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O Visível Mundo do Espiritismo

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O Visível Mundo do Espiritismo

Ma r c io Go l d m a n

O M u nd o In v isív el* de M aria Laura Viveiros de C astro C a­

valcan ti, rem anej am en to de um a dissertação de M estrado escrita para o P rogram a de P ó s-G ra d u a çã o em A n trop olog ia S ocial do M useu N acional, U niversidade F ederal do R io de Janeiro, co m o bem in d ica seu subtítulo, preten de in vestigar as questões de “ C osm olo­

gía, Sistem a R itu al e N oção de Pessoa n o E spiritism o’ em sua v er­

tente K ardecista, torn a n d o m ais visível um ca m p o de estudos que, co m o nos lem bra a autora, tem tra d icion a lm en te ch a m a d o a a ten ­ çã o dos pesquisadores m ais para sua co n trib u içã o ao ch a m a d o ‘ “ sin ­ cretism o religioso” brasileiro do que à esp ecificid a d e de seu siste­

m a de crenças. O livro preten de c on cen tra r-se ju sta m en te nesta últim a e tom a para isto, com o pressuposto b á sico ex p licita d o desde sua “A p resen ta çã o” , a im possibilidade teórica de um a rígida d ico ­ tom ía, tal qual postu lada em diversas corren tes do pen sam en to a n ­ trop ológico, entre “ relig iã o” e “ socied a d e” . T al postura levaria, in e­

vitavelm ente, a n ã o ver n o p rim eiro term o m ais que u m a expressão, direta ou tra n sform a da , de outras realidades tidas a priori com o m ais substantivas e /o u determ inantes. Assim, som os con vid ad os a adm itir, num a perspectiva m aussiana, que a religião é em si m esm a socia l e que, p or ou tro lado, o que ch a m a m os sociedade n ã o deve ser tom a d o co m o um a essência substantiva, con sistin d o antes na resultante do in terrela cion a m en to de um a m u ltip licid ad e de planos, ca d a u m deles d ota d o de um certo grau de esp ecificid a d e e a u ton o ­

* CAVAI/3ANTT, Maria Laura Viveiros de Castro — O Mundo Invisível:

Cosmología, Sistema Ritual e Noções de Pessoas no Espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, 143 pp.

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m ia. Neste sentido, em bora a d m itin d o que, p or existir n o m u n do, a religião seja obviam en te p or ele in flu en cia d a , a autora en fa tiza o ou tro lado da questão, o fa to de que a religião é “ um a m atriz de p rod u çã o de valores, de m an eiras de pen sar e se rela cion a r com a realidade socia l m ais a b ra n g en te” (: 10). Deste m odo, o livro p re ­ ten de an alisar as particularidades do E spiritism o en quan to sistem a de cren ças e en quan to p rod u tor de certas “ leituras” e “ ex p eriên ­ cias socia is” bastan te específicas.

O p rim eiro ca p ítu lo discute, assim, questões prelim in ares que visam , basicam ente, a ca ra cteriza çã o do universo in vestigado e a m etodologia u tilizada nesta in vestigação. Deste m od o, devido à d i­

ficu ld a d e em determ in ar precisam ente as fron teira s do que ven ha a ser “ o E spiritism o” — e isto n ã o p o r causa de problem as teóricos ou m etodológ icos, m as sim devido às com plexas e equívocas rela­

ções m an tidas p or este sistem a com outras religiões, em especial co m a U m banda — con v e n cio n a -se tom a r com o lim ites provisórios aqueles m esm os postulados pelo p róp rio grupo. No en tan to, a p ró ­ p ria n o çã o de “ g ru p o” é aqui p rob lem á tica n a m edida em que o ch a m a d o “ M ovim ento E spírita” se apresenta, sim ultaneam ente, de form a u n ifica d a e dispersa. Não que algum a d ificu ld ad e de ordem extern a perturbe o sistem a, m as porque — e aqui já estam os às voltas co m um dos prin cíp ios elem entares do Espiritism o — ele com p orta um a tensão latente entre o e sfo rço de cod ifica çã o , p or u m lado, e a cren ça n o ‘“ livre a rb ítrio ” , por ou tro, cren ça que, com o verem os, consiste n u m dos pilares cen trais de sustentação d ou tri­

n ária do K ard ecism o. P or isto tu do, a m etodologia de tra b a lh o deve se ad ap tar à natureza de seu o b je to , in vestigando, sim ultan eam en ­ te, o eixo co d ifica d o do sistem a (a “ literatu ra esp írita ” ) e suas m a ­ n ifesta ções corfcretas e em parte variáveis — u m “ C entro E spírita”

e um a in stitu içã o a u to -d e fin id a co m o “ cu ltu ra l” — m a n ifesta ções que atualizam d iferentes aspectôs do E spiritism o: o p rim eiro ce n ­ tran d o seu fo c o n a “ ca rid a d e” e n a “ m ed iu n id ad e” ; o segundo p ri­

vilegian do o “ estu do” ; três níveis que, co m o d em on strado n o te rce i­

ro cap ítu lo, con stitu em o p róp rio universo da p rática espírita.

O ca p ítu lo seguinte consiste n um a abordagem da “ C osm ología E spírita” efetuada, basicam ente, a p a rtir da análise da literatu ra dou trin á ria do Espiritism o. O ca p ítu lo se in icia , con tu d o, co m um a breve discussão a cerca das p rin cip a is con cep ções de ritual d esen ­ volvidas e ad otadas p or diferentes teorias a n tropológicas. Esta dis­

cussão, que, in felizm en te, n ão é a p rofu n d ad a , se en cerra com a a d oçã o p o r parte da au tora da co n ce p çã o de ritual p rop osta p or

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L évi-Strauss n o “ F in a le” de “ L ’H om m e Nu” , ú ltim o volum e de suas M ythologiques (cf. L évi-Strauss 1971). A a d oçã o desta perspectiva ta m pou co é ju stifica d a com os detalhes que, p o r sua com plexidade, m erece. O n ã o a p rofu n d a m en to dessa discussão a cerca da n a tu re­

za do ritual, b em co m o a n ã o ela b ora çã o da visão levistraussiana, co lo ca m algum as questões às quais retorn arem os m ais adiante.

Em seguida, passa-se à apresen tação da cosm ologia espírita prop riam en te dita. T a l cosm ologia estaria assentada sobre um a p o ­ sição básica, de tipo hierárqu ico, entre esp irito e m atéria, dicotom ía que en gendra aquela m ais abran gente entre o M undo In visível e o M undo Visível, corresp on d en d o, grosso m od o, à tra d icion a l sep a­

ra çã o entre sagrado e p ro fa n o que D urkheim situava n o n ú cleo do p en sam en to religioso. Esta op osiçã o — e sp írito /m a té ria — ao m es­

m o tem po em que fu n d a tod a a d ou trin a espírita, d eterm in a o sen ­ tid o de sua prática, n a m edida em que existem duas m ediações possíveis entre estes universos postulados, prim eiram ente, co m o dis­

tin tos e separados.

A prim eira m ediação, de ordem d ia crôn ica , correspon de o p rin ­ cip io da reen ca rn ação que faz com que os espíritos do M undo In ­ visível en ca rn em e desen carnem alternadam ente nos corp os m a te­

riais do M u ndo Visível. Este processo c íclico é o responsável p or outro p on to básico da dou trin a espírita, a “ evolu ção dos espíritos” . Estes espíritos, criados p or Deus n a “ ig n orâ n cia e in o cê n cia ” p o ­ dem , devido a seu livre a rbítrio essencial, o p ta r p elo B em ou pelo Mal. Se a escolh a recair n o segundo term o, isto sign ifica , in ev ita ­ velm ente, um a ligação c o m a m atéria (que se situa d o lado do M a l), ou seja, com a e n ca rn a çã o, e n ca rn a çã o que servirá, con tu d o, para a p u rifica çã o e ascensão deste espírito n o sen tido do Bem , graças às p rovações experim en tadas n a vida terrena. Neste sen tido, a es­

co lh a pelo M al só pode ser provisória e aparece com o a con d içã o m esm a da existência do M u ndo Visível.

A lém disso, a teoria da re en ca rn ação fu n d a tam bém a co n ce p ­ çã o de “ pessoa” a d ota d a n o Espiritism o. T od o ser h u m an o seria com p osta, prim eiram en te, de u m c o rp o (m a téria ) e de u m esp írito ; en tre am bos, fu n d in d o -os, estaria localizad o o p erisp írito dotado, p o r sua vez, de um a “ parte su til” , im aterial, etern a e m ais próxim a, p orta n to, d o espírito, e de um a “ parte grosseira” , m aterial, m ortal e ligada ao corpo. Nesta con cep çã o, a “ pessoa” é vista, então, com o possu in do um “ Eu m en or” (o espírito e n ca rn a d o n a vida terren a) e um “ Eu m a ior” , o espírito desen carnado, seja ele “ erra n te” (fa -

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zendo parte ain d a d o c ic lo en ca rn a çã o -d e se n ca rn a çã o -re e n ca rn a çã o ; em processo de p u rifica çã o e ascese, p o rta n to ) o u “ p u ro” (quando, com p leta d a s suas provações, atinge, d efin itiva m en te, o p olo d o B em e n ã o m ais se en ca rn a — destino final, pois, de tod o e s p ír ito ).

Neste p on to, a au tora localiza um dos fo c o s cen trais da d ou tri­

n a espírita, a tensão entre o p rin cíp io do livre arbítrio, que p erm i­

te aos espíritos op tarem pelo M al, to m a n d o , em últim a análise, possvel a vida terrena, e aquele d o d eterm in ism o de o rig em divina, que traça, in exoravelm ente, a m a rch a evolutiva ascen dente dos es­

píritos n a d ire çã o do B em e d o P uro. H averia ain da um a outra form a de co n ta cto entre os M undos Visível e Invisível, de ordem sin cró n ica : a “ com u n ica çã o espiritu al” , que só será, con tu d o, a n a ­ lisada n o d ecorrer do C apítulo IV.

O terceiro ca p ítu lo tenta ca p ta r com o estes p rin cíp ios d ou tri­

nários op era m n a p rá tica de um “ C entro E spírita” particular, co n s­

ta ta n d o que, de fato, a questão cen tra l do E spiritism o parece ser a da in te r-re la çã o entre o M undo V isível e o M u ndo Invisível. Esta in te r-rela çã o tem aqui seu fo co n a idéia de M ediunidade, ta n to de u m m od o direto, ao perm itir a in corp o ra çã o de espíritos em su­

portes h u m an os m ateriais, qu anto de um a form a m ais lateral, na m edida em que, sendo o ob je tiv o ú ltim o desta in corp o ra çã o a d ou ­ trin a çã o dos espíritos, con trib u in d o p a ra sua evolu ção, a m ed iu n i­

dade p a rticip a tam bém do ciclo d ia crô n ico de co m u n ica çã o entre os dois p la n os d o universo. T ra ta -se en tão d o n ódulo cen tra l de tod o o sistem a e é à sua análise que o C apítulo IV, que con stitu i a m a ior p a rte d o livro, está con sagrad o.

De in icio , u m a ráp id a revisão de algum as das p rin cip a is p osi­

ções teóricas m an tidas pela A n trop olog ia em relação aos fe n ô m e ­ n os de êxtase, transe, possessão, m ediun idade, ou co m o se queira ch a m á -lo s. C on stata-se fa cilm e n te que tais perspectivas rep rod u ­ zem de m od o bastan te fiel as teorias sobre ritual recenseadas n o in ício do p rim eiro capítulo, e que, p ra tica m en te, todas elas estão baseadas n um a con ce p çã o de religião co m o realidade destacável do tod o socia l e que agiria re fletin d o estruturas m ais fu n d am en tais, co n ce p çã o já critica d a e desca rta d a n a “ A presen tação” do livro. A autora p rop õe en tão um a abordagem da m ediun idade que visa res­

gatar a e sp ecificid a d e do E spiritism o, sem pressupor a existência de um a rep rod u çã o de outros níveis da realidade social.

Esta esp ecificid a d e será loca liza d a n o m od o pelo qual a m e­

diunidade espirita articula os diferen tes plan os da C osm ología e

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da N oção de Pessoa n o Espiritism o. A “ in d ivid u a lid a d e” h u m a n a é ai con ceb id a com o p recária e in com p leta n a m ed ida em que co m ­ porta elem entos de distintas p ro v en iê n cia s: o co rp o m aterial, o espírito lm aterial (bem co m o o p erispírito e suas subd ivisões). A

“ recu p era çã o” da totalidade desta in dividualidade só pode se dar com a ascensão do espírito ao estado de E spírito Puro, n ã o mais su jeito às reen carn ações sucessivas, ú nica situação de u nidade co m ­ pleta. Deste m odo, a m ediun idade em geral e, p articularm en te, em sua form a ritual de in corp ora çã o, fu n cio n a co m o um m om en to p ro ­ visório de ju n çã o do M u ndo Visível e do M u nd o In visível e então, con seqü entem en te, dos diversos com p on en tes da pessoa h um ana, fo rn e ce n d o um a espécie de a n tecip a çã o de sua unidade últim a que só viria a ser realm ente atingida n o m om en to em que, livre de tod o con stra n gim en to m aterial, a “ pessoa” se con v erte em Espírito Puro.

F inalm ente, na “ C onclusão” são retom ados os tem as centrais do livro, especialm ente as questões das relações entre “ relig iã o” e

“ socied a d e” e entre ritual, transe e n o çã o de pessoa, bem co m o o p roblem a das fron teiras entre K a rd ecism o e U m banda. É ex a ta ­ m ente a cerca de tais pon tos que acred ito im p ortan te efetu a r algu­

m as observações, n o in tu ito de in d ica r co m o as valiosas p ersp ec­

tivas propostas n o livro a cerca destes tem as, que são cru ciais para a reflexão a n trop ológ ica , poderiam talvez ser desenvolvidas.

Em prim eiro lugar, a questão das fron teiras “ extern as” d o Es­

p iritism o K a rd ecista. A célebre tese de C ândido P rocóp lo Ferreira C am argo (1960), sobre o “ con tin u u m m ed iú n ico” parece ain da guiar as especu lações neste terreno. E, n o en tan to, o p roblem a desta h i­

pótese n ã o é apenas seu ca rá ter n itid am en te etn ocên trico, com o in dica, ju stam en te, M aria Laura C avalcanti ( “ K a rd ecism o = con s­

ciên cia, sobriedade, ética e U m banda = in con sciên cia , ritualism o e m a gia ” (: 15). T ra ta -se de um a questão m ais grave, pois C am argo supõe, a o fa la r em “ con tin u u m ” , que é possível passar de um p on to a ou tro do sistem a através de sim ples a dições e subtrações de ele­

m entos, o que se, de fa to, corresp on d e ao “ m od elo co n scien te ” apre­

sen tad o geralm ente pelos fiéis, n ã o dá co n ta d a natureza ú ltim a do fen ô m e n o em questão. Em ou tros term os, tudo se passa ao con trá rio da a firm a tiva de C am argo de que o “ con tin u u m ” existe de form a in dep en den te das d istinções efetuadas pelos pra tica n tes; estes, ge­

ralm ente, sustentam a idéia do “ con tin u u m ” , m as é n o p lan o teórico que a h ipótese n ã o se sustenta. E n ã o se sustenta porque a relação

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entre as diferentes religiões m ed iú n ica s é m u lto m ais com p lexa , ex igin d o p a ra ser desvendada a d eterm in a çã o das leis de tra n sfo r­

m a çã o bastan te sofisticadas que regem o sistem a. Assim, ao p a s­

sarm os d o K ard ecism o para a U m banda, observam os que a posses­

são “ in co n scien te ” tra n sform a -se de m a l obsid ian te em m eló p riv i­

legiado de co n ta to com as en tidades espirituais, entidades que, p or ou tro lad o, n ã o in corp ora m para serem “ dou trin ad as” m as, a o c o n ­ trário, para, n u m certo sen tido, d o n trin a r os h om en s (a con selh á - los, a ju d á -lo s, e t c . . . ) . Se seguirm os a g ora da U m band a até o C an ­ dom blé, con sta ta m os que a natureza destas entidades espirituais se altera ra d ica lm en te: deixam de ser vistas com o “ espíritos de m o r­

tos” e passam a ser cultuadas co m o divindades plenas que n ã o in ­ corp ora m n em p a ra d ou trin ar n em para serem doutrinadas. P or ou tro lad o, os espíritos de m ortos n ã o possuem n in gu ém n o C an­

dom blé, p od en d o, n o m áxim o, p ertu rbar os m ortais, de u m m odo j á m ais sem elhan te a o que o corre n o K ard ecism o. Ora, é evidente que ca d a tra n sform a çã o destas se fa z a com p a n h a r, n o m esm o p lan o ou sobre ou tros, de ou tra s tra n sform a ções de ca ráter a n á lo g o ou distin to, o que sig n ifica que se preten d erm os d a r co n ta d o ca m p o dás religiões m ediúnicas, ta l qual se m a n ifesta m n a sociedade b ra ­ sileira, n ã o pod erem os nos co n ten ta r c o m u m esquem a lin ear sim ­ plista, sen do obrigados a con stru ir u m com p lexo quadro em que ca d a religiã o co n creta atualiza virtualidades e p oten cia lid a d es d e i­

xad as em a berto pelas dem ais. Neste sen tido, então, o ch a m a d o

“ sin cretism o religioso” poderia ta m b ém ser en ca ra d o n ã o co m o um am álgam a bru to de traços de p rov en iên cia s distintas, e sim com o u m a espécie de síntese estrutural de sistem as que já m a n têm entre si n ão apen as relações de ord em h istó rica m as, e p rin cip alm en te, relações lógicas de tra n sform a çã o que to m a m possíveis as p rim ei­

ras. As “ fron te ira s” em píricas ou con scien tes entre os cu ltos n ã o seriam , pois, m ais que m a n ifesta ções con creta s e, necessariam ente, d eform a d a s destas leis básicas que g overn a m a existência e a in te r - p en etra çã o dos cultos.

A gora, qu anto à in te r-re la çã o ritu a l/tra n se /p esso a , a autora, co m o fo i d ito acim a, em bora esboce em d iferen tes m om en tos d o livro sua c o n ce p çã o teórica a cerca destes três term os — que estão lon ge, sabe-se, de possuir um sig n ifica d o u n ív o co n o ca m p o da A n tro p o ­ logia — , n ã o e x p licita seu m od o de v er a a rticu la çã o co n cre ta en tre esses três con ceitos. M ais d o que isso, n ã o fic a clara a a p lica çã o da n o çã o de ritual n a análise da co n ce p çã o de pessoa e de transe.

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E, n o en tan to, p a re ce -m e que M aria Laura C avalcan ti toca n o p on to essencial da questão ao se p ro p o r adotar a n o çã o de ritual esbo­

ça d a p or Lévi-Strauss. T al com o a autora a resum e na págin a 33, este m od o de en ca ra r o ritual p rop õe situ á -lo nas an típodas do p en ­ sam en to m ítico, ven do nele um a ten tativa desesperada do p en sa­

m en to em recu perar um a u nidade e u m a con tin u id a d e do m u n do vivido, n ecessariam ente, abolidas p o r seu p róp rio exercício, que exige, eviden tem en te, corte, con trastes e descon tin u idades. Nesta perspectiva, n ã o é d ifíc il p erceb er que o transe (m ediú n ico ou de possessão) consiste num a op era çã o plen am en te ritual, n a m edida em que busca u n ir aquilo que o pen sam en to cla ssifica tório teve que separar. No caso p a rticu lar do Espiritism o, esta u nião é buscada exatam en te entre o M undo Invisível e o M u ndo Visível, entre o es­

p írito e a m atéria, os dois plan os nos quais o universo é co m p a r- tim en talizado n o n ível d o sistem a de crenças. Assim, a m ed iu n id a- de, com o o livro sustenta repetidas vezes, é um a form a particular de articular estes dois níveis que, m esm o n ã o ob ten d o ja m a is sua fu sã o plen a — ou o sistem a, o pen sam en to e a próp ria vida social se deteriam — , se exten u a nesse e sforço tão vão quanto essencial.

P or ou tro lado, esta p erspectiva poderia tam bém dar con ta da questão da “ n oçã o de pessoa” . C om o in d ica M aria Laura C avalcan ­ ti (:4 4 ), lem brand o um a p reciosa co lo ca çã o de L évi-Strauss (1977), parece que, praticam en te, todas as sociedades hum anas postulam um a visão de “ pessoa” com o m u ltip licid ad e “ fo lh e a d a ” ; talvez p o r­

que o e sforço de cla ssifica çã o se estenda até atingir o p róp rio h o ­ m em e, deste m odo, seu sen tido tam bém só possa ser produzido a partir de u m sistem a de diferenças. No en ta n to, é óbvia a existên ­ cia de um a exigên cia de u nidade n o p la n o do vivido que se c o n ­ fro n ta c o m esta co n ce p çã o d iferen cia l da pessoa, o que faz com que, em tod a parte, parece, existam rituais que buscam , exp licita ­ m ente, estabelecer a u nidade desta m u ltiplicidade, situ a n d o-a sem ­ pre, co m o n o E spiritism o, n um m om en to ideal, n o duplo sentido da palavra. Deste m odo, co m p reen d e-se que o essencial do rito n ã o seja o resultado que ele pretende, e que sem pre lhe escapa, m as, ju s ­ tam ente, o e sfo rço p a ra a tin g i-lo.

A p a rtir desta visão, talvez fosse possível en tão esboçar uma ou tra m a n eira de en ca ra r os fen ôm en os ditos religiosos, p recisando, a o m esm o tem po, sua esp ecificid a d e e o ca ráter geral dos m eca n is­

m os que acion a. Pois a religião, tod a religião, se caracterizaria, e n tã o — em op osiçã o aos sistem as m íticos ou sim plesm ente cla s-

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sifica tórios — , p o r ser um a op e ra çã o de con tin u a çã o, op era çã o que se situa do lado da m etonim ia, sim étrica e inversa ao e sforço m eta ­ fó rico que m a rca o totem ism o e o m ito (cf. L évi-Strauss 1975:28-32;

L évi-Strauss 1976:256-262). Assim, a questão da esp ecificid a d e de cada sistem a religioso p a rticu lar p od e ser recoloca d a , pois, se é verdade que esta esp ecificid a d e deve ser adm itida sem discussões, com o p o n to de p artida, n o in tu ito de evitar tod a p ro je çã o ou re­

du ção de ca rá ter etn ocên trico, o fim ú ltim o da pesquisa a n tro p o ­ lógica só pode ser sua su peração e a d eterm in a çã o de um p lan o com u m dos fen ôm en os religiosos com os dem ais processos de p e n ­ sam ento. C om o dem onstrou L évi-S trau ss (1975:107), não é possível pa ra o an trop ólog o, n em separar o d om ín io religioso dos dem ais processos sociais, sob pen a de ca ir em um a estéril fen om en ología, nem ‘‘apenas co n to rn a r o fe n ô m e n o ” com o um a abordagem afetiva ou m esm o sociológica. T ra ta -se, en tão, de ver a religião com o porta de acesso acjs “ m ecan ism os do p en sa m en to” .

Além disso, e finalm en te, caberia in d agar se ao pressupor que a religião é prod u tora de valores e m atrizes de sentido e leitura da realidade social, M aria Laura C avalcan ti está, de fa to, com o supõe, su perando a tra d icion a l d icotom ía relig iã o/socied a d e. P arece antee que, ao recusar com in teira ju stiça um redu cion ism o do prim eiro ao segundo term o da oposição, ela term in a p or inverter a equação e apon tar, sim plesm ente, para os efeitos que a religião exerce sobre a sociedade, m an ten d o, con tu d o, a form a essencial da colo ca çã o criticada.

Sem p reten d er respon der aqui a um a questão de ta l am plitude, que toca o co ra çã o da próp ria pesquisa a n trop ológ ica , esp ecia lm en ­ te quando esta se dirige cada vez m ais para a in vestigação das so ­ ciedades ditas com plexas — sociedades que, p or sua própria n a tu ­ reza, colo ca m co m m ais vigor, talvez, o problem a geral da estru tu ­ ração socia l em níveis e o da in te r-rela çã o de tais níveis — , cu m ­ priria, con tu d o, assinalar que ou tras m odalidades de articu la çã o entre os vários planos sociais (se é que esta form u la çã o possui um sen tido) podem , perfeitam en te, ser con cebidas. Assim, no que diz respeito, por exem plo, ao C andom blé, R oger B astide (1955) isolou o que ele den om in ava “ p rin cíp io de co rte ” , p rin cíp io que separaria totalm en te, d o p on to de vista do fiel do cu lto, as experiên cias v i­

vidas n o in terior do sistem a religioso daquelas experim en tadas no restante de sua vida. Isto pode sig n ifica r, talvez, que cada religião

— e n ã o a religião em geral — possa m anter articulações distintas (n a form a e n o con teú d o) com os ou tros fatos sociais, o que c o -

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locarla de m a n eira n ova as questões da totalidade social e da soli­

dariedade entre plan os sociológicos, sem que tivéssem os que apelar, necessariam ente, para a p rob lem á tica n o çã o de u m “ eu ” u nitário que atravessaria in cólum e estes planos e níveis. Deste m odo, ainda que “ O M undo In visível” n ã o respon da diretam en te a este im p o r­

tan te p roblem a a n trop ológ ico — e n em é sua in ten çã o fa z ê -lo — , ele possui com o um de seus vários m éritos a virtude de in d icá -lo , ln cita n d o -n o s assim a in v estig á -lo e ten tar sua resolução.

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BIBLIOGRAFIA

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