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Guavira n o 11 A MOLECADA, O MENINO, O POETA E O BALÃO. Ciência da Literatura - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

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A MOLECADA, O MENINO, O POETA E O BALÃO

Wilson José FLORES JR48.

RESUMO: O ritmo dissoluto é, como sublinha Manuel Bandeira, o primeiro dos livros que ele escreverá no

Curvelo, lugar onde o autor afirma ter “redescoberto os caminhos da infância”. Essa afirmação encontra eco nos poemas reunidos no livro, alguns dos quais têm a infância como tema. Entre esses, destaca-se “Na rua do Sabão” que expressa as adversidades que o menino José enfrenta para confeccionar e “dar vida” a seu balão. No poema, uma combinação intricada de proximidade e distanciamento, identificação e distinção, celebração e melancolia obrigam a repensar os sentidos que a expressão bandeiriana adquire em seus poemas, sobretudo no que tange a certo consenso em torno da suposta “humildade”, vista como traço distintivo de seu estilo.

Palavras-chave: Poesia brasileira moderna. Manuel Bandeira. Infância.

O ritmo dissoluto é o primeiro livro que Manuel Bandeira comporá sob a “atmosfera

da Rua do Curvelo”, onde passou a morar após a morte do pai, em 1920, por influência de Ribeiro Couto, também morador da rua. O trecho de Itinerário de Pasárgada no qual o poeta faz referência à rua é um dos mais conhecidos do livro:

A Rua do Curvelo ensinou-me muitas coisas. Couto foi avisada testemunha disso e sabe que o elemento de humilde quotidiano que começou desde então a se fazer sentir em minha poesia não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do Curvelo.

A morte de meu pai e a minha residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933 acabaram de amadurecer o poeta que sou. [...] Sem ele eu me sentia definitivamente só. E era só que teria de enfrentar a pobreza e a morte. Quanto ao morro do Curvelo, o meu apartamento, o andar mais alto de um casarão em ruína, era, pelo lado dos fundos, posto de observação da pobreza mais dura e mais valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada sem lei nem rei que infestava minhas janelas [...]. Não sei se exagero dizendo que foi na Rua do Curvelo que reaprendi os caminhos da infância. (BANDEIRA, 1966, p.63-64).

O trecho é bastante sugestivo, seja pelo relato tão despojadamente pessoal, quanto pelo procedimento recorrente em Bandeira de vincular muito diretamente aspectos técnicos, estruturais e temáticos de sua poesia a passagens de sua biografia. É certo, contudo, que no mesmo Itinerário e em outros momentos de sua produção ele traçará toda uma linha de reconhecimentos e influências que o vinculará ao cerne da tradição literária ocidental e da literatura moderna49. Esse jogo de encobrimentos e desvelamentos, que ora expõe sem peias a vida e ora reafirma o trabalho técnico do poeta, não constitui propriamente uma incoerência,

48 Doutorando - UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Letras - Departamento de

Ciência da Literatura - Rio de Janeiro - RJ - Brasil – 21941-901 - wfloresjr@ufrj.br.

49 Como referência, considere-se a seguinte citação: “[...] Ribeiro Couto e eu sabíamos de cor diversas passagens

desses poemas, e creio talvez poder confessar ter sido Cendrars quem levantou em mim o gosto da poesia do cotidiano” (EULÁLIO, 2001, p.460). Não se trata, obviamente, de discutir qual a mais “verdadeira” (se o Curvelo, se Cendrars), nem em que medida o poeta estaria sendo “sincero” ou não. Também não é necessário discutir se as afirmações se contradizem ou se complementam; a diferença de ênfase já é suficiente, pois o que importa é notar que o modo como Bandeira representa a si mesmo e à sua formação enquanto poeta não é unívoco; daí a necessidade de considerar suas declarações com o devido cuidado e distanciamento, problematizando-as em face das questões colocadas pelos poemas.

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mas, sem dúvida, revela uma tensão dialeticamente fecunda que reponta em vários momentos da produção bandeiriana.

Veja-se, por exemplo, o início da crônica “Trinca do Curvelo”:

No baralho, a trinca são três cartas de mesmo valor. A semântica da molecada alargou o conteúdo da palavra e fê-la sinônima de baderna de bairro [...]. É o conjunto da molecada do bairro, que a gente vê a todas as horas batendo bola na rua, empinando pipas, estalando os tecos da buraca, abatendo os pardais a bodoque... (Às vezes se atiram a distantes excursões donde regressam com uma jaca enorme. Nesses dias, é, na rua, jaca por todo lado, uma orgia de jaca – enervante como todas as orgias).

Mas há a trinca de rua: a trinca do Curvelo em oposição à trinca do Cassiano. Se atendesse à nomenclatura atual, teria que dizer a trinca de Hermenegildo de Barros, o que soa tão engraçado como antítese, aproximando a mais alta magistratura togada desse mundozinho irresponsável dos piores malandros da terra...

Os piores malandros da terra. O microcosmo da política. Salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo – até de partir as vidraças das minhas janelas! Mentir é com eles. Contar vantagem nem se fala. Valentes até na hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando homens vão todos dar assassinos, jogadores, passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só com a saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes. (BANDEIRA, 2006, p.149).

Primeiramente, salta à vista a empatia do poeta pelos meninos, que, de tão enfática, chega mesmo a resvalar em certo pieguismo (”Acabam lutando pela vida, só com saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes”). De qualquer modo, há um movimento de identificação, no qual o cronista procura se colocar no lugar da “molecada do bairro”, buscando, a partir de suas suposições e impressões, compreender seu comportamento. No entanto, essa identificação não é simples nem imediata. Ao contrário, aparece repleta de ambivalências (“mundozinho irresponsável”, “valentes até na hora de fugir” etc.). Tal como ocorre no Itinerário, na crônica há algo da biografia que permanece velado; mas esse encobrimento, apesar de perceptível, é ofuscado pela clareza e pelo aparente despojamento com que outros elementos da mesma biografia são expressos50.

Nos trechos citados, o desejo de aderir imediatamente à vida e certo distanciamento aristocrático parecem combinar-se, de forma que, mesmo sinceramente interessado pela vida dos meninos, o cronista mantém-se distante, olhando-os de uma perspectiva que mistura, por um lado, certa irritação de alguém, por assim dizer, “civilizado” frente à “barbárie” da “horda” de moleques (“uma orgia de jaca – enervante como todas as orgias”; “salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo”) e, por outro, a benevolência (“Pois nada disso...”) de quem se sente, em alguma medida, superior, podendo, por isso, olhar para tudo

50 Em um ensaio sobre as relações entre história, genealogia e subjetividade na poesia de João Cabral de Melo

Neto, Éverton Barbosa Correia afirma que “a história manipulada interessa na medida em que servir ao seu discurso e se constituir como índice de sua condição de estar no mundo” 50. E mais, “deslocado de um lugar que foi efetivamente seu, de experiências fundamentais que se esfumaram”, o poeta, “na medida em que esse espaço esboroa”, irmana-se “ao exército de anônimos que perambulam pelas ruas” 50. Consideradas as devidas

peculiaridades de cada um dos poetas, o ponto de vista defendido pelo crítico oferece um campo fértil de exploração das ambivalências constitutivas das subjetividades líricas em sua relação com a genealogia familiar, por um lado, e a história brasileira, por outro, o que, no caso de Bandeira, permitiria repensar o sentido da “humildade” bandeiriana e dos modos como a biografia, por assim dizer, ditada pelo poeta definiu a recepção de sua obra. (CORREIA, 2008, p. 183-206).

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com um distanciamento meio bonachão, calcado numa pretensa compreensão da atitude dos meninos, o que suaviza todo o quadro51.

A esse respeito ainda, considere-se um trecho da “Cronologia” da vida de Bandeira, organizada por ele mesmo para a primeira edição de Estrela da vida inteira:

1896/1902 A família muda-se do Recife para o Rio, indo residir na travessa Piauí, depois na rua Senador Furtado, depois em Laranjeiras. Durante seis anos mora na casa de Laranjeiras. Não brinca com os moleques da rua mas toma contato com esta e com a gente humilde como uma espécie de intermediário entre sua e os fornecedores, vendeiros, açougueiros, quitandeiros e padeiros. O futuro filólogo Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis, é seu companheiro de conversas sobre literatura. (BANDEIRA, 1993, p.19)

O autor sublinha que não brincava com “os moleques da rua”, expressão que, como se sabe, continua soando muito problemática: é comumente usada para desqualificar, mas não deixa de ser também um modo espontâneo, coloquial de se referir a meninos. Embora não brincasse com os vizinhos, afirma que era uma espécie de intermediário entre a mãe, mais resguardada e distante do universo popular à sua volta, e os trabalhadores cotidianos que abasteciam a casa. É curioso observar que essa ideia é muito próxima do modo como o autor às vezes se vê como poeta: um intermediário entre a literatura (a cultura erudita/letrada) e a vida popular.

Além disso, há na figura do intermediário uma espécie de auto-elogio, uma vez que sugere certa capacidade de realizar algo que, num país de longa tradição colonial e escravista, baseada no mandonismo e no favor, toca o impossível e permanece sendo uma das aspirações mais fortes e, ainda, um dos fracassos mais dolorosos seja da literatura, do pensamento social ou da política de esquerda: aproximar-se do (às vezes fantasmagórico, às vezes onírico) popular, criando uma ponte entre a riqueza e a pobreza, entre o poder e o povo, entre a cultura erudita e a popular. Claro, ele era apenas intermediário entre a mãe e os vendedores, em nenhum momento sugere que estivesse realizando alguma grande intervenção social. Mas a escolha da cena e das palavras que a descrevem possuem certa ênfase, como que sugerindo uma qualidade não ordinária, ou mais, especial e distintiva do modo de ser do poeta.

Há também um evidente contraste entre “os moleques da rua” e “o futuro filólogo Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis” que era, esse sim, seu “companheiro de conversas sobre literatura”. Bandeira não era como a molecada da vizinhança, uma vez que se distingue deles tanto pelos costumes e tradição familiares quanto pelo contato e convívio com gente culta, potencialmente importante, bem relacionada e interessada em literatura. A distância entre o menino Manuel e os moleques não poderia ser maior; mas, como sempre, não se pode negar o interesse e certa empatia do poeta pela “gente humilde”. Retomando o que foi afirmado acima, num país onde a classe dominante sempre desfez das classes populares, não deixa de ser um diferencial que conta a favor de Bandeira, ainda que o autor faça questão de reafirmar seu lastro aristocrático.

51 Como já foi sugerido, a oscilação em questão liga-se a uma ambivalência ao mesmo tempo pessoal e histórica:

o esfacelamento do modo de vida patriarcal, o rebaixamento dessa experiência frente à “modernização” do país, além de certo despeito aristocrático dos “destronados” convivendo intimamente com o gosto e as esperanças do progresso (Cf. SCHWARZ, 1997). É claro que os desdobramentos das diversas implicações dessa afirmação demandam um trabalho específico, que ainda está em desenvolvimento.

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Deste ponto de vista, a luminosidade do interesse e da empatia, sobretudo em meio tão hostil e árido às aproximações entre classes como é o Brasil, bem como a própria dificuldade dos leitores de Bandeira de “ir além” do que fez o poeta, parecem apontar para alguns motivos que enfraqueceram a percepção das tensões e ambivalências que são constitutivas de seu ponto de vista e que marcam profundamente alguns de seus poemas mais conhecidos, entre eles, “Na rua do sabão”.

Na rua do sabão

Cai cai balão Cai cai balão Na Rua do Sabão!

O que custou arranjar aquele balãozinho de papel! Quem fez foi o filho da lavadeira.

Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.

Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos... Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.

Ei-lo agora que sobe, – pequena coisa tocante na escuridão do céu. Levou tempo para criar fôlego.

Bambeava, tremia todo e mudava de cor. A molecada da Rua do Sabão

Gritava com maldade: Cai cai balão!

Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam. E foi subindo....

para longe....

serenamente...

Como se o enchesse o soprinho tísico do José. Cai cai balão!

A molecada salteou-o com atiradeiras assobios

apupos pedradas. Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais. Ele foi subindo...

muito serenamente... para muito longe... Não caiu na Rua do Sabão.

Caiu muito longe... Caiu no mar, – nas águas puras do mar alto.

O primeiro elemento do poema é a citação dos versos iniciais de uma cantiga popular junina conhecida por todos. A escolha – que também justifica o título – ajuda a construir alguns dos elementos chave, recorrentes no poema. A começar pela atmosfera espontânea e pela empatia que tende a produzir no leitor, também conhecedor da mesma cantiga, que pode se sentir tentado a continuar a cantiga a partir dos versos citados ou a descobrir o que o poeta

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pretende com ela. Quanto à cantiga, considerando-se a ordem que aparece no poema, existem duas variações devidamente documentadas52, cada uma conferindo aos versos escolhidos por Bandeira uma coloração ligeiramente diferente:

Versão 1

Cai, cai balão Cai, cai balão Na rua do Sabão.

Não cai não, não cai não, não cai não Cai aqui na minha mão.

Versão 2

Cai, cai balão Cai, cai balão Na rua do Sabão.

Não vou lá, não vou lá, não vou lá, Tenho medo de apanhá.

A versão 1 soa mais ingênua, parece apenas dar voz ao desejo de uma criança que gostaria de que o balão caísse ao alcance de sua mão. Nesse sentido, teria algo de conjuração, tentando, por meio da repetição coordenada de ritmos e sons, trazer magicamente o balão para perto. Embora seja cantada mais constantemente às vésperas e durante as festas juninas, a cantiga é impregnada por certa melancolia de fundo; é alegre, cantada frequentemente em grupo, mas soa solitária (uma criança desejando, de longe, um benefício do destino a lhe presentear com o balão) ou rixosa (um grupo de crianças disputando o balão, ou considerando o animismo que perfaz os versos, a preferência do balão.

Aliás, essa segunda possibilidade encontra na versão 2 uma certa confirmação: aquele que canta está longe, entendeu onde o balão cairá, mas decidir não ir atrás dele porque tem “medo de apanhá”. Certamente, não é novidade para ninguém que as crianças disputam, às ingenuamente, às vezes violentamente, objetos como balões e pipas. E, frequentemente, não há nessa disputa espaço para os menos “qualificados” que são facilmente superados pela molecada mais acostumada à rua e a seus obstáculos: organizam-se melhor, sabem o melhor caminho para chegar a algum lugar, sabem enfrentar muros, terrenos, mato etc.

Em uma análise do poema, o crítico Marcus Mazzari53 afirma que os versos iniciais, na medida em que se repetem várias vezes, compõem leitmotiv do poema que, estranhamente, “exprime a tendência contrária ao acontecimento que está sendo celebrado”: a insistência e a vitória do José em fazer seu balão ganhar força e ascender ao céu. Derivando um pouco essa observação, parece possível afirmar que essa repetição insistente configura o pano de fundo onde as situações apreendidas no poema se desenvolvem como hostil ele mesmo, o que confere o tom melancólico que atravessa o texto todo. Estamos longe da simples celebração e da alegria da vitória portanto.

Considerando as versões em face do poema, a melancolia solitária é elemento importante, mas, em Bandeira, ligeiramente deslocada: é atributo do menino que constrói e solta o balão e não das crianças que acompanham a queda do objeto desejado. Mas a rixa é

52 MARQUES, 2003, p.113-114. 53 MAZZARI, 2002.

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direta e muito evidente, configurando no poema um dos modos como os conflitos se resolvem entre os mais pobres em ambiente social onde impera o favor, como notou o crítico Edu Teruki Otsuka a propósito de Memórias de um sargento de milícias.

Propondo uma releitura do romance de Manuel Antonio de Almeida, a partir de considerações a respeito daquele que é o ensaio mais importante sobre o livro, a “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido, Otsuka considera que a leitura que se rotinizou após a publicação da referida análise acabou por enfatizar a ideia de malandragem como uma espécie “traço cultural do brasileiro”, deixando de lado as determinações histórico-sociais que seriam, em seu ponto de vista, a “contribuição decisiva do ensaio de Candido para a crítica literária materialista” 54

. Tendo isso em mente, Edu Otsuka argumenta que

[...] além de transitarem livremente entre as esferas da ordem e da desordem, os personagens apresentam, de maneira sistemática, comportamentos fortemente marcados por traços mais ou menos assemelhados, como a maledicência, a zombaria, o achincalhe, a rivalidade e sobretudo a vingança; assim, os relacionamentos interpessoais que predominam no universo social da Memórias configuram uma estrutura peculiar, sendo governados por uma inclinação geral, comum aos personagens, a que se poderia chamar de espírito rixoso.55

Tal espírito se caracterizaria pela intenção de “sobrepor a própria pessoa aos outros”, ainda que de modo apenas momentâneo. Nesse sentido, as situações de contenda que brotam ao acaso na narrativa ofereceriam ocasião aos personagens para atingir “uma supremacia qualquer” 56

(expressão que o autor empresta de Machado de Assis), numa “multiplicação de disputas por picuinhas” 57. Por isso, “nas disputas vigentes nas Memórias, o objetivo

disputado parece menos importante do que o dano moral infligido ao oponente, de tal modo que a satisfação não decorre tanto da eficácia em alcançar o objetivo, mas sim da capacidade de humilhar o adversário” 58

. Situando a discussão no quadro histórico do Brasil oitocentista, no qual a estrutura social escravista “estabelecia distinções hierárquicas rígidas, em que a afirmação da desigualdade se tornava um imperativo para a definição das posições sociais”, uma vez que a inserção social “dependia menos da situação objetiva do que das relações estabelecidas com algum proprietário ou outra instância de poder” 59. Assim, “na falta de

proteção de um poderoso”, a rixa representaria para os pobres a única possibilidade de “afirmar uma supremacia (um pouco na realidade e muito na imaginação), em vista da obtenção do sentimento de superioridade e de certo prestígio em relação aos demais” 60

. Voltando ao poema de Bandeira, é evidente que o quadro histórico não é o mesmo das

Memórias, mas é fato também que o progresso à brasileira se deu, em grande medida, a partir

de múltiplas formas de “reprodução moderna do atraso” 61

, tanto que, ainda hoje, não deve

54 OTSUKA, 2007, p.107. 55 OTSUKA, 2007, p. 112. 56 OTSUKA, 2007, p. 113. 57 OTSUKA, 2007, p. 115. 58 OTSUKA, 2007, p. 118. 59 OTSUKA, 2007, p. 119. 60 OTSUKA, 2007, p. 121. 61

A expressão, como se sabe, é de Roberto Schwarz. Citando um conhecido comentário de Paulo Arantes ao texto de Schwarz, “como não há transformação radical entre passado rural e presente urbano, onde se esperava conflito e desintegração, há promiscuidade entre tradicional e o moderno que o prolonga” (ARANTES, 1992,

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soar estranho à maioria das pessoas o cenário de disputas e rixas descrito por Otsuka. A rixa, enquanto tentativa de angariar uma superioridade imediata qualquer, é, por definição destrutiva, pois tende a lançar-se contra tudo e todos que, próximos do sujeito, parecem caminhar em direção a uma superação qualquer, seja a conquista de outra posição social, uma realização que, à princípio, não seria para “gente como nós”, ou, ainda menor, para algo que não seria “para você”. José compartilha com a molecada a mesma situação de pobreza, mas, diferentemente dos meninos da rua do Sabão, é fraco e tísico. O balão, assim, é uma espécie de acinte, de ousadia que precisa ser eliminada por aqueles que se sentem momentaneamente destituídos de sua “superioridade”. Neste ponto, sem dúvida, o eu-lírico se solidariza com o esforço do menino, identifica-se com ele, com suas dificuldades e com sua “ousadia”, vendo, no quadro geral, um conjunto de adversidades que sufocam a iniciativa criadora.

A esse respeito, aliás, vale notar a diferença nas caracterizações do José e da “molecada”. É fato que predicados como menino tísico, filho da lavandeira, “um que trabalha na composição do jornal e tosse muito” não chegam a especificar o menino, que permanece em grande medida indefinido, fazendo a voz lírica soar como a de um observador distanciado. Mas é fato que a enunciação no presente traz o leitor para a cena e para seu espaço familiar: a alguém da vizinhança, as indicações bastariam para especificar o menino.

No entanto, além disso, há um momento de explicitação bastante coloquial do nome do menino acompanhado de um elemento muito sugestivo e nada ornamental: “como se o enchesse o soprinho tísico do José”. O uso do diminutivo, do nome próprio antecedido de artigo definido, além da menção de que sofria de tuberculose são índices de uma profunda empatia da parte do poeta que admira os esforços do menino e torce por ele, não sendo exagero imaginar certa identificação do poeta com o menino e dos objetos produzidos a custo e com amor por cada um, o poema e o balão.

Essa identificação é reforçada pelo forte contraste que há entre a caracterização do José e da “molecada da rua do Sabão”. Além de não ser apresentada nenhuma características que pudesse identificá-los, são todos enfaixados pelo genérico e, como já dissemos, costumeiramente pejorativo “molecada”. Surge como um bando, uma horda de pequenos bárbaros, cujo único objetivo é destruir a possibilidade de sucesso de José e de seu balão. Aqui não há nada que aproxime o sujeito lírico da molecada que surge ao longo do poema como maldosa, hostil, cruel e potencialmente violenta, uma vez que sua ação não se limita a gritar para o balão cair, mas desenvolve-se em “atiradeiras/ assobios/ apupos/ pedradas”. Ou seja, não se limita ao espaço da fantasia mas converte-se em ação direta voltada à destruição.

Analisando a sonoridade do poema, Marcus Mazzari 62 nota que o movimento de ascensão do balão é, “no âmbito da composição lírica”, “antecipado pelo ritmo dos versos imediatamente anteriores, moldado em segmentos regidos por formas verbais em crescente expansão, como se observa em ‘entesou’, ‘enfunou-se’ (expansão pelo acréscimo da partícula reflexiva) e, por fim, terceiro e mais longo segmento rítmico do verso: ‘e arrancou das mãos que o tenteavam’”. Além disso, o predomínio de sons anasalados nesses versos e as formas verbais no perfeito criam um efeito de expansão, de movimento ascensional “em consonância com as reticências, ou pontos de suspensão, que os configuram visualmente”.

p.56). Observando esse processo a partir do presente, há um instigante ensaio de André Bueno, recentemente publicado, que discute o esgotamento e a derrota de certas ideias, aspirações e promessas criadas e projetadas pela literatura, pelo pensamento social e mesmo pela política, sobretudo desde o final do séc. XIX até meados do séc. XX, a respeito do futuro do Brasil (BUENO, 2009, p.7-37).

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A essas correspondências, em especial à “brandura do anasalamento”, “opõe-se drasticamente a verticalização dos versos referentes à ‘molecada’”, nos quais dominam, “em contraste com a brandura do anasalamento anterior, aliterações oclusivas” (/t/, /d/, /b/ e /p/), reforçando no nível da sonoridade, como é “próprio a essas consoantes”, “a sensação de choque”, de resistência à ascensão do balão. Aspecto sonoro que novamente predominará no “verso seguinte – separado porém por nova ocorrência do leitmotiv ‘Cai cai balão!’ – também apoiado em expressivas aliterações oclusivas e tendendo com toda a intencionalidade para a fala prosaica” (“um senhor advertiu...”). Nos dois casos, o sentido sugerido seria o mesmo: configurar as diversas resistências à ascensão do balão.

Aliás, afastando-se neste ponto da análise do crítico que tende a ler o poema em chave conciliatória, é bastante significativo o surgimento quase non-sense, em meio às ações das crianças, da intromissão brusca e deslocada da autoridade pública e da burocracia, com a imagem do homem advertindo “que os balões são proibidos pelas posturas municipais”. A regulação pública vem marcada apenas pela repressão e não pelo estabelecimento de um espaço onde pudessem conviver as diferenças, como se poderia desejar ou supor. Mais do que “ensinar” aos meninos as regras da vida em sociedade ou garantir o bem-estar coletivo, a fala se reduz à castração que, sem o sentido que lhe conferiria o contexto civil, aparece como deslocada, autoritária, apenas como um ato de “estraga prazer”, ou melhor, de despeito e arrogância de classe 63. Configurando mais um dos sentidos e dos tipos de resistência que o pequeno balão precisa superar em sua ascensão.

Voltando à análise de Mazzari, o crítico nota com precisão que a estrutura ternária da cantiga é incorporada ao poema, fundando sua “unidade formal” e

“emoldurando também o referido jogo de contrastes. A ocorrência de tal estrutura ternária, manifesta já no leitmotiv do "Cai cai balão", pode ser apontada ainda nos versos que falam da ascensão do balão e da periclitante fase inicial, apresentando, ambos os momentos, três verbos que contrastam os aspectos perfeito e imperfeito. Também os semi-versos, organizados como que a sugerir, inclusive pelos pontos de suspensão, o movimento horizontal-expansivo, estruturam-se, da mesma forma que a verticalização brusca dos semi-versos "assobios / apupos / pedradas", em ritmo ternário. E assim também o término da história, com a tríplice ocorrência do verbo "caiu", primeiro pela negativa: "Não caiu na Rua do Sabão" e, em seguida, na afirmação que se faz no verso de fecho. Mas também este apóia-se em três segmentos, os quais vão atualizando com precisão crescente a notícia da queda do balão, com o seu momento culminante no ondulamento rítmico marcado pelo extraordinário contraste entre a abertura e alteamento do /a/ assonante "nas águas do mar álto" e a vogal que se fecha e alonga na palavra (ligeiro obscurecimento na claridade do verso) que traz por fim o sentido de pureza à narrativa lírica de Bandeira: "Caiu muito longe... Caiu no mar - nas águas puras do mar alto."

A retomada negativa do leitmotiv e o contraste entre a “abertura e alteamento”do /a/, assonante em “nas águas puras do mar alto”, e o fechamento e alongamento do /u/ que, ao mesmo tempo, obscurece o verso e traz “o sentido de pureza”, mais uma vez fazem surgir, em meio à “claridade do verso”, um momento obscuro que, segundo o ponto de vista aqui

63 Apenas uma nota: o cultivo sistemático do ódio e de múltiplas formas de preconceito nas últimas eleições

presidenciais revela as alturas e a insanidade a que a arrogância de classe chega entre nós. A explicitação por parte de alguns jovens na internet da barbárie encenada em parte da imprensa e das campanhas políticas só tornou o fato óbvio e incontornável.

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defendido, liga-se à visão melancólica, não-triunfalista e também cindida e ambivalente que define o ponto de vista do eu-lírico.

No entanto, nada disso impediu que o balão caísse nas “águas puras do mar alto”, imagem evidentemente afirmativa de superação das limitações do menino. Posta em contexto, contudo, à afirmação humanizadora contrapõe-se o risco iminente de desumanização, tanto pela violência física quanto simbólica que se encenam.

Observando bem, o balão escapa por muito pouco. Trata-se de um momento “mágico”, epifânico até, um pequeno “milagre” que afirma a capacidade de enfrentar diversos tipos de adversidade e superá-las. Mas, dada sua excepcionalidade, é também um momento frágil, pois aparece cercado de riscos, que poderiam, facilmente, ter levado ao fracasso a investida do menino tísico. É uma imagem afirmativa, sem dúvida, mas fraturada em agônica tensão. Tanto que não há qualquer triunfalismo, ao contrário. O tom do poema aproxima-se muito mais de um otimismo melancólico do que de uma celebração de vitória. É um momento fugaz, um flash, um instante luminoso captado pelo poeta e que anuncia possibilidades de superação em sua fragilidade de circunstância passageira, pontual e, talvez, única, definindo uma expressão particular que se condensa na forma literária.

Dessa forma, a tensão não se encerra completamente com a vitória momentânea do menino, do balão e do poeta. Forçando um pouco a comparação, há algo aqui da rosa feia e frágil de Drummond, que “furou o tédio, o asfalto e o ódio”. Trata-se, por assim, dizer, da condensação lírica de um momento frágil de superação. Daí a melancolia que percorre os versos, definindo-lhes o tom e contrapondo-se, como já foi dito, a qualquer efusão triunfalista que o evento poderia inspirar. Na verdade, a própria distância que separa José e o eu-lírico (“Caiu muito longe”) das “águas puras do mar alto” é outro índice desse mesmo sentimento.

Em síntese, não se trata de negar as possibilidades de superação, nem tampouco a força humanizadora dos versos ou a ternura e simplicidade que deles emana. Trata-se, antes, de afirmar que tais aspectos comportam um intrincado jogo de tensões, possibilidades e ambivalências que os torna mais complexos e menos conciliatórios do que, em parte, convencionou-se afirmar.

THE KIDS, THE BOY, THE POET AND THE BALLOON

ABSTRACT: O ritmo dissoluto is the first of the books written by Manuel Bandeira in Curvelo, where the author

claims to have “rediscovered the ways of childhood”. This statement is echoed in the poems collected in the book, some of whom have childhood as a theme. Among these, there is "Na rua do Sabão" which expresses the odds that the boy José for making faces and "give life" to his balloon. In the poem, an intricate combination of closeness and distance, identification and distinction, celebration and melancholy conclusion to rethink the way that the expression bandeiriana acquires in his poems, especially regarding the degree of consensus about the supposed "humility", seen as a element that would define your style.

KEYWORDS: Brazilian modern poetry. Manuel Bandeira. Childhood.

REFERÊNCIAS

ARANTES, P. E. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo

Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

BANDEIRA, M. Crônicas da província do Brasil. São Paulo: Cosac & Naif, 2006. _________. Itinerário de Pasárgada. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.

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Referências

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