoria sobre o outro, muito menos de um discurso construído e rigoro-so rigoro-sobre este mesmo outro. Tudo que possa haver de discurrigoro-so e teoria neste particular emerge e se faz inteligível a partir de uma

experiência.1 E esta experiência é fundamentalmente experiência

de relação. Neste sentido e somente à luz deste fato primeiro é que

se pode falar então de conhecer e de conhecimento. 2

A mística é, portanto, sim, um conhecimento; porém, um conhecimento que advém da experiência e no qual a inteligência e o intelecto apenas

l Entendemos por experiência, e concretamente por experiência religiosa, aquilo que se percebe de modo imediato e se vive antes de toda análise e de toda formulação conceitual. Trata-se da vivência concreta do homem que se encontra, graças a uma força que não controla ou manipula, frente a um mis-tério ou um poder misterioso. Cf. sobre isso Diccionario de las Religiones (Bar-celona: Herder, 1987), verbete "Experiencia cristiana e experiencia religiosa': Ver também Moltmann (1981, p. 4), Boff (1975, pp. 74-89), Estrada (2001) e Gelabert (1990).

2 Conforme o sentido do conhecer bíblico, que é inseparável do amar ( cf. Moltmann, 1981, p.9).

A propósito de Simone Weil

1 37

entram no sentido de compreender não a experiência abstrata-mente falando, mas o que sente o sujeito concreto que está no

centro do ato mesmo de experimentar. 3 E este sentir é um sentir

que implica uma alteridade e uma relação.

No evento místico, que se desenrola entre o ser humano e o ser divino, está, portanto, não apenas o sujeito que conhece, ou seja, o eu, mas o outro, ou seja, o tu ou ainda o ele ou ela. Portan-to, aquele ou aquela que, por sua alteridade e diferença, movem o eu em direção a uma jornada de conhecimento sem caminhos previamente traçados e sem seguranças outras do que a aventura da descoberta progressiva daquilo que algo ou alguém que não sou eu pode trazer. Esse ou essa que não sou eu também não é

isso (algo coisificado ou reificado ), 4 e sim alguém que a mim se

dirige, que me fala e a quem respondo. Um "outro sujeito'; cuja

diferença a mim se impõe como uma epifania, 5 uma revelação.

No caso da mística, essa relacionalidade com a diferença do outro cobra dimensões diferenciadas na medida em que coloca no processo e movimento da relação um parceiro de dimensões absolutas, com o qual o ser humano não pode sequer cogitar em fazer número, manter relações simétricas ou relacionar-se em

termos de necessidade, senão apenas de desejo.6 Trata-se de um

outro cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações-limite da existência e transforma radicalmente a vida daquele ou

daquela que se vê implicado( a) nesta experiência.7

3 Cf. sobre isso o que diz Santo Tomás de Aquino: "Non intellectus intelligit sed

homo per intellectum." Ou seja, é o homem concreto na sua polivalência

inten-cional que é o sujeito do ato de abrir-se ao seu objeto, movimento que caracte-riza a experiência. Abrindo-se, esse homem torna-se capaz de acolher o ser na riqueza analógica de sua absoluta universalidade (cf. Summa Theologiae la, q.

72 ad lm apudVaz, 1994, p. 10). Cf. também Vaz (1992, p. 37).

4 Cf. Buber, 1977, pp. XLV-LI.

5 Vide Lévinas e todo o seu discurso sobre a alteridade - em especial na obra

Autrement qu'être ou au-delà de l'essence (Paris: Folio, 1996).

6 Ver o que sobre isso digo em meu livro Alteridade e vulnerabilidade.

Experi-ência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise (São Paulo: Loyola,

1993), e especialmente o capítulo 4 ("Experiência de Deus. Possibilidade de um perfil?")

(20)

MISTICA E FILOSOFIA

O humano como lugar de acontecimento da experiência

A experiência é um fato primitivo, originário. É contato com o

real, condição de todo saber, de toda ação. Este contato deve ser distinguido do saber que dele resulta, assim como da experiência adquirida pela simples prática da vida e da experimentação diri-gida por determinadas interrogações ou hipóteses.

Alguns autores (Jankélévitch, M. Dufrenne) propõem a dis-tinção entre empiria e meta-empiria. A primeira designaria o curso cotidiano da vida; a segunda, o instante da graça, da

ins-piração que furtivamente rompe o cotidiano e nele irrompe. 8

Como contato, a experiência é consciente de uma relação com o mundo, com o outro, com Deus, é o encontro de uma alteridade. Mais que um simples conhecimento, a experiência é pressentir, sentir, ressentir. Mas enquanto o mundo está inconsciente dele mesmo e de mim, a experiência do outro implica reciprocidade das consciências encarnadas.

Como saber adquirido, a experiência, nascida de percepções múltiplas reunidas, é memória, como sublinha Aristóteles na

Metafísica I. A experiência condensa as "vivências conscientes';

ultrapassa a duração do tempo, antecipa o evento, o reconhece instantaneamente, volta para ele por memória e pensamento. Não existe experiência verdadeira senão pela possibilidade do retorno reflexivo: a morte, supressão da reflexão possível, não é experiência (enquanto o morrer, sim).

Por nossa corporeidade estamos inscritos na duração do tempo. A experiência corpórea própria (as sensações diversas, o prazer, a dor etc.) subjaz e condiciona toda experiência do outro, do mundo e mesmo de Deus. A mais profunda condição de toda experiência é a presença de si a si que constitui a consciência. Mas esta não é dada desde o começo como perfeita. Pelo contrário, não cessa de crescer pela experiência externa. A alteridade é que promoverá a consciência de si.

Portanto, apesar das diversas formas do empirismo, a expe-riência não é um simples padecer, um sofrer, receber em estado puro. Em termos opostos, o idealismo tende a não ver nela senão uma espontaneidade, uma criação do espírito: se apenas o real é

8 Cf. Lacoste, 1998 (verbete "Expérience religieuse").

A propósito de Simone Weil I 39

o espírito, a experiência se reduz à experiência do eu e suas

repre-sentações, e a alteridade constitui então um problema insolúvel. De fato, a experiência é, ao mesmo tempo, recepção e criação, acolhimento e espontaneidade em proporções indefinidamente variáveis. E isso é verdade a respeito de toda experiência humana.

Experiência religiosa e experiência mística

No pensamento ocidental, especialmente na tradição esco-lástica, desenvolveu-se uma reflexão de tipo especulativo sobre a mística. Uma reflexão que, geralmente, cresce dentro de um pensamento propriamente teológico, construído por sua vez com base em dados da Escritura sobre a doutrina da graça e da vida espiritual elaborada pela tradição cristã, apoiada sobre a concordância de testemunhos relativos a experiências religiosas

reconhecidamente autênticas. 9 Definida pela teologia clássica

como "cognitio Dei experimentalis'; ou por tomistas do porte de

J.

Maritain como "experiência fruitiva do absoluto';10 a mística hoje

parece voltar ao proscênio, portanto, não apenas do debate teo-lógico, mas também de outras áreas do saber, como a filosofia, a psicologia e o terreno das religiões comparadas.

O caminho da relação com o outro transcendente e divino é constitutivo mesmo da experiência mística. E, no caso da mís-tica cristã, esse outro, essa alteridade, tem o componente an-tropológico no centro de sua identidade, uma vez que o Deus experimentado se fez carne e mostrou um rosto humano. Tudo que releva da experiência mística, portanto, não pode desviar ou abstrair ou mesmo dis-trair daquilo que constitui a

huma-nidade do ser humano. É paradoxalmente na proximidade e na

similitude mais profunda com o humano que o Deus da reve-lação cristã vai mostrar sua diferença e sua alteridade absolu-tamente transcendentes.U A mística cristã nos tempos atuais, portanto, está mais do que nunca desafiada a re-descobrir seu lugar e seus caminhos, a olhar para o humano como via neces-sária para o divino.

9 Cf. LadrH~re, 1992, p. 83.

10 Cf. Maritain apudVaz, 1994, p. 12.

(21)

1 40 MÍSTICA E FILOSOFIA

Essa sede por experimentar a transcendência do outro sem-pre acompanhou o ser humano em seu caminhar histórico. Hoje parece recrudescer, seguindo-se à assim chamada crise da mo-dernidade ou advento da fragmentada pós-momo-dernidade, assim também como no movimento de ressacralização mais ou menos apressado e anárquico do mesmo mundo do qual a razão moder-na apressou -se em proclamar o desencantamento e a

secularida-de sem remissão. 12

A fonte principal para o acesso ao conteúdo da experiên-cia mística - segundo diz o Pe. Vaz - é o testemunho dos pró-prios místicos. Eles são os primeiros e principais teóricos de sua

experiência13

• Essa é pluridisciplinar porque totalizante,

inte-grando todos os aspectos da realidade humana. A experiência mística é experiência do outro absoluto participativa e

fruiti-vamente. É um dado antropológico original, porque o místico

inaugura, em seu processo de conhecimento de Deus, algo da

Nova Criação.14

A experiência mística recria a pessoa por com-pleto, fazendo-a experimentar-se como nova e recém-saída das mãos do Criador.

Na matriz greco-romana e cristã-medieval, o Pe. Vaz, em sua análise, vai constatar a existência de algumas constantes na an-tropologia mística: os eixos inferior-superior e interior-exterior (o mais íntimo de nós mesmos é o mais elevado; o mais interior é o mais outro, exterior).

A mística se dá no lugar da estrutura antropológica em que tem lugar a passagem do ser em si para o ser para o outro (cate-goria da relação). Relação com o mundo (objetividade), com o outro e a história (intersubjetividade ), com o Absoluto (

transcen-dência). É nessa engrenagem para si/ para o outro que tem lugar

a experiência mística.

Nas místicas do êntase - continua o Pe. Vaz -, o Absoluto é experimentado como interior íntimo do sujeito. Nas místicas do êxtase, como superior summo. A experiência mística faz sua

apa-12 Cf. sobre isso a reflexão que faço na parte final do livro Mística e política (pp. 287-288).

13 Cf. seu texto de 1992 ''A experiência mística na tradição ocidental" (In: Vaz, 1992). 14 Cf. a bela reflexão que sobre isso faz Tresmontant (1977).

A propósito de Simone Weil

1 4'

rição, portanto, no âmbito de uma questão especificamente

filo-sófica: a questão da transcendência 15 e a experiência que dela faz

o sujeito humano, percebendo-se como constitutivamente

auto-transcendente, apesar de sua finitude e contingência.'6

Simone Weil é, sem dúvida, uma dessas "teóricas" de sua própria experiência mística. Sua história de vida, por ela mesma narrada, pode ajudar a exemplificar o que aqui afirmamos como intersecção entre o experimentar e o pensar e interpretar, ou seja, entre mística e filosofia.

Tomada pelo Cristo - obcecada pela verdade

Em sua "autobiografia espiritual" escrita ao Pe. Perrin, em maio de 1942, Simone Weil declara: "O Cristo em pessoa desceu e me tomou': Afirmação de um "contato real, de pessoa a pessoa,

aqui embaixo, entre um ser humano e Deus';'7 colocando em

plena luz o problema da irredutibilidade e da imediatez da experiência.

O contexto no qual ela insere a narrativa de sua experiência é intencional. Ela remete a urna multiplicidade de camadas ex-perienciais que ao mesmo tempo precederam e se seguiram à experiência mística, dando assim um sentido de interpretação e releitura à "autobiografia'' endereçada ao Pe. Perrin.

Em um primeiro nível se apresenta uma "inspiração cristã'; no-tada desde a infância, ligada à ideia de uma "vocação" pessoal, de uma "verdade" transcendendo a capacidade humana, ao "es-pírito de pobreza" de São Francisco, que sempre a fascinou e habitou, ao sentimento de "pureza'' face à beleza do mundo, às noções de caridade do próximo ou de "aceitação da vontade de

Deus':'8 É um testemunho fundamental, pois, como ela mesma

dirá mais adiante, esse itinerário é, a seus olhos, uma verificação existencial das "formas do amor implícito de Deus"

desenvolvi-15 Cf. sobre isso, além do texto supracitado de Vaz, MacDowell (2002). 16 Cf. Rahner, 1987, pp. 37-59.

17 Weil, 1950a, p. 45.

18 Ibidem, pp. 38-40. Simone Weil fala aqui de "inspiração'; de "atitude diante

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