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DADOS DE COPYRIGHT. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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Traduç ão de

STELLA MARIA DA SILVA BERTAUX

1ª ediç ão

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B352m

Beauvoir, Sim one de, 1908-1986

Mal-ent endido em Mosc ou [ rec urso elet rônic o] / Sim one de Beauvoir ; t raduç ão St ella Maria da Silva Bert aux. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Rec ord, 2015.

rec urso digit al

Traduç ão de: Malent endu à Mosc ou Form at o: epub

Requisit os do sist em a: adobe digit al edit ions Modo de ac esso: world wide web

ISBN 978-85-01-10501-1 ( rec urso elet rônic o) 1. Fic ç ão f ranc esa. 2. Livros elet rônic os. I. Bert aux, St ella Maria da Silva. II. Tít ulo.

15-22992

CDD: 843 CDU: 821.133.1-3 Tít ulo original: MALENTENDU À MOSCOU

Copyright © Edit ions de L’Herne, 2013

Public ado m ediant e ac ordo c om a Agenc e lit t eraire Ast ier-Péc her

Text o revisado segundo o novo Ac ordo Ort ográf ic o da Língua Port uguesa.

Todos os direit os reservados. Proibida a reproduç ão, no t odo ou em part e, at ravés de quaisquer m eios. Os direit os m orais da aut ora f oram assegurados.

Direit os exc lusivos de public aç ão em língua port uguesa som ent e para o Brasil adquiridos pela

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EDITORA RECORD LTDA.

Rua Argent ina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000, que se reserva a propriedade lit erária dest a t raduç ão.

Produzido no Brasil ISBN 978-85-01-10501-1

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Cadast re-se e rec eba inf orm aç ões sobre nossos lanç am ent os e nossas prom oç ões.

At endim ent o e venda diret a ao leit or: sac @rec ord.c om .br ou ( 21) 2585-2002.

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PREFÁCIO

Mal-entendido em Moscou, novela longa esc rit a em 1966-1967, devia f azer part e da c olet ânea A mulher desiludida ( 1968) . Apesar da qualidade evident e, Sim one de Beauvoir ret irou-a e a subst it uiu por “A idade da disc riç ão”. Foi public ada pela prim eira vez em 1992, na revist a Roman 20-50.1

Mal-entendido em Moscou narra a c rise c onj ugal e de ident idade ( superada in fine) vivida por Nic ole e André, um c asal de prof essores aposent ados que est á envelhec endo, em viagem a Mosc ou, aonde vão para enc ont rar Mac ha, a f ilha do prim eiro c asam ent o de André. A narrat iva esc olhida se revela perf eit am ent e adequada ao assunt o t rat ado. Sim one de Beauvoir alt erna, em rit m o rápido e em sequênc ias c urt as de m esm o t am anho ( vint e e quat ro no t ot al) , o pont o de vist a de Nic ole e o de André; o leit or oc upa assim um a posiç ão privilegiada em relaç ão a c ada um dos personagens, f ec hados m om ent aneam ent e em suas int erpret aç ões equivoc adas, em suas dec epç ões não c onf essadas, em seus ranc ores desproporc ionais. Est a t éc nic a, est a adiç ão, perm it e a ela desenvolver, em paralelo, um pont o de vist a m asc ulino e um f em inino, t ant o em suas dif erenç as ( as preoc upaç ões de André são m ais polít ic as; as de Nic ole, m ais volt adas para a sensibilidade) quant o em suas sem elhanç as. Sim one de Beauvoir j á havia ut ilizado esse f oc o duplo em seus rom anc es ant eriores ( O sangue dos outros, Os mandarins) , m as j am ais c om est a

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int ensidade nem c om est a c om plem ent aridade.

Com o o t ít ulo indic a, a novela assoc ia est reit am ent e a hist ória individual e a hist ória c olet iva: o m al-ent endido c onj ugal oc orre durant e um a viagem que leva a um a dec epç ão polít ic a. Cont ém , assim , um t est em unho ( c rít ic o) apaixonant e sobre a União Soviét ic a de m eados dos anos 1960. Sim one de Beauvoir se inspira nas est adas regulares dela e de Sart re na URSS, c onvidados pela União de Esc rit ores, de 1962 a 1966 ( além disso, lá Sart re reenc ont rava Lena Zonina, sua am iga russa de quem Mac ha t om a em prest ados c ert os t raç os) . Assim , é por m eio da experiênc ia c onc ret a dos prot agonist as, at ent os aos espet ác ulos e às sensaç ões, que se m edem as t ransf orm aç ões do país e que se vivem num erosas c onf usões provoc adas pelo absurdo buroc rát ic o. A sit uaç ão c ult ural da União Soviét ic a e sua polít ic a ext erna, dom inada na époc a pela t ensão sino-soviét ic a, susc it am disc ussões ent re Ma c ha e o pai, por f im dec epc ionado por não enc ont rar um ideal soc ialist a puro na Mosc ou que ele redesc obre. A c rít ic a ao regim e soviét ic o apresent ada em Balanço final, esc rit o em 1971 depois da invasão da Tc hec oslováquia, será m ais f ort e e levant ará m ais o problem a das liberdades. Porém , o quadro det alhado da sit uaç ão na União Soviét ic a de Mal-entendido em Moscou é um doc um ent o igualm ent e prec ioso.

Transc endendo a c rise do c asal, Sim one de Beauvoir aborda t em as m ais gerais. Os personagens f em ininos ilust ram aspec t os diversos da c ondiç ão das m ulheres: apesar da vont ade de se em anc ipar e das disc ussões durant e a j uvent ude, Nic ole, absort a dem ais pela vida f am iliar, lam ent a não t er realizado suas am biç ões. Irene, a noiva do f ilho, enc arna a nova geraç ão, que, pret endendo c onc iliar t udo, não se aprof unda em nada. A t ranquilidade e a independênc ia de Mac ha são provenient es da igualdade de gêneros na União Soviét ic a. O problem a da c om unic aç ão c om o out ro perc orre

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t oda a novela, que explora, sobret udo, os ef eit os adversos do envelhec im ent o: o desgast e do c orpo, a renúnc ia à sexualidade, o abandono de proj et os, a perda da esperanç a. Ref let ir sobre a idade c onduz a se quest ionar sobre o Tem po ( c om um a hom enagem f inal a Proust ) . A c onf usão dos personagens dá um a t onalidade líric a part ic ularm ent e em oc ionant e a t odas as ref lexões. O paroxism o do “m al-ent endido” c onduz a um m ergulho c ada vez m ais prof undo no passado e desem boc a no quest ionam ent o sobre o sent ido da vida: “A angúst ia a f ulm inou: angúst ia de exist ir, m uit o m ais int olerável que o m edo de m orrer.” Todos est es problem as e t em as se enc ont ram est reit a e nec essariam ent e ent relaç ados. Mac ha, guia e int érpret e, c uj a presenç a provoc a um a c rise e um a t om ada de c onsc iênc ia, sit ua-se no c ent ro dest a rede.

Em “A idade da disc riç ão”, que subst it ui ent ão Mal-entendido em Moscou, Sim one de Beauvoir ret om a a sit uaç ão do c asal envelhec endo que c onf ront a um m al-ent endido, e reproduz no c ont o, adapt ando ao c ont ext o, num erosas passagens da prim eira novela. Mas Sim one de Beauvoir elim ina t oda a dim ensão soviét ic a e adot a, dessa vez, exc lusivam ent e, o pont o de vist a da m ulher em c rise: essas esc olhas lhe perm it em inserir c om m ais f ac ilidade a nova narrat iva em A mulher desiludida. Com a dist ânc ia do t em po, a riqueza de Mal-entendido em Moscou se im põe e c onvida a um a public aç ão aut ônom a dest e t ext o.

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NOTA

1. Roman 20-50, nº 13, j unho de 1992, “Sim one de Beauvoir”, p. 137-188. Est udos reunidos e apresent ados por Jac ques Deguy. Foi t raduzida e apresent ada por Terry Keef e sob o t ít ulo “Misunderst anding in Mosc ow”, em Sim one de Beauvoir, “The Useless Mouths” and Other Literary Writings, edit ado por Margaret A. Sim ons e Marybet h Tim m erm ann, pref ác io de Sylvie Le Bon de Beauvoir, “Beauvoir Series”, Universit y of Illinois Press, 2011. O m anusc rit o aut ógraf o ( NAF 27409) se enc ont ra na Bibliot ec a Nac ional da Franç a.

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Ela ergueu os olhos do livro. Que t édio, t odas essas arengas banais sobre a não c om unic aç ão! Quando se quer c om unic ar, m al ou bem , c onsegue-se. Conc ordo que não sej a c om t odos, m as c om duas ou t rês pessoas, sim . Sent ado no assent o ao lado, André lia um rom anc e polic ial da Série noire. Ela apaziguava o m au hum or, os arrependim ent os e as pequenas preoc upaç ões dele; sem dúvida André t am bém t inha segredos, m as, no geral, eles se c onhec iam m uit o bem . Ela espiou pela j anela: f lorest as esc uras e prados c laros a perder de vist a. Quant as vezes at ravessaram a região j unt os, de t rem , de avião, de barc o, sent ados lado a lado, c om um livro nas m ãos? Muit as vezes ainda deslizariam lado a lado em silênc io sobre o m ar, por t erra e pelo ar. Esse inst ant e possuía a doç ura de um a lem branç a e a alegria de um a prom essa. Teriam eles t rint a ou sessent a anos? Os c abelos de André f ic aram branc os prem at uram ent e: ant es, isso era c harm oso, a neve que realç ava o f resc or m oreno de sua t ez. E ainda o era. A pele havia engrossado e enrugado, c om o c ouro velho, m as os sorrisos da boc a e dos olhos m ant inham seu brilho. Apesar dos desm ent idos do álbum de f ot os, sua im agem j ovem se c urvava diant e do seu rost o de hoj e: para Nic ole, ele não envelhec era nada. Cert am ent e porque ele m esm o parec ia ignorar que havia envelhec ido. André, que no passado gost ava t ant o de c orrer, nadar, esc alar e se olhar no espelho, agora exibia seus sessent a e quat ro anos sem preoc upaç ões. Um a vida longa de risos, lágrim as, raivas, abraç os, c onf issões, silênc ios e em oç ões, e, às vezes, parec e que o t em po não passou. O

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f ut uro ainda se est ende ao inf init o. — Obrigada.

Nic ole pesc ou um doc e na c est a, int im idada pela c orpulênc ia da aerom oç a e seu olhar duro, c om o se sent ira, t rês anos ant es, pelas garç onet es dos rest aurant es e as c am areiras do hot el. Nenhum a c ordialidade, um a c onsc iênc ia aguda dos seus direit os, só se podia aprovar sua at it ude: diant e delas nos sent íam os c ulpados ou, no m ínim o, suspeit os.

— Est am os c hegando — disse ela.

Com um a c ert a apreensão ela olhava para a pist a que se aproxim ava. Um f ut uro inf init o que poderia ser int errom pido de um a hora para out ra. Conhec ia bem est es salt os, que iam de um a seguranç a beat íf ic a a pont adas de pânic o. A Terc eira Guerra explodiria, André t eria c ânc er de pulm ão — dois m aç os de c igarro por dia eram m uit o, eram dem ais — ou o avião se espat if aria no c hão. Teria sido um a boa m aneira de ac abar c om t udo: j unt os e sem hist órias; m as não t ão c edo, não agora. “Em seguranç a out ra vez”, pensou ela quando o t rem de pouso bat eu, um t ant o f ort e dem ais, na pist a. Os viaj ant es vest iram seus c asac os e j unt aram seus pert enc es. E f ic aram esperando no c orredor, alt ernando o peso ent re as pernas. Um a longa espera.

— Voc ê est á sent indo o perf um e das bét ulas? — pergunt ou André.

O t em po est ava m uit o f resc o, quase f rio: dezesseis graus, dissera a aerom oç a. A t rês horas e m eia dali, c om o Paris est ava pert o e c om o est ava longe; Paris, que nessa m anhã c heirava a asf alt o e a t em pest ade, assolada pelo prim eiro dia m uit o quent e do verão: Philippe est ava pert o, est ava longe... Um ônibus os levou — at ravés de um aeroport o m uit o m aior que aquele onde at errissaram em 1963 — a um prédio envidraç ado, em f orm at o de c ogum elo, onde f unc ionava o c ont role de passaport es. Mac ha os esperava na saída. De novo Nic ole se surpreendeu ao reenc ont rar em seu rost o,

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harm oniosam ent e c onf undidos, os t raç os t ão díspares de Claire e de André. Magra, elegant e, só seu pent eado, que parec ia um a peruc a, c heirava a m osc ovit a.

— A viagem f oi boa? A senhora est á bem ? Voc ê est á bem ? Ela t rat ava o pai c om o voc ê e Nic ole c om o senhora. Isso era norm al e ao m esm o t em po est ranho.

— Passe-m e a bolsa.

Isso era norm al t am bém . Mas, quando um hom em leva suas m alas, é porque voc ê é um a m ulher; se é um a m ulher quem as leva, é porque ela é m ais j ovem que voc ê, e voc ê se sent e um a idosa.

— Deem -m e os t íquet es das bagagens e se sent em aqui — indic ou Mac ha c om aut oridade.

Nic ole obedec eu. Idosa. Pert o de André, em geral esquec ia isso, m as m il pequenas f eridas vinham lhe lem brar. “Um a bela e j ovem m ulher”, pensou ao ver Mac ha. Ela se lem brava de t er sorrido, aos t rint a anos, quando seu sogro prof eriu essas m esm as palavras a respeit o de um a quadragenária. Para ela t am bém , at ualm ent e, a m aior part e das pessoas parec ia j ovem . Idosa. Ela não se c onf orm ava c om isso ( um a das raras c oisas que não c onf iou a André: est e assom bro desolador) . “Mas, af inal, há c ert as vant agens”, ref let iu ela. Est ar aposent ada soava um pouc o c om o ser post a de lado. Mas era agradável t irar f érias quando se t em vont ade; m ais prec isam ent e, est ar o t em po int eiro de f érias. Nas salas de aula quent es, os c olegas c om eç avam a sonhar em sair de f érias. E ela j á saíra. Proc urou André, em pé ao lado de Mac ha, no m eio da balbúrdia. Em Paris ele deixava pessoas dem ais oc uparem seu t em po. Prisioneiros polít ic os espanhóis, presos port ugueses, israelenses perseguidos, rebeldes c ongoleses, angolanos, c am aroneses, guerrilheiros venezuelanos, peruanos, c olom bianos — e out ros t ant os que esquec ia. Est ava sem pre pront o a aj udá-los, na m edida do possível. Reuniões, m anif est os, c om íc ios, panf let os,

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delegaç ões, André ac eit ava t odas as t aref as. E f azia part e de um a boa quant idade de grupos e c om it ês. Aqui, ninguém o solic it aria. Eles só c onhec iam Mac ha. Não t eriam nada a f azer a não ser olhar as c oisas j unt os: adorava desc obri-las c om ele, e que o t em po, parado pela longa m onot onia da f elic idade, reenc ont rasse sua esf uziant e novidade. Levant ou-se. Ela j á queria est ar pelas ruas, sob os m uros do Krem lin. Tinha esquec ido o quant o as esperas podiam ser longas nest e país.

— As bagagens vão c hegar?

— Vão ac abar c hegando — respondeu André.

Três horas e m eia, pensava ele. Com o Mosc ou est ava pert o e t udo t ão longe! Três horas e m eia de dist ânc ia e ver Mac ha t ão raram ent e? ( Mas são t ant os os obst ác ulos; para c om eç ar, o preç o da viagem .)

— Três anos é m uit o t em po — c om ent ou ele. — Voc ê deve ac har que envelhec i.

— Nada disso. Voc ê não m udou. — Voc ê est á ainda m ais bonit a.

André a olhava enc ant ado. Pensa-se que nada m ais pode ac ont ec er na vida e isso é t om ado c om o verdade ( e não f oi f ác il para ele, apesar de j am ais t er dem onst rado) , e eis que um a grande t ernura, t ão nova, vem lhe ilum inar a vida. Ant es não t inha nenhum int eresse naquela garot inha arisc a — na époc a ela se c ham ava Maria — que Claire lhe t razia por algum as horas do Japão, do Brasil, de Mosc ou. Para André, ela c ont inuava sendo um a est rangeira, a j ovem que f oi a Paris depois da guerra para lhe apresent ar o m arido. Mas, na segunda viagem de Mac ha, em 1960, algo ac ont ec eu ent re os dois. Não ent endia bem por que ela havia se ligado t ão f ort em ent e a ele, m as f ic ou c om ovido. O am or que Nic ole lhe dedic ava c ont inuava vivo, at enc ioso, f eliz; m as eles est avam ac ost um ados dem ais um c om o out ro para que André pudesse

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despert ar nela aquela alegria deslum brada que, naquele inst ant e, t ransparec ia no rost o um pouc o severo de Mac ha.

— As bagagens vão c hegar? — pergunt ou Nic ole. — Vão ac abar c hegando.

Por que f ic ar im pac ient e? Aqui o t em po lhes era f ornec ido em abundânc ia. Em Paris, André era m art irizado pelo passar das horas, dividido ent re c om prom issos, sobret udo desde que se aposent ou: ele superest im ou a duraç ão do seu t em po livre. Por c uriosidade ou por desc uido, ac eit ou um a quant idade de obrigaç ões das quais não c onseguia m ais se livrar. Durant e um m ês ele iria esc apar delas; e poderia viver c om est a displic ênc ia de que t ant o gost ava, de que gost ava dem ais, porque era dessa displic ênc ia que nasc ia a m aior part e dos seus problem as.

— Aí est ão nossas m alas — avisou ele.

Inst alaram -se no c arro de Mac ha, e ela se sent ou ao volant e. Dirigia lent am ent e, c om o t odos ali. A est rada t inha um arom a de f olhagem , f rot as de t ronc os de árvores est avam à deriva no rio Moskva, e André sent ia vibrar em si aquela em oç ão, sem a qual a vida para ele não t eria sal: c om eç ava um a avent ura, o que o deixava exalt ado e apavorado, a avent ura da desc obert a. Venc er na vida, ser alguém , nunc a o preoc upara. ( Se sua m ãe não t ivesse im periosam ent e se dedic ado aut orit ariam ent e para que ele c ont inuasse os est udos, t eria se c ont ent ado c om a c ondiç ão dos seus pais: prof essores em um a esc ola de ensino f undam ent al sob o sol da Provenc e.) Para ele, a verdade de sua exist ênc ia e de si m esm o parec ia não lhe pert enc er: ela est ava espalhada de f orm a obsc ura pelo m undo int eiro; para c onhec ê-la, prec isaria int errogar os séc ulos e os lugares; é por isso que am ava a hist ória e as viagens. Mas, em bora est udasse c om serenidade o passado ref let ido nos livros, c hegar a um país desc onhec ido — t ransbordando em sua abundânc ia e vivendo t udo o que poderia desc obrir — lhe c ausava vert igem . E est e país o f azia

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m ais que qualquer out ro. Ele f ora educ ado no c ult o a Lenin; sua m ãe, c om oit ent a e t rês anos, ainda m ilit ava no Part ido Com unist a. André não ent rou para o part ido; m as, at ravés das ondas de esperanç a e desespero, sem pre ac redit ou que a União Soviét ic a det inha as c haves do f ut uro e, c om isso, dest a époc a e do seu próprio dest ino. Ent ret ant o, m esm o nos anos obsc uros do st alinism o, nunc a t eve a im pressão de c om preendla t ão m al. A at ual est ada ali poderia esc larec ê-lo? Em 1963, eles t inham viaj ado c om o t urist as — à Crim eia, Soc hi — de m odo superf ic ial. Dest a vez ele levant aria quest ões, leria j ornais, se m ist uraria às m ult idões. O c arro ent rou na rua Gorki. As pessoas, as loj as. Conseguiria se sent ir em c asa ali? A perspec t iva de não c onseguir o deixava em pânic o. “Eu deveria t er est udado russo c om m ais af inc o!”, pensou. Mais um a dest as c oisas que ele se propunha a f azer e não f azia: não havia passado da sext a liç ão do m ét odo Assim il. Nic ole t inha razão ao c onsiderá-lo um velho preguiç oso. Ler, c onversar, passear, para isso ele est ava sem pre dispost o. Mas os t rabalhos ingrat os — c om o aprender um a língua, preenc her f ic has — ele deixava para depois. Ent ão ele não deveria t er levado est e m undo t ão a sério. Sério dem ais, leviano dem ais. “É a m inha c ont radiç ão”, disse a si m esm o alegrem ent e. ( Tinha adorado essa expressão ouvida de um c am arada it aliano, m arxist a c onvic t o que oprim ia a m ulher.) Na verdade, ele não se sent ia nem um pouc o m al c om isso.

A est aç ão de t rem , de um verde provoc ant e: o verde m osc ovit a. ( “Se voc ê não gost a desse verde, não gost a de Mosc ou”, dizia André, t rês anos ant es.) A rua Gorki. O Hot el Pequim : um m odest o “bolo de noiva” se c om parado aos prédios gigant esc os e exageradam ent e dec orados, supost am ent e inspirados no est ilo do Krem lin, eriç ados nos c éus da c idade. Nic ole se lem brava de t udo. E, assim que saiu

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do c arro, rec onhec eu o c heiro de Mosc ou, um c heiro de gasolina ainda m ais int enso que em 1963, sem dúvida porque havia m uit o m ais c arros, sobret udo m ais c am inhões e c am inhonet es. Já se passaram t rês anos? , pergunt ou-se ela, ao ent rar no grande hall quase vazio. ( Um pano ac inzent ado c obria o balc ão da banc a de j ornais; à port a do rest aurant e — de dec oraç ão exageradam ent e c hinesa — pessoas f aziam f ila.) A rapidez c om que os anos se passaram era angust iant e. Quant as vezes ainda t eria t rês anos para viver? Nada t inha m udado; a não ser para os est rangeiros — havia lhes prevenido Mac ha — , pois o preç o dos quart os, ant es irrisório, t inha t riplic ado. A vigia do t erc eiro andar lhes deu um a c have. Nic ole sent iu o olhar em sua nuc a ao longo do longo c orredor. As j anelas do quart o t inham c ort inas. Tiveram sort e; em geral nos hot éis as vidraç as eram nuas. ( Na c asa de Mac ha as j anelas não t inham c ort inas, apenas leves véus. A gent e se habit ua, dizia ela; a t al pont o que o esc uro t ot al t eria lhe at rapalhado para dorm ir.) Lá em baixo, a grande avenida est ava c onc luída; os c arros m ergulhavam no t únel sob a praç a Maiakovski. A m ult idão nas c alç adas exibia c ores de verão: as m ulheres passeavam c om vest idos f loridos, pernas e braç os nus. Era j unho, elas ac redit avam que est ava quent e.

— Aqui est ão algum as c oisas que lhe t rouxem os — disse Nic ole a Mac ha, c om eç ando a desf azer a m ala.

Uns rom anc es novos, uns c lássic os da Bibliot hèque de la Pléiade, alguns disc os. Tam bém uns c ardigãs, m eias f inas e blusas: Mac ha am ava roupas elegant es. Ela ac aric iava c om enc ant o lãs e sedas e c om parava c ores; Nic ole f oi ao banheiro. Out ra sort e: as duas t orneiras e a desc arga f unc ionavam . Ela t roc ou de roupa e lavou o rost o.

— Que belo vest ido! — elogiou Mac ha. — É. Eu gost o dele.

Aos c inquent a anos, suas roupas lhe parec iam ou t rist es dem ais ou m uit o alegres. Agora, ela sabia o que lhe era

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perm it ido ou proibido, e se vest ia sem preoc upaç ão. Sem prazer t am bém . Aquela relaç ão ínt im a, quase t erna, que ant es t inha c om suas roupas não exist ia m ais. Nic ole pendurou seu t ailleur no arm ário: e, apesar de t ê-lo usado durant e dois anos, era-lhe agora um obj et o indif erent e, im pessoal, no qual não enc ont rava m ais nada de si. Enquant o isso, Mac ha sorria diant e do espelho, não por c ausa da bela blusa que experim ent ava, m as por um a im agem que c onc ebia de si m esm a, inesperada e sedut ora. É, eu m e lem bro, pensou Nic ole.

— Reservei um a m esa no Praga — avisou Mac ha.

Ela se lem brara de que era o rest aurant e pref erido de Nic ole: t ão at enc iosa e c om a m em ória t ão bem organizada quant o a m inha. Nic ole c om preendia a af eiç ão de André por Mac ha. Sobret udo porque ele sem pre desej ou t er um a f ilha e dem onst rava um c ert o ranc or por Philippe ser hom em .

Em dez m inut os Mac ha os levou ao Praga. Deixaram os c asac os no vest iário, rit o obrigat ório: proibido ent rar em um rest aurant e vest indo um c asac o ou c om ele no braç o. Eles se sent aram em um salão de laj ot as, c heio de palm eiras e f olhagens verdes; um a grande paisagem violet a c obria um a das paredes.

— Quant as vodc as? — pergunt ou Mac ha. — Est ou dirigindo: não vou beber.

— De qualquer f orm a peç a t rezent os gram as — disse André.

Os olhos dele proc uraram os de Nic ole. — Na prim eira noit e?

— Na prim eira noit e, que sej a — respondeu ela, sorrindo. Ele t inha t endênc ia a beber c om o f um ava: em exc esso; André havia desist ido de lut ar c ont ra o t abac o, m as o álc ool c onseguia m oderar.

— Abandono m inha diet a na prim eira noit e — disse ela. — Para m im vai ser c aviar e um a j uliana de f rango.

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— A senhora est á de diet a?

— Sim , há seis m eses. Eu est ava engordando.

Talvez Nic ole c om esse m ais que ant es da aposent adoria; em t odo c aso, ela gast ava m enos energia. Philippe t inha lhe dit o um dia: “Mas o que é isso? Voc ê est á f ic ando redonda!” ( Depois ele não parec eu perc eber que ela havia em agrec ido.) E j ust am ent e nest e ano, em Paris, só se f alava em ent rar ou se m ant er na linha: baixas c alorias, c arboidrat os, m edic am ent os m ilagrosos.

— A senhora est á m uit o bem — c om ent ou Mac ha. — Perdi c inc o quilos. E t om o c uidado para não os rec uperar. Eu m e peso t odos os dias.

Ant igam ent e ela não im aginava que pensaria em seu peso t odos os dias. E eis que, quant o m enos se rec onhec ia em seu c orpo, m ais se sent ia obrigada a se oc upar c om ele. Era seu f ardo, e Nic ole o f azia c om um a devoç ão ent ediada, c om o se f osse um ant igo am igo um pouc o inf eliz, um pouc o para baixo, que prec isasse dela.

— Ent ão Philippe vai se c asar — c om ent ou Mac ha. — Com o é a noiva?

— Bonit a, int eligent e — respondeu André.

— Ela não m e agrada nem um pouc o — ac resc ent ou Nic ole. Mac ha c om eç ou a rir.

— Que j eit o de dizer isso! Nunc a vi um a sogra que gost asse da nora.

— Ela é do t ipo “m ulher c om plet a” — explic ou Nic ole. — Exist em m uit as assim em Paris. Com um a prof issão inc ert a, que t ent a se vest ir bem , f azer esport es, m ant er a c asa im pec ável e educ ar os f ilhos de f orm a adm irável; c om o se para provar que é c apaz de ser bem -suc edida em t udo. E no f im das c ont as se dispersa e não realiza nada. Meu sangue gela diant e desse t ipo de m oç a.

— Voc ê é um pouc o inj ust a — observou André. — Talvez.

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E de novo ela se pergunt a: por que Irene? Eu im aginei que quando ele se c asasse... Eu ac hei que ele não se c asaria, que c ont inuaria sendo o garot inho que m e disse um dia, c om o t odos os garot inhos: “Quando eu f or grande vou m e c asar c om voc ê.” E um dia ele m e disse “Tenho um a grande novidade!” c om o ar em polgado de um garot o que em um dia de f est a t inha brinc ado dem ais, rido dem ais, grit ado dem ais. E Nic ole sent iu um gongo no peit o, o sangue no rost o, t odas as suas f orç as t ensionadas para im pedir o t rem or dos lábios. Cert a noit e de f evereiro, as c ort inas f ec hadas, a luz das lâm padas sobre o arc o-íris das alm of adas e o abism o dessa ausênc ia de repent e abert o: “Ele vai viver c om out ra, em out ro lugar.” Pois bem ! Prec iso t om ar part ido, pensou ela. A vodc a est ava gelada, o c aviar, de um c inza aveludado. Mac ha a agradava, ela t eria André para si durant e um m ês. Nic ole se sent iu plenam ent e f eliz.

Ele se sent ia plenam ent e f eliz, sent ado na polt rona ent re as duas c am as onde est avam inst aladas de um lado Mac ha e do out ro, Nic ole. ( Em 1963, Yuri est ava em m issão arqueológic a e t inha levado Vassili, o apart am ent o de Mac ha est ava vazio. Nest e ano, para poder passar um a soirée sozinho c om ela, não havia out ra opç ão senão um quart o de hot el.)

— Eu m e organizei de m odo a f ic ar livre o m ês int eiro — disse Mac ha.

Ela t rabalhava em um a edit ora em Mosc ou que public ava obras c lássic as de aut ores russos em f ranc ês, e em um a revist a dest inada a out ros países c om t ext os c ont em porâneos. Traduzia m as t am bém lia, esc olhia e propunha.

— Poderíam os ir a Vladim ir no f im de sem ana — ret om ou ela. — Três horas de c arro.

Mac ha disc ut ia c om Nic ole: Novgorod, Pskov, Rost ov-o-Grande, Leningrado. Nic ole est ava c om vont ade de passear, que sej a; o m ot ivo de ela ir à União Soviét ic a era em grande

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part e para agradar André, e ele queria que a viagem f osse prazerosa para ela. André olhava as duas ent ernec ido. Mac ha t inha m uit o m ais af inidade c om Nic ole que c om Claire, aquela belezinha boba que f elizm ent e se em penhara t ant o quant o ele em apressar o divórc io assim que o nasc im ent o da f ilha f ora legit im ado. Est ava f eliz por elas se ent enderem t ão bem : as duas pessoas que m ais am ava no m undo. ( Quant o a Philippe, nunc a pôde se desvenc ilhar de um c ert o c iúm e dele. Muit as vezes f ic ava de f ora quando se t rat ava de Nic ole e Philippe.) Nic ole. Ela era m uit o m ais im port ant e que Mac ha. Mas, pert o dest a, t inha a sensaç ão de que, sem ela, nunc a m ais t eria t ido novas experiênc ias: um a im pressão rom anesc a. Nada o im pedia de viver novas avent uras. Cert o dia, Nic ole dec larou que se sent ia velha dem ais para os prazeres da c am a. ( Um absurdo, ele a am ava hoj e t ant o quant o ant igam ent e.) Havia ent ão devolvido sua liberdade. Na verdade, Nic ole seria bem c apaz de t er uns at aques de c iúm e: e ele não t inha m ais t ant o t em po de vida para desperdiç á-lo em brigas. Apesar dos exerc íc ios e de um rigoroso aut oc ont role, André não gost ava m ais do próprio c orpo, não era um present e a dar a um a m ulher. Ele não sof ria c om a c ast idade de Nic ole ( salvo quando, ao pensar bem , via nest a indif erenç a um sinal da idade) . Mas era sem alegria que pensava: “Ac abou. A vida não m e reserva m ais nenhum im previst o.” E ent ão ac ont ec eu um , ac ont ec eu Mac ha.

— Seu m arido não vai f ic ar zangado c onosc o m onopolizando voc ê? — pergunt ou.

— Yuri não se zanga nunc a — respondeu Mac ha c om bom hum or.

Segundo a c onversa ent re eles no Praga, ela parec ia sent ir por Yuri m ais am izade que am or; m as, enf im , era um a sort e ela gost ar um pouc o dele: Mac ha se c asou num im pulso, para poder perm anec er na União Soviét ic a, enoj ada c om o m eio que sua m ãe e seu padrast o f requent avam e c om o m undo

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c apit alist a em geral. Est e país se t ornou o seu; daí vinha, em part e, o respeit o que ela possuía aos olhos de André.

— Com o est á a sit uaç ão c ult ural est e ano?

— Com o sem pre: est am os lut ando — respondeu Mac ha. Ela f azia part e do c am po que c ham ava de liberal, que lut ava c ont ra o ac adem ism o, o dogm at ism o, as rem inisc ênc ias do st alinism o.

— E voc ês ganham ?

— Algum as vezes. Corre um rum or de que c ert os c ient ist as est ariam se preparando para desc onst ruir o c onc eit o sac rossant o da dialét ic a da nat ureza; ist o j á seria um a grande vit ória.

— É bom t er pelo que lut ar — c om ent ou ele. — Voc ê t am bém lut a — disse Nic ole c om vivac idade. — Não. Não depois da guerra da Argélia. Tent o prest ar serviç os, não é a m esm a c oisa. Ainda por c im a é quase sem pre em vão.

Desde 1962, ele havia perdido t oda ligaç ão c om o m undo, e t alvez f osse por isso que se m obilizasse t ant o: porque não agia m ais. Sua im pot ênc ia — a de t oda a esquerda f ranc esa — às vezes o deixava c om o hum or som brio. Sobret udo ao ac ordar: em vez de se levant ar, André se enf iava debaixo das c obert as, c obrindo a c abeç a c om o lenç ol at é se lem brar de um c om prom isso urgent e e pular da c am a.

— Ent ão por que voc ê f az isso? — indagou Mac ha. — Não vej o nenhum a razão para não f azer.

— Poderia t rabalhar para si m esm o. Os art igos dos quais f alava, há t rês anos...

— Não os esc revi. Nic ole dirá a voc ê que sou um velho preguiç oso.

— Nunc a! — exc lam ou Nic ole. — Voc ê vive c om o gost a de viver. Por que se f orç ar a ser dif erent e?

Ela realm ent e pensava assim ? Nic ole não o im port unava m ais c om o ant igam ent e, m as sem dúvida era por t er c ansado

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de brigar. Ela não t eria dado t ant a im port ânc ia à t ese do f ilho se não t ivesse f ic ado dec epc ionada c om o m arido. Pouc o im port a.

— É um a pena — disse Mac ha.

Um ec o repet iu dent ro de André: é um a pena. Sua post ura em relaç ão aos lam ent os de Nic ole j á est ava def inida. Mas gost aria de of erec er a Mac ha um a im agem dif erent e dest a: a de um velho aposent ado que não realizou nada. Ele f orm ulara, sobre os ac ont ec im ent os c ont em porâneos, pensam ent os que Nic ole ac hava int eressant es. Várias vezes prom et eu a si m esm o que iria desenvolvê-las. Mas o present e o devorava; ele não queria est udar o passado ant es de c om preender o m undo de hoj e: e quant o t em po levava f ic ar a par de t udo! E, apesar disso, um dia essa exploraç ão t erm inaria, pensava ele, ent ão daria seguim ent o aos proj et os esboç ados c om ent usiasm o e — provisoriam ent e — abandonados. O dia não veio nem virá. Hoj e André se rendia à evidênc ia: o t rabalho era inf init o. A c ada ano ele f ic ava m ais bem -inf orm ado e se sent ia m ais ignorant e. Os pont os obsc uros, as dif ic uldades e as c ont radiç ões se m ult iplic avam ao seu redor. A China lhe parec ia bem m ais im penet rável que em 1950. A polít ic a ext erna da União Soviét ic a o desc onc ert ava.

— Nunc a é t arde dem ais — ret om ou Mac ha c om um a voz enc oraj adora.

Com o ele t em ia t ê-la ent rist ec ido.

— Não, não é t arde dem ais — c onc ordou ele c om ent usiasm o.

Era t arde dem ais, ele não m udaria. Na verdade, t eria sido possível se inf orm ar sobre seu t em po e se aprof undar num pont o de hist ória ao m esm o t em po, se t ivesse sabido, c om o o f ez Philippe, im por-se disc iplina. Mas, t alvez por t er rec ebido obrigaç ões dem ais na inf ânc ia, t oda im posiç ão lhe era insuport ável. André m ant ivera o gost o por f alt ar à esc ola, por m at ar aulas — at it udes t ão severam ent e punidas e, por isso

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m esm o, t ão delic iosas. Nunc a c ensurou sua preguiç a c om sinc eridade: era result ado de sua abert ura ao m undo, de sua vont ade de f ic ar disponível. De repent e, sob os olhos de Mac ha, a preguiç a lhe surgia de m aneira dif erent e: c om o um a ruga, um a m ania, um def eit o que o m arc ava de f orm a indelével. Ele a t inha perm it ido, ela em anava dele: e agora, m esm o que quisesse, não poderia derrot á-la.

— É c om ovent e a m aneira c om o Mac ha é apegada a voc ê — c om ent ou Nic ole quando eles f ic aram a sós.

— Eu m e pergunt o por quê. Im agino que Yuri sej a m ais um c am arada que um apoio para ela. Mac ha queria um pai. Ao c hegar a Paris em 1960, dec idiu m e am ar.

— Não sej a t ão m odest o — disse Nic ole, rindo. — Eu t e am ei sem t er dec idido.

— Eu era j ovem . — Voc ê não envelhec eu.

André não ret ruc ou. Nic ole parec ia não t er c onsc iênc ia de sua idade; e ele não c om ent ava sobre a própria, m as pensava nisso c om f requênc ia, c om um sent im ent o de espant o. Durant e m uit o t em po — c om m á-f é, c om desc uido e c om f abulaç ões — , rec usou-se a se c onsiderar um adult o. Esse prof essor, esse pai de f am ília, esse quinquagenário, esse não era ele. E eis que a vida se f ec hava ao seu redor; nem o passado nem o f ut uro lhe of erec iam m ais um álibi. Era um sexagenário, um velho aposent ado que não havia realizado nada. Melhor isso que nada. O arrependim ent o que lhe t oc ara de leve j á se dissipara. Prof essor na Sorbonne, hist oriador renom ado, ele reenc ont raria o peso desse out ro possível dest ino em seu passado, e não lhe seria m ais leve. O espant o é se ver def inido, ac abado, f eit o; é ver os inst ant es ef êm eros se som arem e f orm arem um a t ram a que nos prende num a arm adilha. Ele beij ou Nic ole e f oi para a c am a. Os sonhos: pelo m enos isso ainda t inha. Enc ost ou a boc hec ha no t ravesseiro. Gost ava de se sent ir esc orregando no sono. Seus

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sonhos o f aziam viaj ar m ais prof undam ent e que qualquer livro, que qualquer f ilm e. Ele f ic ava enc ant ado c om sua grat uidade. Com exc eç ão daqueles pesadelos ignóbeis onde t odos os dent es despenc avam de sua boc a, nos sonhos ele não t inha idade, esc apava ao t em po. Sem dúvida eles se sit uavam em sua hist ória, f loresc iam em seu passado: m as de m aneira, para ele, m ist eriosa; e não se prolongavam em seu f ut uro: um present e puro. A c ada noit e eles se apagavam e surgiam , sem se ac um ular: um a et erna novidade.

* * *

— Eu gost aria de ao m enos ent ender por que é proibido, aos est rangeiros, ir de c arro a Vladim ir — disse André.

O t rem c orria rápido, sem t ranc os; porém t odos os banc os do vagão davam as c ost as à loc om ot iva, e Nic ole não c onseguia viaj ar de m arc ha a ré sem f ic ar c om o est ôm ago em brulhado. ( Que hum ilhaç ão, enquant o t ent ava c om pet ir c om garot os saudáveis, f ort es e resist ent es!) Ela f ic ava aj oelhada em sua polt rona, virada para André e Mac ha: no f im das c ont as era um sac rif íc io.

— Ent enda que não há nada a ent ender — explic ou Mac ha. — A est rada é boa; as aldeias que at ravessam os são prósperas. É o absurdo buroc rát ic o, um ranç o ant igo de desc onf ianç a de est rangeiros.

— Gent ileza e desc onf ianç a. Com binaç ão engraç ada — c om ent ou Nic ole.

Isso os havia desc onc ert ado em 1963. Nas f ilas de espera — diant e do Mausoléu, da GUM, às port as dos rest aurant es — , bast ava um a palavra de Mac ha e as pessoas se af ast avam para deixá-los passar. Ent ret ant o, na Crim eia, eles enc ont raram proibiç ões em t odo c ant o: a c ost a orient al e Sebast opol est avam int erdit ados para est rangeiros. O Int ourist havia alegado que a est rada da m ont anha que liga Yalt a a Sim f eropol est ava em obras: m as alguém c onf iou a Mac ha

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que, na verdade, est ava f ec hada apenas para est rangeiros. — Voc ê não est á m uit o c ansada? — pergunt ou André. — Posso aguent ar.

Nic ole sent ia-se um pouc o m oída; m as esquec ia-se do c ansaç o vendo passar os c am pos, vast os e t ranquilos, ent ernec ida pela luz de um sol que ainda não se pusera. Ela havia ac abado de t er quat ro belos dias. Mosc ou m udara um pouc o; m as para pior. ( Pena que as m udanç as oc orram quase sem pre no m au sent ido, t ant o para os lugares c om o para as pessoas.) Avenidas f oram abert as e ant igos bairros, dem olidos. Proibida para aut om óveis, a Praç a Verm elha parec ia m aior, m ais solene: um lugar sagrado. De m odo lam ent ável, enquant o ant igam ent e ela despont ava at é o c éu, agora, at rás da Cat edral de São Basílio, um im enso hot el barrava o horizont e. Mas nada im pediu Nic ole de rever f eliz as igrej as do Krem lin, seus íc ones, os dos m useus; e ainda sobravam m uit as c asas ant igas que a seduziam , sobret udo à noit e, quando se perc ebia, at ravés das j anelas de vidro e de t elas f orm adas por f olhagens, a luz quent e de um abaj ur ant igo, de seda laranj a ou rosa, c om f ranj as.

— Chegam os. É Vladim ir — anunc iou Mac ha.

Eles deixaram as m alas no hot el. Era t arde dem ais para j ant ar ali. Mac ha t inha dec idido que f ariam um piquenique f ora. No c éu ainda rosado, a lua havia se erguido, c om plet am ent e c heia. Eles seguiram um c am inho que ladeava as m uralhas do Krem lin: aos seus pés um rio, a est aç ão de t rem , c ent elhas de luzes brilhando. Eles at ravessaram um j ardim perf um ado de phlox e pet únias, onde se erguia um a igrej a; nam orados se beij avam pelos banc os.

— Podem os parar aqui — sugeriu Nic ole.

— Um pouc o m ais longe é m elhor — indic ou Mac ha. Ela c om andava, eles obedec iam . Nic ole ac hou engraç ado porque não est ava ac ost um ada a obedec er.

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volt a de out ra igrej a.

— Vam os sent ar aqui. É a m ais bela igrej a de Vladim ir. Esbelt a, alt a, c oroada c om um só bulbo dourado, m et ade do seu vest ido branc o era c obert a de bordados f inos. Esplêndida em sua sim plic idade. Eles se sent aram , e Mac ha desem brulhou o f arnel.

— Só vou c om er dois ovos c ozidos — avisou Nic ole. — A senhora não est á c om f om e?

— Sim , m as não quero engordar.

— Ah! Não f ique obc ec ada c om isso — rec lam ou Mac ha. — Com a m ais um pouc o!

A voz c arranc uda e indignada de Mac ha f ez Nic ole sorrir: ninguém f alava c om ela nesse t om . E deu um a m ordida em um piroj ki.

— Será que Yuri e Vassili são t ão obedient es quant o eu? — Eles são obedient es o suf ic ient e — respondeu Mac ha, rindo.

— Ent ão t ent e int im idar seu pai: diga a ele que c om quarent a c igarros por dia c orre o risc o de desenvolver um c ânc er de pulm ão.

— Deixem -m e em paz, voc ês duas — disse André, em t om gent il.

— É verdade, voc ê f um a dem ais — dec larou Mac ha. — Passe-m e a vodc a, ent ão.

Mac ha serviu os c opinhos de papelão e, por um m om ent o, eles c om eram e beberam em silênc io.

— Est a igrej a é linda — c om ent ou André c om c ert o pesar na voz. — Est ou olhando c om bast ant e at enç ão, e sei que daqui a oit o dias não vou m ais m e lem brar dela.

— Eu t am bém não — disse Nic ole.

Sim , ela vai esquec er a igrej a branc a e dourada c om o t inha esquec ido t ant as out ras. Aquela c uriosidade que havia m ant ido quase int at a lhe parec ia c om f requênc ia c om o um a sobrevivênc ia obst inada: m as de que servia se as lem branç as

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se reduzem a poeira? A lua brilhava, c om o a est relinha que a ac om panha f ielm ent e, e Nic ole se lem brou dos versos bonit os de Aucassin e Nicolette: “Est relinha, eu t e vi/ Que a lua t raz a si.” Est a é a vant agem da lit erat ura, pensou ela: nós guardam os as palavras c onosc o. As im agens m urc ham , def orm am -se, apagam -se. Mas ela reenc ont rava as velhas palavras em suas c ordas voc ais, quase c om o f oram esc rit as. As palavras os uniam aos séc ulos passados, quando os ast ros brilhavam exat am ent e c om o hoj e. E esse renasc im ent o e essa perm anênc ia lhe davam um a im pressão de et ernidade. A t erra se desgast ou; e, no ent ant o, havia m om ent os c om o est e, nos quais ela parec ia f resquinha c om o nas prim eiras eras e nos quais o present e era suf ic ient e. Nic ole est ava ali, ela olhava a igrej a: sem m ot ivo, só para vê-la. Quent inha por c ausa de uns goles de vodc a, ela perc ebia um c harm e pungent e nesse desint eresse.

Eles volt aram . Nenhum a c ort ina nas j anelas, m as Nic ole enrolou um xale na c abeç a e dorm iu rápido. Ent ernec im ent o do despert ar. No quart o inundado de luz, ele est ava enc olhido na c am a, os olhos vendados c om o um c ondenado à m ort e, a m ão apoiada na parede em um gest o inf ant il, c om o se est ivesse perdido no sono e t ivesse prec isado sent ir a solidez do m undo. Quant as vezes ela havia se sent ado — e se sent aria ainda — à beira da c am a, c oloc ando a m ão em seu om bro, balanç ando-o levem ent e. Às vezes André m urm urava: “Bom dia, m inha m ãezinha”, depois se espreguiç ava t odo e sorria c om ar at urdido. Ela pôs a m ão no om bro dele.

— Quero lhes m ost rar um a c oisa — disse Mac ha, em purrando a port a de um a igrej a. E os guiou at ravés da penum bra. — Olhem o dest ino reservado aos est rangeiros.

O af resc o represent ava o Julgam ent o Final. À direit a dos anj os, os eleit os c om longas t únic as, sem idade; à esquerda, os dest inados ao inf erno, uns f ranc eses em t raj es de out ras

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époc as, c om c asac as pret as, c ulot es apert ados nas pant urrilhas, c olarinho de renda e barbic has pont udas; e, at rás deles, os m uç ulm anos c om seus t urbant es.

— Def init ivam ent e, é um a t radiç ão ant iga — c om ent ou Nic ole.

— De f at o — c onc ordou Mac ha. — Salvo durant e raros períodos, a Rússia f oi am plam ent e abert a ao Oc ident e. Mas c ert os set ores são sem pre host is, em part ic ular a Igrej a. Reparem que eles são punidos c om o inf iéis, não por c ausa da nac ionalidade.

— Na prát ic a o result ado é o m esm o — disse André. Ele est ava m al-hum orado est a m anhã. O dia ant erior havia sido enc ant ador. André gost ava de Vladim ir, de suas igrej as, dos af resc os de Rublev, e não se im port ava em c om er m al, sua m ãe o educ ara bem . Mas a disc ussão inic iada por Mac ha o irrit ava. At é aquele m om ent o ele t ivera c ert eza de que ela c om part ilhava suas opiniões.

— A raiz do seu nac ionalism o não será arranc ada f ac ilm ent e — rec om eç ou ele, saindo da igrej a. — Em sum a, o que ac aba de m e explic ar é que voc ês não são m ais um país revoluc ionário e que est ão m uit o bem assim .

— Nada disso. Fizem os a revoluç ão e ela não est á em quest ão. Mas voc ês na Franç a não sabem o que é a guerra. Nós sabem os. Nós não a querem os.

Mac ha f alou c om raiva, e André t am bém est ava irrit ado. — Ninguém a quer. O que eu digo é que, se voc ês deixam as m ãos da Am éric a livres, se não f azem nada para int errom per sua asc ensão, é aí que ela se t orna perigosa. Munique não im pediu nada.

— Voc ê ac ha que, se bom bardearm os as bases am eric anas, os Est ados Unidos não vão reagir? Não arrisc arem os isso.

— Se eles at ac arem a China, voc ês não f arão nada t am bém ?

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Est ão disc ut indo há duas horas: um não vai c onvenc er o out ro. Eles c am inharam um m om ent o em silênc io. As ruas est avam c heias de gent e. Era a f est a das bét ulas: um subst it ut o, sem dúvida, do Corpus Christ i. As pessoas danç aram at é a m eia-noit e em um grande dancing ao ar livre ( sem m esas nem c adeiras, só um a pist a de danç a c om um a c erc a) . De m anhã c edo desf ilaram pela avenida c ent ral c am inhões apinhados de m oç as c om vest idos branc os e rapazes c om gravat as verm elhas levando galhos de bét ula. E c ant ando. O buf ê f oi servido em um a c asa no parque: havia m esinhas do lado de f ora e m esas grandes no int erior, c om m uit os doc es e pãezinhos.

— Vam os nos sent ar e c om er algo — propôs Mac ha. — Ah! Sim . Se puderm os c om er, vam os c om er — disse Nic ole.

A véspera, em Vladim ir, f oi esc assa de c om ida. O rest aurant e não servia nem peixe, nem c ordeiro, nem aves, nem legum es, nem f rut as: só uns ensopados que Nic ole e Mac ha c onsideraram não c om est íveis. O pão, nem pret o nem branc o, t inha gost o de c ola. Em f rent e ao hot el havia um a f ila para c om prar uns bisc oit os de quebrar os dent es. E nest a m anhã m ulheres saíam da f est a c arregadas de guirlandas de pret zels, as c est as c heias de c om ida. Eles pediram bolos e sanduíc hes de ovos e queij o, am bos exc elent es.

— Nada para c om er na c idade, e aqui est a abundânc ia. Com o é possível? — quest ionou André.

— Eu disse a voc ê para não t ent ar c om preender — respondeu Mac ha.

Segundo ela, não se deve se espant ar c om nenhum a inc oerênc ia, c om nenhum absurdo. O país c ont inuava at rapalhado c om um aparelho buroc rát ic o ant iquado, responsável por enorm es desperdíc ios e por m edidas paralisant es. O governo se esf orç ava, por t odos os m eios, para c om bat er est a inérc ia; m as prec isava de t em po para at ingir o

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obj et ivo.

— Voc ê se lem bra da hist ória das c adeiras esc olares? — ret om ou ela.

Mac ha havia saído do hot el às gargalhadas na m anhã ant erior por c ausa de um program a que ac abara de ouvir na rádio de Vladim ir. Um a f ábric a produzia os enc ost os de c adeiras esc olares; um a out ra, os assent os; e um a t erc eira f azia a m ont agem . Por um lado, sem pre havia esc assez de assent os ou enc ost os; por out ro, quando se t ent avam m ont ar os dois pedaç os, um deles quebrava. Depois de andanç as e t râm it es, invest igaç ões, c ont roles e relat órios, a c onc lusão f oi que o problem a est ava no proc edim ent o de m ont agem . Mas seria prec iso perc orrer um im enso c am inho adm inist rat ivo ant es que a aut orizaç ão para m odif ic á-lo pudesse ser c onc edida. “Com plet o absurdo”, dissera Mac ha, explic ando t am bém que a dif usão radiof ônic a dessa hist ória f azia part e da lut a ant iburoc rát ic a. Ela j ulgava o regim e c om m uit a liberdade e f azia c rít ic as sut is. Se apoiava a polít ic a ext erna, não era por um a obediênc ia c ega, e André f ic ava um t ant o desc onc ert ado c om ist o. Ele não queria m ais f alar no assunt o, não agora. Olhava o povo ao redor: os rost os reluziam de alegria, c om o se as pessoas part ic ipassem espont aneam ent e dest es desf iles, dest as c erim ônias, de t oda est a f est a. No ent ant o, t odos parec iam bast ant e harm oniosos, obedec endo a ordens c om uns. Alegria e disc iplina: não são c ont radit órias. Mas André bem que gost aria de saber c om o as duas c oisas se c onc iliavam . De m odos dif erent es, sem dúvida dependendo da idade e da c ondiç ão soc ial. Se ao m enos ent endesse o que diziam !

— Voc ê deveria nos dar aulas de russo — sugeriu ele a Mac ha.

— Ah, não! — exc lam ou Nic ole. — Eu nem c onheç o o alf abet o. O que voc ê quer que eu aprenda em um m ês? Mas, se voc ê gost a, f aç a um as aulas — ac resc ent ou ela.

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— E voc ê f ic aria ent ediada enquant o isso? — Eu não. Eu leria.

— Pois bem ! Com eç am os am anhã — dec idiu André. — Talvez eu m e sint a um pouc o m enos perdido.

— Voc ê se sent e perdido? — Com plet am ent e.

— Est a vai ser sua prim eira f rase ao c hegar ao paraíso, ou ao inf erno: eu m e sint o c om plet am ent e perdido — disse Nic ole, sorrindo c arinhosam ent e.

Sem pre sorria das ansiedades de André. Em viagem , ela ac eit ava as c oisas t al c om o se apresent avam . “Ora! É a Áf ric a e é um a c olônia!”, dizia-lhe ela em Ghardaia. ( O prim eiro enc ont ro de André, ainda j ovem , c om Magreb. Lá, havia c am elos e m ulheres c om véus, m as, nas loj as, lat as de c onserva e quinquilharias; era a longínqua Arábia e um a aldeia f ranc esa: ele não c onseguia ent ender c om o os hom ens c om quem c ruzava c onviviam c om esse duplo pert enc im ent o.) As razões do seu espant o at ual eram m ais sérias. Com o um soviét ic o poderia se sent ir bem c onsigo m esm o? At é que pont o essa j uvent ude que passava c ant ando pelas ruas se parec eria c om a nossa, ou em que ela era dif erent e? Com o se m ist uravam neles a vont ade de c onst ruir o soc ialism o e o egoísm o nac ional? Muit a c oisa dependia das respost as que se poderia dar a est as quest ões.

— Voc ê se engana ao f alar de egoísm o — disse Mac ha algum as horas m ais t arde. No quart o onde eles desc ansavam t om ando um c há, depois de um a longa c am inhada, ela ret om ou a c onversa da m anhã em um t om m ais desc ont raído. — A guerra nuc lear não t em relaç ão apenas c onosc o, m as c om o m undo int eiro. Ent enda que est am os divididos ent re dois im perat ivos: aj udar o soc ialism o pelo m undo e garant ir a paz. Não querem os renunc iar nem a um nem a out ro.

— Ah! Sei bem que a sit uaç ão não é sim ples.

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vivac idade. — Mac ha quer que eu vej a sua t raduç ão c om ela. Se não f izerm os isso logo, não t erem os m ais t em po.

— Sim , t em os que f azer logo isso — c onc ordou Mac ha. Elas se sent aram lado a lado diant e da m esa. André abriu um guia da União Soviét ic a que t rouxera de Paris e f ingiu est ar absort o na leit ura, m as seus pensam ent os davam volt as. Era evident e que não se podia exc luir a hipót ese de um a respost a am eric ana a qualquer t ent at iva de c ont raesc alada. E ent ão?

A bom ba, em 1945, parec ia um a am eaç a abst rat a: hoj e ela é um a angust iant e realidade. Havia pessoas que não se inc om odavam : “Um a vez que eu m orra, que a t erra sobreviva ou não, não é problem a m eu.” Um am igo de André c hegara a dizer: “Já que é assim , eu m e arrependo m enos pensando que não deixo nada para t rás.” Quant o a ele, se m at aria assim que soubesse que a t erra iria explodir. Ou sim plesm ent e que t oda a c ivilizaç ão seria dest ruída, que a c ont inuidade da hist ória seria int errom pida e que os sobrevivent es — c hineses, sem dúvida — rec om eç ariam do zero. Talvez f izessem o soc ialism o t riunf ar, m as o sist em a deles não t eria nada a ver c om o que seus pais, seus c am aradas e m esm o André haviam sonhado. Ent ret ant o, se a União Soviét ic a opt asse pela c oexist ênc ia pac íf ic a, o soc ialism o não seria um proj et o para o f ut uro. Quant a esperanç a perdida! Na Franç a, a Frent e Popular, a Resist ênc ia e a em anc ipaç ão do Terc eiro Mundo não f izeram o c apit alism o rec uar nem um c ent ím et ro. A Revoluç ão Chinesa gerou o c onf lit o sino-soviét ic o. Não, o f ut uro nunc a parec eu t ão desolador a André. “Minha vida não t erá servido para nada”, pensou. Tudo o que havia desej ado era que sua vida se insc revesse de m odo út il em um a hist ória que levasse os hom ens à f elic idade. Talvez um dia c onseguissem . André t inha ac redit ado por t em po dem ais para não c ont inuar ac redit ando m ais um pouc o: m as ist o oc orreria at ravés de desvios que levariam a hist ória a deixar de ser sua.

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A voz de Nic ole o af ast ou de seus pensam ent os.

— O f ranc ês de Mac ha é perf eit o; t alvez perf eit o dem ais, um t ant o af et ado.

— Tenho m uit o m edo de c om et er erros — j ust if ic ou Mac ha. — Perc ebe-se.

Elas se volt aram novam ent e para as f olhas dat ilograf adas, sorrindo e c oc hic hando. Nic ole, em geral t ão severa c om as m ulheres, sent ia um a verdadeira am izade por Mac ha; o ent endim ent o ent re as duas agradava a André.

— Tam bém quero ver essa t raduç ão — disse ele.

Mesm o que o f ut uro parec esse desolador, não seria possível est ragar esse m om ent o de int im idade e t ernura. André deixou suas rum inaç ões de lado.

* * *

— Eu m e sent aria de bom grado — disse Nic ole.

O rest aurant e uzbeque era um c harm e c om seus pequenos pavilhões espalhados pelo j ardim e um a c lient ela exót ic a: hom ens de rost os ac hat ados, olhos puxados, bonés quadrados na c abeç a, m ulheres c om vest idos de seda m ult ic olorida e pesadas t ranç as pret as. Com iam -se ali os m elhores c hac hliks de Mosc ou. Mas — em t odo c ant o era a m esm a c oisa — a balbúrdia da orquest ra os pusera para f ora assim que engoliram o últ im o pedaç o. Mac ha t inha propost o um a c am inhada. Mas, c om o eles haviam andado m uit o o dia t odo, Nic ole est ava c ansada. Um vexam e; ant igam ent e ela andava quilôm et ros c om t ant a alegria quant o André! Agora, t oda noit e, após longas peram bulaç ões pela c idade, suas pernas a t raíam . Nic ole não deixava que ele perc ebesse. Mas era um a best eira esc onder isso. Eles passaram em f rent e a um banc o vazio, algo raro, m elhor aproveit ar. Sent aram -se.

— Ent ão, f inalm ent e podem os ir a Rost ov-o-Grande, ou não?

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— Rec eio que não — disse Mac ha. — E o passeio sobre o Moskva? — Posso pergunt ar...

— Ah! Por que não f ic ar em Mosc ou sim plesm ent e? — sugeriu André. — Tem os t ant as c oisas a rever.

— De qualquer f orm a vam os revê-las.

Rever. Houve um a époc a, por volt a dos quarent a anos, em que rever as c oisas a enc ant ava. Ant es, não, ela t inha sede de novidades. At ualm ent e t am bém . Tão pouc os anos de vida: andar t odos os dias pela Praç a Verm elha era t em po perdido. Ela era m agníf ic a: que surpresa, há t rês anos. Mas Nic ole j á a c onhec ia bem . Era essa a grande dif erenç a ent re a prim eira viagem e est a agora. Em 1963, t udo era novidade; dest a vez, quase nada. Daí vinha sem dúvida essa leve dec epç ão.

— E onde passarem os a soirée? — pergunt ou ela. — Por que não aqui? — disse André.

— Nest e banc o, a soirée t oda?

Est e ano, não sabiam aonde ir à noit e. Yuri parec ia m uit o gent il — c om o não f alava f ranc ês, a c om unic aç ão c om ele era bast ant e lim it ada — , m as f ic ava t rabalhando no quart o, e Vassili no dele; para não os at rapalhar, era prec iso c oc hic har e, ainda assim , sent iam est ar inc om odando. O quart o do hot el não era ac olhedor. Foram c onst ruídos vários c af és durant e est es últ im os t rês anos; por f ora não eram f eios, c om suas paredes de vidro; m as, no int erior, parec iam leit erias, f alt ava c onf ort o e um c lim a int im ist a; aliás, a est a hora j á est avam f ec hados. E agora est e banc o, em um a praç a que c heirava a gasolina, ao lado de um a est aç ão de m et rô?

— Est am os bem aqui — disse André. — Há um bom arom a de plant as.

Ele f ic ava bem em qualquer lugar. Com um t erno de f lanela, não sent ia f rio; para Mac ha, abaixo de dez graus ainda era quent e; m as o f rio deixava Nic ole, c om seu vest ido leve, arrepiada. E, ainda por c im a, passar a soirée em um banc o

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lhe c ausava af liç ão.

— Est ou c om f rio — dec larou ela.

— Podem os ir ao bar do Nac ional — disse Mac ha. — Boa ideia.

O bar f ic ava abert o at é as duas da m anhã; pagava-se em divisas est rangeiras. Ali era possível c onseguir uísque e c igarros am eric anos; ela c ham ou isso à at enç ão de André e Mac ha no dia em que alm oç aram lá, m as eles não c om ent aram nada. Mac ha o havia not ado, e o lem brara na hora c ert a. Eles se levant aram .

— É longe?

— Um a m eia hora de c am inhada. Talvez c onsigam os um t áxi — disse Mac ha.

Nic ole queria m uit o um t áxi: suas pernas e seus pés doíam . Em geral, era f ác il enc ont rar um : e o núm ero de t áxis havia duplic ado desde 1963. Muit os c irc ulavam est a noit e, c om aquele let reiro verde ilum inado de m odo prom issor; m as podiam -se f azer t odos os gest os que eles passavam diret o im plac avelm ent e: não era perm it ido parar nessas grandes avenidas. O pont o m ais próxim o era m uit o longe, e t alvez t ivesse um a longa f ila de passageiros sem nenhum c arro. Cam inhar e sent ar nos banc os, um duro regim e. Para seus habit ant es, Mosc ou t alvez f osse m uit o boa; Mac ha não gost aria de viver em out ra c idade, m uit o m enos em Paris ( o que era, no m ínim o, surpreendent e) . Mas, para os est rangeiros, que aust eridade! Talvez eu t enha envelhec ido dem ais nest es últ im os t rês anos, disse Nic ole a si m esm a: j á não suport o t ão bem o desc onf ort o. E isso só vai piorar. “Est am os na f lor da últ im a idade”, dizia André. Est ranha f lor: de c ardos.

— Est ou c aindo de c ansaç o — c om ent ou. — Já est am os c hegando.

— Envelhec er é f eio. Mac ha a pegou pelo braç o.

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— Vam os lá! A senhora é t ão j ovem , os dois são.

Diziam ist o c onst ant em ent e: a senhora t em um ar j ovem , voc ês são j ovens. Elogios am bíguos que anunc iam f ut uros penosos. Mant er a vit alidade, a alegria e a presenç a de espírit o é c ont inuar j ovem . Logo, são próprios da velhic e a rot ina, a m elanc olia, a c aduquic e. Dizem : a velhic e não exist e, não é nada; ou ent ão: é m uit o bonit a, m uit o t oc ant e; m as, quando a enc ont ram , f ant asiam -na em palavras m ent irosas. Mac ha dizia: a senhora é j ovem , m as pegou Nic ole pelo braç o. No f undo, era por c ausa dela que, desde a c hegada, Nic ole sent ia o peso da sua idade. Dava-se c ont a de que c onservava a im agem que t inha de si m esm a aos quarent a anos: ela se rec onhec ia nest a j ovem e vigorosa m ulher; princ ipalm ent e porque Mac ha era c heia de experiênc ias e aut oridade, t ão m adura quant o Nic ole: duas sem elhant es. E depois, de repent e, um gest o, um a inf lexão de voz ou um a at enç ão lhe lem bravam de um a dif erenç a de vint e anos ent re as duas — que est ava c om sessent a anos.

— Que c onf usão! — exc lam ou André.

O bar era enf um aç ado e barulhent o. Apenas um a m esa livre, esprem ida ent re dois j ovens am eric anos de risos ruidosos e f ranc eses de m eia-idade que grac ej avam m uit o alt o. Uns alem ães oc ident ais — só as m oedas oc ident ais eram ac eit as — c ant avam em c oro. Um disc o de j azz que quase não se ouvia. Mas era agradável reenc ont rar o gost o de uísque, o gost o das soirées em Paris c om André, c om Philippe. ( Est ava quent e lá; eles t eriam se sent ado à c alç ada de um c af é em Mont parnasse.)

— Est á sat isf eit o em volt ar ao Oc ident e? — Por um m om ent o, sim .

Ele havia se isolado. Não esc revera a ninguém . Só um a palavrinha rabisc ada na últ im a c art a de Nic ole a Philippe. Sorria de m anhã quando ela c om prava, obst inada, o j ornal L’Humanité de vários dias at rás. André era sem pre assim em

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viagem . Esquec ia Paris f ac ilm ent e; não t inha raízes lá. — A alegria das delegaç ões! É pior que o c asam ent o de um peruqueiro! — disse ele c om ar de derrot a.

— Voc ê quer ir em bora? — Claro que não.

Ele f ic ava para agradar Nic ole, m as não t eria vont ade de volt ar ao bar; Mac ha t am bém não, ela não se sent ia bem naquele am bient e. ( Nem um russo sequer; c om exc eç ão de duas m ulheres exc essivam ent e m aquiadas que c om c ert eza busc avam f azer f ort una.) Ent ret ant o, o lugar era agradável, abert o — pelo m enos ent reabert o ao m undo. Um negro alt o, de c am isa verm elha, c om eç ou a danç ar sozinho, e as pessoas m arc avam o rit m o bat endo palm as.

— Ele danç a m uit o bem — c om ent ou Nic ole. — É.

André parec ia ausent e. Ele t inha adquirido um c ac oet e havia alguns dias: apert ava a boc hec ha c om o dedo na gengiva. Nic ole disse c om c ert a im pac iênc ia:

— Est á doendo? Vá a um dent ist a. — Não est á doendo.

— Ent ão por que voc ê apalpa o t em po t odo? — Est ou verif ic ando se não est á doendo.

Houve um a époc a em que André m edia o pulso vint e vezes por dia, o olhar f ixo nos pont eiros de seu relógio de pulso. Pequenas m anias sem gravidade, m as que são, de qualquer m odo, um sinal. De quê? De que se est á envelhec endo e de que a senilidade est á à espreit a. Senilidade. Ela c onhec ia de c or as def iniç ões do dic ionário, c uj a disparidade a surpreendera. Juvenilidade: c arát er do que é j uvenil. Senilidade: enf raquec im ent o do c orpo e do espírit o produzido pela velhic e.

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Yuri e Nic ole t inham saído logo depois do alm oç o, André f ic ara c om Mac ha para a aula de russo. Ele est endeu a m ão para a garraf a de vodc a.

— Chega de t rabalho por hoj e. E ac resc ent ou c om despeit o: — Tam bém não t enho m ais m em ória. — É um bom argum ent o.

— Não c onsigo f ixar o que aprendo. Vou esquec endo à m edida que o t em po passa.

Bebeu um gole de vodc a e Mac ha m eneou a c abeç a c om ar de desaprovaç ão.

— Nunc a vou m e habit uar a essa m aneira de beber. Ela virou o c opo de um a vez.

— É verdade que para aprender um a língua um m ês não é quase nada — c om ent ou ele.

— Por que um m ês? Voc ês t êm algo de espec ial para f azer em Paris?

— Nada.

— Ent ão f iquem m ais um pouc o.

— Por que não? Vou c onversar hoj e à noit e c om Nic ole. Mosc ou est ava alegre nest es belos dias de verão. As pessoas se apressavam na f ila dos c am inhões-t anque que dist ribuíam kvas e c ervej a; t om avam de assalt o as m áquinas aut om át ic as que, por um c opeque, liberavam um a água m ais ou m enos f resc a, e, por t rês, um ref resc o c om um vago gost o de f rut a; e havia bom hum or nos rost os.

Eles eram m uit o m enos disc iplinados do que André im aginara: at ravessavam a rua quando o sinal est ava verm elho c om a m esm a t ranquilidade de quando est ava verde. Ele pensou na c onversa que t eve c om Yuri durant e o alm oç o.

— Yuri não m e c onvenc eu — disse ele.

— No ent ant o, asseguro a voc ê que ele t em razão — ret ruc ou Mac ha.

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