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Fala, leitura e escrita = encontro entre sujeitos

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Academic year: 2021

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Sonia Sellin Bordin

Fala, Leitura e Escrita: encontro entre sujeitos

Tese

apresentada

ao

curso

de

Linguística do Instituto de Estudos da

Linguagem da Universidade Estadual

de Campinas como requisito parcial

para obtenção do título de Doutor em

Linguística

na

área

de

Neurolinguística Discursiva

Orientadora: Profa. Dra. Maria Irma

Hadler Coudry

Bolsista CAPES

Campinas

Instituto de Estudos da Linguagem

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ii Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

B644f

Bordin, Sonia Sellin.

Fala, leitura e escrita : encontro entre sujeitos / Sonia Maria Sellin Bordin. -- Campinas, SP : [s.n.], 2010.

Orientador : Maria Irma Hadler Coudry.

Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Neurolinguistica discursiva. 2. Fala. 3. Leitura. 4. Escrita. 5. Dislexia. 6. Família. 7. Escola. I. Coudry, Maria Irma Hadler. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

tjj/iel

Título em inglês: Speech, writing and reading: the meeting between the subjects.

Palavras-chaves em inglês (Keywords): Neurolinguistics; Speech; Reading; Writing; Dyslexia; Family; School.

Área de concentração: Linguística. Titulação: Doutor em Linguística.

Banca examinadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry (orientadora), Prof. Dr. Sírio Possenti, Profa. Dra. Vera Lucia Trevisan Sousa, Profa. Dra. Fernanda Maria Pereira Freire e Profa. Dra. Alessandra Caneppele. Suplentes: Profa. Dra. Rosana do Carmo Novaes Pinto, Profa. Dra. Célia Regina Carneiro e Profa. Dra. Maria Cecília Marconi Pinheiro Lima. Data da defesa: 31/08/2010.

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v

Ao Gil, André e Adriana

por tornarem minha vida tão plena.

Às crianças e às mães

- porque a língua é mesmo materna –

minhas companhias nesses trinta anos

de fonoaudiologia.

A Angelo e Rosalina Sellin,

In memorian.

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vii

Agradecimentos

À Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry, por ser um feliz encontro na minha vida e por partilhar sua sabedoria comigo.

Aos professores que participaram nas etapas de qualificação da tese - Sírio Possenti e Vera Lucia Trevisan de Sousa -, bem como da banca examinadora - Sírio Possenti, Vera Lúcia Trevisan de Sousa, Fernanda Maria Pereira Freire e Alessandra Caneppele - pela generosidade e colaboração com esta produção.

À Profa. Dra. Vera Lúcia Trevisan de Sousa, agradeço, mais uma vez, bem como aos seus alunos, por me acolherem de uma maneira tão gentil e delicada, desde 2009, no curso de pós-graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas na disciplina Estudos Avançados do Desenvolvimento.

Às Profas. Dras. Maria Ester Scarpa, Célia Regina Carneiro, Silvana Perotino, pela leitura atenta e indicações valiosas na qualificação de área.

A Janete Stela Domenica, pela amizade e pelo valioso apoio, não só em dividir o peso da escrita, mas por me lembrar das coisas da alma.

A Francine Marson Costa e Giovana Dragone Rosseto Antonio pelas leituras críticas que realizaram de diferentes capítulos dessa tese e pelo carinho e atenção preciosos que demonstram comigo.

Aos cuidadores, meninas e meninos do CCazinho, por terem me ajudado tanto nesses anos todos em que partilhamos reflexões teóricas e práticas da ND, brincadeiras, muitas risadas, emoções e também indignação, porque a vida para algumas crianças e famílias que conhecemos no CCazinho é mais do que difícil, é triste.

A Ana Laura Nakazoni e Juli C. Pereira pela importante ajuda com a organização dos dados em ambiente digital.

Às amigas Catarina, Sonia, Fernanda, Ana Paula, Carla, Bia, Cleusa, Denise, Sandra, porque quem tem amigos é mais feliz. Obrigada pela escuta, café e risadas.

E de novo ao Gil, André e Adriana, pelo amor, paciência e por torcerem por mim.

À família que passou a existir a partir de Angelo e Rosalina Sellin, a cada um a seu modo. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, pelo apoio e financiamento por meio da bolsa de doutorado.

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ix Adormeci e sonhei que a vida era alegria;

despertei e vi que a vida era serviço; servi e vi que o serviço era alegria.

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xi

Resumo

Trata-se de um estudo longitudinal fundamentado em uma abordagem discursiva da Neurolinguística e realizado com crianças/jovens, com e sem lesão cerebral, que apresentam dificuldades no eixo “fala, leitura e escrita” e são avaliadas e acompanhadas no Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho/IEL/Unicamp) e/ou na clínica fonoaudiológica. É a partir da materialidade da escrita apresentada pelas crianças que são realizadas análises linguísticas, baseadas em uma perspectiva heurística. Essa análise se assenta em autores-âncora para a teorização da Neurolinguística Discursiva, quais sejam: Vygotsky, Luria e Freud. O acompanhamento realizado com essas crianças se dá, então, a partir do trabalho linguístico que realizam com a fala, leitura e escrita e da consciência que desenvolvem diante desses processos, como constructos sociais e históricos na relação linguagem-cérebro-mente e aprendizagem. A análise da materialidade linguística (oral e escrita) da criança/jovem revela marcas de sua mediação com diferentes interlocutores: Escola, Família, Estado, Diagnósticos Médicos (como Dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção, Distúrbio de aprendizagem etc) na área de leitura e escrita e, ainda, de como essas diferentes mediações interfere na materialidade de fala, leitura e escrita da criança/jovem e nos seus processos em aprendizado. Palavras-chave: Neurolinguística Discursiva; Fala, Leitura, Escrita; Dislexia; Família; Escola

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Abstract

This is a longitudinal study based on the discursive neurolinguistical approach, done with children/youngster, with or without brain damage, that shows issues on the “speech – reading and writing” axis. Those subjects are evaluated and follow up on the Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho/IEL/Unicamp) and/or on the speech therapist office. Based on the written material developed and delivered by the subjects, linguistic analysis are done, supported by the heuristics perspective. This analysis are set by anchors-authors on the discursive neurolinguistics theory, those being: Vygotsky, Luria and Freud. The follow up done with those children starts on a linguistically work that consists on speech, reading and writing, aiding to develop a consciously process as social construction, historical relations between speech-brain-mind and learning. The analysis on the linguistic material (speech and written) of the children/youngster reveals marks facing different interlocutors: School, Family, Estate, Medical Diagnosis (as dyslexia, attention deficit (DDA), learning curve disturbance etc.) on the speech and writing areas and this may interfere on this materiality as on the process it is involved.

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xv SUMÁRIO

Apresentação ... 1

1. CCazinho: um espaço de (con)vivência de sujeitos ... 9

1.1 O CCazinho na prática ... 10

1.2 O CCazinho na teoria ... 18

1.3 Metodologia ... 37

2. Um determinado percurso escolar ... 39

2.1 Abrindo um universo de questões ... 41

2.2 O sujeito e a materialidade da sua escrita... 48

2.3 Sujeitos, Escola e Diagnósticos ... 57

3. Uma menina caminha... ... 67

3.1 A copista ... 70

3.2 A cópia como um equívoco ... 72

3.3 LS no CCazinho ... 76

3.4 LS em grupo e com seus cuidadores ... 77

4. Campo Minado ... 93

4.1 O que dizem os pais sobre as dificuldades de ler e escrever de seu filho ... 102

4.2 Olhar para o filho como possível leitor/escrevente ... 103

4.3 Sobre o diagnóstico dado ao filho ... 105

4.4 Sobre a escola como falta de sentido para diferentes gerações ... 106

4.5 Escola e Família: queda de braços ... 106

5. Uma fala em espera ... 109

5.1 Duas meninas, duas histórias ... 109

5.2 Dois desenhos, duas produções escritas ... 116

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Apresentação

Este estudo nasce no Centro de Convivência de Linguagens – CCazinho/IEL/Unicamp, entre os anos de 2006 e 2010, com crianças e jovens que se apresentam com problemas no eixo fala, leitura e escrita. A prática por mim exercida remonta a de uma experiência de trinta anos como fonoaudiológica. Trata-se, então, de uma pesquisa que se constitui na interdisciplinaridade entre a Linguística, mais especificamente, a abordagem teórico-metodológica da Neurolinguística Discursiva (abreviada como ND), e uma Fonoaudiologia por ela iluminada.

Meu percurso fonoaudiológico se iniciou na década de 1980 e sempre abrangeu o atendimento1 de crianças/jovens com problemas de fala e/ou de leitura e de escrita, trazidas à clínica por uma demanda familiar ou escolar. Os pais, frequentemente, reportavam diferentes causas para as dificuldades apresentadas pelos filhos: Disfunção Cerebral Mínima (DCM), atualmente reconhecida com o nome de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Retardo do Desenvolvimento Neuropsicomotor (de causa orgânica ou social), Síndromes (diversas) com retardo mental associado ou não e ainda crianças com problemas de fala com repercussão na escrita, ou com problemas apenas na escrita.

Nesse início de minha prática, eu observava que, além de ao fonoaudiólogo, também era comum o encaminhamento das crianças para pedagogos ou professores particulares. Além disso, por parte de profissionais da medicina e/ou da educação, frequentemente, havia a solicitação para que a criança passasse por avaliação psicológica de cunho intelectual e psicomotor. Isso revelava, na visão organicista2, a importância atribuída à época aos aspectos quantificadores da inteligência e do desempenho motor como determinantes da relação da criança com os processos de leitura e escrita.

Na década de 1990, o que vi na prática fonoaudiológica foi que os pais além de apontarem as dificuldades escolares dos filhos passaram a apresentar também ao

1

Embora tenha me concentrado em descrever minha experiência com crianças e jovens na área de leitura e escrita, também tenho atendido na clínica fonoaudiológica ao longo desses anos crianças e adultos em diferentes áreas: linguagem, fala, voz, motricidade oral (envolvendo o trabalho com a musculatura orofacial e as funções do sistema estomatognático que inclui a respiração, a mastigação e a deglutição).

2

A visão organicista tem a característica de ser técnica e centrada na biologia. Iniciada com Galeno (129-200) propõe que o corpo humano seja dividido em partes para que possa se tornar conhecido pelo homem. Desse método de estudo derivou as especialidades médicas em que o especialista se ocupa de estudar um órgão ou sistema, desenvolvendo para isso recursos técnicos na sua área de atuação.

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fonoaudiólogo um diagnóstico médico e isso foi fazendo com que termos como “Dislexia”, “TDAH” e “Distúrbio de Aprendizagem” saíssem do repertório médico e começassem a ser disseminados entre os leigos. Nessa mesma época, tornou-se mais comum que crianças com problemas de fala e/ou leitura e escrita fossem cuidadas por diferentes profissionais simultaneamente: psicólogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, psicomotricista (geralmente psicólogo), além do pediatra e neurologista. A esses profissionais, anos mais tarde, somou-se o psicopedagogo.

As áreas de leitura e de escrita se mostraram, então, nesses últimos anos, como áreas profícuas quanto à ocorrência de novos diagnósticos, além daqueles já apontados. Assim começaram a aparecer outros termos como “Alteração de Processamento Auditivo” e “Disfunção executiva”. O interessante é observar que a maioria dos casos diagnosticados com TDAH passou a incluir também o diagnóstico de Alteração do Processamento Auditivo. Isso se deve, como veremos mais adiante, ao fato de que as avaliações diagnósticas de Processamento Auditivo e de TDAH apresentam critérios comuns, como por exemplo, a atenção. Paralelamente a esses diagnósticos, entrou em cena o uso de fármacos à base de

metilfenidato, com os nomes comerciais de Ritalina e Concerta.

A relação da área da Fonoaudiologia com as questões de leitura escrita, a meu ver, ficou atrelada também aos diagnósticos médicos, na medida em que essa disciplina incorpora da área médica grande parte de seus conhecimentos. Além disso, a fonoaudiologia mantém com a medicina uma relação de subserviência: como exemplo disso, uma avaliação e/ou acompanhamento fonoaudiológico em pacientes com plano de saúde ou convênios médicos, na sua grande maioria, só pode ser realizado se houver o encaminhamento médico com suspeita ou confirmação de diagnóstico indicando essa necessidade.

Na prática clínica, se, por um lado, estive em contato com as crianças, por outro, houve também minha aproximação com famílias e escolas e pude observar, então, que essas instituições sofreram profundas modificações durante esses anos. Em relação à família, houve um rearranjo no interior da estrutura e da dinâmica familiar, nos tipos de configuração familiar, no tempo e na qualidade de atenção dada à criança, e, especialmente, no fato de a família ter delegado à escola não só a responsabilidade pela educação formal, mas também a responsabilidade pelo controle do comportamento da criança.

A escola, por sua vez, também passou por alterações em sua estrutura e dinâmica de funcionamento em decorrência de um histórico de políticas públicas que contribuíram para

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3

a sua perda de identidade como espaço coletivo em que se partilham saber e conhecimento. No quadro atual, a queixa dos pais de estudantes de escola pública em relação à questão de leitura e escrita do filho é complementada com a queixa contra a escola como um todo e, mais especificamente, contra o professor, com raras exceções. Os pais tomam o ensino público como gratuito e se esquecem de que, assim como os pais de crianças de escola particular, também pagam impostos e que seus filhos, portanto, têm direito a um ensino de qualidade.

Em relação à escola particular, a queixa que muitas vezes escuto no consultório parte do professor e é dirigida aos pais, que se mostram exigentes com o ensino que é oferecido ao filho, mas isso nem sempre se estende ao comportamento que o filho deveria apresentar em relação ao professor e à escola que frequenta. Situações relatadas pelos professores dão conta de que, por exemplo, quando a criança apresenta algum problema de comportamento na escola, duas situações são possíveis: algumas vezes, quando chamados para conversar a respeito, os pais lembram à escola de que estão pagando para que ela eduque seu filho e que não acham tão relevante o fato em questão; ou o professor pode se sentir pressionado, em algumas ocasiões, pela coordenação da escola para não arranjar problemas com os alunos e, muito menos, com os pais deles, que afinal são os que pagam a mensalidade.

Nesses últimos anos, comecei a perceber no consultório um fenômeno interessante que põe em relação Escola e Família. Trata-se do aumento de casos de crianças, professores e mães com diagnóstico de Disfonia Funcional devido a abuso vocal. A particularidade desse fenômeno em relação às crianças é que elas chegam ao consultório cada vez com menos idade, com 3a8m de idade, por exemplo. O motivo mais comum apontado pelos adultos (mães e professores) é que gritam muito com os filhos e alunos porque eles não “escutam”. Esse foi o percurso da minha prática clínica que suscitou reflexões que puderam ser melhor compreendidas e analisadas a partir do meu encontro, em 2000, com os pressupostos teórico-metodológicos da ND em relação ao sujeito, à linguagem e ao cérebro.

A ND assume, para avaliar e acompanhar os processos de que se ocupa, uma concepção de linguagem de natureza social e dialógica, em que o sentido não está dado a

priori, mas na situação pragmática, em meio a práticas com a linguagem (FRANCHI, 1977).

Além disso, a ND valoriza o caráter indeterminado de processos ideológicos e históricos que produzem efeitos na sociedade, na língua e no cérebro/mente (VYGOTSKY, 1926; LURIA, 1976).

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Decorre dessa concepção de linguagem uma concepção de sujeito com ela afinada, ou seja, constituído na e pela linguagem, histórico, incompleto (COUDRY, 1988) e que circula em diferentes sistemas de linguagem (verbal e não verbal). O cérebro para a ND é tomado em seu funcionamento intersemiótico, o que possibilita ao sujeito produzir e interpretar diferentes materialidades na sua relação com o outro no mundo em que vive: fala, leitura, escrita, imagem, figura, foto, música, dança etc.

Os autores-âncora para a teorização na ND são: Vygotsky, Luria e Freud. Do primeiro e do segundo autor, privilegia-se a natureza social e histórica da linguagem e do cérebro, o que se contrapõe à visão de que apenas o orgânico é explicativo dos fenômenos humanos. Deles partilha-se também a ideia de que a consciência do homem (onto e filogeneticamente) sobre o próprio conhecimento – advindo da linguagem, leitura, escrita, raciocínios lógicos – promove mudanças na plasticidade cerebral e transformações no comportamento humano e, consequentemente, na cultura e na sociedade. Em relação a Freud, seu estudo sobre as afasias contribui grandemente para esta pesquisa e para o modo como a ND tem considerado a relação entre fala, leitura e escrita, aproximando afásicos de crianças em processos de aprendizagem.

A problemática central desta tese diz respeito ao estudo do eixo fala, leitura e

escrita como acontecimento que evidencia no cérebro um funcionamento holístico

(JACKSON, 1879) e intersemiótico, possibilitado pela linguagem. O objetivo principal é, então, mostrar que a fala, a leitura e a escrita são lugares de encontro entre sujeitos e que esses modos de a linguagem se apresentar não se substituem entre si, mas podem ampliar as possibilidades de trabalho com crianças em que a linguagem está presente e a fala não, bem como com crianças/jovens com problemas na leitura e na escrita, mas não na fala e que, ainda assim, ficam fora do sentido que passa pela língua, como será apresentado nesta tese.

Com base nisso, este trabalho se ocupa dos seguintes sujeitos:

- crianças e jovens considerados normais que frequentam a escola brasileira todos os dias e que, ainda assim, não dominam a leitura e a escrita, o que os coloca em condições de vulnerabilidade social mantidas pelas impossibilidades de participar de diferentes socializações a partir da escrita;

- duas crianças que, por razões diferentes, apresentam-se com problemas na fala: RD, 7a7m, que não fala e faz uso da leitura e da escrita tanto para se comunicar como para iniciar sua produção de sons que se caracterizam como vocalizações com intenção comunicativa; FS,

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7a5m, que iniciou a produção de sons da fala juntamente com a escrita aos 4a2m, usando a materialidade de escrita para fazer ajustes na fala.

Em função dessa problemática central, surgem objetivos específicos:

- o que essa criança/jovem consegue dizer sobre a sua leitura e escrita e que uso social fazem delas? Quais são os interlocutores desses sujeitos e como favorecem (ou atrapalham) para que sua leitura e escrita se apresentem assim?

Essas questões serão apreciadas a partir do reconhecimento de que falar, ler e escrever são atividades humanas socialmente motivadas e, portanto, dependentes das condições em que acontecem, daí a importância de que a história de vida dos sujeitos presentes nesta tese seja também reproduzida.

Apresentação dos capítulos:

Essa tese se compõe de cinco capítulos.

O capítulo 1, “CCazinho: um espaço de (con)vivência de sujeitos”, tem como proposta, na sua primeira parte, apresentar o CCazinho e seu funcionamento prático, ou seja, como as crianças/jovens são avaliadas e acompanhadas, como sua família é inserida nos processos de leitura e escrita por elas desenvolvidos e como se dá a relação CCazinho/escola. Na segunda parte desse capítulo, há a exposição do método empregado na obtenção de dados apresentados nesta tese e do suporte teórico dos autores-âncoras da ND (VYGOTSKY, LURIA e FREUD) a respeito de como a fala, a leitura e a escrita são consideradas a partir deles. Os estudos de Vygotsky e Luria explicam a história da escrita e da pré-escrita na criança e dá relevância aos processos de leitura e de escrita como possibilidades de transformações neuropsíquicas e sociais no homem e na espécie. Ler e escrever o mundo impõem ao homem transformações internas (percepção, memória, raciocínios, consciência, atenção), bem como externas, favorecendo sua emancipação e ampliação das possibilidades nas formas de vida social e econômica. O estudo de Freud (1891) embasa a busca da compreensão do que acontece com a criança em seus primeiros contatos com a tecnologia da linguagem escrita quando entram em jogo processos sofisticados de percepção (motora, auditiva, visual) que se apresentam simultaneamente demandando, inclusive, memorização por parte da criança. A relevância de referenciar essa teoria está na busca de se compreender a heterogeneidade dos caminhos que as crianças percorrem para entrar no mundo da leitura e da escrita, reconhecendo que nem todas entram nele da mesma maneira e no mesmo ritmo. Para

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este autor, quando a criança aprende a letra, ela aprende um som novo acompanhado de uma imagem visual nova, a qual só ganha existência se ancorada no sentido da imagem sonora da palavra antiga, já conhecida, ou seja, presente na língua falada. A partir desses pressupostos propomos o esvaziamento do que é chamado comumente de “dislexia”. Ainda nesse capítulo, fazendo uso do conceito de involução de Jackson (1879), procuro estabelecer uma relação entre crianças e afásicos com problemas nos processos de leitura e escrita.

O capítulo 2, “Um determinado percurso escolar”, expõe a trajetória de crianças que apresentam dificuldades nos processos iniciais de leitura e escrita, tornando-se potenciais indivíduos alfabetizados funcionais por ocasião da sua saída da escola. A experiência de ser aprovado na escola, mesmo sem saber, de fato, ler e escrever; a realização de diagnósticos em crianças sem problemas orgânicos ou de aprendizagem marcando no corpo sua impossibilidade de leitura e de escrita; a falta de consciência desses sujeitos sobre os próprios processos de leitura e escrita – são alguns pontos da construção social do trajeto escola/

alfabetizados funcionais. Dessa construção participa a figura do professor que ora se apaga e

apaga a identidade do aluno, o que torna impossível qualquer relação de aprendizagem. Como contraponto a esse determinado percurso escolar que leva ao fracasso do aluno, trago autores como Abaurre, Possenti, Alkmim (entre outros), que olham para a escrita como determinada por fatores históricos, sociais e políticos, e para o “erro” como lugar de descobertas sobre a língua, sobre a variedade linguística, sobre a continuidade e descontinuidade desses processos. Por fim, apresento, ainda neste capítulo, estudos sobre o aumento da realização de diferentes diagnósticos na infância (Transtorno Bipolar e Depressão), assim como o aumento exorbitante da venda dos psicofármacos Ritalina e Concerta, relacionando-o com a ocorrência de morte súbita em crianças/jovens e a futura possibilidade de drogadição entre os usuários de tais medicamentos.

O capítulo 3, “Uma menina caminha”, conta a história de LS que, pela condição de não ser vista pela escola com qualquer possibilidade de aprender a ler e a escrever (mesmo sem nenhum problema real que a incapacitasse para isso), fica relegada à condição de copista. Essa prática de escrita reforça em LS uma percepção de leitura e escrita como reprodução da imagem visual de letras e cindida do sentido presente na sua fala ou da função social da leitura e escrita. O reconhecimento do quanto é comum a atividade da cópia nas escolas me levou a considerar criticamente a pertinência dessa prática. Esse capítulo dá visibilidade ao

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trabalho realizado com LS no eixo da fala, leitura e escrita e, principalmente, deixa ver a emersão de LS como um sujeito que amplia sua história pela leitura e escrita.

O capítulo 4, “Campo minado”, trata da relação Escola-Família, quase sempre um lugar de tensão. Ambas as instituições refletem o funcionamento da sociedade e, aparentemente, se apresentam também falhando ao mesmo tempo: a família clama por uma escola ideal e a escola por um aluno ideal, com uma família ideal. Nesse capítulo, busco evidenciar a relação da família com a imagem que tem de leitor e escrevente do filho com problemas para ler e escrever; a compreensão que a família tem da nomenclatura do diagnóstico apresentado pelo filho; o conflito permanente entre a escola e a família mesmo quando a família demonstra interesse pelo estudo do filho.

O capítulo 5, “Uma fala em espera”, é sobre a história de duas meninas com idade em torno de sete anos e meio que não se apresentam na fala por ocasião de suas entradas no mundo das letras. O tema central desse capítulo é estudar a relação entre a ausência de fala e a presença de linguagem, a qual se deixa ver de diferentes maneiras. RD não fala, mas faz uso sofisticado de gestos representativos. Sua escrita e desenhos cheios de detalhes assumem, muitas vezes, a função de fala na sua relação com o outro. RD partilha de diferentes relações sociais, inclusive situações de humor. FS, diferentemente de RD, fez uso até os quatro anos de vocalizações contínuas em que não se reconhecia palavra alguma, além disso, não faz uso de gestos representativos, o que a impedia, muitas vezes, de ser compreendida pelo outro. A falta da fala de FS acaba por reduzir, no período primordial de sua aquisição de fala, as possibilidades de ela partilhar socialmente diferentes relações mediadas pela linguagem. Além disso, quando FS passa a falar, apresenta questões relativas à sintaxe da língua. Buscar compreender o trabalho linguístico realizado por essas duas crianças põe em relevância diferentes relações: linguagem e fala, fala egocêntrica e fala interior (VYGOTSKY, 1987), meio social e subjetividade dos sujeitos.

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1. CCazinho: um espaço de (con)vivência de sujeitos

Brincadeira, choradeira Pra quem vive uma vida inteira Mentirinha, falsidade

Pra quem vive só pela metade Quando alguém me desaponta Paro tudo e dou um tempo Dali a pouco eu me dou conta Que ninguém é cem por cento Seja um príncipe ou um sapo Seja um bicho ou uma pessoa Até mesmo um pé de nabo Tem alguma coisa boa

(Trecho da música “Pé de Nabo” de Sandra Peres e Luiz Tatit)

Este capítulo dá visibilidade às estruturas prática e teórica do trabalho realizado no Centro de Convivência de Linguagem - CCazinho - IEL/Unicamp com crianças/jovens diagnosticadas com alguma patologia de leitura/escrita que se apresentam com dificuldades em sua entrada para o universo das letras. Além dessa estrutura, irei apresentar a metodologia utilizada nesta pesquisa no item 1.3. Entretanto, ressalto que tal apresentação também será feita na própria descrição do funcionamento teórico e prático do CCazinho.

A partir de 2006, comecei a participar desse centro como aluna de doutorado e como fonoaudióloga nas diferentes atividades desenvolvidas com crianças/jovens e familiares: processo avaliativo inicial, acompanhamento longitudinal individual e coletivo destinados a crianças e seus familiares, visita a escolas, formação de novos cuidadores3como parte das atividades do Programa de Estágio Docente nas disciplinas AM 035 e AM 045 destinadas à formação de cuidadores, participação em estudos de casos acompanhados por eles.

Por questões didáticas, essa apresentação será dividida em duas partes. A primeira cuidará da exposição do funcionamento da dinâmica do CCazinho, através de quadros descritivos das diferentes práticas que acontecem neste centro, identificando em cada uma delas sua principal finalidade. A segunda parte apresentará a Neurolinguística Discursiva (ND), que articula um conjunto de autores para teorizar sobre fenômenos patológicos e não

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patológicos em que a linguagem (fala, leitura e escrita) está envolvida. A ND assume, por um lado, a linguagem “como histórica e cultural e o caráter previamente indeterminado dos processos de significação, assumindo-se que a língua resulta da experiência e do trabalho dos falantes com e sobre a linguagem” (FRANCHI, 1977, COUDRY & MORATO, 2002); por outro, assume o caráter determinado de processos ideológicos e históricos que produzem efeitos na sociedade, na língua e no cérebro/mente (VYGOTSKY, 1926; LURIA, 1976).

Esta pesquisa se vincula ao Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com

a linguagem e documentação de dados (CNPq – processo 301726/2006-0) sob orientação da

Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry e tem como fonte de dados o Centro de Convivência de Afásicos (grupo II) e o CCazinho, os quais constituem o Banco de Dados da Neurolinguística4 (BDN). O referido Projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp tendo obtido o parecer favorável de número 326/2008. O mesmo procedimento ético em relação à prática e aos sujeitos acompanhados nesta pesquisa foi realizado por mim, obtendo o parecer favorável de número 909/2009.

1.1 O CCazinho na prática

O CCazinho nasceu em outubro de 2004, como proposta da Profa. Dra. Maria Irma

Hadler Coudry, docente do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/Unicamp, para acompanhar crianças que receberam diagnósticos de (uma ou mais) patologias na área de leitura e escrita. E a história desse centro se iniciou como desdobramento do Centro de Convivência de Afásicos (CCA).

O CCA existe desde 1989, por um convênio entre IEL e a Faculdade de Ciências Médicas. Trata-se de um grupo com pessoas afásicas e não afásicas que se reúnem semanalmente e, tendo como tema acontecimentos do mundo, interagem em práticas discursivas que os identificam como sujeitos históricos, enfim, sujeitos da linguagem. Os afásicos adultos do CCA apresentam uma lesão cerebral (em consequência de Acidente Vascular Cerebral/AVC, Traumatismos Cranianos, Tumores Cerebrais, Doenças Neurológicas Progressivas etc.) e, em função disso, passaram a ter dificuldades de fala, leitura

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O BDN reúne dados de acompanhamentos de sujeitos em fala, leitura e escrita e pode ser acessado por diferentes profissionais de diferentes áreas.

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e escrita. Os adultos são acompanhados em grupo e individualmente, e seus familiares participam desse processo.

Entretanto, a Profa. Coudry5 também se envolveu, desde 1985, com questões de diagnósticos na área de leitura e escrita, fazendo o acompanhamento individual de algumas crianças, especialmente, com diagnósticos de dislexia (1985, 2005, 2007, 2009a). Em razão disso, passou a existir uma demanda crescente de famílias procurando no Laboratório de Neurolinguística um suporte para lidar com crianças com problemas de leitura e escrita. Surge, então, o diminutivo de CCA, lugar de gente grande, o CCazinho, destinado a gente miúda.

A proposta principal deste centro é constituir, para crianças e jovens com dificuldade nos processos de leitura e escrita, um grupo de convivência de linguagem. Nesse espaço, encontram-se, uma vez na semana, por duas horas, adultos e crianças/jovens com dificuldade de ler e escrever (alguns também com problemas na fala), com ou sem diagnóstico médico ou de outra especialidade clínica.

Seguindo os mesmos princípios de funcionamento do CCA, no CCazinho, além dos encontros em grupo, também é realizado, por cuidadores, o acompanhamento individual e longitudinal de cada uma das crianças/jovens participantes do grupo. Em 2004, o grupo inicial era composto de seis crianças com supostos problemas de leitura e escrita e de alunos de graduação e de pós-graduação que participavam como cuidadores.

O uso do termo “cuidador” se inspira em pressupostos vygotskyanos (20076, 1926) que caracteriza a aprendizagem como um processo dinâmico e contínuo em relação ao qual a criança tem uma posição ativa e um ritmo a percorrer nesse processo. Para Vygotsky, a aprendizagem modifica os processos internos maturacionais da criança que se constitui como base para novas aprendizagens. Nesse processo, a criança se apresenta com uma área

potencial de desenvolvimento cognitivo (zona proximal de desenvolvimento), definida como a

distância entre o seu nível real de desenvolvimento, determinado pela sua capacidade atual de resolver problemas individualmente, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da resolução de problemas, sob a orientação de adultos ou em colaboração com pares

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Trabalho realizado em parceria com a Profa. Dra. Maria Laura Mayrink-Sabinson.

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O livro A formação social da mente é, na verdade, um conjunto de textos que Vygotsky produziu em diferentes momentos de sua vida. Utilizo, neste trabalho, a edição brasileira de 2007 e de 1991.

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mais capazes. Para a ND, o cuidador é aquele que ocupa o lugar desse adulto7 e na mediação com a criança favorece que esta desenvolva a consciência (este conceito será retomado mais adiante), nos termos de Vygotsky (1924-1934/2004b), sobre o trabalho linguístico que o aprendiz realiza com a leitura e a escrita e a função social desses processos.

Podem tornar-se cuidadores os alunos de diferentes cursos de graduação da Unicamp e de outras universidades matriculados como estudantes regular ou especial. Até o presente momento, participaram/participam do CCazinho como cuidadores alunos dos cursos de matemática, artes, física, química, filosofia, fonoaudiologia, letras, linguística, psicologia, pedagogia, música, geologia e também alunos de pós-graduação em linguística. A condição para se integrar ao grupo de cuidadores é manifestar o desejo de trabalhar com crianças/jovens na área de leitura e escrita, ou com familiares, e buscar formação para isso na(s) disciplina(s) eletiva(s): AM 035 e AM 045.

A disciplina AM 035 - Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens I, inserida em 2006 na grade dos cursos de graduação do IEL, oferece formação teórico-metodológica, com base na ND, privilegiando o estudo da relação fala, leitura e escrita, bem como a análise e discussão dos casos acompanhados. A disciplina AM 045 - Ler e escrever:

acompanhamento de crianças e jovens II, inserida em 2009 no referido catálogo, aprofunda a

formação em Neurolinguística dos alunos cuidadores com foco no estudo do funcionamento do cérebro, mente, linguagem e corpo na relação fala, leitura e escrita, incluindo também a análise e discussão dos dados dos casos acompanhados.Essas disciplinas são ministradas pela Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry e contam também com a minha participação, por meio do Programa de Estágio Docente (PED), desde 2007, e com a da psicanalista Dra. Alessandra Caneppele, responsável, desde 2006, por ministrar, nessas disciplinas, o conteúdo da área de psicologia. Para a organização logística do centro, em cada início de semestre, compatibiliza-se a grade de horários dos alunos matriculados nas disciplinas (ou compatibiliza-seja, os novos cuidadores), dos cuidadores que já se encontram no CCazinho, das crianças que já o frequentam e daquelas que acabam de ingressar.

Desde 2004, crianças e jovens continuam chegando ao CCazinho por encaminhamentos diversos: famílias, professores da rede pública/particular, profissionais de diferentes áreas que cuidam dessa parcela da população e pessoas que, conhecendo o trabalho

7

A partir de 2010, surgiu o termo “cuidador mirim”, aplicado àquelas crianças/jovens que, tendo obtido sucesso nos processos de leitura e escrita, manifestaram o desejo de participar do acompanhamento de outras crianças.

(21)

13

ali realizado, indicam-no. Deste modo, este centro tem recebido crianças/jovens a quem foi atribuído um diagnóstico e se apresentam com problemas de fala e/ou de leitura e de escrita ou ainda aquelas com sequelas decorrentes de alterações cerebrais funcionais congênitas ou adquiridas, como, por exemplo, acidente vascular cerebral e traumatismo craniano, havendo ainda crianças/jovens portadores de síndromes genéticas do tipo X-frágil8 e Down9.

O CCazinho está estruturado, atualmente, da seguinte maneira:

1. O nome da criança é inserido por alguém da família ou responsável na agenda de avaliação do CCazinho (através de contato telefônico ou pessoalmente).

2. A criança/jovem é chamada para Avaliação, acompanhada pelo familiar ou responsável. Essa avaliação se subdivide em:

a- Avaliação de linguagem realizada por linguista e/ou fonoaudióloga.

Avalia-se: Fala, leitura e escrita, bem como o comprometimento da família com o

acompanhamento da criança.

b- Avaliação Psicológica realizada por psicanalista. Avaliam-se aspectos psicológicos da criança e da família.

3. Critérios de seleção:

a. Para frequentar o CCazinho, a criança/jovem precisa apresentar questões de leitura e de escrita (só questão de fala não é critério).

b. Participação da família (pelo menos um familiar) no acompanhamento da

8

Para a Fundação Brasileira da Síndrome do X-frágil, a expressão “X-Frágil" deve-se a uma anomalia causada por um gene defeituoso localizado no cromossomo X (presente no par de cromossomos que determinam o sexo - XY nos homens e XX nas mulheres). Esta falha ou “fragilidade do x” causa um conjunto de sinais e sintomas clínicos, ou seja, a Síndrome do X-frágil (SXF). A principal manifestação dos problemas do SXF revela-se no comprometimento da área intelectiva ou cognitiva (graus: leve a profundo). Disponível em: http://www.xfragil.com.br/duvida_01.html Acesso: dez. 2009.

9

Síndrome de Down ou trissomia do cromossoma 21. Distúrbio genético de ocorrência mais comum, cerca de 1 a cada 600 nascimentos, causado pela presença de um cromossomo extra ligado ao par 21(trissomia, trissomia por translocação, mosaico total ou parcial). Esta síndrome é associada a rebaixamento mental e inclui características comuns: prega palmar transversa, olhos com formas que lembram os da raça mongol, hipotonia

muscular, problemas coronários e visuais etc. Disponível em

(22)

14 criança/jovem.

c. Quando as questões psicológicas se mostram prioritárias, é realizado pela

psicóloga o encaminhamento da criança e/ou da família para este tipo de atendimento.

4. Tipos de Acompanhamentos: a. Em grupo e individual. b. Exclusivamente individual. c. Familiar: c1. Em grupo e/ou

c2. Individual.

5- Critérios de Desligamento da criança/jovem:

a. Quando a criança/jovem se torna leitor e escrevente.

b. Não cumprimento, por parte da família, dos acordos estabelecidos por ocasião

da avaliação inicial.

6. Cuidadores

a. Encontros semanais nas disciplinas AM 035 e AM 045. b. Mensal.

c. Emergencial.

7. Escola

Visitam-se as escolas uma vez por ano, mas disponibiliza-se horário para os professores/escola o ano todo.

8. Registros dos encontros com crianças/jovens em grupo e individual. a. Diário de pesquisa.

b. Filmagem.

c. Registro de encontros familiares: anotações.

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15

São arquivados em pastas individuais da criança/jovem: avaliação, xerox de exames e do caderno escolar (as cópias podem ser feitas no início ou meio do ano), diário de frequência, relatórios semestrais feitos pelos cuidadores sobre os acompanhamentos realizados, produções (escritas, desenhos, artes manuais) da criança/jovem.

Os dados são arquivados no BDN.

A partir do esquema apresentado, acrescento mais algumas informações em relação à prática do CCazinho: na avaliação de fala, leitura e escrita feita com a criança/jovem (quadro 2), procura-se identificar se este sujeito se reconhece com algum problema em alguma dessas áreas e como o descreveria. Nesta ocasião, seu caderno escolar é xerocado (com a autorização dos responsáveis) com o objetivo de fornecer informações sobre o contexto de educação formal no qual a criança/jovem está inserida/o.

Com a família ou responsáveis, busca-se compreender a queixa que apresentam em relação aos processos de leitura e de escrita da criança e o que já foi feito em relação a isso. A família costuma apresentar um diagnóstico do problema da criança/jovem e, quando o tem por escrito (avaliação ou exame), levam-no por ocasião da avaliação. Mesmo quando não há o diagnóstico formal, a família formula um com base no senso comum, na divulgação da mídia e por conselho de professores e profissionais ligados à escola. Diante disso, pergunta-se aos pais o que sabem a respeito desses diagnósticos, o quanto esse diagnóstico explica as questões apresentadas pelo filho e o que esperam do CCazinho.

Em relação à avaliação psicológica de cunho psicanalítico, realizado pela Dra. Alessandra Caneppele, quando esse aspecto da avaliação se revela necessitando de mais atenção do que as próprias questões de leitura e escrita, ocorre de a psicanalista agendar encontros com os pais para esclarecer e assegurar que procurem atendimento psicológico para o filho ou para a própria família. Há casos em que a inclusão da criança/jovem no CCazinho é absolutamente condicionada à frequência da criança ou de seus pais ao atendimento psicológico. Esse acordo entre CCazinho e família é critério de permanência da criança em acompanhamento.

As decisões, a partir da avaliação inicial, em relação ao que será oferecido à criança/jovem são discutidas em reunião dos profissionais participantes do processo avaliativo.

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16

a1. Em grupo: ocorre uma vez por semana, com a duração de duas horas. Trata-se de um espaço de interação compartilhado por diferentes sujeitos (crianças/jovens e cuidadores) com diferentes histórias. Neste espaço, acontecem diversas atividades envolvendo fala, leitura, escrita, desenho, leitura dramatizada, teatro, canto, dança, lanches comunitários. Além disso, visitam-se na Unicamp exposições, praças, diferentes centros de estudos (matemática, computação) e, posteriormente, as crianças/jovens fazem registros dessas atividades culturais através de desenhos e/ou da escrita, dando visibilidade à interação sócio-cultural que essa experiência possibilita. Além dos cuidadores habituais, há também a participação especial de profissionais como pintores, veterinários, Clown10, alunos de diferentes cursos que apresentam oficina sobre assuntos que estudam ou pelos quais se interessam (geologia, química, arte visual, por exemplo). As sessões em grupo sempre são filmadas e essas filmagens são compiladas no Banco de Dados da Neurolinguística (BDN), além disso, são realizados registros escritos de cada uma dessas sessões.

a2. Individual/longitudinal: ocorre uma vez por semana (geralmente em dias diferentes do encontro em grupo), com duração de uma hora e é realizado por um ou mais cuidadores com cada uma das crianças/jovens que frequentam o grupo. Nesses encontros, são focalizadas as questões individuais de fala e/ou de leitura e de escrita através de atividades orientadas, tais como as realizadas em grupo, norteadas pelas necessidades observadas na criança/jovem e os interesses demonstrados por ela. Nos casos em que a criança apresenta problemas na fala, o acompanhamento individual é feito por uma fonoaudióloga ou por aluno do curso de fonoaudiologia. Diferentemente das sessões em grupo, as sessões individuais nem sempre são filmadas, pois não há equipamentos suficientes para isso, já que muitos acompanhamentos ocorrem simultaneamente. Nesses casos, o registro escrito dos acontecimentos julgados relevantes pelo cuidador e as produções realizadas pela criança/jovem configuram-se como documentos e são conservados em pastas individuais de cada sujeito acompanhado.

b. Individual longitudinal: frequentam esse tipo de acompanhamento11: jovens com mais idade do que a média dos participantes do grupo (entre 7 e 14 anos) e adultos; crianças que

10

A palavra Clown, desde o século XVI, remete à ideia de representação do campônio que é visto pelas pessoas da cidade como um indivíduo desajeitado e engraçado. Disponível em: http://clownelinguagem.blogspot.com/p/disciplinas-am-034-e-am-044.html (Profa. Dra. Ana Elvira Wuo e Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry). Acesso: maio 2010.

11

Em 2010, frequentam esse tipo de acompanhamento dois adolescentes com idade entre 16 e 17 anos, um adulto de 39 anos, duas crianças sem condições para permanecer em acompanhamento coletivo e cinco crianças que cursam a escola no período da tarde.

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não se apresentam com condições psíquicas e/ou neurológicas para participar das atividades propostas no grupo; e ainda crianças que cursam a escola no período da tarde, permanecendo em acompanhamento individual de manhã.

c1. Familiares em grupo: desde o segundo semestre de 2009, as reuniões com familiares acontecem em paralelo aos encontros em grupo do CCazinho, portanto, são semanais, com 2 horas de duração. Dessas reuniões, participamos a Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry, que intercala sua participação com o grupo do CCazinho, eu e os pais (ou responsáveis).

c2. Familiar individual: trata-se de encontros com familiares que não podem frequentar o grupo por diferentes motivos (horário de trabalho, impossibilidade de trazer os outros filhos etc.) ou daqueles que, mesmo frequentando o grupo, recorrem a este tipo de acompanhamento em função de uma questão particular. Para o acompanhamento familiar individual, uma agenda se mantém aberta o ano inteiro.

A relação CCazinho-Escola (quadro 7) se dá com anuência da família e da escola, conforme nosso pressuposto ético. Nessa relação, interessa-nos conhecer o discurso que a escola tem sobre o que ensina à criança/jovem, seu aluno que frequenta o CCazinho, e o contexto formal de ensino no qual a criança está inserida.

As informações sobre as histórias de vida das crianças e das famílias (quadro 8 e 9) só estão acessíveis ao próprio cuidador da criança, à Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry e aos pesquisadores envolvidos nos estudos de caso. Tais informações estão protegidas pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) submetido, como me referi antes, ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

Participam do CCazinho, atualmente, cerca de 19 crianças/jovens e um adulto, 18 familiares e, aproximadamente, 20 cuidadores. Essa população produz, nos meses que compõem o calendário do ano letivo da universidade, uma média de 160 encontros em grupo com crianças e jovens, 160 encontros em grupo com os familiares, 600 acompanhamentos individuais de crianças/jovens, 50 encontros individuais com familiares. Já passaram por avaliação e/ou acompanhamento no CCazinho mais de 120 crianças/famílias.

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1.2 O CCazinho na teoria

Nessa parte do capítulo, tratarei do conjunto de teorias e de autores que estão na base da composição teórica desta tese e na análise de dados (de fala, de leitura e de escrita) aqui apresentados.

Esta pesquisa tem origem em reflexões suscitadas a partir de uma determinada prática com crianças/jovens. Tal prática se constitui teoricamente na relação interdisciplinar entre a Linguística, mais especificamente entre a Neurolinguística Discursiva e uma Fonoaudiologia por ela iluminada12.

Como vimos, a concepção de linguagem adotada nesta tese se dá a partir da ND e se sustenta em reflexões teóricas de natureza social e dialógica que tomam a linguagem como

atividade – em que o sentido não é dado a priori, mas em contingências sócio-históricas, ou

seja, uma visão discursiva da linguagem; a gramática como uma necessidade antropológica e

cultural; a interação como um trabalho conjunto em que esse sujeito se constitui na ação com

o outro, sobre o outro e com o mundo (FRANCHI, 1977).

Sob o viés teórico da ND, o trabalho fonoaudiológico13 realizado com a fala, leitura e escrita acontece no espaço de interlocução (oral e escrita) entre sujeitos, entendo-se por interlocução

[...] as relações que nela se estabelecem entre sujeitos falantes de uma língua, dependentes das histórias particulares de cada um; as condições em que se dão a produção e interpretação do que se diz; as circunstâncias histórico-culturais que condicionam o conhecimento partilhado e o jogo de imagens que se estabelece entre os interlocutores (COUDRY & FREIRE, 2007).

Decorre dessa concepção de linguagem uma concepção de sujeito com ela afinada, ou seja, histórico, heterogêneo, constituídos na e pela linguagem e que não escapa, em função disso, da determinação ideológica e psíquica.

A problemática central desta tese diz respeito ao estudo do eixo fala, leitura e

escrita como acontecimento que indicia no cérebro um funcionamento holístico (JACKSON,

12

A ND tem caracterizado como tradicional a Neurolinguística e a Fonoaudiologia isentas das reflexões dos diferentes domínios da Linguística. Essa abordagem se contrapõe à visão organicista de cérebro/mente e a-histórica de língua que acompanha a visão tradicional.

13

Tal concepção de linguagem e de sujeito interfere para que a avaliação fonoaudiológica dos processos de fala, de leitura e de escrita se dêem a partir de uma abordagem discursiva de linguagem. Além disso, diferentemente de uma perspectiva tradicional, do processo avaliativo também participa o sujeito avaliado.

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19

1879; VYGOTSKY, 1934; FREUD, 1891) e intersemiótico, desencadeado exclusivamente pela linguagem. O homem de sociedades letradas se constitui pelas práticas humanas e sociais que regulam sua consciência, seus comportamentos e sua relação com o outro e com o mundo, o qual se apresenta cada vez mais pela escrita, pelo visual, pela conexão global, ou seja, acontecimentos com base na linguagem e em diferentes linguagens.

Várias pesquisas, concluídas e em andamento, realizadas no interior da ND têm observado que escrever ajuda afásicos a falar, como também falar os ajuda a escrever e a ler (COUDRY, 2010). Sabe-se também que, em relação a crianças autistas de alto funcionamento, o fenômeno da hiperlexia, ou seja, a presença da escrita antes de ocorrência da fala torna-se um acontecimento que amplia a possibilidade de se trabalhar a linguagem junto a essas crianças (BORDIN, 2006).

O objetivo com isso é mostrar que a fala, a leitura e a escrita são lugares de encontro de sujeitos e consideramos que esses modos de linguagem não se substituem entre si, mas podem ampliar as possibilidades de trabalho com crianças em que a linguagem está presente e a fala não, bem como com crianças/jovens com problemas na leitura e na escrita, mas não na fala e que, ainda assim, ficam fora do sentido que passa pela língua, como será apresentado nesta tese. O que está na base dessa proposta é o reconhecimento da qualidade de funcionamento intersemiótico do cérebro humano, porque a realidade é intersemiótica e convoca no homem (social, cultural e histórico) interpretações de sentido suscitadas em função de como ele se relaciona consigo mesmo, com o mundo e com o outro a partir de diferentes materialidades: fala, escrita, leitura, imagem, figura, foto, música, dança etc.

Esta tese acontece a partir de estudos teóricos que englobam o eixo fala, leitura e escrita e, como já dissemos, envolve na prática:

- crianças e jovens considerados normais que frequentam a escola brasileira todos os dias e que, ainda assim, não dominam a leitura e a escrita, o que os coloca em condições de vulnerabilidade social mantidas pelas impossibilidades de participar de diferentes socializações a partir da escrita;

- duas crianças que, por razões diferentes, apresentam-se com problemas na fala: RD, 7a7m, que faz uso da leitura e da escrita para apoio de sua comunicação e para a produção de sons da fala que se caracterizam apenas como vocálicos com intenção comunicativa; FS, 7a5m, que iniciou a produção de sons da fala juntamente com a escrita aos 4a2m, usando a materialidade de escrita para fazer ajustes na fala.

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20

Em função dessa problemática (ou objetivo) central nesta tese, surgem os objetivos específicos, elencados a partir de agora.

Em relação às crianças/jovens com problemas nos processos de leitura e escrita, as reflexões concernentes ao eixo fala, leitura e escrita têm como ponto de partida a atitude desses sujeitos frente à leitura/escrita que se concretiza em uma materialidade. Por materialidade estou considerando, então, o que a criança/jovem lê/escreve (ou os movimentos que faz nessa direção) em casa, no CCazinho e ainda o que aparece de escrita em seu caderno escolar.

No olhar que dirijo a essa materialidade, objetiva-se, por um lado, dar visibilidade ao trabalho linguístico realizado pela criança/jovem quando escreve espontaneamente e, por outro, procurar indícios da presença dos diferentes interlocutores da criança/jovem em seus processos de leitura e escrita. Esses objetivos demandam diferentes perguntas: o que essa criança/jovem consegue dizer sobre a sua leitura e escrita e a quem são dirigidas? Quais são os interlocutores desses sujeitos e como favorecem que sua leitura e escrita se apresentem assim?

Enfim, busca-se compreender como a escola, reprodutora do saber acumulado historicamente, perdeu o sentido para a criança e como crianças, as quais não entram da mesma maneira e ao mesmo tempo que outras nos processos de leitura e escrita, também perderam o sentido para a escola.

Retomo agora a apresentação do suporte teórico que sustenta as reflexões realizadas nesta tese, porém ressalto que algumas considerações acerca de alguns autores e suas teorias estão presentes em diferentes análises dos capítulos subseqüentes.

Nos estudos das afasias (COUDRY, 1986/1988), o acompanhamento de sujeitos afásicos realizado pela ND privilegia a relação linguagem-cérebro-mente. Porém não se trata de privilegiar a priori qualquer face dessa relação, mas aquela que se deixa ver na prática da linguagem em exercício, pelo seu aspecto discursivo e que revela a história do sujeito, suas lembranças e esquecimentos, suas possibilidades de recomeço. Nesse sentido, o sujeito é afásico

[...] quando escapa a linguagem e a língua, o sentido, o reconhecimento do eu e do outro, do corpo, a possibilidade de dizer de novo com as mesmas ou outras palavras, de selecionar e/ou combinar traços, sons, palavras, argumentos e textos. Escapa também a relação na língua entre aquilo que é familiar, conhecido e mesmo automatizado e o que é da ordem da vontade, da iniciativa, da atitude voluntária – que se apresenta como novo e onde a afasia mais se manifesta (COUDRY, 2009, p.1).

(29)

21

Para além da demonstração de uma dada hierarquia cerebral e de uma determinada plasticidade que evolui do simples para o complexo, a relação entre linguagem, prática social e funcionamento cerebral possibilita reflexões sobre sistemas novos e estabelecidos, ou seja, entre o novo como aprendizagem, o velho como memória, o voluntário como uma iniciativa e o comportamento automatizado como o resultado de aprendizagens que, devido às inúmeras repetições no uso que o sujeito faz delas, acabam por se estabilizar (por exemplo: andar, escovar os dentes, ato motor da escrita, dirigir carros etc).

O mesmo processo que acontece na fala do afásico pode repercutir na sua leitura e escrita. A afasia se caracteriza, do ponto de vista neurológico, por um processo que o neurologista J. H. Jackson14 (1879/1977) chama de involução, ou seja, em consequência de um sofrimento neurológico, o cérebro pode responder perdendo os registros mais complexos (mais atuais, superassociados aos mais antigos) e conservando os mais simples (antigos ou menos associados). Nesse sentido, o afásico pode se apresentar com um funcionamento de linguagem falada e escrita semelhante ao de uma criança que se encontra em desenvolvimento em relação a esses processos, com a diferença de já ter sido um adulto sem afasia.

Observe esses dois dados de escrita:

Dado 1: Em 15/03/2010, CZ escreve na sua agenda:

14

Os estudos do médico e filósofo John Hughlings Jackson (1835-1922) consideram o cérebro como um órgão que se modifica com a evolução da espécie possuindo níveis que regulam hierarquicamente suas funções cerebrais (níveis superiores - funcionamento voluntário/menos organizado - e os níveis inferiores - funcionamento automático/mais organizado). Esse autor privilegia a linguagem como uma das funções mais complexas do cérebro humano. A grande contribuição desse neurologista foi a de considerar no cérebro um funcionamento holístico e hierárquico que o dispõe como capaz de entrar em relação como um todo influenciado pela vivência do sujeito. Com esse argumento, Jackson ressalta a plasticidade cerebral e desestabiliza a ideia de

localizacionismo vigente na ciência médica do século XIX. O localizacionismo assume a noção biológica de um

cérebro com funções repartidas e estanques em que cada região cerebral responde pontualmente por uma determinada função independentemente das experiências do sujeito.

(30)

22

Dado 2: Em 11/04/2007, EM anota a frase ditada por um adulto: “Eu caí do caminhão”.

“eu balta od patara”

Análise: As duas produções são de sujeitos que têm contato com a escrita há mais de quatro

anos. No dado 1, observamos o processo de estabilização da seleção das letras permeado pelas dúvidas demonstradas nas rasuras das tentativas feitas e pela repetição da palavra “de”. Na palavra “iogurte”, ocorre o deslocamento da letra “r” se antecipando à sílaba a que pertence de fato. Uma explicação possível para isso é a da prevalência da oralidade sobre a escrita: esse sujeito fala “iorgute”, o que é possível em Português Brasileiro, em palavras cujo deslocamento do “r” não altera o seu sentido: “cadarço/cardaço/cardarço”, por exemplo. No dado 2, a presença da palavra “eu” parece ter se dado mais pela memória de sua forma, do que como resultado de uma hipótese demonstrando o conhecimento de escrita do sujeito. Essa ideia de memória da forma escrita parece persistir no “od” no lugar de “do”. Nesse caso, parece que o sujeito se lembra da forma da letra, mas não consegue reproduzir a ordem esperada no sistema ortográfico para a composição da palavra. Entretanto, apesar da distância entre a frase falada e a escrita, há indícios de que esse sujeito, em alguma medida, encontra-se na relação fala-escrita: observe que a frase intencionada se compõe de 4 palavras, número de segmentos que se mantém na sua produção.

Parece-me ser o caso de perguntar ao leitor: a partir dessas produções escritas, qual dado seria da criança e qual seria do afásico? Essa pergunta é motivada porque, de um sujeito cérebro-lesado, espera-se que sua escrita tenha problemas, enquanto que, de uma criança normal, espera-se muito menos.

A resposta é a de que o dado 1 é de uma mulher afásica, de 38 anos de idade, empregada doméstica, exímia cozinheira, portadora de uma afasia verbal, segundo a classificação freudiana (1891), que afeta a relação entre segmentos para formar palavras e palavras para formar frases e, além disso, tem a iniciativa verbal comprometida. Ao longo desses quatro anos em que participa do CCA (grupo II), CZ conseguiu retomar mais seus processos de leitura e de escrita do que os da própria fala. O dado de número 2 é de uma criança, EM, de 10 anos, que frequenta escola há quatro anos e não apresenta referência médica e familiar de problemas quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor ou cognitivo. À época em que produziu esse dado, refazia pela segunda vez a segunda série do ensino

(31)

23

fundamental em uma nova escola. Transferir EM de escola foi a única maneira encontrada pela mãe de evitar a aprovação automática do filho para a terceira série, mesmo escrevendo assim, o que havia sido determinado pela escola anterior. A materialidade escrita de EM revela que, embora ele frequentasse a escola por quatro anos, ele foi abandonado a si mesmo. A apresentação dos dados de escrita desses dois sujeitos tem o propósito de refletir sobre o fato de que se um sujeito afásico pode retomar seu percurso no mundo da escrita apenas quando inserido em práticas com a linguagem (verbal e não verbal) por que a criança também não?

O que há de comum entre esses dois sujeitos para que essa pergunta seja possível? Nos dois casos, temos um drama humano que, tanto no afásico quanto na criança, repercutirá por toda a sua vida. Além disso, o conceito de involução de Jackson baliza um ponto de encontro entre o afásico e a criança, ou seja, o afásico tem sua condição de linguagem (falada e escrita) modificada, assemelhando-se à criança, que está entrando na escrita.

Há diferenças intrínsecas entre o sujeito com afasia e a criança que enfrenta problemas na aquisição de leitura e escrita e, portanto, diferentes questionamentos são possíveis: será que a relação fala, leitura e escrita, como trabalho neurológico e demonstração de plasticidade cerebral, pode ser considerada apenas em contextos patológicos? A materialidade do que a criança/jovem produz repetidamente por anos seguidos na escola (cópias e produções escritas tão distante da convenção ortográfica e tão próximas da falta de sentido) não favoreceria um trabalho cerebral menor comparável com aquele que sustenta a noção de aprendizagem envolvendo sistemas intersemióticos tais quais os exigidos pelo mundo das letras?

Ou seja,o percurso dessa criança/jovem em relação aos processos de leitura e de escrita não possibilita que ela ascenda a outro lugar em relação à cultura lida/escrita, o que a distancia cada vez mais do saber veiculado pelo discurso padrão de grupos sociais em que circulam o saber valorizado (GNERRE, 1991).

As questões apresentadas até agora reconhecem que a materialidade do que um sujeito lê e escreve pressupõe sua própria história em meio a um sistema complexo e sofisticado de funcionamento que envolve a linguagem, o cérebro, a consciência e a aprendizagem e esses são conceitos presentes na obra de Vygotsky, que passo a apresentar a partir de agora.

(32)

24

Fundamentalmente, busca-se em Vygotsky uma ideia de escrita que se distancia de uma visão técnica de alfabetização com predomínio de atividades facilitadoras da memorização do sistema ortográfico da língua escrita, em detrimento da construção de textos com sentido. Nessa concepção de escrita, o aluno não sabe quando acerta ou quando erra e, muitas vezes, o erro fica caracterizado para a criança/jovem apenas como um sinal de que fez algo diferente do que a escola espera. Nessas condições, a escola tem produzido adultos que não dominam a leitura e a escrita, ou seja, não alfabetizados/analfabetos funcionais15.

Vygotsky16, em seus estudos, apresenta uma concepção de cérebro partilhada com a teoria de Jackson (citado anteriormente), porém avançando em relação a este quanto à preponderância do social sobre o orgânico, não só quanto ao cérebro, mas no que envolve processos de aprendizagem. Para Vygotsky, o cérebro é entendido como um órgão biológico de funcionamento holístico, dinâmico e plástico que, em constante interação com o meio, tem suas estruturas e funcionamento transformados pela sua característica plástica de se adaptar às diferentes necessidades que o homem (onto e filogeneticamente) experimenta ao longo de sua história.

Na busca da compreensão dos processos psicológicos presentes na relação homem-meio, os conceitos de Consciência e Mediação se tornam estruturais na teoria desenvolvida por Vygotsky.

O conceito de consciência (1924-1934), na obra do autor, evolui de uma concepção biológica tal qual um sistema reflexo para uma ideia de consciência de natureza social. E faz isso com base em estudos de fisiologia de Pavlov, de reflexologia de Bekhterev e de reactologia de Kornilov (estudos do final do século XIX e metade do XX).

No processo evolutivo do conceito, a consciência passa a ter características de pensamento, afeto, motivação e é submetida à sua condição de se dar a partir da relação

15

O uso desses termos será retomado no capítulo 2.

16

Para Molon (1995), Vygostky é influenciado, principalmente, por pensadores como Marx e Engels (materialismo histórico), Hegel (dialética: método que pressupõe a contradição, analisando o movimento dos contrários em que, para cada tese, há uma negação (antítese), a qual gera uma síntese, que, por sua vez, será negada) e Darwin (evolucionismo). Sob essa influência, estabelece os princípios para a teoria histórico-cultural em que a psicologia é uma ciência do homem histórico e não do homem abstrato e universal; a origem e o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores no homem é social (interpsíquico), antes de ser individual (intrapsíquico); a origem da sociedade resulta do surgimento do trabalho, através do qual, ao mesmo tempo em que o homem transforma a natureza para satisfazer as suas necessidades, transforma-se também. Entretanto, todo processo de transformação do homem conserva também o que ele já foi (sua gênese); para o homem, há três classes de mediadores: signos e instrumentos, atividades individuais e relações interpessoais, o desenvolvimento de habilidades e funções específicas.

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