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A narrativa do prazer: a escrita do Marquês de Sade

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A narrativa do prazer: a escrita do Marquês de Sade

Rafaela Nichols Calvão1

Narrar é transmitir uma experiência. Esse é o princípio das narrativas, relatar algo que vale a pena, vivências que contam algum ensinamento, que dêem alguma direção moral a quem escuta. A narrativa deve expor experiências, compartilhar vivências, do autor ou de outras pessoas que o autor julga ser importante e que mereça ser transmitido. A narrativa vem da oralidade, dos relatos orais dos mercadores, ou dos marinheiros que contavam suas histórias em cada porto que paravam, e compartilhavam suas aventuras, no intuito de ensinar. O narrador é o transmissor dessas vivências. É o individuo que possui a livre circulação entre fatos, experiências, conselhos e que é capaz de transmitir tudo isso ao ouvinte de uma maneira didática. O narrador não está preso a fatos ou a obrigações formais, ele é um individuo livre para expor sua narrativa. A sua única preocupação é com quem ouve, se a narrativa será útil na vida do ouvinte.

Walter Benjamin sintetiza o que é um narrador, segundo a sua visão:

Assim, definindo, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida( uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Se dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. (BENJAMIN: 1987, p. 221) Uma das principais características da narrativa é o senso prático. A narrativa deve estar necessariamente relacionada a experiências, e deve servir como um conselho ou uma ajuda. Narrar não é escrever sobre qualquer assunto, expor uma ideia, não é um comentário, é um relato de alguma experiência, pessoal ou não, é a tentativa de manter viva uma memória, para que os ouvintes possam aprender com erros ou acertos do narrador. Como diz Benjamin sobre a narrativa:

1 Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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2 Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida- de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (Idem, p. 200.)

Pensar o Marquês de Sade sob a perspectiva da narrativa é a intenção desse estudo, principalmente a figura do narrador, que como Benjamim apresenta, tem a função de transmitir suas vivências na tentativa de mostrar uma direção moral a quem escuta ou lê. Nos livros usados nesse estudo, as personagens compartilham suas experiências e com isso ensinam os personagens ou o leitor, há um intuito pedagógico, mas também há uma incitação ao prazer. Através da narrativa as personagens obtêm prazer, como se eles tivessem vivido o evento contado.

O Marquês de Sade

Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, era um nobre, de uma família tradicional, mas nunca foi realmente aceito, quando jovem era malvisto pelos seus atos. Passou quase metade da vida preso, devido a escândalos sexuais e por sua literatura. Após ser solto, mesmo trabalhando para o governo, não conseguiu ter sua liberdade garantida, pois foi denunciado por suas publicações, que sofreram censura. Era um homem solitário, sem pares, era “de si próprio o único semelhante” (BEAUVOIR: 1961, p. 19)

Através de seus personagens, Sade faz uma discussão sobre diversos temas como a condição das mulheres, a monarquia francesa e a possibilidade de um regime republicano2. Alguns dos assuntos abordados em seus livros são recorrentes em outros autores, mas em Sade há uma subversão. A ideia de bem comum não está presente no seu texto, a ideia defendida por Sade é oposta a esse pensamento, a proposta é a de uma sociedade baseada no mal. “O mal é tão necessário à natureza quanto o bem; assim como a morte lhe é tão indispensável para a renovação da vida.” (GIANNATTASIO: 2000, p. 136)

A transgressão rege o pensamento do Marquês. É através dela que seu pensamento se desenvolve, é através da transgressão, também, que Sade propõe uma nova sociedade, baseada no vício. Mas a transgressão deve estar presente em todas as instâncias, no pensamento, na

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3 literatura e nas atitudes dos homens.

Nos livros escritos por Sade, seus personagens sentem prazer somente transgredindo alguma norma ou lei, não necessariamente com uma relação sexual violenta. O prazer deriva da subversão, do roubo, do assassinato, da sodomia, do incesto, entre outros atentados contra a lei e a moral, e não de uma relação sexual que contenha violência, sem qualquer tipo de transgressão.

Para esse trabalho serão utilizados os livros “A Filosofia na Alcova” e “Os 120 dias de Sodoma”. Os livros usados nesse trabalho foram escritos em momentos diferentes da vida do Marquês. Enquanto “Os 120 dias de Sodoma” foi escritos e, 1785, período em que Sade se encontrava preso na Bastilha, desde 1777, “A Filosofia na Alcova” foi escrito em 1795, quando Sade estava em liberdade, mas não possuía mais nenhum bem, todos confiscados pela Revolução Francesa.

O livro “A Filosofia na Alcova” 3, trata da educação de uma jovem, com o intuito de torna-lá uma libertina. O livro expõe as ideias do Marquês de Sade sobre diversos, como filosofia, religião e sobre questões morais, como aborto e sodomia. A história se passa numa alcova, isolada da sociedade, onde Dolmancé, o maior libertino que já existiu, e a senhora de Saint-Ange discutem sobre diversos temas enquanto ensinam a Eugénie a libertinagem, como ela deve se portar frente à sociedade e como deve ser seu comporatmento dentro das alcovas, o lugar em que ela mostrará quem realmente é.

O livro “Os cento e vinte dias de Sodoma” 4 narra à história de quatro libertinos, Durcet, Presidente de Curval, o Duque de Blangis e o Bispo, que se propõem a experimentar o maior número de “paixões” 5 que puderem, 600 ao todo, sendo inspirados pelas experiências de quatro prostitutas. Para que isso ocorra eles preparam uma comitiva composta por todos os tipos de pessoas, desde belos jovens até as mais nojentas velhas. A história se passa no Castelo de Silling, um lugar totalmente isolado do mundo, de onde ninguém pode escapar. Os

3 Quando o livro “A Filosofia na Alcova” foi lançado, Sade não o assinou, por medo de uma possível censura e punição do regime republicano.

4O livro “Os 120 dias de Sodoma” é um manuscrito, feito num rolo de papel, enquanto Sade estava preso na Bastilha. Sade não pode terminar esse livro por que foi transferido de prisão às pressas, deixando o rascunho para trás. O manuscrito apareceu somente no século XIX, na Alemanha.

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4 libertinos cumprem uma rotina coordenada por um regimento, caso haja alguma desobediência, o autor sofrerá punição.

A narrativa

Para Roland Barthes, existe um livro dentro dos livros escritos pelo Marquês de Sade, há uma narrativa dentro da narrativa, como as histórias contadas pelas historiadoras de “Os cento e vintes dias de Sodoma”. Há uma dinâmica no interior da obra de Sade, regida pela narrativa. Todas as noites as historiadoras6 narram suas subversões aos libertinos, no mesmo horário e a mesma quantidade de experiências. Essas condições estão descritas num regimento, que dever ser cumprido rigorosamente.

As historiadoras subvertem pela narrativa ao contar suas antigas transgressões, sua transgressão vem pela palavra. Barthes afirma numa nota de rodapé: “O crime tem exatamente a mesma “dimensão” da palavra.” (Ibdem, p. 39). É a palavra que proporciona esse prazer, que expõe o crime, a transgressão, “Sem a palavra fundadora, o deboche e o crime não se poderiam inventar nem desenvolver: o livro de proceder ao livro, a historiadora é o único “ator “ do livro, pois a palavra é o seu único drama.” ( Ibdem, p. 39).

Os livros de Sade, usados nesse trabalho, possuem inúmeros relatos das personagens. As discussões entre as personagens são baseadas em relatos compartilhados. Proporcionando ao leitor participar de várias experiências transmitidas por personagens muito diferentes. Todas essas narrativas constituem as narrativas dentro da narrativa de Sade, como Barthes fala do livro dentro do livro: “(...) no interior no romance sadiano há outro livro, livro textual, tecido de pura escrita, e que determina tudo o que se passa” imaginariamente” no primeiro: não se trata de contar, mas de contar que se conta.” ( Ibdem, p. 38).

Através das narrativas contadas pelas personagens que Sade se baseia para construir sua narrativa. Através da reflexão ou da vontade de por em prática as vivências compartilhadas que a narrativa de Sade se desenvolve. São as experiências das

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5 personagens que compõe a narrativa, que promovem a transgressão dos outros libertinos. Através das trocas de experiências que os libertinos estabelecem uma relação com o leitor, “o que importa é a educação do leitor” (Ibdem, p. 29).

Um aspecto importante a ser observado na escrita de Sade é a questão da polifonia. Essa proposta criada por Mikhail Bakhtin defende a ideia de uma autonomia das personagens. Essas não estariam submissas ao autor, ao contrário, teriam sua própria fala e suas próprias ideias, seriam dotadas de consciência As personagens não seriam objetos, mas sujeitos dentro do livro. “O herói tem competência ideológica e independente, é interpretado como autor de sua concepção filosófica própria e plena e não como objeto de visão artística final do autor.” (BAKHTIN: 1981, p. 1)

Segundo Bakhtin, há uma polifonia entre as vozes das personagens e do autor. Dentro do livro a voz do autor divide espaço com as vozes de suas personagens, tornando difícil a identificação da voz do autor e das personagens.

A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de interprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura na obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis. ( Idem, p. 3)

Sade não é nenhuma de suas personagens, não há intenção de fazer uma autobiografia em seus livros. As personagens são dotadas de pensamentos próprios, não são submissas ao autor, por isso seu discurso não se esgota. As personagens não possuem ligação teórica com o autor, elas não são simples representações de pensamentos, ou a voz do autor dentro da obra, as personagens são dotadas de personalidade e opinião próprias.

Embora a polifonia possa ser aplicada na obra de Sade, temos que observar as singularidades desse autor. Os libertinos não são totalmente independentes, necessitam de outros libertinos. As personagens se baseiam nas ideias de outras para formar sua própria ideia, as discussões entre os libertinos demonstram essa dependência.

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6 sendo dotados de muitas características7, esses libertinos possuem suas próprias opiniões. As personagens de Sade não dependem dele, não traduzem o pensamento de Sade, mesmo porque Sade não possui um pensamento totalmente coerente, ele é marcado por algumas contradições.

Ao contrário do exposto por Bakhtin sobre Dostoiévski, as personagens de Sade não possuem várias vozes, cada personagem possui apenas uma. As personagens não são polifônicas, não há nenhuma personagem que possuia mais de uma voz.

Blanchot também nos ajuda a compreender a narrativa de Sade. A narrativa seria o próprio acontecimento, ela é a realidade da obra. É através dessa realidade que podemos pensar a polifonia, pensar como as personagens possuem opiniões diferentes da do autor sobre os fatos ocorridos nas obras. A independência de pensamento das personagens pode existir somente num ambiente também independente do ambiente exterior a obra, a polifonia somente é possível por que a narrativa é a realidade.

Além da questão da narrativa como acontecimento, para Blanchot, se narra somente o extraordinário, somente o que vale ser narrado.

É verdade que a narrativa, em geral, relata um acontecimento excepcional que escapa às formas do tempo cotidiano e ao mundo da verdade habitual, talvez toda a verdade. Eis porque, com tanta insistência, ela rejeita tudo o que poderia aproximá-la da frivolidade de uma ficção (...). (BLANCHOT: op cit, p. 8).

As experiências compartilhadas são as que poderiam acontecer fora da obra. As experiências devem ser muito reais, não há opção pelo fantástico na narrativa. Mesmo optando pelo extraordinário, não significa que eventos cotidianos ou ordinários não sejam relatados, pois o extraordinário também pode ser encontrado no ordinário.

Análise dos livros

A figura do narrador será central para observamos a transgressão das personagens dentro narrativa. Como o narrador também incita essa transgressão, através do relato das

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7 transgressões dos personagens.

No livro “Os 120 dias de Sodoma” o narrador é quem conta a experiência, a transgressão, dos personagens, como pode ser observado na Introdução do livro. Ao apresentar os libertinos, o narrador relata alguns dos inúmeros crimes das personagens. As características realçadas são as relativas à transgressão e a devassidão dos libertinos, poucas são as características ligadas à personalidade.

O livro “Os 120 dias de Sodoma” é um manuscrito, o narrador, além de sua função, ele é quem relata as subversões que seriam contadas pelas historiadoras. A segunda, terceira e quarta parte do livro estão inacabadas, somente há um plano de capítulo, com as subversões enumeradas de acordo com o dia que essas seriam contadas.

Uma característica do narrador de “Os 120 dias de Sodoma” é a comunicação feita diretamente com o leitor. O narrador proporciona ao leitor uma interação maior com a obra, fazendo com que o leitor possa participar do livro: “(...) e deixo para os leitores imaginarem as orgias que lá ocorreram.” (SADE, 2008, p. 17).

O narrador tem preocupação com o leitor, durante a leitura do livro o narrador adverte o leitor: “(...) o leitor não deve se espantar quando souber que, cada ano, dois milhões eram destinados aos prazeres da boa mesa e da lubricidade.” ( SADE: 2008, p. 17.). O narrador instrui o leitor: “bastará para instruir o leitor naquilo que um homem desses, tendo feito o que se lerá a seguir, sabe, pode e é capaz de fazer.”(Idem, p, 25). O narrador mantém contato com o leitor, para que esse possa ler o livro sem grandes problemas, e sem sustos, tenta acostumá-lo a narrativa que virá.

A compreensão da obra pelo leitor é uma preocupação do narrador, para que o leitor tenha total compreensão do texto. Para que o narrador possa transmitir todas as vivências das personagens dos livros, como mostra a seguinte fala:

Voltemos um pouco atrás e retratemos ao leitor, da melhor forma possível, cada um desses quatro personagens em particular, sem embelezá-los nem tentar seduzir ou cativar, mas com os próprios pincéis da natureza, a qual apesar de toda sua desordem, costuma ser sublime, mesmo quando mais se corrompe.(SADE: 2008, p.19)

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8 transgressão, ou de normas sociais ou da lei. Todas essas formas são transmitidas pela fala de quatro prostitutas, que Sade chama de narradoras. Embora essas personagens não sejam as narradoras do livro, elas transmitem suas vivências aos outros, com o objetivo de transmitir sua sabedoria, de dar alguma direção aos libertinos, como o narrador descrito por Walter Benjamin.

Além da intenção de transmitir uma moral através da narração, outra característica das narradoras é a oralidade. Essas mulheres narram suas experiências pela fala, não por escrito. Elas falam num salão para todos os habitantes do Castelo de Silling, contam as experiências de uma vida voltada para a libertinagem e para a transgressão. Como os marinheiros, essas mulheres contam as suas histórias para quem quiser ouvir.

As experiências narradas não precisam ser vividas pelos narradores ou pelas personagens para serem contadas. Como Benjamin afirma: “A experiência que passa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” (BENJAMIN: 1987 p. 198.). As narradoras de “Os 120 dias de Sodoma” narram experiências de outras pessoas para entreter os libertinos, como a contada por Duclo, vivida por uma companheira de trabalho:

Alguns dias depois, chegou à vez dessa mesma companheira que me tinha dado o prazer dessa cena. Sendo uma moça de aproximadamente dezesseis anos, loira e com a mais interessante das fisionomias do mundo, não deixarei de ir vê-la em ação. O homem com quem a juntaram era no mínimo tão velho como o pagador de rendas. Mandou ela se ajoelhar entre suas pernas, prendeu sua cabeça agarrando-a pelas orelhas e enfiou na sua boca um pau que me pareceu mais sujo e repugnante do que um esfregá arrastado numa sarjeta. (SADE: 2008, p 140)

Outras personagens também possuem as características desse narrador, como o caso de Dolmancè. Essa personagem transmite seus conhecimentos sexuais a Eugénie e a Senhora de Saint-Ange pelas suas a experiências. O mesmo acontece com a Senhora de Saint-Ange, que narra suas vivências com o intuito de apresentar alguma moral a seus companheiros:

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9 criados encantadores, ciente que gozariam comigo dos mais doces prazeres, se fossem discretos, e de que seriam despedidos, se abrissem a boca. Não tens ideias, meu anjo, da torrente de delícias em que mergulhei, desta maneira. Eis aí a conduta que indicaria todas as mulheres que quisessem imitar-me. Casada há doze anos, terei feito amor com mais de dez ou doze mil indivíduos... e em sociedade acreditavam-me recatada! Outra que tivesse tido amantes, ter-se-ia perdido num instante. (SADE: 1968, 55)

As personagens dos livros de Sade são descritas pelo excesso. Elas são sempre as “melhores” ou “maiores” em suas especialidades, como o caso de Dolmancé, descrito assim pelo Cavaleiro: “É o ateu mais fervoroso, o homem mais imoral... Oh! É a corrupção total e completa, o indivíduo mais perverso, pérfido, que possa existir no mundo.” (SADE: 1968 p. 16).

O excesso é uma das marcas principais dos libertinos construídos por Sade. Essas personagens nunca estão saciadas, estão sempre à procura de mais prazer, não há limite para sua busca. O prazer dos libertinos não é alcançado de modo simples, tudo deve ser em excesso, como o exemplo narrado por Desgranges: “Um incestuoso, grande amador de sodomia, para reunir esse crime ao do incesto, do assassinato, do estupro e do sacrilégio, e do adultério, se faz enrabar por seu filho com uma hóstia no cu, estupra sua filha casada e mata sua sobrinha.” (SADE: 2008 p. 350). Esse libertino necessita do excesso para ter prazer, somente através da união de várias transgressões ele pode alcançar o prazer.

Em “A Filosofia na Alcova” no início do livro, o narrador escreve “Aos libertinos”, pedindo para que eles sigam o exemplo das três personagens principais do livro, que busquem desesperadamente o prazer, sem se importar com nada. Outro conselho dado pelo narrador é a transgressão, ele recomenda a todos os libertinos que pratiquem as mais diversas perversões que puderem.

E vós, amáveis devassos, vós que desde a juventude não tendes outros freios que vossos desejos, e outras leis que vossos caprichos, o cínico Dolmacé os sirva e exemplo; ide tão longe quanto êle, se, como êle, quiserdes percorrer todos os caminhos de flôres que a lubricidade vos prepara; convencei-vos, por sua escola, que sômente dilatando o limite de seus gostos e fantasias, e tudo sacrificando à voluptuosidade, o infeliz indivíduo conhecido como homem, jogado neste triste universo contra a sua vontade, pode chegar a semear algumas rosas sôbre os espinhos a vida. (SADE: 1968, p.11)

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10 Outra característica de “A Filosofia na Alcova” é a presença de um propósito pedagógico. Há uma tentativa de ensinar um aprendiz como ser um libertino, como em outros livros dos filósofos iluministas, esse intuito de ensinar a um jovem aprendiz era realizado entre os escritores contemporâneos a Sade. A dinâmica dos libertinos é passada a essa jovem em forma de lições práticas e teóricas. Nas palavras de Raymond Trousson: “(...) o romance libertino também se apresenta como um romance de formação em que a libertinagem, integrada ao sistema social, constitui uma fase inelutável da educação.” ( TROUSSON: 1996 p. 178.).

O livro narra uma jovem aprendiz que é introduzida no mundo dos libertinos, conhece as regras e as leis desse mundo. Podemos observar essa preocupação pedagógica no diálogo entre Eugénie e a Sra Saint-Ange:

Eugénie, apalpando os testículos de Dolmancé. - Oh! Tua relutância aos meus desejos desgosta-me, querida amiga! E essas bolas, como se chamam, e para que servem?

Sra de Saint-Ange – Comumente são chamadas culhões... e de testículos, pela ciência. Contêm o reservatório da semente prolífica da qual te falei, e cuja ejaculação na matriz da mulher produz a espécie humana; mas Eugénie, pouco nos deteremos nestes detalhes, mais ligados à medicina que à libertinagem. Uma bela moça apenas deve ocupar-se em foder, e nunca em conceber. (SADE: 1968, p. 29).

Além das questões ligadas ao corpo e ao sexo, os libertinos também ensinam sobre a natureza e sobre a sociedade. Eugénie recebe uma formação completa para se tornar uma libertina.

À intenção pedagógica do narrador que pretende, por exemplo, tornar-se útil às gerações vindouras, corresponde, no interior da narrativa, a aprendizagem do herói. Este penetra como ignorante num círculo cujas as leis e regras não escritas lhe preexistem e que a ele cabe assimilar. (TROUSSON: 1996, p. 178.)

As discussões entre as personagens de “A Filosofia na Alcova” possuem o intuito de ensinar Eugénie sobre a sociedade. Todos os argumentos usados por Dolmancé na educação da jovem demonstram as vantagens de ser libertino e como a natureza promove a libertinagem como forma de vida e a sociedade e a religião mentem para os indivíduos na tentativa de controlá-los. Nas palavras de Dolmancé:

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11 Ah! Renuncia às virtudes, Eugénie Haverá um único sacrifício que se possa fazer a estas falsas divindades, que valha um minuto dos prazeres que se gozam quando as desprezamos? Vamos lá, a virtude não é senão uma quimera, cujo culto se resume em imolações perpétuas, rebeliões sem número contra os desígnios de temperamento. Podemos considerar isso como natural? Não te deixes enganar por estas mulheres que se dizem virtuosas, Eugénie. Não cederão às mesmas paixões que nós, mas terão outras, frequentemente bem mais desprezíveis... A ambição, o orgulho, os interesses particulares, e, outras vezes ainda a frieza de um temperamento que nada as impele. (SADE: 1968, p. 36)

O livro “A Filosofia na Alcova” é dividido em diálogos, as ações das personagens são expostas em suas falas, não contadas pelo narrador. Esse não propõe discussões, somente narra alguns detalhes, atitudes dos libertinos, como posicionamentos numa orgia ou seus semblantes. O narrador desse livro, embora participe de alguns diálogos de maneira discreta está presente em todo o livro.

O livro “ A Filosofia na Alcova” possui um caráter teatral . O livro é composto basicamente pelas falas das personagens, com poucas ações descritas pelo narrador. Tudo nesse livro acontece nas falas das personagens, as descrições e eventos que ocorrem pela voz do narrador são mínimas, tudo é feito pelas personagens. Embora possua características teatrais, esse livro não poderia ser encenado, ele não é uma peça de teatro. A cena do livro é seu corpo, o livro é um fim, não há a necessidade de uma encenação. O livro basta por si mesmo, ele já possui tudo que precisa.

Quem desempenha o condutor das orgias e das discussões é a personagem Dolmancé. Esse grande libertino é quem coordena todas as orgias, e discursa sobre os temas tratados no livro, é ele quem cuida da educação de Eugénie. Ele é o grande mestre de cerimônia, preocupado com os detalhes das orgias e em transmitir didaticamente seus conhecimentos e vivências. Nas palavras do próprio Dolmancé:

Divirtamo-nos enquanto isso; o meu desejo seria que todos nós nos supliciássemos: a Sra de Saint-Ange esfolará Lapierre, para que penetre firmemente a Sra de Mistival; eu açoitarei a Sra de Saint-Ange, Augustin a mim, Eugénie a Augustin, e será açoitada pelo cavaleiro, com o máximo. ( SADE: 1968, p. 185/186)

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12 Dolmancé não poupa esforços para ensinar Eugénie a ser uma perfeita libertina, impõe até uma prova final para averiguar se ela assimilou seus ensinamentos: esse devasso pede para a jovem destratar e mostrar sua nova condição de libertina para sua mãe, uma mulher extremamente recatada. Eugénie se despe na frente de sua mãe e pede para ela beijar suas nádegas, com a recusa, Dolamncé a tortura e pede para um criado infectado com uma doença mortal ter relações com essa mulher. Após o estupro, Eugénie costura a vagina de sua mãe com uma agulha grossa e uma linha vermelha para puni-la por ter dado a jovem uma criação cheia de virtudes.

Somente após essa prova, Eugénie pode ser considerada uma libertina. Com isso sua educação estava completa e ela não precisaria mais de professores e sim de suas próprias experiências.

A explicação altamente didática presente nesse livro, e também em “Os 120 dias de Sodoma”, é extremamente necessária, não só para a educação dos mais jovens, mas para a formação da própria personalidade. Como as personagens dependem das outras para construírem sua opinião, quanto mais didática a explicação ao jovem aprendiz ou a outro libertino, melhor essas personagens compreenderam e poderam construir suas opiniões sobre os assuntos discutidos.

Esse livro possui uma singularidade, o panfleto “Franceses, ainda um esforço, se quereis ser republicanos”, que expõe novas propostas para uma sociedade republicana. O narrador do panfleto disserta sobre uma sociedade livre da religião cristã e de uma sociedade que deseja apenas a sua perpetuação. Todas as justificativas usadas pelo narrador do panfleto são baseadas em experiências de outras sociedades, através desses exemplos ele vai construindo seus argumentos. e

A intenção de mostrar uma direção moral ao leitor do panfleto, usando experiências, caracteriza o narrador do panfleto como o exposto por Benjamin. O narrador do panfleto propõe uma análise da sociedade francesa pela crítica e por comparações a outras sociedades. É a partir dessas comparações que ele mostra sua ideia, toda explicação feita por esse narrador possui um exemplo, explicado de uma forma didática para maior compreensão das outras personagens e do leitor.

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13 está bem longe de poder retomar o de Roma. Num século em que nos vemos tão convencidos de que a religião deve estar na moral, e não a moral na religião, faz-se necessária uma religião que vá aos costumes, que seja como que o seu desenvolvimento, o seu resultado obrigatório e que possa, ao elevar a alma, mantê-la perpétuamente á altura desta liberdade preciosa transformada, hoje em dia, em único ídolo. (SADE: 1968 p.120)

Dentro desse panfleto há a seguinte frase: “dirijo-me às pessoa capazes de me entender, e essas poderão ler-me sem perigo.”( SADE:1968, p. 136). Essa frase descreve o tipo de leitor ideal para os narradores dos livros de Sade transmitirem suas experiências e darem seus conselhos. O narrador não quer apenas transmitir suas experiências às personagens, mas ao próprio leitor, para que esse possa transmitir esse relato para outros. O leitor da obra de Sade não analisa somente as orgias ou os crimes, mas as ideias contidas nos relatos, nas transgressões e nas possibilidades oferecidas pelas personagens e narradores.

Dentro dos livros de Sade o narrador não figura entre as personagens, nem tampouco representa o próprio Sade, mas possui funções fundamentais para que possamos entender essas obras, tanto pela presença, como na caso e “ Os 120 dias de Sodoma”, ou pela sua quase ausência, como no caso de “ A Filosofia na Alcova”. Em ambos os casos o narrador é fundamental para entender quais as ideias que Sade e suas personagens tentaram transmitir através da narrativa.

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14 Referências

Fontes

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Referências

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