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A China pelos olhos de Malaca : a Suma Oriental e o conhecimento europeu do Extremo Oriente

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A Suma Oriental e o conhecimento europeu

do Extremo Oriente

Pa u l o Jo R g e d e so u s a Pi n t o*

OS PORTUGUESES EM BUSCA DE MALACA

No muito conhecido e muito citado “regimento” que o rei D. Manuel entregou a Diogo Lopes de Sequeira, ao nomeá -lo capitão da armada que partiu de Lisboa com o objetivo de chegar a Malaca, há um capítulo dedicado aos “chins”. Trata -se de um conjunto de instruções simples, nas quais o monarca lhe ordena que, logo que atingisse a célebre cidade, pro-curasse saber quem eram, de onde vinham, qual o seu aspeto e riqueza e como era o seu regime de frequência e estadia em Malaca, sem esquecer as informações sobre a sua terra natal, o seu rei e a sua religião1.

O interesse dos portugueses pela China – em especial pelos seus habi-tantes, como se verá abaixo – era reduzido, mas o monarca vinha, desde há algum tempo, manifestando uma crescente curiosidade acerca daquelas paragens, sobre as quais quase nada se sabia de concreto em Lisboa. Era apenas mais um motivo que o levou a apressar o envio da armada de Diogo Lopes. Malaca e que estava no centro das suas preocupações: era necessário estabelecer o contacto com o rei da terra, construir uma fortaleza, garantir o acesso às especiarias e outras mercadorias asiáticas e antecipar -se às possíveis movimentações de Castela, onde já havia quem afirmasse que a cidade estava situada na área de influência castelhana,

* FCH/UCP – Centro de Estudos de Comunicação e Cultura

1 Regimento de Diogo Lopes de Sequeira, 13.2.1508, in Cartas de Afonso de Albuquerque, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1898, II, p. 416.

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definida pelo Tratado de Tordesilhas. A China era apenas um conceito geográfico indefinido, e só possível de atingir depois de alcançada Malaca.

A primeira viagem de Vasco da Gama parece não ter trazido qualquer informação acerca da China, com exceção de referências a uma armada de “cristãos brancos, com cabelos compridos, semelhantes aos alemães, sem barba, salvo em torno da boca” que havia chegado a Calecut oito décadas antes2; trata -se, seguramente, de uma referência à célebre expe-dição de Zheng He. Em 1501, o rei D. Manuel escrevia aos Reis Católicos e mencionava uma terra chamada “Malchina”, situada além do Ganges e alegadamente povoada de cristãos, “homens brancos”, onde vivia um rei poderoso e de onde provinham porcelanas e outras mercadorias3. Apa-rentemente, esta informação reflete os dados – igualmente muito vagos – fornecidos por José de Cranganor, um cristão da Índia que viera a Portugal no regresso da armada de Pedro Álvares Cabral. Em 1506, as cartas que chegavam da Índia já distinguiam claramente os “chins” dos cristãos que existiriam para lá de Malaca e, no ano seguinte, Fracanzio da Montalboddo publicava, em Itália, o seu Paesi Novamente Retrovati..., uma compilação de relatos das viagens portuguesas, espanholas e italianas, que conheceu grande sucesso mas onde nada mais consta acerca dos chineses ou da sua terra de origem4.

A chegada dos portugueses a Malaca, em 1509, assinala o início de um processo gradual de aquisição de conhecimentos que viria a culminar, quatro anos mais tarde, no desembarque dos primeiros portugueses no litoral da China. Foi o reconhecimento do potencial da cidade e das suas ligações aos portos e rotas da Insulíndia e do Extremo Oriente – natural-mente acelerado pela sua conquista, em 1511 – que permitiu obter dados novos e atualizados sobre a China e os seus habitantes, que diferiam substancialmente das informações que circulavam na Europa há séculos.

2 Primeira carta de Girolamo Sernigi sobre a viagem de Vasco da Gama, in Carmen Radulet e Luís Filipe Thomaz (eds.), Viagens Portuguesas à Índia (1497 ‑1513) – Fontes

italianas para a sua História, Lisboa, CNCDP, 2002, p. 80.

3 Carta de D. Manuel aos Reis Católicos, 28.8.1501, disponível on -line em www.novomi-lenio.inf.br/ festas/1500c.htm.

4 “Sumário de todas as cartas que vieram da Índia”, 1506, in Cartas de Afonso de Albu‑

querque, II, p. 390. V. outras fontes em Francisco Roque de Oliveira, A Construção do Conhecimento Europeu sobre a China, c. 1500 – c. 1630, Dissertação de doutoramento,

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UM CONHECIMENTO DESATUALIZADO

Até ao século XVI, a Europa possuía um conhecimento muito defi-ciente das realidades geográficas da Ásia Oriental. As noções que circula-vam nos tratados eram herança dos geógrafos da Antiguidade e estacircula-vam misturadas com informações confusas, imagens de seres fabulosos, refe-rências da Bíblia e histórias maravilhosas e bizarras sobre as terras que se estendiam para além do mundo muçulmano e as várias “Índias”. A “China”, que hoje entendemos como uma entidade única e bem definida, um país que se estende das estepes da Ásia Central ao Oceano Pacífico, não era conhecida na sua globalidade, antes surgia fragmentada nas noções da geografia europeia, com diversas designações e fontas informativas.

A variedade de nomes refletia esta diversidade. Curiosamente, os ter-mos que os chineses hoje utilizam para se designarem a si mester-mos – “Han”, c. de 92% da população atual da China, e o país: Zh ngguó, “país do meio” – não são usados por outros povos. Atualmente, a designação mais vulgarizada é “China”, cujo uso foi difundido nas línguas europeias através do português. A palavra provém de Qin, um dos “estados comba-tentes” que unificou pela primeira vez o país (221 -206 a.C.), e difundiu -se através do sânscrito (pela forma Cina). A primeira referência na cultura europeia é do século I da nossa era, do Périplo do Mar Eritreu, um roteiro geográfico greco -romano que descreve o comércio e a navegação que se faziam entre o Mar Vermelho, a costa oriental africana e a Índia e que contém a seguinte menção: “a norte, no fim do mar exterior e numa terra chamada This, existe uma grande cidade no interior chamada Thinae, da qual é trazida seda crua e em fio através da Bactria e Barygaza e que também é exportada para Damirica, através do rio Ganges”5. Tratava -se, portanto, de uma informação que chegara à Europa pelos canais maríti-mos, via Índia, mas que não teve continuidade.

As noções dominantes na Europa tinham outra origem e davam conta de uma China continental e interior, das estepes, alcançada por via ter-restre pelos viajantes do século XIII, como Giovanni da Pian del Carpine, William Rubruck ou o célebre Marco Polo, que foram realizadas numa época em que o poderio mongol se estendia da Coreia ao Mar Negro. A designação mais comum era a de “Cataio”, que provinha de Khitai – uma tribo mongol que adquirira alguma relevância durante os séculos XI e XII

5 The Periplus of the Erythraean Sea, ed. Wilfred Schoff, Londres, Longmans, Green & Co., 1912, p. 48.

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– e que passou ao russo e a outras línguas continentais6. Foi o sucesso do relato de Marco Polo que mais contribuiu para a difusão e generalização deste conceito por toda a Europa.

Nos finais do século XV, as informações do viajante veneziano esta-vam obsoletas: o “Cataio” era uma designação anacrónica, a Pax Mongo‑

lica que havia permitido os contactos terrestres entre a Ásia Central e a

Europa havia desaparecido e o “Grande Khan” já não existia há mais de um século. Sem conhecimentos geográficos atualizados, os europeus idea-lizavam uma “China” que não se sabia exatamente o que era, onde ficava ou quais os seus limites, mergulhada num mar de informações puramente livrescas, confusas e contraditórias, o que, aliás, apenas fazia aumentar o seu fascínio7. E de tal modo era esse fascínio intenso que levou Cristóvão Colombo a planear um projeto para lá chegar por via marítima, seguindo para ocidente, com as consequências imprevistas que se conhecem8.

As viagens portuguesas eram completamente alheias e decorreram à margem destas tradições. Foram, neste sentido, verdadeiramente revolu-cionárias, porque o seu avanço, ainda que lento e cauteloso, assentava na prática de navegação e não nas informações legadas pela Antiguidade ou pelos viajantes medievais. A viagem de Vasco da Gama descobriu a Índia – a verdadeira – e os portugueses obtiveram, a partir daí, todo um conjunto de informações sobre a Ásia marítima, portos, comunidades mercantis, reinos, rotas e produtos, que utilizaram de forma a preparar as viagens de reconhecimento do Índico e do que ficava mais além.

Como se viu no início, este espólio informativo incluía a China, mas apenas de forma marginal. Era Malaca o escopo principal do passo seguinte a dar, após o sucesso das primeiras viagens e do estabelecimento de uma base razoavelmente segura em Cochim; seria em Malaca que os portugueses tomariam contacto, pela primeira vez, com a China, por inter-médio da comunidade chinesa ali presente. Seria através deste duplo olhar de Malaca – o de uma cidade portuária cosmopolita e mercantil e o de uma comunidade originária da China meridional e espalhada pelo Sueste Asiático – que os portugueses viriam a obter as primeiras informações atualizadas, em vários séculos, da China; ironicamente, uma China que, à época, se encontrava oficialmente encerrada ao exterior.

6 Sobre as várias designações da China, V. Luís Filipe F. R. Thomaz, “China”, Dicionário

de História dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, I, pp.

242 -244.

7 Manel Ollé, La Invención de China, Wiesbaden, Harrassowitz Verlag, 2000, pp. 11 -16. 8 Rui Loureiro, “A Ásia Oriental nos primeiros escritos de Colombo”, em Nas Partes da

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TOMÉ PIRES E A SUMA ORIENTAL

Foi nos anos imediatos à tomada de Malaca, em 1511, que Tomé Pires escreveu a sua Suma Oriental, espécie de compilação descritiva onde reuniu todo um manancial de dados históricos e, sobretudo, utilitários, sobre reinos e portos, rotas e produtos, comunidades mercantis e práti-cas comerciais, preços, pesos e medidas, desde o Mar Vermelho até ao Extremo Oriente. Tomé Pires era de origem plebeia; provinha de uma família de boticários (o pai servira D. João II e ele próprio fora boticário do príncipe D. Afonso) e seguira para a Ásia como “feitor das drogas”. Era um homem de espírito observador, dedicado às questões práticas do trato das especiarias e para quem o comércio era uma atividade da maior importância: “o qual trato de mercadoria é tão necessário que, sem ele, não se susteria o mundo; este é o que nobrece os reinos, que faz grandes as gentes e nobilita as cidades, e o que faz a guerra e a paz”9.

Escreveu a Suma Oriental para oferecê -la ao rei, como uma espécie de repositório de informações úteis e fidedignas, em plena euforia causada pelos sucessos das armadas portuguesas na Ásia. É um trabalho notável, não apenas pelo que revela da argúcia, curiosidade e espírito metódico do autor, mas também por se tratar de um exemplo paradigmático de uma forma prática e empírica de ver as realidades asiáticas, em flagrante contraste com a erudição puramente livresca de outras obras geográficas da sua época. Tomé Pires não era um erudito e não cita os autores da Antiguidade, o relato das viagens de Marco Polo ou outras fontes informa-tivas tradicionais. Isso não significa, contudo, que não as conhecesse: logo no proémio introdutório, indica que os tratados geográficos continham erros sérios e opina que “alguns que escreveram se deviam vir alimpar de seus tratados”.

Talvez não nos apercebamos hoje do risco de descrédito que corria, no século XVI, quem escrevesse sobre estas temáticas sem citar os clás-sicos. Até Duarte Pacheco Pereira, o célebre autor do Esmeraldo de Situ

Orbis e tomado como modelo do “experiencialismo” dos Descobrimentos

Portugueses – a quem se deve a expressão “a experiência, que é madre das cousas, nos desengana e toda a dúvida nos tira” – não deixa de acusar o peso da autoridade dos Antigos, de mostrar que os leu e conhecia e, em certas questões onde a contradição era evidente, de tomar o seu partido em detrimento do conhecimento prático das realidades.

9 A Suma Oriental de Tomé Pires, ed. Armando Cortesão, Coimbra, Imprensa da Universi-dade, 1978, p. 132.

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A Suma Oriental está centrada sobre Malaca e o mundo mercantil que envolvia a cidade e os Estreitos. Tomé Pires concede um grande espaço a descrever a cidade e as alterações que se seguiram à conquista, assim como as oportunidades de negócio que se abriam aos portugueses. A China ocupa um espaço diminuto, não tomando mais do que parte de um capítulo, além de algumas referências dispersas10. Isso não deve ser motivo de espanto: Pires não conhecia a terra e a sua preocupação era descrever aquilo de que tinha conhecimento em primeira mão ou o que ouvia por fonte fidedigna. Portanto, limitou -se a reproduzir no seu tratado informações sumárias e gerais que obteve em Malaca: “segundo o que as nações de cá deste Levante contam”, a China era um reino muito rico e povoado e “de muitas cidades e fortalezas”. Afirma que tinha vários reinos do Sueste Asiático como seus tributários (entre os quais o próprio sultanato de Malaca) e chega a descrever a forma como o rei recebia os embaixadores estrangeiros, que “não o vêm, somente o vulto do corpo”.

Mais interessante é a forma como descreve os chineses, porque isso resultou do seu próprio contacto direto e observação das pessoas que conheceu em Malaca: a descrição da sua indumentária e aspeto (dizendo que “têm jeito de alemães”), as mulheres (que afirma serem semelhantes às castelhanas) e os seus hábitos de alimentação. A Suma Oriental con-tém a primeira descrição europeia do hábito de comer com pauzinhos: “comem com dois paus, tomam a porcelana com a mão esquerda, e com a mão direita e com a boca e com os paus se servem”11.

A Suma Oriental tem pontos de contacto e permite comparações inte-ressantes com outros relatos de viajantes da mesma época. O mais notório é o paralelo com o Livro de Duarte Barbosa, o escrivão de Cananor que esteve na Índia sensivelmente na mesma altura em que Tomé Pires perma-necia em Malaca. A sua obra possui o mesmo teor prático e empírico de registo das realidades observadas pelo autor, só que a partir da costa oci-dental indiana, e não do Sueste Asiático. Também Duarte Barbosa fala da China de forma sumária e com a sua atenção virada não para a terra, mas para os seus habitantes, nomeadamente aqueles que viviam em Malaca: a

10 A Suma Oriental de Tomé Pires, liv. IV, pp. 252 -255.

11 O manuscrito de Paris, publicado por Armando Cortesão, parece conter incorreções neste trecho; a versão truncada que existe na Biblioteca Nacional, em Lisboa, é aparen-temente mais correta; Rui Loureiro, O Manuscrito de Lisboa da “Suma Oriental” de Tomé

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maneira como se vestiam, aquilo em que comerciavam, os seus barcos, os seus modos e a forma como comiam12.

Ludovico de Varthema, um bolonhês que viajou pelo Médio Oriente (foi o primeiro cristão a entrar em Meca), pela Índia e pelo Sueste Asiá-tico, passou em Malaca pouco antes da chegada dos portugueses e diz que o sultão da terra pagava tributo ao “rei de Cini”, não sendo claro se se referia à China ou ao Sião. Seja como for, os chineses estão omissos do seu relato e os dois cristãos com quem viajou, que diz serem natu-rais da cidade de “Sarnau” e súbditos do “grande Khan do Cataio”, eram, com toda a probabilidade, siameses e não chineses13. Por fim, existem os registos de Giovanni da Empoli, um florentino que acompanhou Afonso de Albuquerque na tomada de Malaca. O seu relato, ao contrário do de Ludovico de Varthema, assinala o papel importante desempenhado pelos chineses em Malaca e descreve como os portugueses lá encontraram dois grandes juncos14.

Não deixa de ser curioso constatar como os portugueses parecem desinteressados das antigas noções da geografia medieval, enquanto que os italianos, que presenciaram as mesmas realidades concretas da Ásia dos primeiros anos do século XVI, têm presentes as noções e os con-ceitos geográficos de Marco Polo e denotam uma preocupação em fazê--los corresponder àquilo que viram e conheceram. Giovanni da Empoli chega mesmo a identificar de forma inequívoca – parece, aliás, ter sido o primeiro a fazê -lo – a China com o “Grande Khan” e o “Cataio”, algo que Tomé Pires parece sugerir mas que claramente não lhe interessava e estava fora do escopo da sua Suma Oriental15.

MALACA, A CHINA E OS CHINESES ULTRAMARINOS

Se a Suma Oriental é parca em informações sobre a China e se Tomé Pires a escreveu sem contacto presencial com a terra, possui, então, alguma relevância para o conhecimento europeu da China? Na verdade,

12 Livro do que Viu e Ouviu no Oriente Duarte Barbosa, ed. Luís de Albuquerque, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 155 -157.

13 The Travels of Ludovico di Varthema, Londres, Hakluyt Society, 1863, pp. 212 -213 e 224. 14 Marco Spallanzani, Giovanni da Empoli – un mercante fiorentino nell’Asia portoghese,

Florença, Studio per Edizioni Scelte, 1999, p. 182.

15 Sobre esta questão, V. Rui Loureiro, “Informações italianas sobre a China nos primeiros anos do século XVI”, em Nas Partes da China, Lisboa, Centro Científico e Cultural de Macau, 2009, pp. 35 -54.

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sim, não tanto por aquilo que descreve, mas precisamente pelo desconhe-cimento que revela, ou seja, mostra como os portugueses possuíam dados atualizados sobre os negócios e a vida comercial da Ásia marítima, mas os seus conhecimentos ficavam -se pelos assuntos costeiros; ora, a China era, fundamentalmente, um enorme reino continental. Este desconhecimento das realidades sociais, políticas, linguísticas e culturais da China veio a contribuir decisivamente para os equívocos em que os portugueses incor-reram e para o fracasso da embaixada à China que o próprio Tomé Pires viria a protagonizar, poucos anos mais tarde.

De facto, os portugueses encontraram em Malaca uma comunidade chinesa, razoavelmente próspera, que utilizava a cidade como o princi-pal ponto de abastecimento de pimenta (sobretudo de Samatra), de que a China era grande consumidora. Ao longo do século XV, o sultanato malaio adquirira proeminência regional e fama praticamente mundial, graças, sobretudo, à sua privilegiada localização – no Estreito que ligava o Índico ao arquipélago malaio -indonésio e ao Extremo Oriente – e ao regime de monções que a favorecia de forma extraordinária. Malaca era um excelente ponto de articulação entre dois mundos, a ligação entre comunidades mercantis vindas de extremos opostos da Ásia, o local de passagem – e de espera pela monção adequada – para quem vinha da Índia e pretendia seguir para oriente, e vice -versa. Uma política fiscal sensata, a segurança do porto, um aparelho administrativo dedicado aos assuntos marítimos e às especificidades das várias comunidades, liberdade religiosa e um código de leis marítimas eram fatores que potenciavam a atração de mercadores de toda a Ásia.

Quanto aos chineses, o facto de Malaca ser tributária do Império do Meio, desde praticamente a sua fundação, era um fator de atração e de favorecimento da comunidade, que ali possuía um syahbandar, ou mestre do porto. Porém, talvez por se considerarem desfavorecidos em relação aos mercadores guzerates – muçulmanos, como o sultão e as elites malaias –, os chineses estavam descontentes com o sultão. Quando os contactos entre os homens da armada de Diogo Lopes de Sequeira e as autorida-des degeneraram em conflito e parte dos portugueses foi aprisionada, os chineses serviram de intermediários e, quando Afonso de Albuquerque chegou e hesitou entre a diplomacia e a guerra, foi informado de que esta-riam na disposição de lhe prestar auxílio, se optasse por tomar a cidade pela força.

Depois da conquista, os portugueses ficaram a aguardar o regresso dos “chins”. Para sua surpresa, não vieram na monção de 1512, talvez por medida de cautela e precaução. Só em 1513, finalmente, o fizeram. Foi

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então que, no seu regresso à China, guiaram um navio português, adqui-rido para esse efeito e financiado pela Fazenda Real e por um mercador indiano, ao litoral do Guangdong. Tratou -se, como é sabido, da embarca-ção capitaneada por Jorge Álvares16.

Os primeiros contactos foram auspiciosos, mas faltava aos portugue-ses um conhecimento aprofundado sobre as especificidades da China; em concreto, da situação da China naquela época, da política oficial de encer-ramento das fronteiras e de semi -isolacionismo. Os homens de Afonso de Albuquerque (entre os quais o próprio Tomé Pires) e, por consequência, o próprio rei D. Manuel, que se entusiasmara com as notícias e decidira ordenar a preparação de uma embaixada oficial, conheciam as realidades chinesas pelo prisma dos mercadores que frequentavam sazonalmente Malaca e os portos do Sueste Asiático e que provinham do Fujian ou do Guangdong, regiões meridionais e com tradição de séculos de contacto com o “sul”17. A China Ming, porém, era diferente: tinha a sua capital em Beijing, no norte, um aparelho burocrático muito complexo e formal, um conjunto de regras rígidas de protocolo e de etiqueta e, sobretudo, uma ideologia oficial xenófoba que desencorajava os contactos exteriores e exaltava a superioridade da civilização chinesa.

Após um breve período de expansionismo marítimo – marcado pelas célebres viagens de Zheng He, no primeiro quartel do século XV – a China Ming fechara -se sobre si mesma. Os Ming eram uma dinastia, diga-mos, “nacionalista”, que varrera os mongóis (a dinastia Yuan) do poder nos meados do século XIV e que se assumia, portanto, como paladino de um regresso aos valores e aos modelos tradicionais da China após um século de dominação estrangeira. O agravamento dos problemas na Ásia Central e da pressão mongol sobre a fronteira norte do império levou os imperadores a concentrar a sua atenção sobre esta região. Em simultâneo, a turbulência dos vizinhos do sul e o aumento da insegurança da costa – muito agravada pelo incremento da pirataria japonesa – eram problemas e preocupações permanentes. Foi então adotada uma política oficial de encerramento da costa: era proibida a saída de naturais do reino e a entrada de estrangeiros18. Qualquer atividade comercial com o exterior

16 Sobre os pormenores da viagem, V. Rui Loureiro, Fidalgos, Missionários e Mandarins –

Portugal e a China no século XVI, Lisboa, Fundação Oriente, 2000, pp. 149 -154.

17 Jorge Manuel Flores, “Macau: os anos da «gestação»”, História dos Portugueses no Extremo

Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, 2000, I, ii, pp. 151 -176.

18 Wang Gungwu, “Ming foreign relations: Southeast Asia” in Dennis Twitchett and John K. Fairbank (eds.), The Cambridge History of China, Cambridge University Press, 1998, vol. 8, pte. 2, pp. 301 -332.

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estava interdita; para ser autorizada, teria que cumprir um rigoroso con-junto de formalidades e estar integrada numa missão tributária. Queria isto dizer que o comércio privado com o exterior era proibido; só era permi-tido se estivesse integrado numa embaixada de um reino tributário, que alcançasse o território chinês para prestar a sua vassalagem ao imperador.

Os portugueses desconheciam tudo isto. Ignoravam, entre outras questões, que os mercadores que encontraram em Malaca e com quem se entendiam perfeitamente, pois possuíam interesses, linguagem e visão do mundo idênticas, estavam oficialmente banidos da China. Estavam integra-dos em poderosas redes mercantis que se estendiam por todo o arquipé-lago, com ramificações ao Japão e eram, na sua maior parte, originários do Fujian – a quem os portugueses viriam posteriormente a designar por “chinchéus”. A sua ligação à terra -mãe era precária, apenas permitida pela conivência das autoridades costeiras chinesas, e sujeita às flutuações da política oficial, entre épocas de grande rigidez e períodos de maior tole-rância às suas atividades.

A China vivia em tensão crescente entre uma política oficial de encer-ramento e as realidades concretas da oferta e da procura. Os seus têxteis e porcelanas tinham grande procura no exterior, as suas elites procuravam todo um conjunto de mercadorias importadas e o próprio mercado chi-nês tinha uma imensa carência de prata. A presença dos portugueses no litoral chinês, a partir de 1513, contribuiu para agravar estas contradições internas e para alterar o próprio posicionamento da China perante a Ásia e o mundo. O momento que desencadeou este processo foi a conquista de Malaca, cujo impacto a longo prazo na história da China começa agora a merecer a atenção da própria historiografia chinesa19.

19 Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “Os impactos da conquista de Malaca em relação à China quinhentista: propostas para uma periodização da História Moderna da China”, em Revi‑

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